Texto

Falando disso, desenterrei esse texto aí embaixo, que escrevi quando o disco fez dez anos.

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O mundo esperava por aquele disco. Depois de tomar o mundo de assalto com canções grudentas e atitudes inesperadas, aqueles moleques pararam de excursionar e se enfurnaram no estúdio. Era o momento da verdade: pra muitos, eles não passavam de uma armação, de um golpe de marketing; pra outros, haviam esgotado sua criatividade. Até que no mês de julho do verão do amor eles desvendaram o disco que dividiria o mundo em duas partes – antes e depois de…

Não, não estamos falando de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, apesar do parágrafo acima se encaixar perfeitamente na situação dos Beatles antes do lançamento de seu disco mais emblemático. Os moleques desta história não são quatro e sim três: Michael Diamond, Adam Horovitz e Adam Yauch, três nova-iorquinos conhecidos pelo mundo como Mike D, Ad-Rock e MCA. Os Beastie Boys têm mais em comum com os Beatles do a vizinhança na ordem alfabética.

Como os Beatles, os Beasties eram brancos invadindo um terreno negro e se apropriando deles sem impor sua brancura. Não foram apenas os primeiros rappers brancos: foram os primeiros a serem reconhecidos e festejados pela comunidade negra. Apesar de começarem como uma banda de hardcore, abraçaram o rap de brincadeira – em Cookie Puss – e descobriram, quase por acaso, o vasto campo inexplorado que era o gênero que, na época, não tinha nem dez anos de existência.

Como os Beatles, assustaram o mundo com seu comportamento iconoclasta e humor peculiar. Mas enquanto os quatro de Liverpool vinham com cabelos compridos demais para época, desconcertando jornalistas com respostas nonsense, o trio de Nova York agrediam os brancos ortodoxos ao entrarem no gênero do submundo como opção artística, chocando jornalistas com respostas malcriadas, cheias de palavrões e sexismo. Enquanto os Beatles deixavam pais de cabelos em pé ao pedirem para suas filhas segurarem suas mãos, os Beasties pediam para outras filhas segurarem outra coisa.

Misturando rap com heavy metal, eles transformaram o rap em algo realmente grande. Apesar do Run DMC ter investido na mesma fórmula em 85 e 86 (com o disco King of Rock e depois com “Walk This Way”, ao lado do Aerosmith), o som dos Beastie Boys era inteiramente calcado na fusão acima e ganhou público graças a dois pontos básicos: eram brancos e eram do contra. Logo, o que para eles era apenas o diário de suas adolescências se tornara o guia das festas colegiais pelo planeta. Seu hino era sua razão de existir: Você tem que lutar pelo direito de se divertir (“You Gotta Fight for your Right to Party”).

Licensed to Ill, lançado em novembro de 1986, foi um dos discos de estréia mais vendidos de todos os tempos e continua sendo, convertendo novas gerações ao niilismo boca-suja do início da carreira do trio. Com o sucesso do disco, produzido por um dos donos da gravadora Def Jam, Rick Rubin (que muitos achavam ser a mente por trás do sucesso do grupo), o trio entrou numa imensa turnê, que só terminaria dois anos depois. No meio do caminho, um palco decorado com um pênis gigante inflável e garotas enjauladas, vários hotéis destruídos, processos e protestos, uma briga feia com os tablóides ingleses, palavrões, festas e orgias, cerveja, drogas, provocação, barulho e muita confusão. Era o espírito de excesso do rock numa banda de rap.

Mas chegou uma hora em que toda farra cansou. O contrato com a gravadora deles não os interessava e a Capitol pagou a multa para tê-los em seu elenco. Perseguidos pela mídia – atrás de declarações bombásticas -, pela direito – atrás de seus pescoços – e pelo público – atrás de mais ultraje e festa -, pediram água e tempo pra descansar. Saíram de Nova York e foram pra Los Angeles, só pra curtir. Sem compromissos ou cobranças, aproveitaram o sol californiano para renovar as baterias. Enquanto relaxavam, pensavam como poderiam voltar a fazer barulho sem as encrencas que haviam se metido. Até que Matt Dike, produtor do rapper angeleno Tone Loc, lhes entregou a chave – dentro de uma fita.

Na fita, dois DJs locais, John King e Mike Simpson, desfilavam canções compostas apenas de pedaços de músicas alheias. Como os Beastie Boys, John e Mike – os Dust Brothers – eram branquelos com dois pés no suíngue negro e tinham uma reputação que ascendia à medida que tocavam em festas de faculdade. E com apenas duas músicas, que mais tarde se tornariam “Hey Ladies” e “Car Thief”, eles acederam a lâmpada sobre a cabeça dos três MCs. Qual foi a surpresa ao ver seus três ídolos entrando em seu estúdio: “Gostamos disso, podemos cantar por cima?”, perguntaram aos dois. King e Simpson se olharam, reconheceram o sorriso preso no olhar um do outro e viraram ao mesmo tempo para os três com um “claro!” dentro de uma risada. Eram fãs dos Beastie Boys e trabalhar com eles era como trabalhar com, bem, os Beatles.

Ali começava Paul’s Boutique. Ao perceberem a afinidade com os Dust Brothers, o disco ia saindo quase naturalmente: os Beasties cantavam e sugeriam paisagens sonoras aos DJs que sugeriam imagens aos Beasties. Um processo de colaboração mútua nos estúdios mais caros de Los Angeles, supervisionado pelo futuro George Martin do trio, o brasileiro Mario Caldato Jr., entre partidas de pingue-pongue, fliperama e sinuca – tudo por conta da gravadora. Ao mesmo tempo em que tentavam se livrar da imagem de sexistas retrógrados que haviam passado erroneamente pra todo seu público, levantavam os pilares de seu império cool que regeria parte dos anos 90.

De todos os discos que se pretenderam a alcançar o título de “novo Sgt. Pepper’s”, Paul’s Boutique é quem chega mais perto do disco clássico dos Beatles. As referências cuspidas pelos Beasties e pelos Dust Brothers são um leque de contracultura tão amplo quanto o do disco de 1967, só que com mais minúcia e informação, como pediam os novos tempos. E o fato de ambos haverem sido lançados nos verões do amor de suas gerações – os Beatles lançaram na nascente do movimento hippie, os Beasties na aurora das raves – não é uma mera coincidência.

Ambos discos são festas memoráveis, cheias de gente conhecida. Como os Beatles na capa de Pepper, os Beastie cantavam e sampleavam celebridades de diversas fontes diferentes, criando um novo cânone a ser seguido. Mas ao contrário de Pepper, Paul’s Boutique não começa com uma festa, nem com a banda fingindo ser uma outra banda (no caso dos Beatles, a Banda do Clube dos Corações Solitários do Sargento Pimenta). Começa manso, com apenas o teclado de “Loran Dance”, do funkeiro Idris Muhammad, sob uma homenagem a todas as garotas do mundo – do Brooklin, da França, orientais, brasileiras, suíças, italianas, jamaicanas, dançarinas de topless e aeromoças voando por todo o planeta. Cool e suave, “All the Girls”, precede a típica apresentação rapper que é “Shake Your Rump”. Todo o hard rock foi limado do primeiro plano e o que ouvimos é o velho funk sendo retrabalhado com as músicas do comecinho do rap, enquanto o grupo marca sua volta em grande estilo, disparando referências das mais diferentes: Afrika Bambaataa, passos de discoteca, a família Dó-Re-Mi, bairros de Nova York, Bob Marley, talk shows, Funky 4 + 1, Led Zeppelin, Sugarhill Gang e Fred Flintstone. “Eu sou Mike D e voltei dos mortos”, canta o MC desmistificando um boato que explicaria a demora para o segundo disco ser lançado, “fiz outro disco porque queriam mais disso”. Ad-Rock emenda explicando a vida conturbada do sucesso, “correndo da lei, da imprensa e dos pais”.

O vento que abre “One of These Days” do Pink Floyd, a percussão de “Momma Miss America” (tocada por Paul McCartney) e a guitarra de David Bromberg (em “Sharon”) constróem a base para “Johnny Ryall”, a história de um mendigo que acha que foi um astro do rockabilly, que “bebe onde está deitado, coberto de moscas” e que “diz que escreveu Blue Suede Shoes”. Citando “Helter Skelter”, dos Beatles; “Night Train”, de James Brown; e “Maggie’s Farm”, de Bob Dylan, “Johnny Ryall” desacelera o ritmo das canções e mostra que os Beastie Boys estão em outra fase.

O primeiro grande momento do disco, “Eggman”, nasce da introdução de “Superfly”, de Curtis Mayfield, e, usando uma série de referências a ovos (“quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?”, “Humpty Dumpty era um grande ovo/ Estava brincando no muro e quebrou sua perna”, “O ovo, símbolo da vida”, “Quando eu falo em dúzia você sabe do que eu estou falando”) contam a história de um de seus passatempos favoritos durante as gravações: jogar ovos nas pessoas. A base, um funk pesado e firme construído sobre músicas dos outros, pode ser entendido como um dos primeiros big beats a serem gravados, influência declarada dos Chemical Brothers e de Fatboy Slim. Ao final, um achado: casando os temas do filme Tubarão e Psicose, os Dust Brothers criam um desfecho memorável para a faixa.

“High-Plains Drifter” tirou seu título de um velho Western com Clint Eastwood e sua letra a la Easy Rider (que conta a história de um sujeito atravessando os Estados Unidos de carro, sendo preso e solto logo depois) contrasta com o clima lento e soturno da base, que mistura “These Shoes”, dos Eagles, com “Put Your Love (In My Tender Care)”, da Fatback Band. O rap lento tem o clima oposto ao rap hippie do De La Soul e não é difícil descobrir que os pais do trip hop – Massive Attack e Portishead, principalmente – beberam desta fonte.

“Sounds of Science” pela primeira vez na história, trata o rap como uma ciência. “Aí vamos nós derramando ciência por todo lado (…)/ Expandindo os horizontes e os parâmetros/ Expandindo as rimas de MCs amadores idiotas”. Citando Galileu, Benjamin Franklin, Isaac Newton, Einstein, eles cantam sobre “um grau de MC que não se aprende na faculdade”. A primeira parte, quase uma canção infantil, é apimentada com os blips de “Walk from Regio’s”, da trilha sonora de Shaft, de Isaac Hayes. A segunda, rouba a bateria de Ringo Starr da faixa-título de Pepper e a base de “The End”, dos Beatles, para acelerar o andamento: “Tenho ciência pra qualquer ocasião/ Postulando teoremas e formulando equações”.

