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Texto

Conforme prometido, eis o texto que escrevi sobre o clássico disco duplo do Sonic Youth para a seção Discoteca Básica da falecida revista Bizz. Esse texto foi publicado na edição 178, em maio do ano 2000.

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Felizmente, os anos 90 serviram para rachar os muros preconceituosos que a década de 80 carinhosamente erigiu. E foi entre julho e agosto de 1988 que uma banda nova-iorquina iniciou ó terremoto, capaz de chacoalhar os alicerces da música pop, convergindo rap, pop inglês e rock underground americano para um mesmo objetivo (em 1991, Nevermind, do Nirvana, selaria o fenômeno). Depois que o Sonic Youth derrubou todas as barreiras entre as diversas vertentes do rock, usando a microfonia como aríete, ele nunca mais foi o mesmo.

Antes, o Sonic Youth era apenas um dos principais representantes da cena pós¬punk nova-iorquina, uma geração com mais de um rótulo – pigfuck, noise, no wave – que primava pelo barulho fora de controle como principal idioma. Ao lado do Big Black, Minutemen, Pussy Galore e Butthole Surfers, o Sonic Youth tinha uma grande reputação entre os seguidores daquela geração. Mas foi a partir da entrada do baterista Steve Shelley, que completou para sempre o trio formado pelo casal Thurston Moore e Kim Gordon, mais o guitarrista Lee Ranaldo, que o grupo começou a desequilibrar. Discos como EVOL e Sister antecipavam um grande abalo sísmico, capaz de destruir todas as noções atuais dos limites da guitarra – sempre um tabu na história do rock.

Com o duplo Daydream Nation, o quarteto nova-iorquino atingiu o rock como uma bomba atômica subterrânea sob os pilares do que conhecíamos por rock. Os três vocalistas cuspiam letras como palavras de ordem, misturando literatura marginal e rock’n’roll primitivo, preocupados mais em atingir seu alvo do que com a sujeira que o tiro poderia causar. Mas o centro do álbum são as gui¬tarras: um enxame de microfonia que consegue soar caótico, melódico, bucólico, aterrador e brutal- muitas vezes em poucos minutos, como na introdução de “Cross the Breeze” e o meio de “The Wonder”.

Propulsionado por um dos mais subestimados bateristas do pós-punk, o trio central do grupo (que se identificava com símbolos no rótulo do disco, à Led Zeppelin) atravessava terrenos tão diferentes quanto hardcore, vanguarda, heavy metal, folk, pós-punk inglês, progressivo, psicodelia e punk rock, com suas guitarras e baixo citando referências sonoras como se contassem a sua versão da história do rock, abrangendo todos os gêneros como frutos do mesmo som. Um ruído incômodo, que incomoda ao mesmo tempo que provoca, que está no centro do melhor rock, seja de que tipo for.

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Na minha terceira coluna para a Caros Amigos, escrevi sobre o show que vi de João Donato no Beco das Garrafas – e falei sobre sua influência na música deste século. Também fiz uns vídeos desse show, numa playlist que segue lá embaixo.

Ave Donato!
João Donato se apresenta no renascido Beco das Garrafas e mostra que sua influência na música brasileira é cada vez maior

Fui para o Rio de Janeiro meio no susto no mês passado e da mesma forma fiquei sabendo que o mítico Beco das Garrafas estava voltando a funcionar como casa de shows. Uma viela sem saída que corta a Rua Duvivier, em Copacabana, logo no início, o Beco atingiu o status legendário ao funcionar como casa das máquinas da cena musical carioca que viu nascer a bossa nova.

Influenciados pelo jazz norte-americano, instrumentistas, compositores e intérpretes se revezavam nos minúsculos palcos de bares chamados Bottle’s, Baccará, Ma Griffe e Little Club para a ira dos vizinhos, que não suportavam as jam sessions que varavam as madrugadas e saudavam os músicos com garrafas jogadas do alto. Foi Sergio Mendes quem batizou a viela de “Beco das Garrafadas”, que na versão que pegou ficou apenas com as garrafas.

Por ali passaram mestres do samba, da bossa nova e do samba-jazz, como Luís Carlos Vinhas, Chico Batera, Dom Um Romão, Airto Moreira, Bebeto Castilho, Baden Powell, Wilson das Neves, Johnny Alf, Jorge Ben e intérpretes históricas como Elis Regina, Alaíde Costa, Dolores Duran, Nara Leão, Sylvinha Telles, Leni Andrade, Claudette Soares e Wilson Simonal.

Depois dos anos 60, o beco foi esquecido, suas casas viraram ruínas de um passado histórico até que Amanda Bravo, filha de um dos músicos frequentadores daqueles palcos, Durval Ferreira, resolveu resgatar o Beco do passado. Conseguiu uma empresa (a cervejaria Heineken) que bancasse a revitalização, que transformou as quatro pequenas casas. O Bottle’s e o Baccará foram transformados em um só ambiente (para 80 pessoas) e o Little Club (para 50 pessoas) virou uma pista de dança com apresentações de DJs. Para tomar conta da programação musical Amanda chamou o produtor Kassin, um dos principais nomes da nova música brasileira deste século, que organizou um mês de apresentações reunindo destaques de uma geração mais nova que a dele, incluindo nomes como as bandas Letuce e Ultraleve, o músico Lucas Arruda, as cantoras Tiê e Alice Caymmi além de encontros entre titãs da velha guarda como João Donato e Marcos Valle e divas da nova safra como Emanuelle Araújo e Camila Pitanga, além do grupo francês Nouvelle Vague. Para o Little Club, Kassin chamou os DJs Marcelinho da Lua, o coletivo Vinil é Arte e Maurício Valladares para discotecar sets inspirados na bossa nova e no jazz brasileiro do início dos anos 60.

Tive o privilégio de assistir à apresentação de João Donato, que pouco a pouco tem sua importância resgatada, principalmente por conta desta nova leva de músicos brasileiros. Donato é precursor da bossa nova e já cantava baixinho antes de João Gilberto ser apresentado a Tom Jobim. A influência de Donato no pai da bossa nova e em seus primeiros filhotes é evidente, bem como seus discos suaves e ousados que gravou nas décadas seguintes. O próprio Kassin, que ensinou o grupo Los Hermanos a tirar o pé do rock, é uma espécie de neto musical de Donato, que é reverenciado por todos os nomes que se apresentaram na curta nova temporada do Beco das Garrafas quanto por novos músicos de todas as cepas, seus 80 (!) anos foram celebraos no Circo Voador em agosto com a presença de nomes tão distintos quanto Caetano Veloso, Luiz Melodia, BNegão e Paula Morelenbaum; em fevereiro deste ano comemorou o aniversário de 40 anos de seu Quem é Quem num show com músicos da banda Bixiga 70, Tulipa Ruiz, Mariana Aydar e Marcos Valle. Assisti o show na microplatéia do novo Bottle’s Bar entre Jards Macalé e o guitarrista Gabriel Muzak, que toca com os Seletores de Frequência de BNegão, além de ter seu próprio trabalho solo.

Todos reverenciando um monstro da suavidade, um senhor de oito décadas de música que se comporta como um menino travesso ao piano, aumentando o tom de voz apenas para falar “água!”, seu código para encerrar as músicas. No palco do Bottle’s Bar, tocando um teclado elétrico, o acreano vinha acompanhado por uma das melhores cozinhas de jazz brasileiro em atividade, o contrabaixo elegante do cearense Jorge Helder e a bateria atrevida do carioca Robertinho da Silva, além de um naipe de metais de respeito – o sax de Roberto Pontes e o trompete de Jessé Sadoc. Juntos, enveredavam por temas clássicos de Donato como “Capricorn”, “Emoriô”, “Bananeira”, “Gaiolas Abertas”, “Vento no Canavial” e “Café com Pão”, além de três números com a participação da cantora baiana Emanuelle Araújo (“A Paz”, “A Rã” e “Sambou, Sambou”), em pouco mais de uma hora de viagem no tempo que, mesmo bebendo no passado, apontava para um futuro exemplar para a música brasileira. Ave Donato!

Um papo com o Xkcd

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Entrevistei o físico Randall Munroe, também conhecido como Xkcd, para a capa da Ilustrada de hoje – falei com ele algumas horas antes de ele acompanhar o pouso da nave no cometa, assunto que dominou o final da conversa. Meio tímido e meio sem graça, ficamos quase meia hora falando sobre cultura pop, quadrinhos, internet e ficção científica. Um dia eu publico a íntegra dessa conversa.

Randall_Munroe

Eureka!
Ex-funcionário da Nasa e um dos principais autores da era da internet, o físico e quadrinista Randall Munroe conversou com a Folha sobre o livro em que responde, usando ciência, a perguntas inusitadas enviadas por seus leitores

Faltavam poucas horas para o módulo Philae desconectar-se da sonda Rosetta e pousar no cometa Churyumov-Gerasimenko e Randall Munroe, 30, não conseguia disfarçar sua animação. “Vou ficar acordado à noite toda para assistir a isso, quero ver se tudo vai dar certo”, disse em entrevista por telefone com a voz tímida e quase sem graça, como se fosse apenas um sujeito qualquer assistindo a um evento corriqueiro.

