
Uma das capas da edição Trip desta virada de ano é o ator, produtor e diretor Guilherme Fontes, que entrevistei para a seção Páginas Negras que abre a revista. 2015 é o ano que marca os 20 anos do projeto que consagrou a fama de Guilherme, que deixou de ser visto como um galá de novela para ir parar nas páginas de polícia como pária do cinema nacional, ao desviar milhões de reais que deveriam ser gastos na produção de seu filme Chatô – O Rei do Brasil, baseado na biografia do magnata brasileiro das comunicações do meio do século passado Assis Chateubriand. Na entrevista, dada no dia seguinte à decisão judicial que exigia que Fontes devolvesse mais de 80 milhões de reais aos cofres públicos, o ator diz estar tranquilo e que é vítima de uma conspiração por ter querido crescer demais no showbusiness brasileiro. Mas ele disse também que o filme está pronto e deve ser lançado em 2015, quando ele começa a provar que não deve nada a ninguém. Um trecho da entrevista pode ser lido no site da revista:
Que grande lição você tirou dessa história toda, da filmagem do Chatô?
Jamais faria um filme sem o dinheiro todo na conta. Foi meu único problema. O dinheiro tem que estar 100% na conta. A lei permite usar mesmo que você não tenha 100%, isso está errado. Sair pra captar é legal e você envolve outros personagens no processo. Por outro lado, você coloca pessoas que não têm nada a ver com o processo pra decidir sobre o negócio. Tudo bem que você precisa de anunciantes, mas não pode condicionar à existência desses patrocinadores a obra cultural do país. As pessoas já estão começando a usar dinheiro próprio e esquecendo do incentivo.O que podemos esperar do filme?
Estou encantado com o lançamento do Chatô. Acho que fizemos um grande trabalho. Como disse o Cacá Diegues, quando viu o material bruto: “É o último filme tropicalista do cinema brasileiro”. É uma grande homenagem ao cinema novo, ao modernismo, a tudo que admiro. Ao Fernando Morais pelo grande livro que escreveu. Não sei por que os figurões do cinema vieram me satanizar. Eu sou produtor pra brigar por mais espaços, mais empregos para a nossa classe. Fui até o fundo do poço por esse filme. Mas tinha mola lá embaixo. Valeu a pena.
O resto, só na edição impressa.
Na mesma edição da revista Brasileiros em que falei da nova edição do Neuromancer e do Círculo de Dave Eggers, também escrevi sobre o ótimo novo livro do biógrafo de Steve Jobs Walter Isaacson, que em seu Inovadores voltou no tempo para contar as várias biografias que permitiram o ambiente digital que habitamos hoje.

De volta ao futuro
Livro do biógrafo de Steve Jobs conta a incrível história dos pioneiros da revolução digital
Se o futuro das novas tecnologias parece estar em aberto e difícil de decifrar, o passado da era digital está cada vez mais dissecado. A popularização e a onipresença do computador e da internet deram origem a todo um novo mercado editorial que, finalmente, oxigenou as prateleiras dedicadas à tecnologia nas livrarias do Brasil, antes cheias de livros técnicos ou datados demais.
Nesse novo cenário, surgiram as inevitáveis biografias no estilo autoajuda, contando a história de executivos bem-sucedidos e vários livros ensinando onde estaria o pote de ouro do fim do arco-íris digital. Em 2011, com a morte de Steve Jobs e o imediato lançamento de sua biografia oficial, essa dinâmica editorial começou a mudar mais uma vez.
Escrita por Walter Isaacson, a partir de uma série de longas entrevistas, a biografia do cofundador da Apple apareceu meses após o lançamento do filme A Rede Social, de David Fincher, que conta a história da ascensão do Facebook. As duas obras abriram filões em seus respectivos mercados para outras obras sobre essas empresas inovadoras e seus criadores.
Assim, foram surgindo, em rápida sequência, biografias sobre os fundadores do Google, livros dedicados à era de ouro do computador pessoal nos anos 1980 e às fases áureas do videogame, estudos das transformações nas comunicações e relações pessoais e sobre os novos nerds que tomam conta desse universo.
Mas o grande livro da nova fase talvez seja do próprio Isaacson, Os Inovadores (Companhia das Letras). Ao elencar um grupo de personalidades que, por séculos, criaram dispositivos, lógicas de funcionamento, aparelhos e materiais que permitiram que conseguíssemos chegar a este século digital, o autor conclui que o ambiente forjado pela equação computador e internet é uma criação coletiva.
A história começa no meio do século 19, com dois ingleses (Charles Babbage cogitando uma máquina de fazer contas, que concluiria a revolução industrial, e Ada Lovelace desenvolvendo uma linguagem com a qual poderíamos controlar essa máquina), passa por matemáticos como Claude Shannon (que cria o conceito de bit) e Alan Turing (que decifra a criptologia dos nazistas ao inventar o computador moderno), visita empresas como os laboratórios de telefonia da Bell e das máquinas de calcular da Texas Instruments, para só então chegar na era do reinado de Bill Gates e Steve Jobs, passar pela web criada por Tim Berners-Lee e culminar na criação do Google por Sergey Brin e Larry Page. Não apenas um relato de fôlego, mas um livro inspirador.