“3-Minute Rule”, outro pré-trip hop, não tem uma história, foi improvisada no estúdio, deixando os três à vontade para falar sobre o que quiserem sobre a base de “Take the Money and Run”, da Steve Miller Band. Mike D começa gabando-se sobre sua desenvoltura com mulheres – “nunca durmo só porque o Jimmy é como um imã” – e de sua precisão – “A gramática não é perfeita, mas o timing sempre é”. MCA – na época obcecado por armas – não perde tempo: “estou com o cano no seu pescoço/ O que você vai fazer?” e começa a falar sobre suas viagens de moto e afins: “Fumo maconha (que eles chamam de “cheeba”) sim, ajuda meu cérebro/ Posso ser meio maluco mas não sou insano”. E explica-se pros pais – “Muitos pais pensam em mim como um vilão/ Estou só curtindo, como Bob Dylan”. Ad-Rock une os dois falando de motos, garotas e de comportamento errático: “Se sua vida precisa de correção não siga o meu rumo”. Interessante o tipo de abordagem que eles dão às mulheres: não são mais apenas objetos, são pessoas pra quem eles pedem desculpas e desdenham. Os garotos estão crescendo e a maturidade que se tornaria sua marca registrada no futuro dá as caras.

“Hey Ladies”, mais um big beat, mistura funks dos Commodores, Cameo, Kool & the Gang e P-Funk All-Stars numa celebração dos anos 70, e, apesar do tema principal ser mulheres, prefere falar das artimanhas da conquista do ponto de vista deles, num outro grande momento do disco. Em seguida a vinheta hillbilly “5-Piece Meal” (o banjo e a rabeca de “Shuckin’ the Corn”, de Eric Weissberg, acompanhados de gritos de caubóis e índios) antecede a pesadaça “Looking Down the Barrel of a Gun”, um rap construído sobre uma guitarra truculenta que pode ser considerado pai do chamado new metal – de Deftones a Korn -, tanto que quase foi regravado pelo Sepultura em Roots. É a faixa mais violenta do disco, citando Laranja Mecânica, Rambo, Duro de Matar, o serial killer Son of Sam e calibres 22.

A dobradinha “Car Thief”/”What Comes Around” se aproxima do final do disco em outro ancestral do Massive Attack. “Car Thief” enfileira as drogas usadas pelo trio: biscoitos de haxixe, cigarros com cocaína, ecstasy e maconha (“eu não compro, eu planto”) sobre uma base que mescla “Rien Ne Va Plus”, da Funk Factory, e “I Bet You”, do Funkadelic. A virada da batera de “Moby Dick”, do Led Zeppelin, encaixa “Car Thief” em “What Comes Around”. Num clima “aqui se faz, aqui se paga”, eles falam de garotas, skinheads, “colher o que plantar” e respeito, afinal “o teto de um homem é o chão do outro”.

“Shadrach” é a última faixa propriamente dita. Alicerçada em “Booty Loose”, do Sly & Family Stone, ela volta a celebrar os próprios autores, ao citar os personagens bíblicos Shadrach, Mesach e Abednego, que foram salvos do fogo pela própria fé – “Três MCs e estamos indo”. Parente direta de “Shake Your Rump”, “Shadrach” encerraria Paul’s Boutique em grande estilo, se eles não insistissem em colocar todos os melhores momentos.

Daí surge “B-boy Bouillabaisse”, logo depois de “Ask for Janice” (uma espécie de comercial de rádio para a Paul’s Boutique, uma loja que não existe), que reúne, como o lado B de Abbey Road dos Beatles, várias canções curtas – raps crus em sua maioria – numa grande caldeirada, como insinua o nome. Ela começa com a sacana, “59 Chrystie St.”, passa pela caseira “Get on the Mic” (com bateria vocal e samples do pré-rapper Lovebug Starsk), entra no funk lento de “Stop that Train”, chega ao auge no excelente tour-de-force de MCA (gravado no microfone de um capacete de piloto de guerra) em “A Year and a Day”, reduz à velocidade na pré-gangsta “Hello Brooklyn”, recupera o fôlego em “Dropping Names” e segue intacta na cavalar “Lay it On Me” e na direta “Mike on the Mic”, encerrando suas atividades na despedida que é “A.W.O.L.”, que termina sem firulas dando boa noite a Amsterdam. Não precisa ser nenhum expert pra entender porquê. No finzinho, o teclado de “All the Girls” volta pra encerrar como o disco começa.

Um épico rapper, ele mostra que o grupo estava cheio de idéias e não queria desperdiçar nenhuma delas – e falam disso o disco todo: “Minha mente está borbulhando como um poço de petróleo”, “tenho mais histórias que J.D. Salinger”, “as palavras fluem como se estivesse no Grand Canyon”, “tenho mais ações que (a companhia de advocacia) Jacob & Meyers”, “tenho mais rimas que as mangas na Jamaica”. Paul’s Boutique é repleto de informações diferentes e, mais importante, amadurece a banda à força. Talvez por isso o público não entendeu e o disco não vendeu o tanto quanto se esperava. O que foi ótimo: sem a cobrança da gravadora, eles montaram seus próprios estúdio, gravadora, revista e grife de roupas, juntando nomes tão diferentes quanto Atari Teenage Riot, Sean Lennon, Luscious Jackson e DJ Hurricane embaixo de seu teto, criando seu próprio pequeno império. E se formos prestar atenção (trip hop, big beat, ecstasy, revival dos anos 70, samples em profusão, citações fora de contexto, ecletismo, gêneros diferentes colidindo e dando origem a outros novos, o rap como cimento musical e muito mais coisas – basta caçar), vemos que o clichê “à frente de seu tempo” se encaixa como uma luva no disco. Paul’s Boutique pode não ter sido reconhecido há dez anos, quando foi lançado, mas hoje é claramente um marco. O Sgt. Pepper’s do século 21.

Calma, que isso é fake – ainda.

Daqui a pouco teremos o primeiro anúncio de uma nova série de produtos da Apple que não contará com a presença de Steve Jobs e a boataria sobre os motivos da ausência do fundador da empresa no tradicionalíssimo discurso na MacWorld em janeiro que ele teve de escrever uma carta aberta ontem explicando os motivos que obrigaram-no a se ausentar da feira esse ano:

As many of you know, I have been losing weight throughout 2008. The reason has been a mystery to me and my doctors. A few weeks ago, I decided that getting to the root cause of this and reversing it needed to become my #1 priority.

Fortunately, after further testing, my doctors think they have found the cause—a hormone imbalance that has been “robbing” me of the proteins my body needs to be healthy. Sophisticated blood tests have confirmed this diagnosis.

“Desequilíbrio de hormônios” que muita gente vem especulando ser eufemismo pra câncer, mas Jobs não toca no assunto.

Enquanto isso, cresce a boataria sobre o que pode ser o grande anúncio da empresa para 2009. As apostas incluem a ampliação do sistema de entretenimento digital que a empresa aos poucos está montando ao redor do iTunes (linkando Apple TV, locações digitais de filmes e seus portáteis numa mesma experiência), o anúncio do fim do DRM nas faixas vendidas via iTunes, servidores de mídia com conexões sem fio, a entrada da empresa na área de software online e o lançamento de um novo tablet, criado a partir do sistema operacional do iPhone.

Eu aposto em dois itens: um Mini Macbook, que seria versão da empresa para os netbooks/mininotebooks que começaram a desequilibrar o mercado em 2008, e o iPhone Nano aí em cima. O pequeno notebook já era especulado antes mesmo do lançamento do Macbook Air na Macworld em que fui no ano passado e alguns jornalistas com que conversei comentavam que o próprio Air tinha sido uma solução feita às pressas para apresentar um produto novo que combinasse a miniaturização do hardware Apple e os ataques que ecologistas fizeram à empresa. Que seria um meio-termo entre o Macbook e esse subnotebook que a empresa lançaria agora – reempacotando o produto da forma que só eles sabem fazer. Foi assim que, com o iPod e o iPhone, eles transformaram o MP3 player e o celular em itens que não eram apenas ícones de status, mas de cooleza, “mudernidade”. O iPhone Nano, que seria uma versão mais simples e mais barata para o telefone da Apple, já estaria sendo fabricado na Chinaenquanto versões fakes começam a aparecer antes mesmo do produto existir (que mundo lóki!).

Tudo isso porque a Apple está em uma bela sinuca de bico. Afinal, ela sempre se orgulhou em ser uma empresa de nicho e que esse pequeno e fiel séquito lhe garantiria o status necessário para se manter no mercado. Mas a partir do momento em que o iTunes, o iPod e o iPhone começaram a lhes dar o gostinho da popularidade global em escala massiva, a empresa parece ter gostado da brincadeira e está disposta a entrar no mercado. Afinal, por maior que seja o sucesso do iPhone, ele não chega nem perto das centenas de milhões de telefones que produzem, cada uma das cinco principais fabricantes do mercado (Nokia, LG, Samsung, Motorola e SonyEricsson). E também não custa lembrar que o sucesso do iTunes se deve à miopia administrativa do setor fonográfico. Idéias, a Apple tem. Resta saber se tem fôlego para brigar com os grandes.

Vamo facilitar?

Taí uma boa dica pra 2009 *

E aí, descansou? Eu sim – cinco dias completamente desplugados no meio do mato, alternando caminhadas, refeições, música, filmes e livros ao lado da melhor companhia do mundo, completamente zerado para começar mais um ano que promete, pra variar, ser melhor que o anterior. Alheio ao que acontecia na Faixa de Gaza, se vai rolar mesmo o lançamento de Watchmen ou como vai ser a próxima Campus Party, retomo a realidade na marra e começo os preparativos para encarar o ano novo.