E isso o físico e quadrinista mais conhecido como Xkcd, que acaba de lançar seu E Se? – Respostas Científicas para Perguntas Absurdas (Companhia das Letras, R$ 39,90) no Brasil, não é. Seu traço é simples até o limite do conceitual, reduzindo minimanente tudo a bonequinhos de palitinhos, mas ele lida com temas de escopo épico, medindo tudo com a grande régua da ciência.

Suas tirinhas – publicadas no site xkcd.com a cada dois ou três dias – compilam comentários ácidos e diálogos perspicazes sobre assuntos correlatos à ciência, como a cultura da internet, nossa relação com a tecnologia, linguagem e a natureza da ficção científica. Em uma delas, observou que tweets sobre terremotos chegavam mais rápido que as próprias ondas sísmicas a regiões ao redor do epicentro do tremor, sendo possível ler sobre o terremoto antes de senti-lo – e o comentário foi comprovado cientificamente pouco depois da publicação do quadrinho.

A tira começou em 2005, quando Munroe ainda trabalhava na área de robótica da Nasa, a agência espacial norte-americana. “Meus primeiros quadrinhos foram desenhados ainda na escola, quando deveria estar prestando atenção nas aulas, sempre rabiscava algo nos cantos dos meus cadernos. Depois de um tempo resolvi escaneá-los, mas não sabia o que fazer com eles e os coloquei em meu site”, explica.

O nome do site foi inventado a partir de uma observação que ele havia feito quando ainda era criança, de que um nome poderia perder seu sentido com o tempo: “Então inventei uma linha de texto que não significa nada e que seria só minha. E também um nome curto, pois achei que seria mais fácil se precisasse digitá-lo bastante no futuro.”

Não demorou muito para o quadrinho autodescrito como “um webcomic sobre romance, sarcasmo, matemática e linguagem” começasse a fazer sucesso, atingindo em poucos meses um público mensal de 70 milhões de pessoas, como registrou a revista Wired no final de 2007. Foi quando Munroe começou a explorar as possibilidades do formato quadrinho na internet.

A seção E Se? (What If) foi um dos primeiros experimentos com a interatividade digital. Reunidas pela primeira vez em livro em 2014, as respostas elaboradas visualmente por Munroe vinham de perguntas absurdas enviadas por seus leitores. No livro, ele responde a perguntas inusitadas como “se minha impressora conseguisse literalmente imprimir dinheiro, o impacto no mundo seria muito grande?”, “quanto espaço físico a internet ocupa?”, “se um asteroide fosse bem pequeno mas superdenso, seria possível morar nele como o Pequeno Príncipe?” e “de que altura você teria que soltar um bife para ele chegar ao chão cozido?” Mas a inspiração veio na sala de aula.

“Há um programa no MIT em que qualquer pessoa pode ser voluntária para dar aulas num fim de semana sobre qualquer assunto para estudantes de segundo grau”, lembra. “Eu nunca havia dado aulas antes e vi como é difícil manter os alunos interessados naquilo que você está querendo ensinar. Então pensei numa questão sobre Guerra nas Estrelas e quanta energia que Yoda conseguiria produzir através da Força e de repente todos começaram a ficar interessados. E seguiram a lógica, fazendo perguntas do tipo sobre outros filmes e logo em seguida sobre coisas da vida real. Eles ficam bem mais interessados quando as perguntas não são abstratas.”

Ele adaptou essa lógica para o seu site e começou a receber uma avalanche de perguntas improváveis. “Não consigo ler todas, são muitas”, confessa. Alguma delas são bizarras o suficiente para que ele nem pestaneje em pensar na resposta (“Dá para impedir uma erupção vulcânica depositando uma bomba (termobárica ou nuclear) debaixo da terra?”) ou que nem comece a cogitar a possibilidade de respondê-las (“A que velocidade um ser humano teria que correr para ser cortado ao meio, na altura do umbigo, por um arame de cortar queijo?”).

Depois da seção E Se?, Randall começou a experimentar cada vez mais em escala (o quadrinho “Money” trabalha proporcionalmente todo o dinheiro que existe no mundo), com geolocalização (certa vez publicou uma brincadeira de primeiro de abril que variava de acordo com a localização geográfica de cada leitor), com espaço (no vasto universo digital de “Click and drag”, um desenho interativo que se fosse impresso ocuparia uma área de 14 metros de largura), culminando na contemplativa “Time”, que ganhou o prêmio Hugo, maior reconhecimento na área de ficção científica, deste ano (leia abaixo).

Atualmente ele descansa da turnê de lançamento de seu livro na Europa e cogita conhecer o Brasil: “Nunca fui ao Hemisfério Sul, mas sei que tenho muitos fãs aí.” Ele não detalha projetos para o futuro pois faz muitas coisas ao mesmo tempo (“sou muito desorganizado”), mas antecipou que quer fazer algo com os “3.2 GB de dados do genoma humano”, que baixou no início do ano.

Logo depois da entrevista, ele transmitiu o pouso do módulo Philae no cometa Churyumov-Gerasimenko através de seu próprio site, publicando um quadrinho a cada cinco minutos, criando uma animação que reunia as informações que conseguia conectar enquanto acompanhava as informações que obtinha no site da Esa (agência espacial europeia).

Projetos recentes ampliam ideia de interação entre público e obra

Dois dos projetos mais ambiciosos de Randall Munroe exploram as possibilidades de interação entre a obra de arte e o público de formas bem distintas. “Click and drag” (“clique e arraste”, que pode ser visto em http://xkcd.com/1110/), por exemplo, é o ápice de seu trabalho com mapas e tabelas, como já havia feito ao criar o mapa da internet ou do sistema solar. A obra de 2012 é uma tira cujo último quadrinho permite que o leitor explore dimensões improváveis dentro de um único painel. “Quando você está num videogame de carro e olha no horizonte, você vê algumas montanhas, mas se tenta dirigir o carro para fora da pista, há uma espécie de parede invisível que não permite que você chegue às montanhas. É um universo que parece ser muito grande, mas é muito pequeno. Eu queria fazer um quadrinho que tivesse o efeito oposto, que parecesse muito pequeno mas que fosse muito grande”, conta seu autor.

A obra também foi inspirada em um passatempo comum em nossa rotina digital: passear por mapas através da internet. “Eu achava um rio perto de casa e começava a clicar e arrastar o mapa para seguir o rio até o oceano e isso levava meia hora, passava por várias cidades e dava uma sensação de estar explorando. Mas eu não queria que você pudesse dar zoom para fora, pois isso seria como trapacear”, explica.

“Time” (que pode ser lida aqui http://xkcd.com/1190/) era um experimento com tempo e nele Randall convidava o leitor a acompanhar uma história que teria um novo quadrinho publicado a cada meia hora por 123 dias. “Era como se fosse algo entre uma tira na internet e um filme. Porque uma tira de internet é atualizada uma vez por dia ou por semana enquanto um filme é uma espécie de tira de internet que é atualizada 24 vezes por segundo. Eu queria contar aquela história, que era sobre o tempo, e achei que seria uma forma interessante e única de contá-la”, conclui. “Time” ganhou o prêmio Hugo de “melhor história gráfica” deste ano e a premiação foi aceita pelo escritor Cory Doctorow que, a pedido de Munroe, disse que iria ler o discurso de agradecimento falando uma palavra por hora.

P: Quanta Força o Yoda consegue gerar?
R:
É óbvio que vou ignorar as prequels. A maior demonstração de força de Yoda na trilogia original se deu quando ele ergueu a X-wing de Luke do pântano. No que concerne a movimentar objetos fisicamente, esse foi sem dúvida o maior dispêndio de energia através da Força que vimos em qualquer momento da trilogia. A energia necessária para erguer um objeto até certa altura é igual à massa do objeto vezes a força da gravidade vezes a altura a que se queira erguer. (…) Por fim, precisamos saber da força da gravidade em Dagobah. Aqui fico sem ter para onde ir, pois mesmo que os fãs de ficção científica sejam obcecados, não tem como existir um catálogo das mínimas especificações geofísicas de cada planeta que aparece em Star Wars, né? Não. Subestimei os fãs.A Wookieepedia tem esse catálogo e nos diz que a gravidade superficial de Dagobah é de 0,9 g. (…)
(O resultado de 19,2 kW) é potência suficiente para energizar um quarteirão de casinhas no subúrbio. Também é equivalente a 25 cavalos-vapor, que é quase a potência do motor do Smart Car elétrico. Aos preços atuais de energia elétrica, Yoda valeria aproximadamente dois dólares por hora. (…) com o consumo de eletricidade mundial na faixa dos 2 terawatts, precisaríamos de 100 milhões de Yodas para cumprir a demanda. Somando tudo, adotar “Yodanergia” não ia valer a pena — mas é incontestável que seria energia verde.

P: Quando, se é que um dia, o Facebook terá mais perfis de mortos do que de vivos?
R:
Vai ser ou nos anos 2060 ou 2130. Não tem muito morto no Facebook. A razão principal é que tanto a rede social quanto seus usuários são jovens. O usuário médio do Facebook envelheceu com o passar dos anos, mas o site ainda é mais utilizado — e com frequência bem maior — pelos mais jovens. Com base na taxa de crescimento do site, e na estratificação etária de usuários ao longo do tempo,2 cerca de 10 a 20 milhões de pessoas que criaram perfis do Facebook já morreram.