Escrevi na edição de novembro da revista Brasileiros sobre o livro novo do Dave Eggers, o excelente O Círculo, e a nova edição do Neuromancer, marco-zero do cyberpunk, do William Gibson (que já havia citado por aqui). Segue o texto:
Em círculos
O clássico “Neuromancer” e o novo romance de Dave Eggers; lançados em um intervalo de 30 anos, livros tratam de assuntos semelhantes
Uma das desvantagens do mundo de transformações por segundo em que vivemos é que são tantas as mudanças, em tantas áreas diferentes, que a ficção científica, antes o farol das revoluções tecnológicas do século 20, agora tem de correr atrás para não ficar defasada. A forma como a internet entrou em nossa rotina, por exemplo, caducou centenas de obras que não cogitaram um século 21 como tendo acesso instantâneo, a partir de qualquer aparelho, ao maior banco de dados da história, que também tem afetado nosso consumo de mídia. TV, rádio, jornais e revistas já padecem ao rascunho multimídia que ainda são os sites de internet, uma plataforma que ainda engatinha para encontrar sua excelência narrativa, entre sistemas operacionais e navegadores diferentes. E isso levando em conta apenas o futuro digital, traçado a partir da popularização da internet – sem contar outros futuros possíveis, em áreas bem diferentes como a indústria farmacêutica, a engenharia genética, a robótica, a nanotecnologia ou a biotecnologia.
Mesmo assim, um dos poucos livros a cogitar essa realidade online – Neuromancer, de William Gibson –, inaugurou há 30 anos o subgênero cyberpunk e escapou desse envelhecimento instantâneo. “O fato de que leitores do século 21, vivendo em nações como o Brasil, ainda estejam dispostos a ler um romance de ficção científica anterior ao telefone celular e em que aparelhos de fax ainda estão presentes, me encanta”, escreve na introdução da edição de aniversário do livro, relançado no Brasil pela Editora Aleph. “Para mim, Neuromancer nunca foi sobre ‘como o futuro seria’, mas sobre o que fazemos, como espécie, com as ideias que temos a respeito do futuro. É um romance sobre como a tecnologia nos modifica ou fracassa em suas tentativas de nos modificar, geralmente de maneiras que os desenvolvedores dessa tecnologia sequer são capazes de antecipar.”
Hoje, Microsoft e Apple, empresas responsáveis pela disseminação da web na última década do século passado, ao personalizar o computador no início da década de 1980, já são velhas conhecidas. Google e Facebook, no entanto, ainda são relativamente jovens: não têm nem 20 anos de idade (o Facebook completou 10 neste ano), mas já se embrenharam assustadoramente em diferentes camadas de nossas vidas. E por mais que o século 21 nos tenha trazido outras marcas à rotina – Dropbox, Samsung, eBay, Netflix, Amazon, Twitter e PayPal são outras que nos vigiam em diferentes áreas –, nenhuma delas chega perto da penetração e onipresença do site de buscas criado pela dupla Sergey Brin e Larry Page e pela rede social criada por Mark Zuckerberg.
Google e Facebook foram aceitos ao oferecerem serviços gratuitos de forma universal. A partir dessa oferta, as duas empresas foram reunindo comunidades ao redor de seus algoritmos que, aos poucos, traçavam o perfil individual de seus usuários para, finalmente, mostrar propaganda personalizada para cada um deles. As duas empresas criaram seus próprios sistemas de anúncios que ligavam o consumidor a outros clientes, aposentando veículos de comunicação e agências de publicidade para dominar a propaganda digital. Resta saber o que pode aparecer para superar essa hegemonia digital. É o que nos propõe Dave Eggers em seu novo livro, O Círculo, recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras.
O título do livro também é o nome dessa nova empresa que conseguiu ultrapassar Google e Facebook na forma como foi adotada por todo o planeta. O Círculo consegue reunir todas as plataformas digitais do mundo (inclusive Google e Facebook) em num mesmo ambiente, de forma que todas as pessoas do mundo precisam estar nessa nova rede social se quiserem participar de qualquer atividade online. A conta no Círculo funciona como uma identidade digital e a rede pede apenas que você abra mão do seu anonimato para utilizá-la. A rede foi inventada porque um de seus fundadores estava farto de ter de decorar senhas e para isso criou uma plataforma de identidade única, chamada TruYou, que ainda matava trolls e outras espécies de incômodos online. Foi a fagulha que deu origem não apenas ao interesse do público em geral, mas também à expansão da empresa rumo a outras áreas da sociedade em que a identidade social fosse exigida.
