Primavera Sound São Paulo – Dia 2

, por Alexandre Matias

O segundo dia da versão paulistana do Primavera Sound correu ainda mais suave do que o primeiro. Talvez por não ter atrações tão midiáticas quanto Arctic Monkeys ou Björk, o domingo do festival atraiu um público mais afeito ao trabalho dos artistas – ou, melhor dizendo, das artistas. O festival consagrou uma versão feminina do pop contemporâneo que se traduzia tanto no público quanto no astral coletivo, deixando tudo mais receptivo e suave, tolerante e acolhedor. O domingo foi das mulheres e mesmo que Travis Scott tenha atraído uma enorme massa para o palco do patrocinador principal (o pior palco do evento, disparado), corações e mentes foram tragados pela alma fêmea do festival, que no segundo dia foi representada especificamente por Phoebe Bridgers, Jessie Ware (o melhor show de todo o fim de semana!), Lorde e Arca.

Vamos aos shows…


Palácio das Convenções do Anhembi @ São Paulo
6 de novembro de 2022

Comecei o domingo com o Don L, apresentando o já clássico espetáculo de seu disco mais recente, o excelente Roteiro Pra Aïnouz (Vol. 2) – RPA2 para os íntimos. O rapper cearense manteve outra característica do festival – de trazer, shows completos, não versões reduzidas de suas apresentações ao vivo para se encaixar num evento coletivo. Assim, além das participações de Terrapreta e Alt-Niss, L ainda trouxe Thiago França para sua banca e não dispensou o púlpito que faz referência ao parlatório usado por Angela Davis quando ela se apresentou no Madison Square Garden (atrás de um vidro à prova de balas). E, como sempre, Don mostrou porque é um dos melhores do ramo atualmente, em um show que não teve dificuldades para hipnotizar o público.


Palácio das Convenções do Anhembi @ São Paulo
6 de novembro de 2022

Passei mais tempo no Auditório neste domingo, quando pude contemplar a sensacional programação de shows para serem vistos sentados. E é sempre bom assistir ao trio de Amaro Freitas, que entorta a música brasileira como um Duke Ellington do terreiro, metendo as mãos dentro do piano e entortando clichês do instrumento. Uma apresentação de cair o queixo, que serviria para alinhar os chacras de qualquer ouvinte que passasse entre um show e outro.


Palácio das Convenções do Anhembi @ São Paulo
6 de novembro de 2022

Já a aparição do JPEGmafia foi mais esforçada do que propriamente boa. O MC conseguiu agitar o público e algumas vezes se jogou no meio da galera, puxou “Call Me Maybe” e demorou para chegar em seus hits, o que fez com que a massa dispersasse à medida em que o show passava. Não comprometeu o evento, mas não chegou a acrescentar algo…


Palácio das Convenções do Anhembi @ São Paulo
6 de novembro de 2022

Já Phoebe Bridgers jogou em casa. Parte do público estava uniformizado com sua camiseta de esqueleto e era impressionante que todo mundo sabia cantar todas as músicas. Phoebe foi a primeira da noite a mostrar que, por mais que algumas artistas não tenham uma exposição de celebridade que parece tornar suas pares ainda maiores, há uma geração de novas cantoras e compositoras que têm um público que transcende sua participação em festivais. Como Mitski no dia anterior e como Lorde mostraria mais tarde, a próxima vinda dela para o Brasil certamente será em um show próprio. Não por acaso, todas mulheres nascidas nos anos 90.


Palácio das Convenções do Anhembi @ São Paulo
6 de novembro de 2022

Volto pro Auditório, pra tomar aquele saravá do Hermeto Pascoal, sempre o mesmo show e sempre um show completamente diferente. É o encontro da tribo do bruxo, que inclui além dos outros cinco com quem divide o palco, todos os espectadores de cada noite. E se o Amaro Freitas alinhava os chacras, Hermeto mostra que até os chacras são uma ilusão – e só nos resta ser levados por seu groove. Sempre uma aula.