P: Dá para construir um propulsor a jato (jetpack) usando metralhadoras que atirem para baixo?
R: Eu fiquei meio surpreso quando descobri que a resposta é positiva! Mas para fazer direito, você vai ter que conversar com os russos. O princípio é bem básico. Se você atira uma bala para a frente, o coice empurra você para trás; então, se atirar para baixo, o coice vai lançar você para cima. A primeira pergunta a responder é: “Tem como uma arma erguer seu próprio peso?”. Se uma metralhadora pesa 4 kg mas o coice dela ao disparar é de 3 kg, ela não vai conseguir se erguer do chão, muito menos erguer ela mesma mais uma pessoa. No mundo da engenharia, a razão entre a potência de um veículo e o peso é chamada de, veja só, relação peso-potência. Se for menor que 1, o veículo não consegue se erguer. O Saturno V tinha uma relação peso-potência, para a decolagem, de aproximadamente 1,5
Apesar de eu ter crescido no sul dos Estados Unidos, não sou especialista em armas de fogo. Por isso, conversei com um conhecido do Texas para ajudar na resposta.
Aviso: por favor, POR FAVOR, não tente fazer isso em casa.

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Acompanho o trabalho dos Arctic Monkeys desde que eles eram revelação no MySpace, mas só fui respeitá-los de verdade a partir do show deles no Lollapalooza Brasil de 2012, quando começavam a rascunhar sua obra-prima AM, o melhor disco de 2013. Naquele show deu para sacar que Alex Turner não ficava só na teoria e encarnava um personagem arquetípico do rock – o rebelde galã que envelhece sem esmorecer como Elvis Presley. Apesar de não ter nem 30 anos, ele pisava firme como rocker clássico, misto de Gene Vincent com Johnny Cash, Joe Strummer com Brian Setzer, um Montgomery Clift com a sensibilidade de Buddy Holly. O completo domínio da platéia era semelhante ao que tinha de seu instrumento, tratando-o com reverência e desdém às vezes ao mesmo tempo. Os fãs de Queens of the Stone Age que me perdoem, mas considero os Arctic Monkeys a principal banda de rock na ativa – e grande parte desse título vem da postura de astro de seu frontman.

Por isso foi inevitável animar-se para assistir a um terceiro show deles aqui no Brasil – ao mesmo tempo que foi inevitável desanimar-se quando foram divulgados os preços dos ingressos. Pior não é apenas o valor das entradas, mas a existência dessa nefasta pista vip, um enorme curral de endinheirados que separa a banda de seu público de verdade. Paguei o vip para assistir ao show do Cure no Anhembi ao lado de um monte de gente que não estava nem aí pro show, conversando no celular, paquerando e tirando foto com os amigos. Dias depois, em Buenos Aires, sem a opção da pista vip, os verdadeiros fãs da banda haviam chegado no meio da tarde para garantir seu lugar na grade. Cercados por fãs de verdade, que cantavam todas as músicas de cor, a banda de Robert Smith se empolgou bem mais em Buenos Aires do que no show de São Paulo. Por isso quando soube do preço da área vip dos Monkeys em São Paulo resolvi gastar esse dinheiro num ingresso comum em Santiago, pagando bem menos pela entrada e usando o resto da grana para pagar parte da passagem de avião, usando a banda como desculpa para curtir um fim de semana esticado na capital chilena.

E as surpresas da noite começaram pelo local do show, o ginásio Movistar Arena, fechado, com seu teto abobadado como um globo e no meio de um parque, que além de ter tudo funcionando bonitinho (banheiro, filas, entrada) ainda proporcionou alguns momentos espetaculares graças à sua construção. Uma arena circular, ela é cercada por uma arquibancada à meia altura, que permite que se assista ao show da altura do palco principal. O Hives nem chegou a ser uma surpresa pois por mais desprezível que a banda possa ser em termos de importância, ela se garante em presença de palco, principalmente devido ao carisma de seu líder tagarela Pelle Almqvist, protagonista da segunda surpresa ao exibir um espanhol fluente o suficiente para desfilar piadas inteiras para o público chileno. Este por sua vez era uma surpresa ainda maior – já que a faixa etária do local não ultrapassava os 18 anos. O público do Arctic Monkeys no Chile era muito mais novo que a própria banda e a tratava com uma reverência religiosa, erguendo câmeras e celulares para registrar poucos frames daquele momento de catarse coletiva.

Calcado no disco do ano passado, o show é um desfile quase integral dos hits do disco preto e seu palco é ornado com globos de discoteca à frente de um enorme neon que reproduzia a onda de frequência que estampa a capa de AM. A iluminação e a disposição dos instrumentistas no palco deixava Alex Turner claramente no olho do furacão, com o baixista Nick O’Malley, o guitarrista Jamie Cook e o baterista Matt Helders assumindo algum protagonismo em certos vocais de apoio ou solos de seus instrumentos. A estrela da noite é o vocalista da banda, sua principal força-motriz, que domina o público enquanto canta suas baladas roqueiras. O show começa logo após de uma versão instrumental para uma nada acidental “Are You Lonesome Tonight?” e abre com três mísseis do disco do ano passado: “Do I Wanna Know?” já estabelece o clima pesaroso e grave da noite, acompanhado pelos fãs cantando o riff da música – uma tradição do rock latino. Mas basta Alex começar a cantar para nos lembrar que estamos em frente a um ídolo juvenil – e a imensa massa de vozes de adolescentes grita nos intervalos das letras de todas as músicas. O refrão da primeira faixa – “crawling back to you…” – é cantado como o refrão de uma missa. Mas qualquer ar messiânico ou clima religioso é deixado para trás a cada vez que Alex aponta para o público ou desvia o olhar como se estivesse desinteressado.

“Snap Out of It” segue cantada em uníssono pelo público, mas flutua no éter, numa câmera lenta lynchiana que pouco lembra a dinâmica pontiaguda da versão do disco. É no meio da faixa que o vocalista pela primeira vez interage com o público, arriscando algumas palavras em espanhol. De blaser azul e um topete impecavelmente engomado, Turner já não é mais o rebelde à James Dean que parecia encarnar há dois anos. Há uma segurança adulta, um ar de crooner e uma empáfia como se fosse um gângster júnior – quando larga a guitarra para cantar “Arabella” segurando apenas o microfone e seu cabo, ele caminha como um Chris Moltisanti dos Sopranos ou o Ray Liotta em Goodfellas: cheio de si, cercado por amigos de confiança, ele é o dono do pedaço, o rei da noite, um conceito de popstar bem diferente daquele que nos acostumamos a ver. Como se Elvis não tivesse engordado na fase Las Vegas e fosse o rei de lá até hoje, uma espécie de Frank Sinatra do rock. E isso é mais desconcertante quando lembramos que o sujeito é inglês. Antes da faixa acabar ele retoma a guitarra como se estivesse apenas experimentando a vida sem seu instrumento nativo.

E emenda uma sequência de hits de discos passados que começou com uma acelerada “Brianstorm”, passou pela lenta “Don’t Sit Down ‘Cause I’ve Moved Your Chair” (com direito à coreografia discreta de macarena quando a canção é citada), uma versão quase latinizada para “Dancing Shoes” e “Teddy Picker” emendada com “Crying Lightning”. Depois foi a vez de voltar a AM com “No. 1 Party Anthem” protagonizando um dos momentos mágicos do show, quando o público tirou seu celulares para acender lanternas para o alto enquanto balançava os braços para acompanhar a balada. Não havia a referência do isqueiro aceso dos anos 70 para aqueles adolescentes, não era citação nem ironia, simplesmente a vontade de fazer parte de um instante apaixonado com milhares de fãs ao redor. E assim a Movistar Arena se iluminou como um céu estrelado, transformando-se num enorme bailinho dos anos 50. “Knee Socks” aproveitou-se do transe para impor seu ritmo marcial e a costura de guitarras em outro grande momento do show.

“All My Own Stunts” abriu outra sequência de músicas do passado e Alex deixou o blaser de lado, chamando devagar o hit “I Bet You Look Good on the Dancefloor”, que ligou o público na tomada, deixando-o em ponto de bala para “Library Pictures”, quando Turner provocou o público, chamando o “Chi, Chi, Chi!” da torcida de futebol para que este repondesse com “le, le, le!”. Daí para o final foi uma série imbatível de clássicos modernos, começando com a irresistível “Why’d You Only Call Me When You’re High?”, passando pelo hino “Fluorescent Adolescent” e terminando a primeira parte do show com a reverente “505”, uma música que parece sintetizar essa fase adulta vivida atualmente pela banda.

O bis é o suprassumo do disco do ano passado e começa com a forte “One for the Road”, passa pela apaixonante “I Wanna Be Yours” (e em outro momento mágico da noite, os holofotes apontam para os globos de discoteca, transformando o ginásio em uma casa noturna dos sonhos) e termina com os golpes de machado desferidos no riff de “R U Mine?”, todas convocando o público para cantar em uníssono e desprender-se naquele universo frio e escuro do disco de 2013.