Conhecemos o Círculo pelos olhos de uma novata, Mae, que é indicada para entrar no Círculo pelas mãos de uma amiga de faculdade, Annie. Esta é integrante da Gangue dos 40 (referência à Camarilha dos Quatro, do governo de Mao na China), conselho da empresa que ajuda seus fundadores a traçar os rumos de expansão da marca. Como os outros integrantes da Gangue, Annie é jovem, decidida e obcecada, um perfil quase caricato dos executivos pós-modernos. Ela convida Mae para o Círculo quase numa tentativa de manter seu vínculo com o passado emocional que aos poucos vem perdendo. Annie mostra cada atividade desenvolvida pela empresa para Mae e para o leitor, bem como seu campus paradisíaco, seus funcionários satisfeitos e saudáveis e seus fundadores, os Três Homens Sábios.
Esses homens são paródias de figuras que vemos diariamente entre o noticiário de negócios, tecnologia e relações internacionais. Eamon Bailey é o adulto entusiasta, padrinho e profeta daquele ambiente mágico em que a tecnologia resolve todos os problemas, o rosto público agradável que sempre anuncia para o resto do mundo as novidades da empresa. Tom Stenton é o CEO obstinado, disposto a transformar tudo em dinheiro, o capitalista engravatado que faz o mundo perfeito de Bailey funcionar, que tem um estranho hobby relacionado a espécies raras de animais. Ty Gospodinov é o gênio juvenil que bolou todo aquele organismo digital e hoje vive recluso, aparecendo apenas em transmissões em vídeo.
Pelas páginas do livro, vamos entrando nesse aparente paraíso digital e aos poucos percebemos que o enorme círculo eletrônico está mais para uma ilusão destrutiva. Eggers desconstrói o Grande Irmão de George Orwell através das distrações propostas por Aldous Huxley em Admirável Mundo Novo e revela um Círculo que mais lembra aqueles visitados por Dante na ida ao Inferno em sua Divina Comédia. A saga de Mae desce, inclusive, aos subterrâneos onde antevê um futuro nada amistoso para o resto do mundo – enquanto sua amiga Annie perde-se dentro do delírio de onipresença da empresa que antes comemorava.
É uma visão pessimista e amarga do mundo digital, especificamente da forma como abrimos mão de nossas liberdades e individualidades para alimentarmos enormes máquinas de invasão de privacidade. Eggers foi criticado por desenhar uma caricatura nefasta do Vale do Silício, mas a crítica só reforça a carapuça de quem é criticado.
Projetando um futuro impreciso e breve, sem precisar datas para o Círculo para não perder a validade em poucos anos, Eggers não está falando de uma realidade que virá. Ele está falando de nossos dias, repetindo o velho clichê de que a ficção científica finge antecipar o futuro para dissecar o presente. Se não parece ficção científica é porque o século 21 parece ser o da não-ficção científica – carros que se dirigem sozinhos, dinheiro eletrônico, ciberguerra e a vigilância online são parte do noticiário atual, não de previsões futuristas. E se a realidade digital de nossos dias não lhe causa um mínimo mal-estar pessimista é porque você não está olhando direito.
Minha última coluna para o YouPix em 2014 é sobre… o ano de 2014 – e as lições que podemos tirar dele, além do oba-oba da Copa e do mata-mata das eleições.
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2014: um ano em processo
2014 foi o ano em que desejamos uma choupana num sítio encantado fora dos olhares egomaníacos da internet… o que deu errado?
Que ano! Esperávamos um 2014 turbulento pela inevitável conjunção entre Copa e Eleições que acomete o país a cada quatros anos, mas não esperávamos que acontecesse de forma tão intensa. Mas… será culpa da internet?
Dá essa impressão. E imediatamente imaginamos aquela idílica choupana num sítio encantado nas proximidades da cidade grande, alheia aos comentários enraivecidos, às brigas de foice, à avalanche de remixes e mashups feitos em cima da onda da vez, isolada da ansiedade pelo novo disco, pelo novo filme, pelo novo aplicativo, pela nova rede social. Gente sem Facebook nem smartphone, fazendo refeições que não irão ser fotografadas, que só olha o próprio rosto quando acorda, no espelho.
Acorde: essa vida não existe. As pessoas que moram nessa choupana imaginária gostariam sim de conversar sobre o disco que apareceu sem ninguém esperar, de postar um belo por do sol no Instagram, de não ter que ir ao banco para pagar contas que podem ser pagas online.
Criamos essa ideia de utopia afastada da internet e da intensidade da cidade grande mas não é curioso que nessa casinha tão bucólica tenha eletricidade e água encanada? Ninguém cogita abandonar a cidade grande ou o corre-corre da vida digital para ficar longe da praticidade de termos um supermercado, uma farmácia ou um hospital por perto.
Esse neorromantismo está incutido em todos nós que habitamos o Facebook, o Whatsapp, o Tumblr, o Pinterest, o Flickr, o YouTube, o Tinder, o Waze, o Google, o Twitter. No meio dessa tempestade de imagens, links, pessoas, RTs, notícias, matches, vídeos, likes, fotos e cliques paramos e cogitamos uma vida calma sem trânsito e com flores, com comida saudável e menos compras, menos luz fluorescente e menos monitores. Mas quantos de nós quer, de fato, largar tudo para plantar sua própria comida, limpar a própria fossa ou ter que colocar todo o telhado de volta depois de uma tempestade? Não sei, mas acredito que bem pouca gente.