Palácio das Convenções do Anhembi @ São Paulo
6 de novembro de 2022

Depois veio Jessie Ware, meu show favorito do festival. Dona de um dos meus discos favoritos dos últimos anos, ela pairou sobre o hostil palco principal do evento com a mesma elegância e magnitude da lua que, cheia, nos observava lá de cima. Dance music de primeira linha, sem apelar para clichês ou fórmulas fáceis, nem subir num altar inatingível. Populista e sofisticada, classuda e pop, Jessie comporta-se como uma Dua Lipa mais escolada, ciente de sua aura mágica a ponto de não precisar gastá-la o tempo todo. Ela não perdeu o rebolado por um instante e seduziu o público com olhar, voz e desenvoltura de palco que poucos mostraram no evento, sem deixar o público parar de dançar. Maravilhosa.


Palácio das Convenções do Anhembi @ São Paulo
6 de novembro de 2022

Depois veio Lorde e é impressionante como ela está crescendo. Cada vez mais maestra das massas, ela deixou o papel de indie angustiada ou diva teen no passado e hoje desfila com ares de divindade, mas completamente apaixonada pelo público brasileiro, que cantava todas – TODAS – as músicas. A neozelandesa sentiu-se ainda mais em casa e num palco deslumbrante, dominou o público como quem nina uma criança, com olhares amistosos e um sorriso escancarado. Mas claro que isso não seria suficiente se ela não dominasse a multidão com gestos amplos e uma coreografia que transforma o enorme palco em seu próprio quarto, convidando todo o público a passar a noite com ela. E ela ainda convidou a Phoebe para dividir o palco com ela num momento tocante. Showzaço.


Palácio das Convenções do Anhembi @ São Paulo
6 de novembro de 2022

Arca veio em seguida e destruiu todas as estruturas. Submetendo a massa a uma fritura insana que misturava beats, ruídos, samples e uma performance arrebatadora, a produtora venezuelana preferiu passear por diferentes gêneros musicais periféricos, num setlist frenético feito para bater cabeça, a tocar suas próprias canções, hipnotizando a massa que pouco a pouco lotou o palco em frente à arquibancada à base de muito grave e batidas certeiras. Uma lavagem cerebral por meio de beats.


Palácio das Convenções do Anhembi @ São Paulo
6 de novembro de 2022

Confesso que depois da Lorde já estava pronto para ir embora, principalmente por ter desistido antecipadamente do show da Charlie XCX (tanto por terminar duas da manhã de uma segunda-feira, quanto por ser no pior palco do festival), mas uma amiga me pediu pra acompanhá-la no show do Father John Misty, que nem sou muito chegado, e confirmou minha antipatia nas primeiras músicas. Não é ruim, mas esse pop molenga é muito sem graça. Deveria ter ido na Caroline Polachek, que ouvi ao longe quando estava procurando onde pedir um táxi e me pareceu ter mais sustança. Mas tudo bem, festival tem dessas.

A primeira edição do Primavera Sound no Brasil teve erros dessa natureza, mas nada que comprometesse o evento em si. O local do palco principal, a falta de comunicação com o transporte da cidade (custava ter negociado um horário de saída próximo ao funcionamento do metrô?) e a quase inexistência de latas de lixo talvez tenham sido os principais problemas do evento, o que é algo bem distante da regra de outros festivais dessa natureza. O som dos palcos estava bom, o elenco era excelente, os shows que aconteceram durante a semana foram ótimos, a infraestrutura – comida, bebida, banheiros etc. – estava nos conformes.

Mas reforço a importância da escolha dos artistas, que tirou o festival de clichês recentes como “festival de rock”, “festival de música eletrônica” ou “festival de música moderna”. Ao optar por um quórum com muitas mulheres e artistas mais jovens, o Primavera mexeu também no comportamento do público que, além de educado e paciente, também era apaixonado e não economizou ao se montar para a festa. A atmosfera do festival era a melhor possível (talvez por ter acontecido uma semana após a vitória de Lula nas eleições, é verdade) e o evento se contrapôs como uma espécie de anti-Lollapalooza. Que venham as próximas edições!

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