As luzes se acenderam e Joe Cocker começa a cantar “With a Little Help from My Friends” nas caixas de som, provocando um efeito dúbio, pois não sabemos se estamos vivendo um momento clássico como o Woodstock que registrou a versão definitiva para a música dos Beatles ou se acordamos de um flashback de um passado que não vivemos, como o Kevin Arnold de Anos Incríveis. Uma noite memorável, um dos grandes shows do ano, uma das grandes bandas deste século.

Abaixo os vídeos que fiz do show.

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Nesta quarta-feira uma sonda espacial vai tentar pousar num cometa, num feito histórico (se der certo, claro). Falei sobre isso na minha coluna do Brainstorm9 dessa semana – e o que isso tem a ver com a ficção científica.

Pousar num cometa
A Agência Espacial Europeia celebra um feito futuro apostando na ficção científica

Um mago e sua aprendiz tentam criar um sistema solar em miniatura a partir da manipulação da matéria através da mente. Trabalhando em um deserto rochoso, os dois fazem planetas e estrelas nascerem a partir da concentração, reunindo conjuntos de pedras flutuantes que, com a gravidade, tornam-se pequenos planetas. Mas algo está faltando…

Essa é a sinopse do curta Ambition, dirigido pelo polonês Tomek Bagiński e estrelado por Aidan Gillen e Aisling Franciosi. Filmado na Islândia, o filme foi exibido pela primeira vez no dia 24 do mês passado, durante a mostra Sci-Fi: Days of Fear and Wonder (Ficção Científica: Dias de Medo e Admiração), que foi realizada no British Film Institute, em Londres.

O curta é uma coprodução entre a Platige Image (a produtora de Bagiński) e a Agência Espacial Européia (ESA). O motivo da agência ter se envolvido no curta é revelado na metade da história, quando, ao cogitarem um dos motivos do nascimento da vida no planeta Terra, seus dois protagonistas lembram de um passado que ainda não aconteceu. Eles mencionam a Missão Rosetta, da própria ESA, que foi lançada há dez anos e no próximo dia 12 de novembro – também conhecido como amanhã – deve conseguir atingir seu propósito: pousar em um cometa.

Segundo os idealizadores da missão, a intenção do acontecimento é reunir informações e dados que possam falar mais a respeito da origem do sistema solar, da água em nosso planeta e, portanto, da formação da vida. Pode ser uma data histórica caso o pouso aconteça de acordo com o planejado.

“Tantas coisas poderiam ter dado errado”, diz o personagem de Aidan Gillen, conhecido por séries como “The Wire” e “Game of Thrones”. “Por um bom tempo, as origens da água e da própria vida em nosso planeta seguiram como um mistério completo. Foi quando começamos a buscar pelas respostas fora da Terra. Nos voltamos para os cometas. Um trilhão de bolas celestiais de gelo, poeira e moléculas complexas que sobraram do nascimento de nosso sistema solar. Eram vistos como mensageiros da morte e da destruição e ainda assim tão encantadores. Precisávamos pegar um deles: um plano incrivelmente ambicioso.”

A previsão é que a Missão Rosetta lance a sonda Philae para o centro do cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko quando estiver a uma distância de 22 quilômetros de distância, às 5:35 no horário de Brasília, amanhã. Pode ser um feito histórico que pode mudar o que conhecemos sobre a vida, o universo e tudo mais.

Pode ser apenas uma tentativa, já que alguns segundos de erro de cálculo podem colocar todo o trabalho a perder. Mas o importante é que foi feito. E, mais do que isso, que foi imaginado. Como o personagem principal do curta bancado pela ESA, alguém pensou num plano incrivelmente ambicioso. Tão ambicioso quanto pousar na Lua, decifrar nosso DNA ou desenvolver a inteligência artificial.

Ideias que começaram nos livros, nos filmes. A relação entre a ciência e a ficção científica talvez seja o melhor exemplo do ditado “a vida imita a arte”. São inúmeros casos de leitores que começaram a se interessar por física, química, biologia, matemática, astronomia e outros ramos da ciência a partir do contato com as especulações cogitadas por autores de épocas diferentes.

O polonês Wernher von Braun, a cara da NASA durante os anos de conquista espacial, só cogitou a viagem para o espaço após ler os livros de H.G. Wells e Jules Verne e termos como “robótica” e “ciberespaço” apareceram pela primeira vez em clássicos do gênero (“Eu, Robô” de Isaac Asimov e “Neuromancer” de William Gibson, respectivamente).

E talvez toda a magia suposta no curta – que faz dois humanos recriarem o sistema solar como num laboratório – não seja nada mágica. Afinal, como dizia outro mestre da ficção científica, Arthur C. Clarke, “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia.”

Eis a importância do pequeno filme: instigar a imaginação e a criatividade dos cientistas do futuro.

Na Impressão Digital dessa semana, agora no YouPix, falei sobre uma briga que está acontecendo bem debaixo de nossos narizes e pode mudar completamente a forma como interagimos com a internet.

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A guerra do vídeo
A disputa de audiência entre Google e Facebook é só o prenúncio de uma mudança ainda maior – a passagem do texto para o vídeo

Há uma guerra acontecendo nos bastidores da web. Não estou falando de geopolítica digital nem de deepweb, pois essa briga acontece sob nossos narizes e não no submundo da internet. Somos todos cúmplices, vítimas e parceiros das mudanças que vêm ocorrendo – e ela definirá o futuro da web. É a guerra do vídeo.

Desde que a web se popularizou, no início dos anos 90, ela é um meio escrito. Por mais que a possibilidade multimídia já estivesse presente desde os primeiros rascunhos de Tim Berners-Lee, a grande comunicação através da rede acontece no formato de texto. O MP3 e o Flash permitiram que som e vídeo aos poucos entrassem entre os parágrafos, mas nem a popularização da música digital (via pirataria, iTunes ou sites de streaming) nem a aquisição do YouTube pelo Google (na maior transação financeira do mercado digital da década passada) foram suficientes para destronar o texto como principal formato da comunicação online. E-mails, SMS, newsletters, sites e blogs ainda são onipresentes e por mais que as redes sociais tenham assimilado recursos multimídia elas ainda se movimentam por palavras.

Ainda. Um dos grandes termômetros de que há algo prestes a expandir nossa comunicação para além do teclado (seja ele físico ou touchscreen) foi um número que pegou a todos de surpresa: desde o meio deste ano o Facebook exibe mais vídeos do que o YouTube em desktops.

Não é pouca coisa e o gráfico desenhado pela ComScore no mês passado é autoexplicativo: do meio do ano passado para o meio deste ano, o YouTube caiu de quase 16 bilhões de views por mês para pouco mais de 11 bilhões, enquanto o Facebook vem numa ascensão gritante, saindo de menos de um bilhão de views por mês para 12,3 bi em apenas um ano. E, assim, ultrapassando o YouTube em um bilhão de visualizações por mês. Repetindo: não é pouca coisa.

comscore

A ascensão do Facebook começou graças a um recurso ridículo que já deve ter saltado a seus olhos por diversas vezes – fazendo, inclusive, você cair no truque e contribuído para o crescimento dos números de Mark Zuckerberg – o autoplay. Vídeos que começam a passar sem que seja preciso clicar na tecla play, mas, espertamente, com o som desligado. Assim, enquanto você está “zapeando” de cima abaixo pela sua timeline, vídeos começam a tocar sozinhos, sem som, e chamam sua atenção a ponto de fazer você clicar no volume para ver aquele filhote de bicho, aquele acidente espetacular, aquela animaçãozinha engraçadinha – e aumentar as estatísticas do Feice.
Mas não é o prenúncio de uma queda, afinal estamos falando apenas de dispositivos fixos. Os números divulgados não computam audiências em tablets ou smartphones, cada vez mais utilizados do que desktops atualmente. O dado também exclui o número de visualizações da plataforma Vevo, a marca que o YouTube mantém ao lado das grandes gravadoras e que funciona como servidor para os grandes sucessos do site de vídeos – clipes de artistas pop. Fora que a reação do YouTube já começou – e não por acaso você está vendo anúncios de alguns canais brasileiros no site, como o Porta dos Fundos, em ambientes offline, como pontos de ônibus e termômetros de rua.

Mas essa guerra não é apenas entre Google e Facebook – e tem tudo a ver com a migração da web de dispositivos fixos para aparelhos móveis. Pois a tendência iniciada com o celular não para por aí – e vai rumo à tal tecnologia “vestível” dos atuais Google Glass e computadores de pulso, cuja tendência é liberar nossas mãos de vez, inclusive da digitação.

A interface acionada por voz dos dispositivos do futuro já vem engatinhando quando conversamos via Facetime ou trocamos arquivos de áudio via Whatsapp em vez de digitar longas mensagens num tecladinho minúsculo. A melhoria das condições de infraestrutura da rede permite não apenas aplicativos de streaming de música, mas que também possamos conversar por áudio ou por vídeo através da internet.