É porque não precisamos sair da cidade nem da internet para criarmos momentos de paz e de tranquilidade. Porque esse chalé é mental.
E é isso que estamos aprendendo nessa segunda década do novo século – aos poucos constatando que nós mesmos somos parte da fonte de todo esse aborrecimento que nos incomoda e que não é preciso largar tudo para viver uma vida melhor. Uma série de manifestações fora da internet já vêm provando isso – desde a retomada das bicicletas aos alimentos orgânicos, passando pelos protestos na rua e pela retomada do espaço público, seja para festas gratuitas ou para o simples convívio diário.
Mas por mais que esse novo comportamento pareça funcionar alheio à internet, isso é só aparência – ele se conecta em redes sociais, usa Twitter, YouTube e Instagram para divulgar o que está sendo feito e conectar ainda mais pessoas, vive no Google Maps e no Foursquare para demarcar territórios.
Isso é só o começo. A própria vilanizada “gourmetização” é parte desse processo e sofre por ser vista apenas como uma forma de ganhar dinheiro em cima de comidas simples. É claro que tem gente pensando nisso, mas esse fenômeno específico não é meramente isso. Não estou falando de praças de food trucks em shopping centers, isso sim uma aberração. Mas de muita gente que se dispôs a trabalhar com comida e abriu seu próprio e pequeno negócio, não para se tornar a próxima sensação da coluna social da panelinha da gastronomia, mas para ver sentido na própria vida, encontrar pessoas ao vivo, cozinhar a própria comida.
Essa transformação social não diz respeito só a restaurantes e também inclui novos donos de cafés, boutiques, lojas de discos e de livros, casas noturnas, centros culturais, espaços para cursos e também novos estabelecimentos comerciais que fujam só que a gente costuma a rotular como cultura. E, como também estamos falando de internet, não são apenas lojas ou serviços geograficamente localizados, como as milhares de lojas que proliferam dentro ou por causa de sites de e-commerce, fora dezenas de aplicativos criados por dia.
Copa e Eleições serviram para intensificar nosso troca de conteúdo – produzido e reproduzido – além de juntar milhões de pessoas ao redor de um mesmo tema. Algo que antes era regra dissolveu-se em milhares de exceções. Não é que essa foi “a Copa do Twitter” ou “a eleição do Facebook”. Mas também foi a “eleição do Tinder” ou “a Copa do Pinterest”. Ou a “Copa do 99Taxi” ou “a eleição do Disk Cook”. As próximas também serão assim – e também a respeito das próximas manias e ferramentas que inventarem.
Copa e eleição são os últimos espasmos do que a gente já chamou de mainstream, essa massa de interesses coletivos que antes parecia pautar cada centímetro de nossas vidas. Hoje não há mais o grande filme do ano como também não temos a grande revelação, nem a novela ou seriado que todos acompanham ou o jogo que o país para para assistir. Do mesmo jeito dá pra cravar que a avalanche de memes, virais, vídeos da vez, personalidades relâmpago e hits da semana nunca mais vai parar.
Estamos soterrados por conteúdo de toda espécie e cada vez mais gente produz arte, cultura, informação. Todos estamos virando artistas. O Instagram abriu o olho fotográfico de ainda mais gente se compararmos com a explosão da fotografia digital do Flickr há dez anos. O YouTube é a nova MTV, em que todos podem lançar seus videoclipes – e não apenas de música. O Facebook, o Tumblr e o Twitter são os novos blogs para um monte de gente que começou a entrar na internet de vez nessa década. Cada vez mais produzimos arte, cultura e informação – e é inevitável que as consumamos cada vez mais e sem atenção.
É quando lembramos daquele chalé imaginário.
E aos poucos descobrimos que ele não é imaginário – e sim mental. A ascensão do vinil não é só um modismo hipster – é uma forma que muitos fãs de música encontraram para retomar o hábito da audição, de parar para ouvir um disco. Nesse sentido, o momento em que você para pra ouvir o disco e desconecta-se das redes sociais e da internet é o seu chalé mental. É o momento de se desligar do mundo lá fora para dar atenção ao que diz respeito a você.
A longo prazo isso não é apenas o caso de livros, discos, animais de estimação, refeições ou filhos. É preciso aumentar esse chalé mental para além do momento, esticá-lo para o resto da sua vida e é essa motivação que faz com que muitos comecem a querer tomar as rédeas das próprias vidas e depender menos dos padrões do século passado – como salário, patrões, status social, emprego, dinheiro.
No fim deste ano o Guardian publicou um texto em que listava quais as principais maiores mudanças nos últimos mil anos para a história da humanidade, divindindo-as por séculos. Enquanto o século 12 nos deu o conceito de lei e ordem, o 16 viu o declínio da violência pessoal, e o século 19 inventou o conceito de telecomunicações, o século passado foi aquele em que inventamos o conceito de futuro.
