Bruno Berle apresentou seu disco de estreia, No Reino dos Afetos, pela primeira vez na íntegra, convidando amigos músicos e compositores que fizeram parte deste processo quando ainda morava em Maceió. Ao seu lado, dividindo-se entre diferentes instrumentos e formações estavam Marina Nemésio, João Menezes, Batataboy e Phylipe Nunes Araújo, seus conterrâneos, que revezavam-se entre piano, guitarra, violão, MPC, percussão e baixo elétrico para elevar para outro patamar um disco gravado com poucos recursos e que fez seu autor um nome tão reconhecido, a ponto de lotar o Centro da Terra.
Na terceira noite de sua temporada Prémistura no Centro da Terra, Chicão Montorfano adentrou em suas raízes progressivas e invocou o espírito prog para o teatro, reforçando a seriedade do gênero. A noite começou com o grupo formado por Marcela Sgavioli, Gabriel Falcão, André Bordinhon, Fernando Junqueira e Filipe Wesley puxando a clássica “Armina” do seminal disco A Matança do Porco, do grupo Som Imaginário, que completa 50 anos em 2023, e que Chicão aproveitou para misturar lindamente com a música de abertura de seu primeiro disco solo, Mistura, que lança ainda em dezembro. Além de chamar Marcela para três canções de seu segundo disco (o cara nem lançou o primeiro e já tem o segundo pronto) apenas no formato voz e violão – e depois, piano – para finalizar a apresentação tocando dois clássicos extensos do prog mais clássico: “Starless” do King Crimson e “Closer to the Edge” do Yes. Foi de cair o queixo.
O paraibano Vieira encarou sozinho o público do Centro da Terra nesta terça-feira, ao enveredar por sua Crise dos 20 ao mesmo tempo em que mostrou músicas inéditas. Revezando-se entre a guitarra e o violão, ele soltou sua voz cantando impasses dolorosos e vôos cegos que combinavam tanto com o fato de ele não estar conseguindo enxergar a audiência (é míope e havia quebrado seus óculos) quanto com a versão que fez para um clássico de sua conterrânea Cátia de França, no “Coito das Araras”.
O segundo show de Luiza Villa celebrando os 80 anos de Joni Mitchell foi mais à vontade que a primeira apresentação e mesmo o peso de tocar no Blue Note não intimidou a cantora e seu grupo, todos mais livres e confortáveis após a inevitável tensão da primeira noite. Todos os músicos tiveram seus momentos de destaque, mas Luiza especificamente deixou o público à sua disposição, passando por cima de eventuais percalços com muita graça e desenvoltura, como quando não lembrou do início de “Hissing of Summer Lawns”, música em que não toca nem violão ou guitarra e deixa completamente solto seu principal instrumento: sua voz. Foi demais.
Um imprevisto me fez perder o primeiro show do Inferninho Trabalho Sujo desta quinta-feira (désolé Laure), mas cheguei a tempo de ver a forte presença da novíssima banda Boca de Leoa, que conheci no meio do ano. O entrosamento entre as três instrumentistas – Nina na guitarra, Duda no baixo e Bee na bateria – faz a base perfeita para que a outra Duda, a vocalista, dominass o público com seu carisma , que lotou o Picles, para cantar juntos músicas que ainda nem foram gravadas. Uma apresentação forte de uma banda promissora, que deixa de engatinhar para dar seus primeiros passos – e já avisaram que o primeiro disco está vindo. Depois, eu e a Fran seguramos a pista até o final da noite, quente como nunca!
Transcendental o Anganga que Cadu Tenório e Juçara Marçal fizeram nesta terça-feira no Centro da Terra. Trazendo cânticos de trabalhadores escravizados que foram recuperados no início do século passado, os dois atualizaram melodias e versos seculares para a cacofonia do século 21, com Cadu disparando bases industriais para Juçara soltar sua voz de forma lírica e abstrata, conversando com a luz detalhista, por vezes quase impressionista e outras quase na penumbra, desenhada por Cristina Souto. Fisgando o público na veia, era possível ouvir um silêncio quase milenar, que parecia pairar sobre aquele ritual.
Mais uma noite com Chicão no comando, desta vez pavimentando o caminho musical para dois velhos camaradas: Alzira E e Yantó, que além cantarem em dupla com o pianista dono das segundas-feiras de novembro no Centro da Terra, ainda entrelaçaram seus timbres e vocalises tão peculiares em alguns dos grandes momentos desta apresentação. Yantó, que foi produzido por Chicão em seus primeiros álbuns, chegou a dividir o piano com o mestre em algumas músicas, inclusive quando trouxe a cantora para um dueto em “Conversa Mole”, além de tocar “Offline” de Marcelo Segreto e “Chuva Acesa”, da própria Alzira, e mostrar-se um hábil e contido virtuose vocal. Ela por sua vez começou a noite com a novíssima “Filha da Mãe”, a maravilhosa “Tristeza Não” e a a imortal “Milágrimas”, além de refazer sua “Finalmente” com Chicão temperando a base com “I Want You (She’s So Heavy)” dos Beatles. Yantó e Alzira ainda dividiram “Itamar É” e “Voos Claros”, composta pelo irmão dela, Geraldo Espíndola, responsável por musicalizar a família. Foi lindo demais.