OEsquema chegará ao fim de sua primeira fase em breve. A casa que estou construindo com o Bruno, o Arnaldo e o Mini, por sua natureza digital, não pressupõe necessariamente um fim em si – nem sequer sua natureza unicamente digital. Mas essa versão dos nossos quatro saites que estreou no dia 8 de agosto do ano passado não teve o nanquim aplicado por enquanto. O conteúdo propriamente dito já está valendo, mas a moldura ainda é um rascunho, um esboço. Estamos finalmente arte-finalizando OEsquema neste mês e logo estrearemos sua nova cara. Não é muito diferente dessa que vocês estão vendo, mas os detalhes estarão na cara (seria mais fácil meter um “fase beta” debaixo do logo, mas achamos besteira.

E essa não vai ser a única novidade dOEsquema no ano, fiquem certos.

Mas, por enquanto, vou acionando as novidades do meu terreno. Então segue um mashup de bula com manual de instruções do Trabalho Sujo durante 2009. Todos os dias, de segunda a sexta, funcionarão assim: pela manhã eu trago músicas e imagens. É claro que sempre pode pintar um texto, uma notinha, um post aleatório. Mas como neguinho ainda tá acordando pela manhã (independente de estar ou não no trabalho), vou deixar o clima mais na buena e exigir menAs cacetração. Então tome mixtape, trocadilho visual, gif animado, banda nova, fotojornalismo sampleado, JPG motivacional, remix, pôsteres, disco que vazou, fotos antigas, música lembrada em cima da hora, Flickr alheio, estampa de camiseta, nostalgia e novidade. Nada com horário estabelecido ou fluxo de publicação determinado – tem que vir pra ver.

Durante a tarde e a noite começam a pintar os textos, que tentarei deixar mais compactos e direto ao ponto – desde resenhas de filmes, discos, quadrinhos, livros e shows a comentários aleatórios sobre as notícias, o que acontece em São Paulo ou por onde passo. Mas é claro que não abandono os textos gigantescos – vocês sabem como eu gosto deles. Mas, uma vez que estou enfurnado cinco dias por semana em uma redação, não dá tempo de discorrer demais – daí os posts curtos. Os mais longos ficam arquivados na categoria Fora de Controle (caso você nao saiba).

E lembrando também que rolam algumas mudanças na programação semanal, ó só:

* Toda segunda-feira eu sigo linkando as matérias do Link, caderno de tecnologia e internet que edito no Estadão. Vem novidades nessa área ainda esse mês, já pra começar o ano bem.

* Vida Fodona agora é toda segunda-feira e a a partir de hoje mesmo eu já começo.

* Toda terça-feira tem os Cinco Vídeos para o Meio da Semana.

* Quarta, que era o dia original do Vida Fodona, continua com versões esporádicas do podcast. Quando der vontade, ele volta no meio da semana. Mas, junto com a quinta-feira, a quarta vira um dia de improviso. Rola o que der na telha, o que estiver rolando durante a semana, a mania da quinzena, o exorcismo que precisar.

* Sexta-feira tem o já clássico Uma Sexta-Feira, Um Mashup.

* Sábado vira dia de folga: a Mixtape de Sábado vai para o domingo e eu só apareço por aqui se me der na telha – ou quando tiver Gente Bonita.

* Domingo é dia de Palavras para o Domingo e da antiga Mixtape de sábado. Como as duas seções passarão por transformações, elas devem ganhar novos nomes e formatos, que eu defino até o domingo que vem. E também é dia do Link Eldorado, o programa que apresento com o Fabião e o Otávio as novidades do Link da segunda-feira.

Lembrando que estou no meio da retrospectiva de 2008, que a partir de janeiro sai dos discos e músicas e começa a compilar shows, livros, filmes e acontecimentos do ano passado. Além disso, vou resgatar uma seção que eu tinha no Trabalho Sujo dos tempos de papel, o Alerta – Sangue Novo, em que eu apontava o nascimento de bandas brasileiras novas (a primeira foi o Sala Especial, mas lembro de ter falado do Los Hermanos, do Butchers’ Orchestra, do Autoramas e do MQN, entre outras bandas). Fora o compromisso com o passado: além de resgatar o primeiro semestre de 2008 (que perdeu-se no transplante do Gardenal pra casa nova), vou começar a retaguear e a recategorizar tudo que ficou para trás – além de ressuscitar textos do arco da velha. Mas isso é um processo lento, longo e sem prazo definido – pois ainda incluirá todas as edições impressas do Sujo em seus tempos de coluna de jornal.

Seções fixas – como o Leitura Aleatória (que aparecia a cada dez posts – ou você não havia percebido?) e o 4:20 (que vai parar de funcionar no fim de semana) – deixam de ser tão rígidas assim. E outras surgirão no meio do caminho. Essa é mais ou menos a programação pra esse ano.

Desde o final de 2007 retomei o ritmo de postagens no Sujo a partir de uma provocação do Mr. Manson em relação à qualidade dos blogs. A alfinetada, que faz sentido, dizia que blog bom é feito por quem não tem mais nada pra fazer – na hora em que o blog virava emprego, ficava chato e sem graça. Resolvi transformar o tempo que passava na frente do computador na redação em uma forma de voltar a alimentar o Sujo, que vinha funcionando mais como um repositório de frilas, matérias, festas, debates e palestras que eu andava fazendo do que um canal com conteúdo próprio. Muito por conta do crash do Gardenal em 2005, que deletou três anos de postagens da história e, de certa forma, foi o big bang dOEsquema. Quando eu, Bruno e o Arnaldo perdemos tudo naquele blecaute digital, já começamos a conversar sobre a possibilidade de sairmos do aluguel (mesmo que o Gardenal não fosse pago) e montarmos nossa própria casa, que é OEsquema. Desde 2005 não me empolgava com o Sujo quanto no último ano – período que, além da perda dos arquivos do Sujo, ainda coincidiu com a minha estada na Trama e com a morte do meu velho carrinho, que, olhando agora em perspectiva, foi crucial para o nascimento do Vida Fodona e da Gente Bonita, minhas paixões nos últimos anos.

Mas 2008, o décimo terceiro, foi ano de retomar o Sujo, entender e inventar mecanismos de postagens e transformar o saite em mais do que uma vitrine para o meu trabalho. Hoje, ele é uma ferramenta que me ajuda a pesquisar o que está acontecendo; me obriga a me atualizar em áreas que, se eu deixasse, fugiriam do meu radar; me conecta inevitavelmente com algumas das pessoas mais legais hoje em dia e, óbvio, me diverte.

E é isso que importa. Por isso, não leve tudo tão a sério – é uma dica que serve pra qualquer hora.

E feliz 2009. Você sabe, vai ser “o” ano!

* A imagem que ilustra esse post saiu do livro/site Designing Interactions, do Bill Moggridge, um livro que acho que o Mini e o Eduf iriam adorar se dar de presente.

“Soooomewheeeeere ooover the raaaainbooow…”

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Fora todo o papo ético, econômico, legal e criativo ao redor do lançamento de In Rainbows, o disco que o Radiohead disponibilizou ao público em versão digital, há uma questão semântica que, pela banda, parece estar mais bem resolvida do que com a gente, os ouvintes. Logo depois que o disco deu as caras era muito comum ouvir as pessoas falarem que “a banda vazou o próprio disco”, como se não só em MP3 não estivesse valendo. O grupo cutucou ainda mais essa ferida ao programar o lançamento de In Rainbows em CD para o primeiro dia de 2008. De que ano é esse disco?

É claro que In Rainbows é de 2007. Mesmo se a versão física lançada pela banda chegasse para os fãs depois de janeiro, o disco tornou-se conhecido e ouvido no ano passado. O próprio Radiohead mais uma vez reforçou a datação de In Rainbows ao tocá-lo na íntegra em um show transmitido na noite de ano novo pela internet – não era uma apresentação ao vivo de um disco que ainda não existia fisicamente e sim a consolidação de um disco que existira até ali sem precisar do CD.

Em matéria de Radiohead, nenhuma novidade. O grupo foi protagonista do primeiro grande incidente envolvendo música digital, quando Kid A apareceu primeiro na internet (no Napster) e depois nas prateleiras de disco, no ano 2000. E o disco em questão não era nenhum arco-íris: Kid A é daqueles álbuns que frustram o fã por pular no abismo do experimentalismo. No holofote da expectativa, o Radiohead conectou-se com as principais vanguardas sonoras da virada do século e, quando apareceu primeiro na internet, parecia pegadinha. Muitos duvidaram se aquele era o disco de verdade, podia ser só uma gozação da banda. Não era. Kid A chocou ortodoxos, revoltou estreitos e encantou uma geração inteira de ouvintes que deixou-se levar pela viagem da banda.

Em 2007 o grupo repetiu a pegadinha, desta vez invertida. Foi indubitavelmente a banda quem avisou que o disco havia saído de sua esfera privada para a pública, algo que inevitavelmente aconteceria em alguma etapa do processo de transformação da música em uma rodela chata prateada. Entre o estúdio e a prateleira da loja, o disco passaria por inúmeras mãos – muitas delas de fãs do grupo, outras recebendo dinheiro para contrabandear o material. Qualquer um – no próprio estúdio, na fábrica de discos, na distribuidora, em qualquer etapa do marketing do novo álbum até na loja. Como sentira na pele há sete anos, o grupo sabia que era questão de o disco ficar pronto para que ele atingisse o ouvido público.

Por isso, o Radiohead foi na contramão. Preferiu ele mesmo dar o disco para os fãs, pois estes, independente de comprarem ou não o disco, iriam baixar qualquer registro inédito do grupo que parecesse ser novo material. Como já estava: todo o In Rainbows era composto por músicas que o Radiohead já trabalhava há anos e logo em que a seleção das faixas foi anunciada já era possível montar o clima do novo disco sem sequer ter o ouvido – apenas enfileirando corretamente vídeos caseiros da banda em turnê. Quando o disco de verdade apareceu (dia 10 do 10, 10 dias depois de ser anunciado, yadda yadda yadda) apenas confirmou a expectativa – e, como um efeito dominó, cópias eram feitas dos arquivos originais para armazenadores online de MP3s espalhados pela internet. Para baixar o disco, o grupo pedia o preenchimento de um minicadastro e, uma martelada doída no caixão da indústria do disco, sugeria que o público pagasse pelo disco. A provocação (ao mercado, à indústria, aos fãs, às outras bandas) era clara: “eu sei que você vai baixar o disco de qualquer jeito, mas se você quiser nos dar uma grana, não vamos achar ruim”. E pela primeira vez, podiam medir os downolads!