Para o Brasil isso é duplamente interessante pois além de sermos eternamente o país do futuro, finalmente, com a chegada do século 21, conseguimos enxergar um futuro para além do salário do fim do mês ou do emprego estável no fim do ano. Natural, portanto, não sermos empreendedores como nação, uma herança cultural portuguesa que ainda nos faz nos sentirmos merecedores de um bom emprego para o resto da vida (daí a febre dos concursos) ou de festejar lamentando os poucos trabalhos que arrumamos.
A segunda década deste século está mostrando que é possível sim pensar num futuro próximo a médio prazo. E enquanto a fuzarca é armada entre petralhas e reaças, entre os vai ter Copa e os não vai ter Copa, há uma parte inteira do país trabalhando em seus projetos, fazendo seus planos, desenhando seu 2015 independentemente de quem ganhar a Copa ou a eleição.
2014 foi, portanto, um ano de rascunho. Muitos já estão com seus projetos na rua, outros estão os colocando na prática na virada do ano e mais uns tantos fazem contas para quando mostrarão os seus. Todo mundo esticando seus chalés mentais para além de seu mundinho, para, aos poucos, melhorar o mundo a partir de casa. É uma mudança cultural gigantesca – e o papel da internet, como começo, meio e fim de muitos desses planos, não pode ser menosprezado.
Afinal, o processo é lento. Mas é um processo – não pode parar.
Feliz 2015 pra gente!

Na última edição da Galileu em que fui diretor de redação, entrevistei o filósofo italiano Domenico de Masi – e, agora, no fim do ano, lembrei que não a havia republicado aqui. Segue então a entrevista completa, além da edição enxuta que saiu na revista.
A vez do Brasil
Em seu novo livro, Domenico de Masi fala sobre o papel de nosso país
Estamos no rumo certo – pelo menos é o que diz o filósofo italiano Domenico de Masi em seu novo livro, O Futuro Chegou – Modelos de Vida para uma Sociedade Desorientada (Casa da Palavra, R$ 69,90). Nele, ao autor do já clássico O Ócio Criativo debruça-se sobre a história da humanidade para analisar seus principais modelos sociais e como a forma que os cidadãos são tratados foi crucial para o sucesso de sistemas tão diferentes quanto a sociedade grega e o estado comunista, por exemplo.
Mas a empolgação de De Masi é com o Brasil, que ele acredita finalmente ter superado o estigma de “pais do futuro”, cogitado originalmente de forma irônica e depois assumido pela ditadura militar como lema ilusório. Ele crê – e dedica o último capítulo do livro à tal crença – que o Brasil tem o melhor modelo social para este início de século.
Com a chegada da tecnologia digital e do computador, há uma sensação de que o futuro ficou obsoleto. O que você acha disso?
Não concordo. O advento da tecnologia da informação coincide com o da sociedade pós-industrial, que é baseada precisamente em uma projeção de futuro, que consiste de um padrão de vida que, no momento, não existe. Esta é a especificidade da sociedade pós-industrial. Enquanto as anteriores – a grega, a romana, a cristã, a liberal, a comunista, etc. – nasceram a partir modelos pensados anteriormente por profetas, filósofos, economistas ou políticos, a sociedade atual foi criada a partir da superposição de inovações rápidas e espontâneas em todos os setores. Isto resultou em uma desorientação geral, pois já não sabemos o que é bom e o que é mau, o que é direita e o que é esquerda, o que foi e o que é o mercado, que é o homem e o que é a mulher, o que está vivo e o que está morto. Nossa sociedade não apenas espera o futuro, o projeta. Enquanto respondo esta entrevista milhões de criativos, no mundo todo, estão inventando coisas, criando leis, espalhando ideias.
Há uma frase do escritor de ficção científica William Gibson que diz que “o futuro já chegou, só não foi distribuído”.
Concordo plenamente. O futuro depende de inteligência, criatividade, recursos econômicos, honestidade, solidariedade. Separar estes fatores entre si é caprichoso e injusto.
Mas a ficção científica não parece conseguir prever um futuro devido ao excesso de transformações que estão acontecendo agora. Você acha que isso restringe nosso conceito de futuro?
Sim. As transformações ocorridas nas últimas décadas, quando ocorreu a passagem da era industrial para a pós-industrial da sociedade, não dependem apenas de progressos científicos e de tecnologia, mas também da globalização, da disseminação dos meios de comunicação, de educação em massa e de mudanças culturais. Novos progressos futuros afetarão não só a tecnologia e a estrutura econômica, mas também as idéias, o comportamento, a cultura material e social.
O Brasil por muito tempo foi perseguido com a pecha de “país do futuro”. Você acha que isso pode ter causado problemas para a autoestima do país?
Sim. Por um lado isso deu esperança ao povo, mas por outro serviu para que fossem adiadas reformas que só agora foram realizadas. Isso serviu como álibi ilusório para o governo militar alcançar um maior consenso popular. Há uma enorme diferença entre a frase “Brasil, o país do futuro” dita por Jorge Amado com ironia em 1930, a dita com entusiasmo por Stefan Zweig em 1941 e a dita com astúcia por Emilio Garrastazu Médici, no final dos anos sessenta.