Num outro extremo há a fusão da TV com a internet ainda em câmera lenta – principalmente no Brasil – mas já em andamento. Em pouco tempo o diálogo entre os aplicativos do celular e da TV será fluido e natural na rotina das pessoas, fazendo com que elas utilizem a TV, que em breve vai ter modelos com câmeras, inclusive para conversar com parentes e amigos e, num segundo momento, vlogar-se para o resto do mundo.

Ainda catamos milho em teclados virtuais, usando controles remotos feitos para trocar de canais para digitar a senha do Netflix ou soletrar lentamente nosso email. É um estágio transitório e que verá o smartphone assumindo o papel do controle da TV e, por que não, sua própria câmera. A segunda tela não será apenas textual, composta por comentários ou tweets por escrito – e vamos nos acostumar a ver dois vídeos simultaneamente (há muitos que já fazem isso atualmente).

E quando isso acontecer, talvez parte da nossa interação com a rede – a forma como fazemos buscas, como assinalamos o site para onde queremos ir, senhas e a troca de mensagens no dia-a-dia – não seja mais em texto. E sim em vídeo.

Aí teremos uma nova fase em que, aí sim, vamos descobrir os novos popstars do futuro. Que não são artistas, nem autores, nem celebridades vindas de outras mídias, mas pessoas que transformaram a web em seu próprio reality show. Já conhecemos vários exemplos do tipo atualmente, mas eles ainda não são massivos porque a rede ainda é baseada em texto. E não em vídeo.

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Fui convidado para participar do livro Hábitos Culturais dos Paulistas, uma pesquisa feita entre a JLeiva e o Datafolha, para falar sobre as transformações que a tecnologia impôs ao nosso contato com a cultura. A pesquisa é excelente, quebra alguns tabus e abre cenários bem interessantes para um futuro próximo – ela pode ser acessada neste site. Além do capítulo no livro (que ainda conta com textos de Hugo Possolo, dos Paralapatões, José Roberto Toledo, do Estadão Dados, entre outros), também participei de duas mesas de discussão nesta terça e quarta na Pinacoteca, com alguns dos envolvidos no livro (Baixo Ribeiro, da Choque Cultural, em um dia e Pena Schimidt e Alessandro Janoni, do Datafolha, no outro). Abaixo, o texto que escrevi para o livro, que pode ser baixado em PDF aqui.

Um país conectado

Viver no Brasil na segunda década do século 21 é habitar várias épocas ao mesmo tempo. O país atravessou o século passado sob a sombra de um epíteto infame, a frase “O Brasil é o país do futuro”.

Ela foi dita pela primeira vez, com ironia, por um personagem do livro País do Carnaval, de Jorge Amado, nos anos 1930. Virou título do livro ufanista do austríaco Stefan Zweig em 1941 e, no final dos anos 1960, foi transformada em mote nacionalista pelo ditador militar Emílio Garrastazu Médici. Hoje, por linhas tortas, ela parece ter deixado de ser futuro do pretérito para se tornar presente.

“O futuro já começou” não é mero arremedo da letra do jingle que Marcos Valle compôs para o final de ano da TV Globo nos anos 1970 – a realidade digital para onde estamos sendo tragados desde a popularização da world wide web há vinte anos vem borrando nossa sensação de futuro e nos fazendo crer em um mundo de não ficção científica. Ainda estamos longe dos carros voadores ou de morar na Lua, mas a transformação provocada pela internet na virada do milênio foi colossal e seu impacto talvez seja maior do que a urbanização do planeta, um processo que começou há pouco mais de um século e que atingirá seu auge nas próximas décadas (a ONU estima que, em quinze anos, 70% da população do mundo morará em grandes cidades).

Nossa sensação de futuro foi embaçada pela onipresença da rede e pela miniaturização dos dispositivos de acesso a ela – repare como todo filme de ficção científica produzido até 1994 ficou datado pelo simples fato de não cogitar a existência da internet no futuro.

O que antes chamávamos de “futuro” foi ultrapassado pela realidade de redes sociais e smartphones. Fazemos reservas de restaurante e compramos ingresso para o cinema apenas via celular – e sem usar a voz. O conteúdo sob demanda já está nas TVs e nos sites e logo chegará às rádios. Livros e discos eletrônicos são vendidos diretamente para o aparelho de consumo, mudando a natureza das lojas. Aplicativos nos ajudam a achar o melhor caminho para chegar em casa ou a chamar táxis mais rapidamente. Wi-fi em todo lugar. Movimentações bancárias e comerciais podem ser feitas de casa, por qualquer um, sem haver a menor necessidade de manusear dinheiro. Registramos cada passo de nossos filhos para publicar para amigos e familiares ao descobrirmos que a melhor câmera é aquela que está sempre à mão – ou melhor, no bolso ou nos próprios celulares.

Qualquer dúvida pode ser saciada com uma busca, qualquer endereço pode ser encontrado com poucos cliques, e o celular virou uma mistura de central de entretenimento com controle remoto da realidade. Todos andamos encurvados, tateando fixamente um retângulo preto nas mãos. Em pouco tempo, essa caixinha irá para os óculos e para o pulso, da mesma forma que os computadores tradicionais (notebook ou desktop) estão perdendo espaço para o smartphone. Repare: você já usa mais seu celular do que seu PC.

Nova realidade digital
Calhou de essa nova realidade digital pairar sobre o mundo no mesmo momento em que o Brasil passa a se equilibrar com as próprias pernas. Estamos saindo de nossa adolescência pátria ao mesmo tempo que o mundo se horizontaliza com a internet – e, aos poucos, estamos conquistando o planeta. De repente, “ser brasileiro” ganhou conotações completamente diferentes dos clichês do passado, que figuravam o país em algum ponto equidistante entre Carmen

Miranda, o filme Cidade de Deus, Gisele Bündchen e o funk carioca. Aos olhos estrangeiros, o Brasil sempre foi um animal bonito e exótico, mas o início de nossa maturidade cívica, escancarada nos protestos de junho de 2013, mudou a visão externa sobre o país.

E a forma como usamos a internet é crucial nessa nova abordagem para o resto do mundo. Somos o segundo país que mais consome smartphones e o vice-líder em presença no Facebook, além de dominarmos outras tantas redes sociais com uma presença massiva que só não ultrapassa a dos Estados Unidos. O Brasil é conhecido por ter se embrenhado em diferentes áreas do mundo digital e ter conseguido deter autoridade nos pontos mais remotos desse universo. Do pioneirismo da adoção do software livre em gestão pública ao maior encontro de pessoas conectadas do planeta (a Campus Party de São Paulo ultrapassou a versão original, espanhola, há dois anos), das plataformas de transparência política ao sistema bancário eletrônico (considerado superior ao de países europeus em termos de segurança), do maior festival de cultura da internet do mundo (o YouPix, em São Paulo, reúne quase 20 mil pessoas por ano) a enormes comunidades de gamers on-line, o Brasil é reconhecido constantemente como um gigante digital. E muitos desses hábitos, ainda em transformação, são detectados com clareza nesta pesquisa.

Embora a TV aberta ainda seja o hábito mais comum entre todos os entrevistados, é fácil perceber que esse cenário está mudando drasticamente – basta confrontar a quantidade de pessoas que não acessa a internet (27%, número que tende a cair) com o fato de que metade dos que responderam à pesquisa acessa a rede diariamente, seja para entrar em contato com amigos e familiares, seja para consumir conteúdo, que pode ser tanto informação como entretenimento.

É interessante notar a natureza social da rede. Ela não é usada unicamente para benefício próprio ou interesses individuais, mas é um lugar de diálogo e de relações pessoais. É onde as pessoas mantêm contato mais frequente, ainda que na forma de likes, tuítes, links e vídeos compartilhados. E reforça tanto o caráter gregário quanto o clima de festa típicos da sociedade brasileira, que podem pender essa intensidade para um lado mais depreciativo, ao qual assistimos tanto nos comentários das notícias quanto nas redes sociais. E estamos todos nelas – 90% dos entrevistados que acessam a internet participam de alguma rede social, e 83% deles têm perfil no Facebook, a maior rede social do mundo atualmente.

Pirataria
Uma das particularidades da internet brasileira é a adoção do download ilegal. O Brasil foi um dos primeiros países a abraçar o Napster, software que permite o compartilhamento de arquivos de um computador para outro, sem que ambos estejam conectados a um servidor principal, vivendo o auge da pirataria digital simultaneamente a Estados Unidos e Europa. O país se beneficiou ao ter acesso a esse tipo de conteúdo exatamente quando seus serviços de banda larga começaram a ganhar território, substituindo a obtusa conexão via linha telefônica que dominou a primeira fase de popularização da web, na última década do século passado. O usuário de internet brasileiro médio baixa música gratuitamente mais do que qualquer outro tipo de conteúdo e não se vê pagando por material digital.

Embora seja o principal conteúdo baixado, a música não está sozinha como líder de downloads ilegais. Cada vez mais gente baixa filmes pela internet em vez de assisti-los no cinema. Na pesquisa realizada, quase um em cada cinco entrevistados assiste a filmes que foram baixados da internet. É curioso perceber que não são assistidos no computador em que foi feito o download, mas na própria TV de casa. Seja conectando o computador ao televisor ou usando HDs, consoles de videogame ou pen drives para ter acesso a conteúdo audiovisual, mais da metade dos entrevistados usa um aparelho de televisão para assistir aos filmes baixados ilegalmente.