Roger Waters encerrou a perna brasileira de sua primeira turnê de despedida neste domingo, no estádio do Palmeiras, quando celebrou seus 80 anos em ótima forma ao misturar o repertório pós-Dark Side of the Moon do Pink Floyd com algumas músicas solo e ticar em praticamente todos os itens da esquerda no século 21 no espetáculo audiovisual que acompanhou o show. A apresentação já começou com esse tom no talo, em uma mensagem no telão em que o próprio Roger mandava quem acha que sua antiga banda não falava de política para fora do show. E como o assunto não é (apenas) política institucional, o velho inglês fez das suas ao abrir o show com um dos principais números de sua antiga banda, “Comfortably Numb”, retirando cirurgicamente (e politicamente) um dos grandes momentos do hino à dor, o solo de guitarra feito pelo ex-amigo David Gilmour. Isso não chegou a comprometer o show, mas é meio triste ver que Waters prefere se referir à antiga banda apenas no período de 1973 em diante, quando tornou-se o único letrista. E por mais que se refira ao fundador da banda, seu amigo de infância Syd Barrett, de forma tenra, é chato não ouvirmos músicas que o grupo fez antes do disco que completa meio século neste 2023. Em vez disso, tome músicas do The Wall e até uma do último disco do grupo, o fraco The Final Cut. Mas por outro lado, fomos presenteados com uma apoteótica versão de “Sheep”, a íntegra do lado B do Dark Side (mas sem “Time”? Pô) e quase todas do Wish You Were Here, enquanto o telão misturava o imaginário que o grupo criou nos anos 70 com animações e frases de efeito, que Roger Waters disparava sem poupar alvos – até Barack Obama apareceu no telão como “criminoso de guerra” (como todos os presidentes dos EUA desde Reagan), mas não falou nada sobre os líderes de seu país, Benjamin Netanyahu (embora tenha falado sobre o genocídio palestino constantemente) ou talvez uma alfinetada em seu desafeto local. Por outro lado, citou George Floyd e Marielle Franco, fez porco e ovelha infláveis passearem pelo estádio e segurou um showzaço de mais de duas horas – que certamente não será o último que fará por aqui. Toca “Dogs” na próxima, Roger!
“Edu, você é um craque!”, disse o próprio Edu Lobo, citando seu mestre e compadre Tom Jobim ao lembrar de quando gravou sua deslumbrante “Pra Dizer Adeus” ao lado de no início dos anos 80. Edu lembrou do causo logo depois de mais uma versão cortante para um de seus maiores clássicos no show em que comemorou seus 80 anos nessa sexta no teatro B32. O maestro está em ótima forma e conduziu as quase duas horas de autorreverência com uma banda à sua altura: regida pelo pianista Cristóvão Bastos, reunia nada menos que Mauro Senise e Carlos Malta (sopros), Jorge Helder (contrabaixo), Jurim Moreira (bateria), Paulo Aragão (violão), Kiko Horta (acordeon) e Marcelo Costa (percussão). Edu começou a viagem ao seu passado pelas imbatíveis como “Vento Bravo”, “Bancarrota Blues” e “A História de Lily Braun” para depois começar a receber seus convidados cantores. Começou com a novata e maravilhosa Vanessa Moreno, com quem dividiu a “Dança do Corrupião” com a letra que Paulo César Pinheiro anos depois e a emocionante “Choro Bandido” para depois deixá-la sozinha nos vocais de “Tango de Nancy” e “Ave Rara” . Depois veio Ayrton Montarroyos, que dividiu com Vanessa a maravilhosa “Primeira Cantiga” para depois fazer sozinho “Circo Mistico” e “A Moça do Sonho”. Zé Renato entrou em seguida e, sozinho, segurou “Nego Maluco” e uma versão linda de “Salmo”. Edu voltou com “Pra Dizer Adeus” e depois convidou mais uma vez Vanessa, em “Ciranda da Bailarina”. Zé Renato juntou-se aos dois numa rara versão para “Lero-Lero”, que Edu disse, rindo nervoso, ter feito sob ameaça de uma fã. Então Monica Salmaso entrou para fazer, sozinha, “Canto Triste” e “Ode Aos Ratos” e depois dividir “Cantiga de Acordar” com Edu e e Vanessa. Quase no fim do show, lembrou de quatro de suas obras-primas com os quatro convidados: “Upa Neguinho”, “Ponteio”, “Canudos” e “Na Carreira”, que parecia ter encerrado a noite. Mas um dos grandes momentos foi quando a banda voltou no bis e Edu e Monica derramaram-se no hino “Beatriz” para depois chamar todos e finalmente encerrar com “Corrida de Jangada”. Uma noite mágica.
E por falar em Casa de Francisca, foi bom ver o Metá Metá nesta quinta-feira mais uma vez em um de seus territórios habituais. O trio formado por Thiago França, Juçara Marçal e Kiko Dinucci é essa usina acústica de energia vital e vê-los repetindo seu repertório em condições ideais de temperatura e pressão é sempre revigorante. Além de passear pelas canções de sua trilogia imbatível de discos, os três ainda passearam por faixas inéditas (mas já conhecidas de quem frequenta seus shows), uma das músicas que fizeram para o balé do grupo Corpo e até uma pinçada do repertório do Duo Moviola, que Kiko mantinha (mantém? Tomara) com Douglas Germano. Sempre um descarrego, uma aula, uma festa.