E, tanto em Kid A quanto em In Rainbows (mas não em Hail to the Thief, que contou com o marketing tradicional), o resultado do fato do grupo ter se beneficiado graças à internet foi consolidado com a chegada ao topo de algumas das principais paradas de discos mais vendidos pelo planeta.Tanto em 2000 quanto em 2007. Simplificando grosseiramente, os discos foram “testados” pelo consumidor antes de serem comprados. “Dados” ou “roubados”, dependendo do ponto de vista.

A gratuidade da música com a era digital é fato. Basta digitar o nome de qualquer música em programas ou buscadores específicos na internet que você vai encontrar. O mesmo pode ser dito sobre filmes, programas de TV, quadrinhos e livros, mas em escalas menores. Música, eu já disse, é o boi de piranha das transformações. É quem encabeça primeiro os tremores de mudanças sociais e, inevitavelmente, acaba sofrendo com isso. O Radiohead resolveu pagar pra ver – ou pedir pra você pagar, feito o moleque das Casas Bahia – se sentia a dor na pele.

Não sentiu – pelo contrário. Saudado como líder da nova revolução eletrônica, o grupo fez um disco irrepreensível – e idêntico ao disco esperado pelos fãs desapontados com Kid A. Convencional e correto, In Rainbows é orgânico em sua natureza e ousado na medida certa, sem exageros. E a reação dos ouvintes também foi inversa: se Kid A espantava, In Rainbows atraía. Muita gente foi ouvir Radiohead com atenção pela primeira vez graças ao marco autodeterminado pelo grupo. E, além disso, muita gente foi baixar música da internet pela primeira vez graças a In Rainbows.

É sério. Tem muita gente que vive completamente alheia à música digital e que trata o mundo de MP3, iPod e MySpace como uma alucinação coletiva ou uma grave debandada das pessoas para a ilegalidade. Com uma propaganda alarmista para tentar evitar uma crise anunciada desde os anos 90, a indústria de entretenimento conseguiu impregnar no imaginário das pessoas a idéia de que baixar conteúdo pela internet consistia em crime. Meu amigo BNegão não vai ligar se eu roubar uma anedota que aconteceu com ele que ilustra perfeitamente esta situação. Um dos primeiros artistas brasileiros a colocar seu disco inteiro para download (o ótimo Enxugando Gelo, se você não conhece, baixe agora), Bernardo recebeu um email de um fã que, morador de uma cidade pequena, não conseguia achar o tal disco para comprar. Ele nem pestanejou e retrucou o email com o link para o site do Centro de Mídia Independente, onde BNegão hospeda seu disco. Mas o sujeito do outro lado não ia baixar o disco, porque “baixar música da internet é prejudicial ao artista”. Posso estar me esquecendo de algum detalhe, mas a essência da história é essa.

É claro que há hierarquias e perfis entre os que baixam música. Há o que baixa os hits da hora usando um programa de P2P – onde também troca games e filmes – e o que fuça blogs de MP3 em busca de artistas desconhecidos. Gente que, mesmo que o artista não deixe sua música para download; liberando só o streaming, vai lá e consegue extrair o áudio na unha. Junkies por torrent que baixam discografias inteiras ou indies meticulosos que incluem até o PDF da capa na pasta de MP3s onde guarda o disco. Gente que troca arquivos via MSN ou que ripa CDs para mostrar para os amigos. São vários hábitos que já existem em relação à música digital e que, por algum motivo idiota, não os consideramos como fato. Não é mais “o que vai ser” – é o que é.

Se você mora em uma cidade com mais de um milhão de habitantes, tem grandes chances de a maioria das pessoas com fone de ouvido na rua estarem levando seus MP3-players portáteis. Com o computador migrando para o telefone celular de vez, será inevitável o dia em que teremos um só apetrecho que tire fotos, ande na internet, fale com outras pessoas e dê para ouvir música e ver filmes (eu quero o meu com isqueiro embutido). E a propalada “inclusão digital” vai estar bem melhor encaminhada…

Por enquanto, estamos exatamente no meio. E quem não usa a internet para ouvir e conhecer música é como uma pessoa que só pode ouvir rádio, mas não pode comprar discos nem fitas: a quantidade de opções, em comparação, é minúscula e você fica a mercê dos outros para ouvir o que quer.

Mas e a música vai ser de graça? “O artista vai viver do que?”, me pergunta sempre um carinha da MPB ou um roqueiro camisepreta. Perguntas ainda sem resposta, mas se você baixa arquivos por um provedor de internet é provável que este seja quem melhor sabe quem está sendo ouvido, lido, assistido. O U2 já fez a sua parte, tornando-se o Metallica dos provedores de acesso ao ameaçar processar todos os servidores que contivessem material pirata do grupo irlandês. Não me assustaria se o final dessa história viesse com um aumento no preço da assinatura à internet no provedor de qualquer um como desculpa de repassar (aham) o valor para os autores das obras. Mas me espantaria se liberassem tudo de graça – que é o único jeito de dar certo na internet atualmente. Mas aí era bem fácil que as pessoas fizessem festas de computador (as famosas Lan Parties) só pra trocar conteúdo entre si. Ou seja: controle? Esquece.

Por outro lado – e as lojas de disco? E os discos? Quanto tempo os discos durarão? Quem ainda gravará discos? Se há um par de anos o fim do CD deixava de ser uma suposição para ser uma possibilidade, hoje é fácil pensar num mundo sem discos. O artista ainda prensa o CD mesmo com a desculpa – plausível – de que o CD é seu cartão de visitas. Mas até quando? Cartões de visita no fim das contas, acabam ficando empilhados e são consultados raramente, quando não jogados fora.

Suspeito que há mais um fetiche do artista em ver sua obra concretizada em algo sólido do que disposição para vender os discos – sequer fazer com que eles sejam ouvidos. Não por falta de vontade na obra do artista, mas por falta de interesse na mídia escolhida. E se isso é visto como um problema para o artista brasileiro (mais do que para o estrangeiro, onde o disco ainda conta com uma sobrevida), eu vejo como uma solução. Sem ter que prensar, vender ou mostrar o disco, o autor poderá focar-se no que realmente sabe fazer. No caso, música.

Marketing Monstro

Cloverfield é muito mais do que parece ser…

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Me amarro nesse tipo de cinema montanha-russa. Não curto pipoca e acho um saco o povo conversando durante a sessão, mas a equação “tela gigantesca + som absurdo + enredos inverossímeis” é um dos principais motivos para eu ainda ir ao cinema – e a maioria dos filmes que me levam para a sala escura são filmes de ação. Não me leve a mal – meus cineastas favoritos ainda vivos são Cronenberg e os irmãos Coen, mas fazem filmes que cabem na tela da TV. Já épicos de som e fúria como este Cloverfield são feitos para serem assistidos no cinema. Esse tipo de cinema de ação é uma das molas-mestras de Hollywood (junto com o sistema de atores-celebridades) e é um dos principais avanços da história recente da sétima arte. A criação, à base de efeitos especiais (tanto em áudio quanto em vídeo), movimentação de câmera e proporções gigantescas, de um parque de diversões para os sentidos que gruda o espectador por toda sua duração na poltrona é, essencialmente, cinema. O filme de ação – filhote do filme policial (que trouxe o faroeste para as ruas de hoje, via Bullit, Operação França e Dirty Harry) com o blockbuster de tirar o fôlego (inventado por Spielberg e Lucas no final dos anos 70) – faz exatamente o que grandes autores do cinema se pretendiam: envolve o espectador com um ponto de vista específico para gerar visões espetaculares. Seus detratores ficam procurando pelo em ovo (atuações? Verossimilhança?) em vez de perceber que isso é acessório.

Tudo isso para dizer que recomendo pacas o monstro Cloverfield, a nova brincadeira de J.J. Abrams, o produtor de Lost. Mas tem que ver no cinema. Tratado como uma evidência de um recente ataque gigantesco à Nova York, ele começa como o registro de uma festa de despedida sendo filmada por um dos amigos de um dos protagonistas para transformar-se em uma fuga pelas ruas de uma cidade sendo destruída por um monstro gigantesco – vocês viram os trailers. Assim, sua cinematografia tem a estética amadora que é tão popular em tempos de celulares que filmam e vídeos caseiros no YouTube – com a pequena diferença que há um monstro em algum lugar destruindo tudo. Daí a correria ser prima das dos filmes de Fernando Meirelles, o pânico ser irmão dos registros das conseqüências de atentados terroristas e a tensão ser sobrinha-neta do Spielberg que dirigiu Tubarão, Contatos Imediatos do Terceiro Grau e Parque dos Dinossauros. Cloverfield é a Bruxa de Blair levado à potência de Jerry Bruckheimer. Não é à toa que as salas de cinema nos EUA estão colocando advertências para avisar gente de estômago fraco que a experiência na telona pode causar efeitos colaterais semelhantes aos de uma montanha-russa. Não é exagero – e isso é um dos grandes méritos do filme.

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Mas, peraê, Cloverfield pelo jeito não é um filme. É um teaser de algo muito maior.

(A partir daqui vou falar de acontecimentos relativos ao filme. Por isso, se você ainda não o assistiu e vai continuar lendo, corre o sério risco de descobrir coisas que não gostaria. Prometo me conter para não entregar o ouro em si, mas não dá pra discutir o que vou falar adiante sem comentar o enredo ou alguns detalhes que, se não chegam a estragar o curso da história, podem tirar a graça de algumas partes do filme. Ou seja: estamos entrando no território dos spoilers. Falando nisso, lembrei de uma história de um cara que foi traduzir um texto para um lugar onde eu trabalhava e no lugar de “spoilers ahead” [uma advertência semelhante – embora mais curta – a esta que estou fazendo aqui] o cara mandou “saqueadores adiante”, uma tradução “to the foot of the letter”. Esteja avisado, vambora. Pra não correr o risco, embace a visão até ver o flyer da Gente Bonita passada.)

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Então, você já ouviu falar em Slusho?

Se você assistiu Cloverfield, sabe que Slusho é a empresa que contratou o protagonista Rob Hawkins (o personagem de Michael Stahl-David) como vice-presidente – justo o motivo da festa de despedida que sua cunhada Lily (Jessica Lucas) organizou e que dá início às filmagens.