Da web para a rua
Muito se engana quem acha que uma população conectada é uma população isolada e trancafiada em apartamentos, mesmo porque boa parte das pessoas usa a internet como ponto de partida para a rua. E não se trata apenas dos protestos de junho de 2013, quando o país juntou-se ao momento histórico que reuniu importantes levantes populares, como a Primavera Árabe, os Indignados da Espanha, os tumultos em Londres e o movimento Occupy Wall Street. Mais do que protestar, as pessoas querem desfrutar de eventos culturais – muitos realizados em praça pública e ao ar livre.

Entre os entrevistados, 40% dizem se informar sobre atrações culturais por meio da internet, sendo que 23% de todos ficam sabendo das atrações por meio das redes sociais. Mais da metade dos que usam internet e redes sociais usam portais e sites de mídia para descobrir novidades sobre a programação cultural da cidade e usa as páginas oficiais dos eventos nas redes sociais para descobrir mais informações. Um dado curioso se reflete no ato da compra: a grande maioria ainda prefere adquirir ingressos para esses eventos pessoalmente, na bilheteria, em vez de usar a internet.

O que a pesquisa mostra é que a estrada digital é um caminho sem volta. Os aparelhos continuarão diminuindo até praticamente desaparecer diante de nossos olhos. Um dos melhores exemplos dessa tendência dos aparelhos “vestíveis” parece uma anomalia tecnológica ao acoplar um minimonitor a um par de óculos, mas já nasce com cara de datado, de filme de ficção científica retrô. Essa tendência de aparelhos “vestíveis” é inevitável: basta ver o smartwatch como o controle de interface de nossos smartphones, como uma “filial” do celular. Nem precisaremos tirar o telefone do bolso, basta acioná-lo – muito provavelmente por voz – usando outro pequeno computador, amarrado em seu pulso, substituindo o velho relógio.

É um futuro em que controlaremos as telas sem usar as mãos e em que nos tornaremos cada vez mais independentes do computador de mesa, da escrivaninha e do escritório. A mobilidade digital nos joga para a rua, nos tira de uma zona de conforto que, na verdade, era uma zona de medo. Já estamos retomando as ruas graças às tecnologias disponíveis. E não param de aparecer novidades, portanto, não basta esperarmos que o futuro aconteça. Ele já está acontecendo. É preciso ir ao encontro dele e começar a fazer algo.

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Na minha coluna dessa semana no Brainstorm9, falei sobre o vazamento do trailer do Vingadores 2 na semana passada e da forma como a Marvel encarou o contratempo, jogando a seu favor.

Jogando com a internet
Com o vazamento do trailer de “Vingadores 2: A Era de Ultron”, a Marvel aprende que não dá para controlar a internet, mas também ensina como é a melhor forma de lidar com ela

“Maldita Hydra!”, resmungou a conta do Twitter da Marvel na semana passada, horas depois do vazamento do primeiro aguardado trailer do filme “Vingadores 2: A Era de Ultron”.

O trailer estava programado para ir ao ar após o episódio de ontem, terça-feira, dia 28, do seriado “Agents of S.H.I.E.L.D.”, também produzido pela Casa das Ideias. Mas um imprevisto vazamento fez uma versão em baixa qualidade do trailer aparecer no início da noite da quinta-feira passada, dia 23. Em segundos sites de notícias de cinema, quadrinhos e cultura pop linkavam o vídeo pirata com o aviso para que seus leitores assistissem logo, pois o trailer iria sair do ar.

Afinal, esse é o hábito da indústria. Assim que um disco, filme ou seriado aparece online, há exércitos de programadores e advogados prontos para retirar o arquivo do ar, ameaçando sites e derrubando conteúdos através de acordos pré-estabelecidos com redes como YouTube e Facebook.

O YouTube especificamente conta com um algoritmo de reconhecimento de conteúdo alheio que simplesmente impede o dono de uma conta de publicar um vídeo caso ele tenha diagnosticado que aquele vídeo é de uma terceira parte, mesmo que seu publicador não a identifique.

Mas isso não quer dizer que consigam reduzir a pirataria digital. Diminuem o impacto, bloqueando os principais pontos de acesso – mas só para vídeo há dezenas de sites semelhantes ao YouTube que não contam com tecnologia tão ágil para retirada de conteúdo, o que obriga essa ação ser realizada manualmente, com advogados entrando em contato com departamentos jurídicos dos sites.

Além destes, as pessoas têm trocado conteúdo em redes de relacionamento fechadas, emails e fóruns e a versão pirata do trailer de Era de Ultron circulou inclusive via WhatsApp. O próprio YouTube pode ser enganado – e quase sempre o é – quando usuários alteram minimamente a velocidade do arquivo ou invertem horizontalmente a imagem ou a publicam dentro de uma moldura, impossibilitanto a inteligência artificial do site de reconhecer automaticamente a versão. Isso sem contar o mar de torrents, impossível de ser rastreado.

Mas a Marvel fez diferente. Ao twittar o resmungo contra a Hydra – a rede nazista que derrubou a S.H.I.E.L.D. nos filmes do estúdio – ela oficializou a pirataria, ao divulgar em seu próprio canal do YouTube o trailer em alta resolução – com toda a pompa, circunstância, cores e sons que deveria aparecer apenas hoje, na transmissão norte-americana do seriado Agents of S.H.I.E.L.D. Em vez de derrubar as milhares de versões piratas de seu trailer e causar a frustração em milhões de fãs que não conseguiram assistir ao filme, a Marvel baixou a guarda e faturou ela mesma aquela síndrome de atenção.

A Marvel está liderando a construção de uma nova narrativa a longo prazo que foi antecipada pelos delírios transmídia da década passada, quando “Matrix” e “Lost” mostravam as maravilhas que poderiam ser conseguidas quando se misturava a história principal do cinema ou da TV com quadrinhos, desenhos animados, videogames, além de inúmeras pistas espalhadas pela internet e outras tantas cogitadas pelos fãs.

Trabalhando em cima de uma mitologia clássica – seus próprios super-heróis – ela primeiro transpôs de forma bem sucedida os títulos dos quadrinhos para o cinema (com os primeiros filmes do “Homem Aranha”, “X-Men” e “Quarteto Fantástico”) e depois virou ela mesma um estúdio de cinema para produzir seus próprios títulos.

A partir de “Homem de Ferro” começou a contar uma história que se espalhava por outros filmes (“Thor”, “Capitão América”, “Homem de Ferro 2” e “Thor 2”) para culminar com o encontro dos heróis no primeiro Vingadores. O final dessa primeira fase ainda contou com a estreia do seriado “Agents of S.H.I.E.L.D.” que conversou com os filmes do Capitão América e com o segundo filme de Thor nas mesmas semanas em que estas produções estrearam mundialmente.

Estamos agora no meio da segunda fase da Marvel, que termina com o próximo Vingadores e já teve o segundo “Capitão América” e o terceiro “Homem de Ferro” (além de “Guardiões das Galáxias”) como episódios iniciais. O seriado produzido pela ABC também conversará com o fim desta segunda fase. E a terceira fase – anunciada ontem por Kevin Feige, em evento na California – contará com novos heróis e seriados, além de quatro séries estão sendo produzidas em parceria com o Netflix. Confira as datas:

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“Capitão América: Guerra Civil” – 6 de maio de 2016
“Doutor Estranho” – 4 de novembro de 2016
“Guardiões da Galáxia 2” – 5 de Maio de 2017
“Thor 3: Ragnarok” – 28 de julho de 2017
“Pantera Negra” – 3 de novembro de 2017
“Capitã Marvel” – 6 de julho de 2018
“Inumanos” – 2 de novembro de 2018
“Avengers: Infinity War – Parte I” – 4 de maio de 2018
“Avengers: Infinity War – Parte II” – 3 de maio de 2019

O incidente envolvendo o trailer novo do segundo Vingadores mostra que a Marvel vem aprendendo a lidar com a internet, que sempre pode estragar a brincadeira ao revelar segredos antes da hora. Mas é didático para outras empresas de produção de conteúdo – não dá para controlar a internet, é preciso trabalhar com ela. Certamente o trailer do novo filme faria mais sentido após a exibição do episódio, que conversaria com o a Era de Ultron. Tanto que a Marvel anunciou que iria exibir uma cena inédita do novo filme junto com o episódio, para tentar diminuir o estrago.

Aos poucos isso vai ser testado com outros filmes e seriados – ainda mais agora que a DC Comics anunciou 10 filmes para compor seu multiverso ao redor dos filmes da Liga da Justiça, com Batman e Super-Homem à frente. Isso sem contar as inúmeras outras mitologias – originais e adaptadas – que serão filmadas nas próximas décadas…

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Há tempo venho ensaiando a volta da minha coluna Impressão Digital, que mantinha primeiro no Caderno 2 e depois no Link do Estadão, e agora ela ressurge no YouPix. O tema segue o mesmo: o impacto da cultura digital em nosso comportamento, com mais ênfase na internet porque essa é a área do YouPix. E a pedido da editora do site Bia Granja reestréio a coluna fazendo um balanço das eleições desse ano – de uma perspectiva online.

