O melhor show de Juçara Marçal

Ainda impactado pelo que presenciei nessa sexta no Sesc Vila Mariana, arrisco dizer que a celebração ao vivo do aniversário de dez anos do disco de estreia de Juçara Marçal tenha sido a melhor apresentação que assisti dessa mulher – e olha que a vi no palco algumas dezenas de vezes. Repetindo a exata formação (“banda original”, brincou nossa musa) de uma década atrás no mesmo lugar que viu o show de lançamento de Encarnado, ela entregou-se ao álbum na íntegra, repetindo exatamente a mesma ordem das faixas do registro original e deixando-o fluir como o clássico instantâneo que sempre foi. “Esses dez anos os tornaram todos mais gatos ainda”, brincou ao apresentar seus compadres Kiko Dinucci, Thomas Rohrer e Rodrigo Campos sublinhando como a experiência dos quatro deixava o show ainda mais denso e coeso, como se só a beleza os tivesse melhorado – sem contar a própria Juçara, toda de vermelho em referência à capa do disco, que estava deslumbrante. O crescendo emocional do disco avançava a cada nova canção e, como na ordem do álbum original, culminou com a intensa “Ciranda do Aborto” cuja parede noise final desapareceu para revelar a delicadez de “Canção para Ninar Oxum” (em que até agora lamento quem bateu palma bem na hora em que o acalanto cairia em segundos do puro silêncio). Entre as faixas de fora do disco, vieram uma versão inacreditável de “Xote de Navegação” de Chico Buarque, em que Juçara foi acompanhada apenas por Rohrer tocando um fouet (!) com o arco de sua rabeca; a clássica “Comprimido” de Paulinho da Viola (em que ela transformou “um samba do Chico” em “um samba do Kiko”) e “Odumbiodé”, do EP que acompanha seu disco mais recente, o igualmente soberbo Delta Estácio Blues, o que me fez cogitar uma versão do DEB tocada com aquela formação (algo que já havia passado pela minha cabeça no início do show, pois a primeira canção, “Velho Amarelo”, faz parte do repertório do show do disco de 2021). Dois detalhes técnicos e artísticos agigantaram ainda mais essa noite: o som perfeito pilotado pelo Alex Pina (deixando o mínimo sussurro e o mais explosivo ruído igualmente cristalinos) e a luz (como sempre) maravilhosa de Olívia Munhoz (trabalhando com poucas cores, equilibrando luz e escuridão na mesma medida e jogando luzes na cara do público, difundindo até as silhuetas). “A gente tem muitas presenças importantes aqui hoje”, disse Juçara nos poucos momentos em que conversou, bem à vontade, com o público, “mas devo confessar que a mais importante pra mim é uma senhorinha de 90 anos que tá ali”, apontando para sua mãe. Ela ainda lembrou que o show de lançamento do disco original aconteceu no dia 15 de abril de dez anos atrás, aniversário de casamento de seus pais. Uma apresentação irrepreensível e a hipérbole não é em vão: estamos acompanhando a melhor fase da melhor cantora do Brasil atualmente. Não é pouca coisa. E sabe o que mais? Outros melhores virão.

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Inferninho torto

Não podia ser diferente: quando marcamos o Inferninho Trabalho Sujo nessa quinta-feira 29 de fevereiro sabia que teria que buscar atrações ímpares para que a noite fizesse jus ao dia bissexto. E quem começou a destruição foi o Odradek, cuja dinâmica musical explora ângulos tortos e andamentos improváveis ao mesmo tempo em que fazem isso com muito barulho – e a simbiose entre Caio Gaeta, Fabiano Benetton e Tomas Gil faz todo mundo ficar grudado no que eles fazem no palco. Impressionante e barulhento pacas, como de praxe. Quem fechou o palco foi o papa do math rock Patife Band, liderado pelo icônico Paulo Barnabé, ele por si só uma instituição da música brasileira. Como seu irmão Arrigo, Paulo também trabalha entre a música erudita e a música popular, só que essa segunda vertente, ao contrário do irmão, trafega mais pelo rock, seja pós-punk, noise ou progressivo, tornando a colisão entre as duas linguagens ainda mais complexa. Liderando uma versão quinteto do grupo, com Elvis Toledo na bateria, Gustavo Boni no baixo, Paulo Braga no piano e Arthur Sardinha na guitarra, ele começou a apresentação nos vocais, depois pegou a guitarra para cantar o hino punk “Vida de Operário”, dos Excomungados, foi para a bateria quando tocou peças tortas que ameaçou dizer que não estavam ensaiadas (imagina se estivesse!), além de, claro, as faixas imortais de seu disco-símbolo, Corredor Polonês. O atordoo foi generalizado e depois sobrou pra mim e pra Fran fazer as almas da madrugada derreterem-se na pista. Que noite!