Mas você acha que o Brasil é o país do futuro?
Não, acho que o Brasil é o país do presente. Por 120 anos, vocês criaram o melhor modo de vida válido para a sociedade pós-industrial. Não é o melhor de todos os modelos possíveis, mas o melhor modelo já testado. Ainda não é um modelo para o futuro, mas é um modelo válido para já.
O que o Brasil pode ensinar ao resto do mundo?
Infelizmente, o contágio do consumismo nos Estados Unidos já poluiu muitos aspectos da vida urbana no Brasil. A isso devemos acrescer a tentação de ceder às exigências incultas do mercado externo que ceifam aspectos da brasilidade: o excesso de cor e som, a sensualidade desenfreada, o exotismo, a dissipação provinciana do patrimônio natural, que pode ser associada à falta de autoestima, a falta de compromisso público, a astúcia como substituta da inteligência, a falta de confiabilidade.
No entanto, apesar da colonização feita pela Europa e pelos Estados Unidos, o Brasil continua sendo original e os melhores aspectos da brasilidade ainda prevalecem sobre aqueles que são importados.
Escreve Gilberto Freyre: “A mentalidade brasileira não é ofendida pelo jogo de contrastes, comparações, paradoxos, contradições, misturas e sincretismo, a conjugação dos opostos, o Brasil vive um casamento que é irreconciliável à primeira vista”. Essa mistura de muitos fatores diferentes, que em outros contextos seria destrutiva, em seu caso, é benéfica. O conceito de “brasilidade” vem da reunião e remete imediatamente ao relacionamento interpessoal. de relações abrangem indivíduos. E viver significa “ter relações sociais.”
A harmonia do corpo, a sensualidade e a saúde, além de habilidades psicológicas, como a socialização, a simpatia, o senso de hospitalidade, a simpatia, a generosidade, o bom humor, a alegria, o otimismo, a espontaneidade, a criatividade e a fé, como a vida, estão relacionados aos conceitos de tolerância e curiosidade. A paciência, a capacidade de mover-se entre diferentes códigos de conduta e de reinterpretar regras e normas, são atitudes comuns no Brasil, bem como a tendência a considerar fluidas as fronteiras entre o sagrado e o profano, o formal e o informal, o público e o privado, a emoção e a regra.
A sociedade brasileira é unificado pela “língua geral”: o sincretismo cultural, de grandes festivais civis e religiosos incorporados no modo de vida das pessoas, a música, o papel das mulheres na vida social, a sensualidade sem culpa – “Não existe pecado do lado de baixo do Equador “, canta Chico Buarque. Um nível mais intelectual é unificado pela notável capacidade de reciclar atividades culturais através de uma assimilação, adaptação e releitura permanentes – a antropofagia.
O Brasil é aberto ao novo e à mudança. E mesmo nos piores momentos enfrenta a realidade com sentimento positivo. Em comparação com o passado, os brasileiros têm dois novos elementos: sua consciência dos próprios desafios internos – a corrupção, a violência, a desigualdade, os déficits educacionais – está mais difundida e há a percepção de ser um país de ponta, diferente e positivo, mesmo fora sua própria maneira de ser.
Hoje, o Brasil vive uma situação única em relação a seus passado e futuro. Depois de copiar, a Europa por 450 anos e os Estados Unidos por 50 anos, vê esses dois modelos míticos em crise profunda – e pela primeira vez deve pensar, por conta propria, sobre seu futuro. É uma situação que pode parecer perturbadora, mas é o modelo de vida necessário para todas as sociedades pós-industriais.
Quando você acha que as pessoas irão abandonar as regras do trabalho criadas no século 18, como horas de trabalho, dias úteis e horas-extra?
Não sei. Essas regras, que hoje prejudiciais, estão enraizados em nosso inconsciente individual e coletivo. Talvez elas caiam quando a indústria for completamente substituída pela geração digital.
Até quando vamos continuar misturando progresso e prosperidade com crescimento?
Embora Adam Smith tenha descartado a possibilidade de uma ligação direta e automática entre riqueza e felicidade, o liberalismo e o neo-liberalismo sempre focaram na melhoria da qualidade de vida ao considerar ilimitada a disponibilidade de recursos naturais. Da minha parte, concordo com o Kennet Building, que diz que “aquele que acredita no possível crescimento infinito num mundo finito ou é louco ou economista”.
No ano passado, o Instituto Gallup compilou um ranking de 148 países em que pessoas com a idade superior a 15 anos que foram entrevistados a respeito de seu dia anterior – se sentiram satisfeitos, respeitados, revigorados, se sorriram ou aprenderam algo interessante. Os dez países no topo deste ranking são Panamá, Paraguai, El Salvador, Venezuela, Trinidad e Tobago, Tailândia, Guatemala, Filipinas, Equador e Costa Rica. Como você pode ver, oito são da América Latina e todos têm PIB baixo.