Eleições 2014: entre a zoeira e o rancor
A internet brasileira superpõe duas realidades – a onipresença do Facebook e a cara violenta do Brasil – rumo ao nosso amadurecimento político

2014 foi um ano bem esclarecedor. Independentemente do resultado do time para quem você estava torcendo, Copa e Eleições em 2014 tiveram o tempero carregado da internet brasileira, metade zoeira, metade rancor. Milhões de brasileiros pendurados no Twitter ou no Facebook, fingiam que estavam trabalhando ou lendo mensagens no celular para ultrapassar o clichê dos 200 milhões de técnicos de futebol ou 200 milhões de analistas de política que a cada quatro anos nos incorpora.

O brasileiro online se move em hordas, grupos de conhecidos que gastam energia pegando pesado entre si e, muitas vezes, despejam bordoadas em semiconhecidos que só estão passando. A voracidade da presença do brasileiro na internet é comemorada não apenas na vice posição das maiores redes sociais do mundo mas também em hypes que vivem auges e depois desaparecem – como o Fotolog, o Formspring, o Old Reader e, aparentemente, há pouco tempo, o Ello.
Mas ela também é lamentada em jogos online por vários jogadores graças à sua natureza destrutiva – são famosos os clãs brasileiros que riem “huehuehuehue” e existem apenas para dizimar as construções de outros jogadores, sem motivo algum. O bullying online é constante nas redes sociais e isso traduz duas realidades que o Brasil vive ao mesmo tempo: a popularidade do Facebook e a história de violência do país.

Esta primeira realidade, que vivemos desde 2010, quando a rede começou a crescer exponencialmente no Brasil, também é a infância digital de milhões de pessoas. Desde os chamados millennials à pessoas da terceira e quarta idade começaram a conhecer a internet em um ambiente em que tudo que é escrito é publicado para todo mundo e quantificado com likes e shares. O Facebook é o primeiro blog, a primeira lista de discussão por email, o primeiro leitor de RSS, o primeiro fórum e o primeiro Flickr ou conta do YouTube de milhões de pessoas. Dezenas de milhões de pessoas.

Gente que vive a internet entre links, imagens, textos curtos ou gigantescos e vídeos que se movimentam entre o Whatsapp, o Facebook, o Twitter, o email e mensagens de SMS – e só. A multiplicidade de funções do Facebook e a onipresença das pessoas na rede social é uma draga de tempo e praticamente isola as pessoas do resto da internet. O que parecia ser uma enorme favela torna-se um feudo cada vez mais fechado, um castelo murado que isola a internet em uma insuportável troca de insultos, amigáveis ou não.

A segunda realidade é da natureza do Brasil. O país erguido sobre o exotique que exalta a exuberância disfarça uma das sociedades mais violentas do mundo. A face sorridente brasileira (Amazônia, mulata, Carmen Miranda, futebol, samba, Copacabana, carnaval) esconde uma história de tortura e sangue, extermínios e massacres, sadismo e crueldade. É um país de feitores, torturadores, bandeirantes, “dotôs delegados”, coronéis, milicianos. Resolver as coisas na base da coerção física sempre foi parte do cotidiano brasileiro e o século 20 foi eficaz em encobrir para debaixo do tapete toda essa história de violência. Mas ela continua aí.

Junte uma web 2.0 em profusão geométrica, com milhões e milhões de pessoas descobrindo a maravilha que é conversar com o mundo inteiro (e sozinho, ao mesmo tempo) com essa tendência a resolver as coisas no braço e eis a internet brasileira em 2014.

Na Copa, a violência ficou reprimida. Pois a simples percepção de que o maior evento do mundo, aquele que sempre crescemos acompanhando à distância, iria acontecer perto de casa criou uma situação de desequilíbrio mental em todos nós. Uma Copa do Mundo sendo realizada no Brasil nos chapou com uma loucura leve e mesmo os mais críticos não resistiram ao contato com os estrangeiros, às situações inusitadas que foram presenciadas nesta que não por acaso consagrou-se “a Copa das Copas”. O VTNC à Dilma no primeiro jogo do evento e o fatídico 7 x 1 foram momentos em que a face violenta do brasileiro ameaçou vir à tona, mas só aquela saraivada de piadas sobre o Podolswki em menos de 24 horas no Twitter já foram o suficiente para mostrar o quanto o país estava inebriado, flutuando no delírio de ser o país sede de uma Copa.

Já as eleições sintonizaram o dial do inconsciente brasileiro no outro extremo. Sim, a zoeira teve mais grandes momentos do que o rancor durante a Copa do Mundo, mas vamos lembrar que a eleição começou pra valer de uma forma trágica e pesada, quando o avião de Eduardo Campos caiu em Santos. A partir daquele 13 de agosto o Brasil entrava numa montanha russa de emoções sem precedentes na história recente – e propulsionada à toda força graças ao volume de troca de informação nas rede sociais.

Assistimos ao doutor Jeckyll da Copa do Mundo transformando-se no senhor Hyde das eleições repetindo a revelação final de Felipe Barreto em O Dono do Mundo – que ele não era bonzinho porra nenhuma e vocês vão ver só. A enxurrada de informação é estarrecedora. Piadas nonsense, trocadilhos afiados, montagens perfeitas, vídeos editados segundos depois de uma notícia ir ao ar, sites de notícias assumidamente falsas, blogs petralhas e blogs reaças, programas humorísticos de telejornalismo, canais no YouTube, páginas no Facebook, texto aplicado em foto, longos artigos exaltando ou condenando um país em que a esquerda é caviar e a direita é coxinha.

Os candidatos a cargos legislativo fizeram a festa nas redes e o Facebook virou o grande palanque de 2014, inclusive para a imprensa, que abraçou as redes sociais ainda mais avidamente que em eleições anteriores. Já os candidatos à presidência foram desconstruídos e reconstruídos dezenas de vezes por centenas de pontos de vista. Dilma, Aécio e Marina passaram por devassas pesadas de suas carreiras enquanto Luciana Genro e Eduardo Jorge deixaram o zoológico dos nanicos para ganhar voz e criaram bases sólidas para suas futuras carreiras políticas. Levy Fidelix saiu do armário do conservadorismo e deixou de ser o seu Barriga do aerotrem enquanto o Pastor Everaldo entrou para a história como a primeira pessoa a confessar ter peidado em um programa de TV no Brasil.
Mas mesmo com a vitória conservadora no legislativo e o país rachado politicamente entre Aécio e Dilma, estes aspectos são coadjuvantes frente a algo que assistimos neste ano – a intensa participação política dos brasileiros e nossos primeiros passos rumo a discussões civilizadas. A nação violenta animou-se com o teclado e passou a cuspir besteiras para quem quisesse se sentir ofendido. Tanto faz qual tendência política – é fácil pensar nas estrelas conservadoras e progressistas que se degladiam em diferentes mídias, encontrando-se nas redes sociais para equiparar links de colunas, programas de TV ou posts nas próprias redes. Essa fúria motiva as pessoas ao menos para se posicionar politicamente, pelos motivos certos ou não, em vez de fingir desinteresse por política para depois aliar-se ao vencedor.

Pois essa é outra característica brasileira: nunca há uma ruptura, um dissenso, uma tensão em qualquer mudança histórica do país. O Brasil tornou-se independente quase como uma herança, a abolição da escravatura foi aceita de imediato, a República também não foi contestada e foram preciso 15 anos para derrubar Getúlio, que voltou dez anos depois. Sua morte também foi assimilada rapidamente assim como a mudança do Golpe de 64 e a Nova República, Collor, Fernando Henrique e o PT. Essa raiva toda na internet não vai nos levar a uma guerra civil como muitos temem, mas faz parte de um processo de amadurecimento político brasileiro que está apenas começando… Por isso 2014 está sendo bem esclarecedor.

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Outro dia comentaram comigo sobre essa entrevista que dei para o Portal A&C e que eu ainda não a tinha visto publicada. Copio-a a seguir para quem também não viu:

​“Já estamos cercados por tecnologias com inteligência artificial”
Um papo sobre avanços tecnológicos recentes e seus impactos sobre nossas vidas com o jornalista Alexandre Matias

Já parou para pensar no quanto as novas tecnologias têm mudado nossas vidas nos últimos anos? Internet e softwares, com o suporte dos mais variados tipos de dispositivos, têm modificado comportamentos, modos de produção, os fluxos de informação, influenciado o jeito de fazer arte e produzir cultura, transformado a educação e o ensino. E isso parece ser só o começo.

O jornalista Alexandre Matias tem acompanhado tudo isso de perto profissionalmente. Ao longo de sua carreira, foi editor do “Link”, o caderno de tecnologia do jornal Estado de São Paulo, editor chefe da revista de ciência Galileu, além de ter editado umas das primeiras revistas no Brasil a falar de comportamento digital, a “Play”. É também reconhecido pelo seu blog “Trabalho Sujo”. O Portal AeC conversou com Matias sobre os impactos e transformações propiciados pelas novas tecnologias e o convidou a fazer algumas apostas em relação ao futuro.