Mas Slusho também é uma bebida, lançada em 2005 no Japão. Uma bebida que deixa as pessoas mais felizes e causa uma estranha sensação no estômago – e cuja substância secreta é algo retirado de perfurações no oceano e referido como “néctar do leito do mar”, em seu site oficial. Site que, por sinal, é um freak show fingindo-se de nipomarketing – suas seções beiram o bizarro e personagens bonitinhos e engraçadinhos dizem frases sem sentido aparente.

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A bebida apareceu pela primeira vez em um episódio de Alias, série que também era produzida por Abrams, e já foi vista na mão do elenco de Heroes. Na ComiCon do ano passado, foram entregues várias camisetas da marca ao público. Mas quando visitamos o site da companhia que criou a bebida gelada, a Tagruato, descobrimos que eles pesquisam aceleradores do crescimento celular (?!) e que é uma companhia de perfuração oceânica que descobriu o tal néctar – que é a base da bebida de sucesso (“você não pode beber menos do que seis”, diz seu slogan).

Em paralelo, não há uma linha do tempo definida, pois o ataque do monstro na história não acontece na data da estréia do filme nos EUA (18 de janeiro de 2008) como a campanha publicitária fazia parecer. Não há registro na câmera sobre o ano dos acontecimentos – apenas o dia e mês da gravação. Dia 23 de maio, um sábado. O detalhe é que a próxima vez que esses dias coincidirão será no ano que vem! A destruição da plataforma de perfuração da Tagruaro próxima à Nova York, considerada a primeira manifestação propriamente dita do monstro na superfície (além de um dos mais recentes teasers do filme), também não tem data definida – e da mesma forma pode acontecer no futuro.

E se você já viu o filme, sabe que há uma trama paralela disfarçada de incompetência do cinegrafista. Ao começar a registrar depoimentos dos amigos de Rob para ele levar como um presente de despedida, o amigo Hud (o ator T.J. Miller) usa a mesma fita (engraçado ser uma fita em tempos de gravação digital) que Rob havia usado há pouco tempo para gravar outro evento, pessoal, que tem ligação com a história depois que o monstro ataca a cidade. Vez ou outra, a filmagem falha e vemos trechos do filme que está sendo apagado. E bem no final, a gravação do dia do ataque do monstro termina antes da fita acabar – e assistimos aos últimos minutos do vídeo original, que acontece num parque de diversões. Ao fundo dá pra ver algo vindo do céu e caindo na água. Uns disseram que poderia ser o próprio monstro vindo do espaço, outros dizem que foi um satélite da Tagruaro que acordou o bicho que estava dormindo há milênios no fundo do mar ao cair. Mas alguma coisa acontece ali.

O mesmo acontece no final dos créditos, depois de doze minutos de texto, quando é possível ouvir só um gemido que parece dizer, sussurrando, “Help us”. Mas como nerdismo pouco é bobagem, já houve quem converteu o som de trás pra frente e descobriu que o sussurro, na verdade, diz “It’s still alive!”. Fora a Overture Roar, composição exagerada que encerra o filme, que pouco a pouco vira um pequeno hit de downloads.

Além disso, o site jamieandteddy.com foi criado como um servidor para a troca de correspondências em vídeo do casal Jamie e Teddy. Mas depois de mandar um presente para Jamie, Teddy desapareceu. Em uma série de onze vídeos postados no decorrer do ano passado, Jamie reclamava da falta do namorado, até decidir abrir o presente enviado. Nele, ha uma substância rotulada de “prova número 1” que Teddy avisa para Jamie “não comer” e um celular em que seu namorado manda uma mensagem, em que dizia que aquilo não era uma brincadeira e que ele talvez ficasse um tempo sem dar notícias, para ver como sairia dali. Jamie, com raiva, come a substância e, bem, veja os vídeos. A senha para acessar ao site é “jltovesth” – mas todos eles já estão no YouTube.

Fora perfis no MySpace para os principais personagens, uma série de denúncias anônimas sobre a Tagruato, um sujeito que fala algo em russo com o personagem que filma tudo e um grupo de hackers terroristas querendo sabotar a corporação. As fotos em um dos sites oficiais do filme mostra uma imagem de uma baleia destruída na praia e um cozinheiro apresentando orgulhoso um prato indefinido. Atrás dele, um vidro enorme com um produto branco parece brilhar. Nas costas da foto, uma receita que inclui o tal “néctar do leito do mar” – só que escrita em japonês.

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Tem um certo humor Matt Groening na natureza de Slusho, pois a bebida remete a alguns episódios de seus seriados. O primeiro é o Squishee que Bart e Milhouse tomam puro (para horror de Apu, que vende do mesmo jeito) no episódio “Boy Scoutz ‘N the Hood” da quinta temporada dos Simpsons – Bart toma e a parada bate de um jeito que ele começa a falar mais rápido. E tanto aos salgadinhos Popplers e ao popular refrigerante Slurm (seu slogan é “It’s highly addictive!”) em Futurama. Enquanto os primeiros, depois de um tempo, abrem e se revelam filhotes simpáticos alienígenas, o segundo é a secreção líquida de um monstro gigante (!). Slusho pode não ser gosma de monstro, mas deixa essa idéia no ar (mesmo porque uma das personagens do filme morre um bom tempo após ser atacada – sua barriga explode. E uma das frases no site de Slusho diz que a bebida faz “sua barriga explodir de felicidade”. Que porra…).

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Além disso, temos o monstro, que até agora não foi explicado. Mas há algo humano em seu caminhar – ele se move como uma pessoa andando deitada de costas, só que com a cabeça no meio das pernas. Não ajuda muito o fato do site da Hasbro que anuncia o brinquedo não ter uma foto – e, entre as especificações, dizer que o bicho tem duas cabeças intercambiáveis… Nem que Abrams já ter dito que o monstro age como um bebê (será que tem uma mãe – clichê clássico de filme de monstro – a caminho?)…

E inevitavelmente uma seqüência para Cloverfield já está sendo especulada, mas com um twist. Em vez de uma continuação – para tentar explicar que raios está acontecendo em Nova York, o diretor já falou em uma Cloverfield: Fita B, que aconteceria em paralelo aos eventos do primeiro filme. Reeves até disse o momento em que deixou em aberto para uma seqüência, quando o cinegrafista filma outra pessoa com uma câmera na mão. Pode ser uma intersecção entre os dois filmes.

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Mas as especulações não param aí. Há quem diga que existam relações entre o monstro e a série Lost – a ilha perdida, o evento magnético que fez o vôo 815 da Oceanic cair e até o tal monstro de fumaça poderiam ter alguma relação com Cloverfield. Se alguém contestar sobre o fato da festa de Rob acontecer em 2009 e o vôo Sidney-Los Angeles ter acontecido em 2004, é bom lembrar que o tema viagem no tempo foi sugerido pelos criadores da série logo depois que a terceira temporada encerrou, com um vídeo tutorial da Dharma em que um mesmo coelho aparecia duas vezes no mesmo lugar – isso inclusive joga uma outra luz sobre os recentes episódios da série. E como não dá pra perder o bonde da história, não duvide se J.J. falar no assunto – e criar uma ponte – no próximo filme de Jornada nas Estrelas, que está sob sua supervisão. Exagero? Não custa lembrar que estamos falando do cara que agradeceu à Fundação Hanso (uma das corporações que manipularia a história de Lost) no final de Missão Impossível III, que ele dirigiu (e esse filme ainda contava com uma máquina de destruição chamada “Pé de coelho”). E se o Slusho for o que dá superpoderes aos heróis de Heroes? Não duvide que em pouco tempo haverá malucos indo assistir Cloverfield com In Rainbows no fone de ouvido (a propósito, qual a duração de ambos?).

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Todas essas pistas, dicas, teorias e sacadas de marketing vêm acontecendo desde que o primeiro trailer do filme apareceu, no meio do primeiro semestre do ano passado, quando Transformers foi lançado. Abrams pegou a lógica por trás do marketing de A Bruxa de Blair e aplicou o conceito de contexto à fábrica de hype. Não é mais simplesmente “o novo vem aí”, mas todo um universo recontextualizado a partir do tal novo que vem aí. E isso é uma das principais características do pop atual. Em busca de contexto que (n)os ajude a montar o quebra-cabeças, devotos, fãs e curiosos podem ajudar a desvendar mistérios fabricados para serem complicados. Isso hoje faz muito mais sentido do que simplesmente assistir a um filme ou ouvir um disco. Precisamos de contexto para entender o mundo em que vivemos e todo o bom marketing atual ajuda a construir este (ironicamente, isolando-nos em bolhas de conhecimento infinito, longe da chamada vida real – mas o que diabos é isso mesmo?).

Esse é um dos principais diferenciais da era em que estamos vivendo. O hype serve pra isso – pra contextualizar, pra explicar o que está ao redor da história ou do protagonista, para que não fiquemos presos a apenas um ponto de vista sobre um único assunto. Se Cloverfield tem ou não ligações com Lost, Heroes ou Jornada nas Estrelas não importa, o fato é que estamos vivendo uma época em que as mais estapafúrdias teorias de conspiração merecem um mínimo de atenção. Isso significa que estamos ficando paranóicos? Talvez.

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Philip K. Dick dizia que todos os animais têm uma certa paranóia natural que, por não ser racional, funciona como um sentido de alerta, de vigília, de estar pronto para se defender a qualquer minuto, nem que seja atacando. E que o ser humano, através do conforto que a tecnologia nos provê, perdeu esse sentido. Numa década em que as máscaras estão sendo arrancadas de um jeito ou de outro (e verdades vêm à tona quase sempre de forma agressiva), não custa nada ficar esperto e não aceitar o que lhe é vendido como certo.

Já canto essa bola há uma época: paranóia é precaução.

PS – E é gata, essa Odette Yustman…
PS 2 – Não duvido que tenham uns quatro filmes enfileirados (ou talvez… seis?)