O resultado de dois séculos de liberalismo é que um sexto da população mundial foi capaz de crescer às custas do resto do planeta, das gerações futuras, dos consumidores, dos trabalhadores e do terceiro mundo. Hoje, no entanto, todo o planeta está se transformando rapidamente em um grande sistema interligado e o rápido crescimento dos países emergentes – como o Brasil – obriga os países ricos a inverter a sua direção para onde marcham.
Para recuperar o que foi perdido, nos lembra de Serge Latouche, precisamos de “tempo para exercer a cidadania, prazer para a produção livre, o sentido de ter tempo para si, para o jogo, a contemplação, a meditação, a conversa artística e artesanal – ou, simplesmente, a alegria de viver”. Para além destas dimensões Cornelius Castoriadis nos lembra o amor à verdade, o senso de justiça, a responsabilidade, o respeito pela democracia, o elogio à diferença, o dever de solidariedade, o uso da inteligência. Em poucas palavras, a magia da vida.
Na minha quarta coluna na revista Caros Amigos falei sobre o show que Emicida fez há dois meses para lançar a edição em vinil de seu disco mais recente – e como ele está lentamente trilhando seu caminho rumo ao topo. No final ainda reuni uma playlist com os vídeos que fiz no mesmo show:
Emicida em seu lugar
Mais um degrau na escalada do rapper rumo ao topo do pop brasileiro
É nítida a evolução de Emicida como um dos principais nomes da música brasileira hoje. A cada novo passo, Leandro Roque de Oliveira expande seus horizontes e contempla como panorama toda a história cultural brasileira da perspectiva do hip hop paulistano. Já ultrapassou fronteiras municipais e internacionais usando a combinação entre internet, onipresença e disposição para trabalhar, sempre mostrando que pode ir além.
Mais um degrau foi superado no lançamento da versão em vinil de seu primeiro álbum propriamente dito, O Glorioso Retorno De Quem Nunca Esteve Aqui. Mais uma vez o disco seria apresentado a seu séquito fiel no Sesc Pinheiros, em São Paulo, onde foi lançado um ano antes, em setembro de 2013. Naqueles shows era uma ocasião de festa, o disco coroava uma carreira iniciada nas rinhas de improviso de rimas que cresceu distribuindo MP3 gratuitamente e vendendo CDs e mixtapes a cinco reais no metrô, de mão em mão.
O show de lançamento d’O Glorioso Retorno tinha o adjetivo do título do disco espalhado pelo palco e contou com participações ao vivo de quase todos os nomes que apareceram no álbum. Só esse elenco já dava uma idéia da amplitude do futuro do rapper: Pitty vinha do rock, Juçara Marçal representava a música africana, Tulipa Ruiz representava a nova MPB e o Quinteto em Branco e Preto vinha celebrar o samba, além da própria mãe de Emicida, dona Jacira, que cantou o triste documentário ao final de “Crisântemo”.
Um ano e um mês depois, no mesmo Teatro Paulo Autran da mesma unidade do Sesc, Emicida volta para visitar o novo disco, mas não é o mesmo show. Ao contrário da apresentação de lançamento quase não há participações especiais (limitadas à presença do velho sidekick Rael da Rima, agora em carreira solo, e do rapper Lakers, do grupo Código Fatal). O show dessa vez não apenas gira em torno da banda de Emicida como ele a coloca como protagonista da noite. Assim, o rapper assume ser alvo das brincadeiras do percussionista Carlos Café em “Zoião”, tira onda com o violonista e guitarrista Doni Jr., defende a guitarrista Anna Tréa quando ouve um “fiu fiu” vindo do público e sempre mantém a mesma rotina de arengas com seu velho compadre DJ Nyack.
As músicas do disco do ano passado receberam nova roupagem e a ausência das participações especiais não tiraram sua força: Anna Tréa representa o papel de Pitty na pesada “Hoje Cedo”, solando como uma guitarrista de Prince; Doni Jr. faz as vezes do Quinteto em Branco e Preto temperando algumas músicas com cavaquinho ou violão acústico. Todos têm presença de palco o suficiente para não serem apenas coadjuvantes sonoros do rapper, fazendo coreografias, trocando de instrumentos, segurando vocais de apoio, sempre deixando Emicida bem no holofote. “Eu tô igual o Michael Jackson”, disse ao ver sua própria sombra projetada no palco por um facho de luz, antes de improvisar um moonwalk fuleiro, tentando deslizar para trás como o Rei do Pop.
O próprio Emicida não ficou apenas no vocal. Por vezes trocou de instrumento de apoio. Começou o show puxando um improviso tocando apenas um agogô enquanto rimava. Saiu de trás do público, vindo da platéia, em direção ao palco. Depois trocou de instrumento de percussão: por vezes puxava uma caixinha de fósforo, já íntimo o suficiente para chamar atenção do público para um “solo” no pequeno instrumento, por outras pilotou pela primeira vez no palco uma MPC, a bateria eletrônica típica da música deste século. Seja no agogô, na caixinha de fósforo ou na MPC havia uma mensagem cifrada nesta troca de instrumentos: Emicida está aos poucos deixando de ser só um rapper. Não duvide se num próximo show ele possa puxar um cavaquinho, ir para o contrabaixo acústico ou para a bateria. Ele ainda está ensaiando seus primeiros passos como músico – ao vivo, na frente do público.