Você começou sua carreira cobrindo música, foi editor do caderno de tecnologia no Estadão, editor da Revista Galileu e seu blog Trabalho Sujo é referência para muitas pessoas. Como você enxerga hoje a profissão de jornalista? Qual é o papel dele num mundo onde se fala em excesso de informação e um baixo limiar de atenção?
Acho que a chegada da internet é uma fase de transição que parece que tem demorado para passar porque a estamos atravessando desde os anos 90. Mas quem tem 18 anos hoje não sabe o que é o mundo sem internet, provavelmente nem sequer se refere à internet desta forma – não paga contas “online”, apenas paga contas; não compra ingressos “online”, apenas compra ingressos; não sai com alguém que conheceu “online” e sim com alguém que conheceu. A maioria das profissões e dos profissionais entrou em parafuso e ainda tateia na rede – tem muita gente mais velha que a gente que está começando a acessar a rede em 2014, tendo seu primeiro email, abrindo seu primeiro perfil em uma rede social, acreditando naqueles velhos boatos que caímos em 1997 e clicando sem querer em correntes, vírus ou spywares. Tudo isso pra dizer que o cerne da profissão jornalista não mudou muito e é tão necessário (talvez mais) do que antes. É preciso apurar, editar, filtrar, checar, descobrir coisas novas, fuçar em assuntos que ninguém quer se meter – cada vez mais. Se o Facebook (ou a próxima rede social) é o blog de qualquer um e qualquer um com um blog pode ser um jornalista, somos todos jornalistas – mas isso não quer dizer que somos bons jornalistas. Cabe a esses bons separar o joio do trigo e trazer assuntos apurados, checados e analisados. O problema é que a mudança provocada pela internet vem desnudando uma série de veículos e modus operandi que não têm nada a ver com jornalismo, que fazem propaganda (comercial ou política) disfarçada disso. Então uma série de “pilares” do jornalismo vêm caindo ou se segurando para não cair, enquanto os novos nomes ainda estão surgindo, experimentando formatos, vendo como se pagam as contas. É um momento bem interessante e me sinto muito feliz em poder participar tão ativamente desta mudança. Editei uma revista que falava de comportamento digital em 2001 (a Play), editei um caderno que unificou a produção do online e do impresso pela primeira vez numa grande redação brasileira (o Link) e tenho um site que vai mudando de acordo com a minha vontade e as novidades da época (o Trabalho Sujo). São apenas três experiências pelas quais passei entre muitas outras que mostram como estamos mudando e cada vez mais conscientes desta mudança.

Um pequeno exercício de especulação e futurologia para quem acompanha o mercado tech de perto: assim como o filme Minority Report influenciou interfaces touch quando do seu lançamento, fala-se que Ela, de Spike Jonze, pode ter o mesmo impacto na design da experiência do usuário. Ou seja, interfaces menos visuais e com comandos vocais. Você apostaria nisso? Como você enxerga possíveis futuras interfaces?
Não sei, acho que o futuro está cada vez mais imprevisível – procure a internet na ficção científica do século 20 e ela só começa a ser cogitada a partir de 1984, com Neuromancer, quando a internet já existia para além das universidades e laboratórios de tecnologia. Mesmo as interfaces do Minority Report ainda não chegaram – estamos arrastando coisas na tela com o mouse, por mais que nossos dedos já deslizem os celulares e tablets. E as telas no filme de Spielberg não existiam, eram projetadas no vazio, uma interface que ainda vamos ver surgindo. Sobre Ela – e outros filmes e livros que abordam tais interfaces – vamos ver os robôs do futuro não como androides que fazem as coisas pra gente, mas como assistentes pessoais. Mas creio que eles não se tornarão tão humanos como a personagem do filme de Jonze – já conversamos com aparelhos hoje em dia (fizemos uma matéria em 2007 sobre pessoas que batizavam a voz que saía de seus aparelhos GPS). Acho que a tendência de qualquer interface é emular uma interface anterior – não à toa ainda chamamos a área de trabalho de “desktop” (escrivaninha em inglês) ou usamos termos como “pastas” e “arquivos” para nos referir a locais que não se parecem pastas e bits que não nos lembram em nada arquivos. Qual vamos escolher no futuro? Prefiro dizer que já conectaram o computador ao neurônio e que ativar as coisas com o pensamento deverá ser rotina em 20 anos. Por isso não sei se vamos precisar de uma cara ou de uma personalidade para estas coisas…

Você vê chances da inteligência artificial, num futuro próximo, ser tão fantástica e integrada à rotina do cidadão comum, como é no filme Ela?
Sim. Na verdade, já estamos cercados por inteligência artificial. É ela que nos indica amigos no Facebook, livros na Amazon, filmes no Netflix, os melhores caminhos via Waze e descobre a música que está tocando na festa via Shazam. A tendência é que esses algoritmos vão ficar mais complexos e começar a cruzar informações entre si – a ponto de saber que quando sua mãe estiver querendo falar com você, o volume do som ou da TV irão baixar automaticamente. E esse é um exemplo simples que devemos ver funcionando em poucos anos.

A internet vem alterando significativamente a forma como produzimos e consumimos cultura. Do iPod ao Netflix, passando pelo Kindle e pelo ProTools, qualquer um hoje, em teoria, pode criar o próximo best seller sem sair de casa, além de ter acesso quase imediato a tudo que a humanidade já produziu. Como você analisa este momento?
Acho que isso pode significar uma desglamourização do processo artístico, da produção cultural. Hoje qualquer um pode gravar um disco ou escrever um livro a partir de casa, e muitos já conseguem editar filmes inteiros com pouco auxílio de terceiros. Mas estamos falando de filmes, livros, discos – conceitos forjados e popularizados no século 20. Fico muito mais curioso para saber quais são os itens culturais do século 21. Games, sites e experiências interativas são apenas o rascunho do que veremos no futuro. E, com isso, “ser artista” vai ser corriqueiro e deixa de ser mítico, inalcançável. Claro que ainda vão existir grandes artistas – no que diz respeito a tamanho e qualidade – mas eles vão ser cada vez mais raros e provavelmente se lançarão por conta própria.

A internet, também, por meio de suas redes sociais, está dando voz política a cada vez mais pessoas. É chegada a era de uma democracia 2.0?
A minha dúvida maior é sobre o congresso. Como o jornal de papel que chega toda manhã na sua casa com as notícias de ontem, as assembleias legislativas tiveram uma importância fundamental para a história da humanidade. Afinal, era muito difícil saber o que toda uma cidade, um estado ou um país pensavam e queriam, daí escolher representantes pelo voto. Mas é um formato que parece fadado a morrer, mesmo porque já viciou-se em uma série falhas que pouco dizem respeito à sua função original. Mas vamos ter um plenário formado pelas próprias pessoas? Acho inviável um plebiscito para qualquer assunto. Acho que a principal mudança politica diz mais respeito à política do dia a dia, de aos poucos as pessoas perceberem que a calçada quebrada, o buraco na rua, a avenida que engarrafa e o bairro que inunda são problemas de todos e não apenas ficar esperando soluções de cima. Acho que há uma tendência à municipalização das discussões políticas e à retomada da comunidade como unidade de gerência. O escritor de ficção científica Neal Stephenson cogitou em seu livro Nevasca pequenos condomínios autônomos que conversam entre si. Não acho um futuro impossível, embora vai demorar um tempo para chegar.

Atualmente, educação é um setor que tem sido explorado exaustivamente por empresas de tecnologia: cursos via web, universidades e escolas virtuais etc. Ao seu ver, é uma nova fronteira que se abre e de fato transforma o ensino e o aprendizado ou é apenas mais uma tendência do mercado tech como foram tantas outras?
As duas coisas. A escola também foi afetada pela chegada do digital. E era um modelo idêntico ao criado na era industrial. Analisando friamente, a escola nunca foi um local de aprendizado, e sim onde os pais podem deixar os filhos quando vão ao trabalho. Ao mesmo tempo em que os filhos eram doutrinados para entender o trabalho no futuro. A escola imita a fábrica, a sirene do recreio é a mesma do intervalo, há filas, chamada, horários, etc. Mas se o próprio trabalho está mudando, é inevitável que a escola também mude. A duvida, neste caso, é saber onde vamos deixar nossos filhos quando estivermos fazendo outras coisas. E o que eles deverão aprender quando estiverem neste lugar. É melhor aprender a cozinhar ou trigonometria? É melhor aprender a gerir um negócio ou leis da física? Precisamos de uma sala de aula? O professor já não é mais a autoridade do saber que era, um adolescente com um smartphone pode descobrir uma série de enganos perpetrados por um professor de história mal intencionado, algo impossível há vinte anos.

Tendo em mente a tecnologia existe para melhorar a existência humana, para você, qual foi o maior avanço tecnológico dos últimos 10 anos?
Se fossem dos últimos 20, sem dúvida a world wide web, que tornou a popularização da internet possível. Dos últimos 10, talvez seja a mutação do telefone portátil em computador de bolso. Mas é uma revolução passageira, daqui a dez anos não carregaremos nenhum aparelho no bolso. E acho que o computador de pulso vai ser mais popular que o óculos-computador. Mas vai saber se alguém não inventa o teletransporte ou algo que torne dormir algo obsoleto…