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Laertevisão

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Outro dia o Cadu se perguntava “o que aconteceu com o Laerte?” em referência ao fato do velho cartunista ter abandonado a lógica dos três quadrinhos em sua tira diária na Ilustrada e começado a explorar os limites do formato. O processo foi deflagrado pela morte de seu filho RafaelDaniel,mas tudo indica que a fase terapêutica já passou e Laerte assimilou a nova linguagem como sua. Em vez de colocar personagens conhecidos pra repetir piadas em diferentes pontos de vista, Laerte optou pela criação, às vezes sem sentido, às vezes pesada, limitada pelo espaço de uma tira de jornal – como um tipo de cineasta ao ser confrontado com um novo formato de tela. É como se Laerte tivesse cansado de fazer A Praça é Nossa e tivesse começado a… filosofar.

Comparo essa fase atual do Laerte com a primeira viagem de ácido do Robert Crumb (aquela que fez ele criar todos seus personagens mais conhecidos), só que às avessas (assistimos à abolição do personagem, algo que o Fernando Gonzales domina de uma forma muito pessoal) e em câmera lenta. Acho que ele está indo muito além dos limites do que qualquer artista brasileiro hoje. Nenhum outro conterrâneo – nem Fernando Meirelles, nem o Kassin – está tão ligado á sua própria época e sublinhando isso em sua própria arte do que Laerte. É um privilégio lê-lo todos os dias (já era, mas isso é como assistir às gravações do Bitches Brew).

E essa lógica foi para toda obra atual dele. Das tirinhas no caderno de informática da Folha ao quadrão sobre TV na Ilustrada de domingo. Estes últimos foram reunidos no excelente Laertevisão – Coisas que Não Esqueci, em que mistura memórias muito pessoais com suas lembranças sobre a TV. Fosse o Laerte antigo, veríamos pequenos quadros de comédia de situação no Brasil dos anos 50. Mas como é este novo Laerte, há um espaço para a reflexão e a filosofia (mesmo que infantil, pura) que nos prova que somos contemporâneos de um gênio.

(Como se os Piratas do Tietê já não nos tivessem provado, mas enfim…)

PS – A Carola deu o toque, passei batido – o filho dele que morreu foi o Daniel. O Rafael ajudou ele a organizar o Laertevisão. Mau meu.

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Durante o fim de semana, o Radiohead instalou um relógio com uma contagem regressiva para o lançamento de seu novo álbum, num site que teoricamente anunciaria o sétimo disco da banda. Um rápido auê durante o finde e logo um monte de gente começou a desmentir a banda – inclusive ela mesma, que disse que o site em questão não tinha nada a ver com eles. Logo depois, o cronômetro apareceria zerado e em seu lugar, uma janela em vídeo começa a iniciar uma transmissão sob o título que batiza este post (O MAIS GIGANTE E MENTIROSO BOATO DE TODOS OS TEMPOS) e, em seguida, a página recarregava para um vídeo do Rick Astley mandando o hit “Never Gonna Give You Up” no YouTube.

Aí você abre o blog da banda no site oficial é eis o que temos, com a data desta segunda (já é segunda, na Inglaterra):

Hello everyone.

Well, the new album is finished, and it’s coming out in 10 days;

We’ve called it In Rainbows.

Love from us all.
Jonny

Detalhe: o link do In Rainbows acima redireciona para o site oficial do grupo. Que, por sua vez, redireciona para o site In Rainbows.com, que anuncia:

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Mais um clique e temos uma tela para encomendar o disco.

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Num FAQ, eles dizem que vão fazer a entrega do disco antes do dia 3 de dezembro, em todo o planeta e que trabalham com todos os cartões. Olha o bicho aí:

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E esse é o tracklist:

CD 1 AND VINYL
15 STEP
BODYSNATCHERS
NUDE
WEIRD FISHES/ARPEGGI
ALL I NEED
FAUST ARP
RECKONER
HOUSE OF CARDS
JIGSAW FALLING INTO PLACE
VIDEOTAPE

CD 2 AND VINYL
MK 1
DOWN IS THE NEW UP
GO SLOWLY
MK 2
LAST FLOWERS
UP ON THE LADDER
BANGERS AND MASH
4 MINUTE WARNING

Detalhe: clique para comprar o disco e o custo dele é de £ 40,00. Clica para comprar só o download e…

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Zero libras? Estranhou? Tem um ponto de interrogação ali. Sublinhado, tipo um link. Passe o mouse por cima dele e olha o link que ele indica…

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“It’s up to you”. Tipo “você que sabe”.

Será que os caras tão dispostos a, mais uma vez, reescrever a história da música online – se uma vez, vazaram um disco “sem querer” (com Kid A), agora estão perguntando pros fãs quanto eles pagariam apenas no download de um disco.

Isso se não for pegadinha, claro.

Mas eles disseram que o site http://radioheadlp7.com/ (o da contagem regressiva) não era deles e que não tinha nada a ver com a banda. Mas basta clicar nele para cair no site do disco novo.

Ou será que In Rainbows não é o disco novo?

Ou será que eles vão fugir com o dinheiro de todo mundo?

Depois dessa, boa semana…

Nick Drake

nickdrake

Nick Drake caminha pelo enorme jardim nos fundos da casa de seus pais, onde quase sempre viveu, em Tanworth-in-Arden, uma pequena e típica cidadezinha inglesa com casas feitas de pedra margeando ruas pavimentadas sobre pastos de um verde que parece ser a única cor viva no local. É primavera, as flores estão abrindo e Drake observa com cuidado cada desabrochar. Olha para o botão no exato momento em que ele abre-se, revelando a beleza que escondia no início da estação e a estuda com calma, passeando o olhar pelos menores detalhes que só uma flor consegue sintetizar. O sol forte e amarelo não chega a esquentar; é manhã e ainda faz frio mas as flores não se importam, continuando suas explosões de cores.

Drake senta-se no frio banco de pedra e olha ao redor: as plantas crescem mais uma vez, quase ao final de uma jornada que assiste todos os anos. O verde é exatamente o mesmo, vivo e radiante como as diferentes tonalidades das flores. Tudo se repete e a natureza parece sorrir ao confirmar este ciclo interminável. Drake pega uma pequena flor amarela no chão e coloca entre as narinas, como se a proximidade do odor o fizesse pensar. Instantaneamente, seu olhar foge do jardim. Olhando para o chão, ele não observa nada – apenas pensa. Nos homens que teimam em fingir que suas vidas são melhores que as dos bichos e das plantas, preocupados com seus nomes próprios, reputações e linhagens. Veja as flores, todas de diferentes cores, vivendo em harmonia com as outras e com o resto do mundo. Como as plantas, toda natureza obedece uma regra cujos valores são opostos aos que a humanidade sempre pareceu se ocupar. Mas o homem não se importa e insiste em bater com a cabeça nos mesmos erros, nas mesmas coisas pequenas, valores materiais e sentimentos negativos para com os outros. Nasce, cresce e morre – como todas as plantas e bichos. Mas continua achando que é melhor que os outros, seja como espécie ou como indivíduo.

Seus pais aparecem na porta dos fundos da casa. Ao seu lado, um jovem mochileiro delicia-se com a beleza do jardim da casa de Drake. Sorridentes, carinhosos e quase no final de suas vidas, Rodney e Molly Drake recebem sorridentes os curiosos que querem conhecer mais sobre seu filho. Eles vêm de diversas e diferentes conexões – Sebadoh, Television, Joni Mitchell, Elton John, Scott Appel, Belle & Sebastian, Fairport Convention -, todos movidos pela música ao mesmo tempo clara e repleta dos únicos quatro discos do compositor, atrás de uma espiritualidade que não encontraram em nenhum outro lugar. Nem a arte, nem a religião, nem a contemplação da natureza eram suficientes para atingir o nível de profundidade que Drake propunha com sua música. Apenas com seu violão e seu canto triste e cético ou acompanhado de alguns dos melhores músicos de seu tempo, ele devolvia o homem à natureza, observando a civilização como uma criação tão natural quanto qualquer bosque ou praia.

Ver aquele jardim esclarece aos visitantes parte do mistério que é Nick Drake. Não se questiona, apenas sente-se a intensidade presente no local, clara influência na concepção de vida do compositor. Ele nasceu em Burma, no dia 19 de junho de 1948, mudou-se para Bombaim ainda bebê e fixou-se na Inglaterra aos sete anos, indo morar em Far Leys, a casa que o viu crescer na minúscula Tanworth-in-Arden. O jardim dos fundos sempre esteve presente em sua infância, como o piano de sua mãe (compositora influenciada por Noël Coward e Sandy Wilson), as histórias de seu pai e compositores clássicos, sua principal companhia musical quando criança. Naturalmente foi para o piano e logo se tornaria um instrumentista de talento, ainda que adolescente. Mas o espírito rebelde daqueles dias o levaram para os Beatles e, influenciado por eles, trocou o piano por um violão, depois de muito pedir aos pais. Era uma fase, Rodney e Molly pensaram. Mas o novo instrumento se mostrava tão completo quanto o piano – harmônico e melódico ao mesmo tempo – e poderia ser levado para qualquer lugar da casa, até mesmo para fora dela.

Levava-o para o jardim e observava o céu, como esperasse que a inspiração descesse como um pássaro. O ouvido habituado ao piano o levara a experimentar diferentes afinações ao violão, fugindo do padrão do instrumento e procurando novas formas pessoais de expressão. Vinha a noite e voltava para casa, fazendo da sala de estar seu ambiente noturno. Esperava os pais dormirem e começava a tocar as próprias músicas, registrando-as num pequeno gravador que até hoje está na mesa de centro da casa dos Drake. Sentado numa poltrona laranja, dedilhava acordes tímidos à medida que procurava canções entre as notas que tocava. Insone, passava a noite acordado, indo à cozinha de vez em quando para um copo de água ou um pedaço de pão. Influenciado por Joni Mitchell e Van Morrison, começava a gravar quando o sol mandava notícias, azulando levemente o começo do dia trazendo as músicas, que, repetidas, acordavam os pais.

Molly lembra das madrugadas que acordava ouvindo o filho para o visitante, fascinado com qualquer aspecto da vida de Nick. O pai, reservado, apenas observa a esposa contar a intimidade da família como um segredo religioso. Olha para o jardim e procura o filho, fingindo contemplar as plantas. Molly, ainda sorridente, conta da adolescência de Nick, de seus dias de escola, quando deixava a introspecção de lado ao correr no time de atletismo da escola pública de Malborough – o recorde dos 100 metros rasos com barreiras ainda é dele. Mas quanto mais crescia, mais tímido ficava, aprendendo cada vez mais a usar o violão como sua forma de comunicar-se com o mundo.