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O melhor de dois mundos

Que maravilha a apresentação que Paula Tesser fez no Centro da Terra nesta segunda-feira, revisitando suas raízes culturais – Fortaleza e Paris – com uma banda irrepreensível e convidadas de ouro. O espetáculo Alumia foi dirigido por seu compadre Dustan Gallas (vou te chamar, hein!), que assumiu o piano à frente do baixo de Zé Nigro e da bateria de Samuel Fraga e os três passaram o show inteiro esmerilhando entre si, mas sem tirar o foco da estrela da noite, completamente à vontade no palco. E depois de passar por canções francesas, inclusive a fatal “La Chanson de Prévert” de Serge Gainsbourg, e outras de seu primeiro disco, Paula voltou-se para o Ceará ao visitar Fagner (“Cebola Cortada”), Fausto Nilo (“Tudo Blue”) e Amelinha (“Depende”) e ainda chamou duas divas para dividir momentos específicos do show, como quando pôs Kika para enveredar por “Ingazeiras”, faixa de abertura do disco mitológico do Pessoal do Ceará, Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem, que Téti, Ednardo e ‎Rodger Rogério lançaram há 50 anos, ou quando convidou Soledad para dividir a pulsante “Galope Rasante”, de Zé Ramalho. A apresentação já tinha uma carga mágica considerável, que transcendeu quando, acompanhada apenas do trio que reuniu, passeou por “Beira Mar”, numa versão de chorar.

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Fausto Fawcett em Madchester

Ao apresentar seu Favelost neste sábado no Sesc Avenida Paulista, Fausto Fawcett reuniu uma banda que deu um sabor ao mesmo tempo novo e retrô ao seu poema épico e decadente sobre a megalópole do terceiro mundo. Ao lado do casal Leela (Bianca Jhordão e Rodrigo Brandão, ambos empunhando guitarras, Bianca às vezes arriscava-se no theremin), ele substituiu a cozinha de uma banda de rock pelos sintetizadores de Paulo Beto, soando simultaneamente dance e rock e deixando sua verborragia apocalíptica, ir rumo à psicodelia dançante da Manchester do final dos anos 80, a famigerada Madchester, mas com o tempero sensual, decadente e brasileiro característico de sua poética. Misturando samples de Rolling Stones, Led Zeppelin, Bee Gees e “Please Don’t Let Me Be Misunderstood” no meio de pérolas de seu repertório como “Facada Leite Moça”, “Santa Clara Poltergeist”, “Drops de Istambul” e “Caligula Freejack”, ele ainda recebeu a presença de Edgard Scandurra e Fernanda D’Umbra, com quem tocou “De Quando Lamentávamos o Disco Arranhado” da banda desta última, o Fábrica de Animais. O espetáculo ainda teve os visuais do diretor Jodele Larcher e a reverência ao hit imortal “Kátia Flávia”, revisitado com direito a parte dois, quando a protagonista sai do submundo cão para assumir o “supermundo cão” fazendo OnlyFans para agentes de inteligência e do crime organizado em troca de segredos de estado. E, de repente, em 2024, as hipérboles de Fausto não parecem tão exageradas quanto eram no século passado. Showzaço.

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Ave Tom Zé!