Por conta própria, começou a apresentar-se ao vivo, como uma forma de exorcizar sua natureza intimista. A mudança aconteceu devido a seu primeiro contato com maconha, na casa da irmã mais velha Gabrielle, em Londres. Com o auxílio da planta, Drake tornou-se ainda mais reservado e pensativo, preocupando-se cada vez mais com a natureza humana. Se recolhia ao jardim para fumar seus baseados sozinho e logo estava compondo canções sem referências de tempo, lugar ou fatos. Estudava os sentimentos das pessoas e suas relações com a natureza, como a existência humana era mais uma prova da perfeição natural que os homens insistiam em dizer-se superiores. Mudou-se para Cambridge aos 19 anos e na faculdade Fitzwilliams (onde estudava inglês e uma de suas maiores influências, o poeta William Blake) começou a se apresentar, primeiro nas casas de amigos, em reuniões ao redor de um violão que corria de mão em mão; depois em apresentações menores, pequenos bares universitários e festas da vizinhança. Seu medo do palco, no entanto, o afastava de apresentações maiores e Drake costumava abrir apresentações alheias antes de abandonar a platéia, ensimesmado.

Uma destas curtas apresentações mudaria sua vida. Foram dez minutos durante um festival organizado pelo lendário grupo folk Fairport Convention na Roundhouse. Após a apresentação do grupo, o baixista Ashley Hutchings preferiu ficar entre o público e assistir as outras apresentações que seguiriam até o dia seguinte. Quando Drake subiu ao palco, instantaneamente capturou a atenção de Ashley: com quase um metro e noventa de altura, cabelos despenteados caindo sobre o rosto, roupas que pareciam dois números menores que o tamanho que usava e um violão, ele sentou-se num banco de madeira e passou a suspirar sua doce voz canções que pareciam eternas. Pelo corpo e braço do violão, seus dedos procuravam as cordas de forma diferente, faziam acordes diferentes, alisavam a música burilada entre acordes como um contraponto harmônico à melodia que sua voz cantava. Hutchings conversou com o jovem à saída do palco, pegou seu telefone e pediu para que enviasse uma fita demo à Witchseason, a empresa do produtor Joe Boyd, responsável pelos primeiros singles do Pink Floyd e por artistas como a Incredible String Band, John e Beverly Martyn, Richard Thompson e o próprio Fairport Convention. Assim Drake fez.

O resultado deixou Boyd boquiaberto. Encontrara um artista completo, perfeito, quase mágico. Apenas com a voz e o violão, ele parecia clássico desde o primeiro instante, um artista romântico solitário do século 18 que, de alguma forma, teve sua música gravada. Mas Drake tinha apenas 20 anos e vivia nos mesma década de 1960 que Boyd, o que lhe deixou estarrecido. Não era pouco: com seu ouvido apurado e capacidade de tirar o melhor dos artistas que produzia, Joe Boyd era uma lenda nacional e sua reputação parecia ter chegado ao topo. Mas um jovem de Tanworth-in-Arden o provara que a maior qualidade da arte é sua capacidade de surpreender. Em pouco tempo, estaria com Drake no estúdio, gravando seu primeiro disco.

Five Leaves Left, de 1969, teve seu nome tirado do aviso que as embalagens de seda pra cigarro inglesas trazem quando estão chegando ao fim: “faltam cinco folhas”. A sensação de se estar chegando perto do fim são bem retratadas nas fotos do disco: na capa, Drake olha desolado para fora de uma janela; na contracapa, encostado num muro de tijolos à vista, ele observa apenas o borrão que um engravatado provoca ao passar correndo por ele. “Quando o dia acabar/ O sol afunda na terra/ Com tudo que foi perdido e ganho”, canta “Day is Done”, “Quando a noite esfriar/ Uns passam, outros envelhecem/ Só para mostrar que a vida não é feita de ouro”. Nos somos apresentados à música de Drake: um canto quase mudo, quente ainda que estático, um gemido sem dor. Sua voz observa o mundo ao redor e o traduz em forma de metáforas campestres. O violão, dedilhado delicadamente, funciona como uma estrada de paralelepípedos por onde o autor caminha, olhando os céus, as árvores, os campos. Tudo soa árcade e pastoril e os outros instrumentos convidados no disco apenas ajudam a manter esta atmosfera: congas, um violoncelo, piano, o baixo de Danny Thompson, piano e, claro, as cordas impressionistas de Robert Kirby. Este foi sugerido pelo próprio Drake quando este começou a se irritar (embora apenas demonstrasse ansiedade e impaciência, nunca raiva, no estúdio) com o arranjador que Boyd sugeriu para acompanhar suas músicas. Drake conhecia Kirby de Cambridge, mas nunca havia feito nada num estúdio de gravação – como o próprio Nick. O resultado foi surpreendente: com cores frias e pinceladas borradas dadas pelas cordas do quarteto que acompanha o cantor em quase todas as faixas.

“Fruit Tree”, quase ao final do disco, é a peça central de Five Leaves Left. Sem muitos rodeios, Drake canta sobre o reconhecimento tardio, sobre a morte não como um fim, mas como um motivo para lembrarmos da vida. Canta sobre ele mesmo:

“Fama é uma árvore frutífera
Que não soa
Não desabrocha
Até que os ramos encontrem o chão
Homens de renome
Nunca encontram um jeito
Até que o tempo voe
Além de seu último dia
Lembrados por um instante
Uma ruína atualizada
De um estilo ultrapassado
A vida é uma memória
Que aconteceu há muito tempo
Teatro de tristezas
De uma peça há muito esquecida
Parece tão fácil
Apenas deixe-a passar
Até que pare e pense
Que você nunca pensou sobre o porquê
Seguro no ventre
De uma noite sem fim
Você descobrirá que a escuridão
Pode dar a maior luz
Seguro na profundeza da terra
É quando saberão que você valeu a pena
Esquecido quando aqui
Lembrado por um instante
Uma ruína atualizada
De um estilo ultrapassado
Árvore frutífera
Ninguém te conhece, só a chuva e o ar
Não te preocupas
Olharão quando tiveres ido
Árvore frutífera
Abra seus olhos para um novo ano
Todos saberão
Que esteve aqui quando tiveres ido”

“Faltam cinco folhas” também nos remete ao outono, introspectiva estação que observa as plantas cederem à fria temperatura. Mas o disco termina com o sol de sábado, nos preparando para seu próximo álbum. “O sol de sábado veio mais cedo certa manhã/ Num céu tão claro e azul/ O sol de sábado veio sem aviso/ Ninguém sabia o que fazer/ O sol de sábado trouxe faces e pessoas/ Que não pareciam muito em seus dias/ Mas quando me lembro destas pessoas e lugares/ Eram muito bons em seu jeito/ Em seu jeito/ O sol de sábado não virá me ver hoje”. Five Leaves Left foi bem recebido pela crítica, que o comparou com Tim Buckley, Van Morrison e Donovan, saudando a nova descoberta de Joe Boyd com entusiasmo. Mas o público não percebeu o primeiro fruto de Drake e, convencido que sua introspecção fora responsável pelo fracasso de vendas, decidiu trazer o sol de sábado para o novo disco, Bryter Layter.

Convicto de que poderia fazer seu trabalho mais aberto e ensolarado, Drake abre seu novo álbum com os mesmos motivos entristecidos de Five Leaves Left, embora as cordas de Robert Kirby insinuem o nascer do sol. A presença da banda em “Introduction” é discreta, mas “Hazey Jane II” mostra as novas cores quentes da música de Drake, com Richard Thompson na guitarra, Dave Pegg no baixo e Dave Mattacks na bateria (todos do Fairport Convention) e as nuances em allegro dadas pelo arranjo de metais de Kirby. “At the Chime of the City Clock” volta-se às tonalidades frias das cores do vocal do compositor, mas o sentimento é mais populoso, menos isolado. “Fique em casa, sob o assoalho/ Fale apenas com os vizinhos/ Os jogos que você joga/ Fazem as pessoas dizer/ Que você é tão esquisito quanto só”. “One of These Things First” é ainda mais urbana: “Eu poderia ter sido um marinheiro/ Poderia ter sido um cozinheiro/ Um amante da vida/ Um livro/ Eu poderia ter sido uma placa, poderia ter sido um relógio/ Simples como uma chaleira, firme como uma pedra/ Eu poderia estar aqui e agora/ Eu poderia, deveria/ Mas como?/ Eu deveria ter sido uma destas coisas antes”. Ele quase canta a reencarnação, como se já tivesse passado por diversas vidas no passado, remetendo ao budismo discreto de “River Man”, do disco anterior.

Entramos então no espiritualismo de Drake. O compositor sempre esteve vinculado à natureza e ao idílio que a vida poderia ser se o homem não destruísse e pilhasse seu próprio habitat. Entre a ecologia e a poesia, Drake canta a integração com os ciclos que a natureza discorre, o dia e a noite, as estações do ano, a vida e a morte. Todos estamos sujeito a estas provações e a civilização humana parece lutar contra isto, criando suas próprias lógicas, fugindo da natureza e do instinto que nos conecta com o todo. Nick é fascinado com as pequenas coisas que vivem na terra – plantas, bichos e homens como seres à disposição dos caprichos cíclicos dos movimentos do sol, da terra e da lua. Obedecemos a regras que não podemos mudar e tentar ir contra isso é voltar-se contra si mesmo. Devemos portanto contemplar as pequenas coisas da vida e aprender com cada uma delas. É o desafio proposto por William Blake: “Ver um mundo num grão de areia/ O paraíso numa flor selvagem/ Ter o infinito na palma da mão/ E a eternidade em uma hora”.

Bryter Layter é permeado por este tipo de abordagem. “Você se sente remanescente/ De algo passado/ Você acha que as coisas/ Estão se movendo muito rápido”, canta em “Hazey Jane I”, “Faça por você/ E tenha certeza que fará o mesmo por mim, um dia/ Então tente ser verdadeiro/ Mesmo que de sua forma nublada/ Você consegue dizer que está se movendo/ Sem um espelho pra ver/ (…) É tudo tão confuso/ É difícil acreditar”. Acompanhada da viola e do cravo de John Cale, em “Fly”, confessa: “Eu caí de muito alto na primeira vez/ Agora apenas sento no chão do seu jeito”, e logo emenda com a autobiográfica “Poor Boy”: “Nunca soube por que vim/ Pareço ter esquecido/ Nunca perguntei de onde vim/ Ou como parei aqui/ Sou um pobre garoto/ E um aventureiro/ As coisas que digo soam mais estranhas/ Que o domingo tornando-se segunda”. “Você me amaria pelo meu dinheiro?/ Você me amaria pela minha cabeça?/ Você me amaria através do inverno/ Você me amaria até eu morrer?”, pergunta em “Northern Sky”, antes do triste instrumental de “Sunday”.

Mas apesar do disco ser considerado por Boyd não apenas a obra-prima de Drake como sua melhor produção, Bryter Layter novamente não vendeu. Mesmo com as boas críticas, o que ainda mais deprimiu o autor. Tinha apenas 21 anos e sentia o peso do mundo nas costas. Queria comunicar-se com as pessoas (“Se canções fossem as linhas de uma conversação”, cantou em “Hazey Jane II”, “tudo seria mais fácil”), mas elas pareciam não querer ouvir. A depressão de Drake aumentou quando Boyd vendeu sua companhia para a gravadora Island. Voltou à casa dos pais e entrou em profunda reclusão. Falava pouco com os outros e sempre demonstrava estar passando por uma terrível dor interior, embora sua imagem muda no escuro parecesse não revelar nenhuma emoção. Um dia, Chris Blackwell ligou para Drake, oferecendo sua casa na Espanha para passar alguns dias. Sem pestanejar, foi. Voltou e telefonou para John Wood, o engenheiro de som que acompanhou Boyd em seus dois discos. Queria gravar um disco.

Sozinho, entrou no estúdio e em duas noites de 1972 tinha Pink Moon pronto. Voltou apenas à faixa-título, para acrescentar um doce mas triste piano na parte instrumental. Nenhum outro instrumento, nenhum segundo take, emoção bruta e sem edição – menos de meia hora com apenas Drake e seu violão. Após perceber que Drake não queria nenhum arranjo ou outra adição instrumental, Wood pediu que levasse a fita para a gravadora, explicando que era um álbum diferente dos anteriores. Nick Drake chegou à porta do escritório da Island e não conseguiu dizer uma palavra, apenas entregando a fita dentro de um envelope pardo sem nenhuma etiqueta ou anotação para uma secretária. Apenas alguns dias após a entrega vieram a descobrir que não era a demo de um novo artista, mas o novo álbum de Nick Drake.

Pink Moon é o momento mais amargo de sua carreira. “Eu era verde, mais verde que o monte/ Onde as flores nascem e o sol brilha/ Agora sou mais escuro que o mais profundo mar/ Me ajude, me deixe ficar” (“Place to Be”). “Todas as fotos que mantém na parede/ Todas as pessoas que virão ao baile/ (…) Conte o gado que passa pela cancela/ Mantenha um carpete tão grosso no chão/ Mas ouça me chamando e não me dará uma carona” (“Free Ride”). “Sei que te amo/ Sei que não me importo/ Você sabe que eu te vejo/ Você sabe que não estou lá” (“Know”). “Você pode dizer que o sol está brilhando, se quiser/ Eu posso ver a lua e está claro/ Você pode pegar a estrada que te leva às estrelas/ Eu só posso pegar a estrada que me vê por dentro” (“Road”). “Veja e me verá no chão/ Pois sou o parasita desta cidade” (“Parasite”). “Caindo rápido e livre você procura um amigo/ Caindo rápido e livre pode ser o fim” (“Harvest Breed”). “Eu vi escrito e ouvi dito/ Aí vem a lua rosa/ Nunca uma lua esteve tão alto/ A lua rosa vai pegá-los todos” (“Pink Moon”).

As canções pareciam repletas de um sentimento cru que o autor deixava sair à força, contra sua vontade. A culpa para suas palavras não terem sido compreendidas era também sua, embora Drake nunca pediu pena de ninguém. Era apenas uma sensação de frustração, de não cumprir o que deveria ter feito, de lamentar a própria existência e não conseguir curá-la. Mas comparando o produto com o autor, nota-se claramente o esforço do artista para que aquelas canções saíssem: Drake mal conseguia conversar com as pessoas, mas gravou um álbum inteiro tomado pela confissão. Depois de Pink Moon, cujas canções Drake nunca cantou para ninguém a não ser no estúdio, voltou a cair em depressão, sendo tratado clinicamente. Odiava remédios e os tomava sem a regularidade que os médicos lhes prescreviam, sentia que estava envenenando seu corpo e só fazia isso por seus pais. Cada vez mais se isolava e fugia do mundo exterior.

Ao mesmo tempo, sua lenda crescia. Embora seus discos vendessem poucos, eles eram disputados por ouvintes que encontravam uma sabedoria adolescente mágica, acompanhada de uma biografia que justificava não apenas a utopia hippie como o romantismo dramático que aos poucos tomaria conta da música popular. David Geffen, dono da gravadora Asylum (casa de Joni Mitchell e Jackson Browne), queria incluir Nick em seu catálogo, mas tanto Chris Blackwell quanto Joe Boyd insistiam em relançar seus discos por conta própria. Até que um certo dia, no começo de 1974, decidiu voltar a gravar. Gravou quatro canções e sorriu com a possibilidade de ter suas músicas gravadas num álbum da cantora francesa François Hardy, que havia declarado interesse em tal projeto.

Voltara a conversar com os amigos e aos poucos deixava o casulo da casa dos pais. Não tocava em público ainda, mas era claro que o sol havia voltado a brilhar na vida do jovem Drake, que parecia disposto a retomar a carreira. Nem suas noites de insônia eram poupadas, preferia dormir direito e acordar cedo para readaptar-se à luz do dia. Para ajudar dormir, os remédios que os médicos lhes recomendaram, Tryptizol. Nunca ninguém havia lhe dito que mais de uma pílula era demais – e era.

Quando Molly Drake acordou no dia 25 de novembro de 1974, o filho não havia acordado ainda. Estranhou. Foi mexer em sua cama e ele não reagia. Nick Drake, 26 anos, estava morto.

Todos os motivos levam a crer que a morte de Drake fora acidental. Já havia confessado a amigos próximos que havia pensado em suicídio nos momentos mais tristes de sua vida, mas que considerava-se covarde para cometê-lo. E 1974 havia sido um excelente ano para o cantor, que aos poucos voltava a tocar violão na sala de estar da casa dos pais e a receber e atender telefonemas de amigos. Um lapso fatal, que encerrou sua prematura carreira como se esta fosse uma lenda, uma história fantástica. Três discos mágicos, cada um à sua maneira, mostrando adjetivos e cores diferentes para o mesmo tipo de sentimento, o mesmo tipo de relação com a sociedade e o ambiente em que vivia, sempre abordados da mesma forma prematuramente madura que Drake parecia ter sobre a vida. Nos anos seguintes, uma caixa (Fruit Tree) reuniria seus discos para a posteridade, ampliando sua lenda pessoal. Gravações da época de Five Leaves Left foram encontradas em 1984 e reunidas às quatro últimas faixas gravadas por Drake (entre elas, a mórbida “Black Eyed Dog” – um presságio da morte?) no álbum Time of No Reply. Deste disco, vem “I Was Made to Love Magic”, síntese de sua espiritualidade e importância musical:

“Nasci para amar ninguém
Ninguém para me amar
Só o vento na alta verde relva
O gelo numa árvore quebrada
Eu nasci para amar a magia
Tudo é surpresa para conhecermos
Mas vocês perderam esta magia
Muitos anos atrás”

Lolita

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Lolita (Lolita, 1962, Inglaterra/EUA). Dir: Stanley Kubrick. Elenco: James Mason, Shelley Winters, Sue Lyon, Peter Sellers. 152 min. P&B. Por que ver: Nenhuma adaptação de livro feita por Kubrick é fiel ao original e esta é a graça – embora Lolita seja a peça que mais se aproxime da obra original. Mas com Kubrick, Humbert Humbert (Mason) é uma alma penada num corpo de um adulto, assombrada pelo fantasma do próprio desejo, o pequeno demônio de 14 anos que batiza o filme e o livro de Nabokov. É ela quem o faz decidir alugar um quarto em uma casa de família, ao assistir à pequena filha da proprietária chupar um pirulito enquanto toma banho de sol no quintal – numa cena atordoante de tão bela. A partir daí, o protagonista embala numa espiral de instinto puro, que torna-se desespero crescente fundado sobre a culpa. Tempere isso com uma Shelley Winters fenomenal e um Peter Sellers arrogante e preciso, em um de seus grandes – e subestimados – papéis. Fique atento: A fotografia em preto e branco torna o tema mais denso e sério a cada passagem – e o elenco, afiadíssimo, gira em torno de Sue Lyon, a alma, o coração e a força sexual do filme. Não é pouco, para uma atriz de apenas treze anos.

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Mistérios e Paixões (Naked Lunch, 1991, EUA). Dir: David Cronenberg. Elenco: Peter Weller, Judy Davis, Ian Holm. 115 min. Por que ver: Da literatura beat, William Burroughs é certamente o nome mais difícil para se trazer à tela, mas ironicamente Mistérios e Paixões (título em português idiota para uma obra que já existe no Brasil há décadas, O Almoço Nu) é a melhor representação da alma beat no cinema, entre cinebiografias, documentários e adaptações livres. Não é o caso desta, que embora pouco fiel à obra em si, é obcecada não só pela natureza doentia do livro como de toda obra e do personagem – um mundo aparte em que heroína, insetos, homossexualismo e espingardas. Reconta a história de Burroughs – do assassinato de sua mulher ao exílio no Norte da África – e a mistura com elementos de sua literatura. Genial. Fique atento: Não bastassem as alucinações grotescas que habitam a ficção de Burroughs ganharem forma, sentido e textura (um ânus falante, uma máquina de escrever insectóide), é a atuação quase asséptica de Weller (o Robocop), que transforma o escritor beat de um personagem asqueroso e bizarro a um espelho para cada espectador.