Não consegui assistir à estreia de Tom Zé na Casa de Francisca no mês passado, mas felizmente (e graças a um bem-vindo ingresso em cima da hora, valeu Leoni!) pude ver o mestre em ação num dos palcos mais emblemáticos da cidade nesta quinta-feira, em sua segunda aparição num dos palcos mais emblemáticos de São Paulo. E como o mestre baiano cai bem naquele lugar. Mais à vontade do que na média de seus shows, ele aproveitou a intimidade com o público para esticar longas conversas sobre assuntos mais diversos entre – e às vezes durante – suas músicas. Sem um show recente específico, Tom Zé passeou por pérolas de seu repertório que passeiam tanto por clássicos de sua discografia quanto discos mais recentes, acompanhado da mesma banda que reuniu depois que conseguimos sair do pesadelo da pandemia, com o guitarrista Daniel Maia, a tecladista e vocalista Cristina Carneiro, o baixista Felipe Alves, o baterista Fábio Alves e a vocalista Andreia Dias, todos atentos ao velho mago entre suas estrepolias e causos contados no palco. Ele abriu o show lembrando do desfile do bloco de carnaval em sua homenagem, o Abacaxi de Irará (e cantou a música que deu origem ao nome do bloco), que sai neste sábado e aproveitou para lembrar histórias do tempo em que sua cidade tinha só três mil habitantes, enquanto percorria por pérolas como “Hein?”, “Não Urine no Chão”, “Jimi Renda-se”, “Xique-Xique”, “Tô”, “2001”, “Não Tenha Ódio no Verão”, “Jingle do Disco”, “Menina Amanhã de Manhã”, “Aviso Aos Passageiros”. “Politicar” e “Amarração do Amor”, antes de reverenciar Adoniran Barbosa em duas músicas que diz ter se inspirado no clássico sambista paulistano, “Augusta, Angélica e Consolação” e “A Volta do Trem das Onze”, e nesta última Tom Zé puxou uma longa conversa sobre sua infância e sobre a ausência de ferrovias no Brasil. Sério e austero quando começava a falar, parecia estar passando um pito no público que só queria se divertir, mas logo em seguida derretia-se em gingado e sorrisos assim que começava a cantar, uma usina de energia que o tempo todo nos faz esquecer que ele está com quase 90 anos de idade. Um patrimônio vivo da cultura brasileira. Ave Tom Zé!

#tomze #casadefrancisca #trabalhosujo2024shows 19

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Uma comemoração particular – de um país inteiro

Encontrei Kiko, Thiago e Juçara logo que cheguei na Casa de Francisca nessa quinta-feira saindo do elevador que agora dá acesso ao camarim em direção ao palco. Pude cumprimentá-los rapidamente antes que eles começassem a apresentação e desejar um bom show (no caso deles redundância, mas a saudação importa) quando Thiago frisou: “Sabe que hoje é aniversário daqui, né?”. Não estava sabendo, mas há exatos sete anos a Casa de Francisca arrancava suas raízes na rua José Maria Lisboa nos Jardins para replantá-las no coração de São Paulo, há poucos metros da Praça da Sé, no Palacete Tereza que hoje é a cara do lugar. Feliz por estar participando mais uma vez de um momento histórico desse palco sagrado (ainda mais com show do Metá Metá!), também comemorei que esse poderia um bom começo de carnaval, embora a vibração fosse distinta. Até que começaram a cair umas fichas: primeiro que aquele começo de carnaval tinha começado algumas horas antes, quando a polícia federal deteve o passaporte do meliante que ocupou a presidência da república, aproximando-o de seu destino desejado, a cadeia. O efeito dominó que as notícias da quinta-feira causaram (e seguem causando) inevitavelmente desdobraram-se na série de piadas e numa contagem regressiva que a prisão do desgraçado poderia ser o início do carnaval (eu acho que não vai rolar agora, vai ser um carnaval fora de época daqui a pouco). E depois me lembrei do show que vi daquele mesmo Metá Metá na outra Casa de Francisca, no fatídico dia 12 de maio de 2016, quando o Senado autorizou o início do golpe na Dilma. Foi o começo da era de trevas da qual ainda estamos saindo e lembro direitinho (até escrevi sobre isso na coluna que tinha na Caros Amigos na época) de como aquela notícia pesou nosso encontro antes do show e como o show em si foi um exorcismo daquele futuro ruim que sabíamos que viria. Oito anos depois, lá estava o mesmo Metá Metá – só os três de novo – em outra Casa de Francisca comentando a possibilidade de prender a pessoa que só chegou onde chegou porque derrubaram a presidenta naquele passado não tão distante. Ainda não estamos festejando o que deve ser festejado, mas o futuro sombrio (que ainda se avizinha, à espreita, fingindo-se de desentendido) está mais distante do que estava naquela noite de 2016. E mais uma vez era a música que mostrava o rumo a ser seguido. Viva a resistência cultural! Viva a Casa de Francisca! Viva o Metá Metá! Viva o Brasil e viva a música!

#metameta #casadefrancisca #trabalhosujo2024shows 15

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Intensa e delicada

Maravilhosa a apresentação que Nina Maia fez nesta terça-feira no Centro da Terra. Mostrando parte do repertório que estará em seu disco de estreia, que ainda está sendo gravado, ela mostrou-se intensa e delicada na mesma medida, indo da introspecção à explosão sonora sempre com sua bela voz como fio condutor. Com poucas pausas e interação mínima com o público, ela suspendeu a expectativa dos presentes ao alternar momentos sutis e sensíveis – seja somente ao piano, cantando sobre bases eletrônicas pré-gravadas ou em dupla com sua eterna parceira Chica Barreto – com outros mais expansivos, que levam sua musicalidade rumo ao jazz e à MPB com a cozinha formada pelo baixo de Valentim Frateschi e a percussão de Thalin com acréscimos do cello de Chica e do violão de Yann Dardenne na última música da noite, “Amargo”, que será seu próximo single. A luz da dupla Retrato (Ana Zumpano e Beau Gomez) também ajudou o clima de introspecção e expansão entre luzes e sombras — e um espelho no palco.Cheia de si e com plena confiança da firmeza de sua voz e composições, ela está pronta para acontecer. E isso que foi só primeiro show do ano.

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Da maior importância

Começamos muito bem a temporada 2024 no Centro da Terra nesta segunda-feira, quando recebemos o MC fluminense Dadá Joãozinho para mostrar a próxima fase de seu trabalho, que está sendo construída no palco. Depois da boa recepção de seu disco de estreia, Tds Bem Global, o produtor rearranjou canções deste primeiro trabalho no espetáculo Global Inabitual, em que, sozinho, desconstruiu suas faixas, deixando seu canto livre para experimentar novas paisagens sonoras. Com o auxílio luxuoso da luz de Mau Schramm, Dadá saudou parceiros como Bebé, Alceu e Joca, além de reverenciar Maria Beraldo numa versão particular para sua “Da Menor Importância”. Foi bonito.

#dadajoaozinhonocentrodaterra #dadajoaozinho #centrodaterra2024 #trabalhosujo2024shows 13

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Uma viagem pesada com os Boogarins

Show dos Boogarins é sempre um acontecimento transcendental – a liga desenvolvida entre os quatro filhos do Centro Oeste transforma qualquer momento de entrosamento musical dos quatro em um delírio particular que pode ser esticado por horas se eles quiserem. Às vésperas da primeira turnê pelos EUA desde o período pandêmico, o grupo passou pelo Sesc Vila Mariana neste fim de semana celebrando os dez anos do aniversário de seu disco de estreia, Plantas Que Curam, que finalmente ressurgiu em vinil após anos fora de catálogo, e assistir a Dinho, Benke, Rapha e Ynaiã passeando por um repertório que já tem uma década não só reforça a importância do grupo na história da psicodelia brasileira como mostra que sua evolução é coesa, intensa e ampla, fluindo quase organicamente. A apresentação deste domingo contou com a íntegra do disco de 2013 – em ordem diferente -, trazendo ainda faixas que não entraram na edição original e que ressurgem nesta nova versão (como “Resolvi Ir”, que, como faziam há dez anos, fazia o show começar já engatado, “Olhos”, “A Sua Frente” e “Refazendo”), “Foi Mal” e uma faixa inédita, do próximo disco (“Cais dos Olhos” – é isso, Benke?). Por uma hora e meia de transe, o quarteto do cerrado nos submeteu a uma hipnose sonora auxiliada pelo time-família titular para além do palco (Renatão e Alejandra no som, Chrisley como roadie, Rolinos nas imagens e Igor na luz) que expandia minutos por horas psíquicas. O final da primeira parte do show, em que “Infinu”, “Fim”, “Doce” e “Eu Vou” se fundiram em uma só, foi só um dos vários exemplos que eles colocaram em prática a natureza psicodélica de seu som. Uma viagem pesada.

#boogarins #sescvilamariana #trabalhosujo2024shows 12

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Primeiros passos…

Uma noite incrível no Picles desta quinta-feira viu os primeiros shows de duas bandas promissoras. A noite começou com a Schlop, trabalho solo de Isabella Pontes, que tornou-se um trio quando ela juntou-se a Cadu Scalet e Ruan Yagami para mostrar suas músicas ao vivo, aproveitando para eles mesmos mostrarem as suas. Revezando-se entre os três instrumentos, o trio também aproveitou para celebrar os 470 anos de São Paulo numa versão paulistana para o triste lamento que o LCD Soundssytem fez para Nova York que tornou-se “São Paulo Eu Te Amo Mas Tá Foda Demais” na versão Schlop. Depois foi a vez do Monstro Bom liderado pela Gabi para mostrar como suas canções azedinho-doces envolvem-se no entrosamento instrumento do quarteto de Osasco. No final, eu e a Fran assumimos a pista e foi aquele descontrole que faz todo mundo se acabar na pista do Picles madrugada adentro…

#inferninhotrabalhosujo #noitestrabalhosujo #picles #trabalhosujo2024shows 9 e 10

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