Uma outra parte do show foi dedicada aos primeiros sucessos de Emicida, muitos que não eram tocados ao vivo há anos, como “E.M.I.C.I.D.A.”, “Rinha” e “Cacariacô”, além da primeira vez que “Papel, Caneta e Coração” foi apresentada em um palco. E não importavam se eram as novas ou as velhas, os quase mil espectadores no teatro sabiam cantar todas as letras de Leandro – por mais extensas e cheias de referências e metáforas que fossem.
Mas além de falar de seu presente e passado, Emicida olhou para os lados ciente de que seu papel depende do contexto – e não apenas de si mesmo. Além de cantar a música que dividiu com o funkeiro paulista MC Guimê em seu último disco (“País do Futebol”), Emicida ainda saudou os papas do R&B paulistano (Sampa Crew, com “Eterno Amor”), a dupla mais conhecida do funk carioca (Claudinho e Buchecha, com o clássico “Nosso Sonho”), seus ancestrais no hip hop brasileiro (no já tradicional medley com músicas de Xis, De Menos Crime, Doctor MC’s, Sabotage e Racionais MCs) e os contemporâneos do Código Fatal (com “Minha Vida”). Mais do que isso, reverenciou o passado da música brasileira cantando “Marinheiro Só”, “Trem das Onze”, imitando Roberto Carlos em uma canção romântica e celebrando Jair Rodrigues em outra. Ele não separa música pop de música popular, não há diferença entre o toca no rádio, o que vem da TV, o que se vende em lojas de discos ou o que chega pela internet. Música brasileira é uma coisa só – e Emicida parece saber.
Ao final da noite, logo que as luzes se acenderam, João Donato numa gravação de 1975 cantava “Emoriô”.

“Não tenho vocação para herói”
Tire 20 minutos para assistir a esse discurso sensacional do grande José Mujica, em seus últimos dias como presidente do Uruguai, ao receber uma condecoração no Equador no início deste mês. Uma fala sobre política no sentido bruto, sobre a intensidade apaixonante do viver, como deixamos este sentimento ficar em terceiro plano e como só depende de nós para deixarmos de sermos vistos como mercadorias. Um texto apaixonante, inspirador e otimista, para que a depressão de fim de ano (e seus intermináveis jingle bells) não se abata sobre nós:
Colei a transcrição do La vida es… Ahora! abaixo, se alguém se dispor a traduzir para o português, basta postar nos comentários que eu colo aqui.
Você já deve ter ouvido falar nesse podcast sensação chamado Serial, né? A Gi Ruaro tá tão viciada no programa que pediu pra escrever sobre ele pra cá – afinal, faltam apenas dois episódios pro fim da primeira temporada. Fala Gi:

“Support for Serial comes from Mailchimp. Mailchimp. Mail-kimp?” Todas as quintas-feiras mais de um milhão e meio de pessoas ao redor do mundo esperam ansiosamente o iTunes atualizar e ouvir a frase acima. É o começo do podcast-fenômeno Serial, que em dois episódios chegará ao final da primeira temporada. O equivalente ao “Previously, on Lost” de 2014.
Dos mesmo produtores de This American Life, Serial é um podcast sobre um crime que aconteceu em 1999. Hae Min Lee, estudante na cidade de Baltimore, Estados Unidos, foi encontrada morta e seu ex-namorado, Adnan Syed, foi considerado culpado e condenado a prisão perpétua. A jornalista americana Sarah Koenig investiga o que aconteceu no dia da morte de Hae e como que Adnan foi sentenciado.
A construção da narrativa, sem utilizar imagens, apenas vozes, entrevistas e storytelling no seu momento mais cru, é hipnotizante. Como se fosse uma amiga te contando uma história, Sarah compartilha sua investigação, conclusões e dúvidas em tempo real.
Em uma internet que está migrando para o vídeo, o podcast Serial faz parte de um novo movimento de storytelling. Alguns chamam de a Renascença do Podcast. Não importa o meio, o que nos fascina mesmo são as histórias de gente como a gente. E nenhuma história é mais fascinante do que a de um rapaz, preso em prisão perpétua, que jura que não cometeu o crime. Que tinha 17 anos. Que era que nem eu e você: estudava, tinha namorada, bebia de vez em quando, fumava de vez em quando, aprontava, mas era uma pessoa boa, tinha família e amigos que o amavam. Que não tinha motivo para matar a ex. Que jura que não a matou. E mesmo assim, acabou na prisão. Como?
São várias os envolvidos em Serial. São várias as versões do dia em que Hae Lee morreu. Temos Adnan, Jay, Asia, Jenn… Mas depois de 15 anos, é difícil lembrar o que aconteceu em uma época em que não existia mídias sociais, celulares eram raros, pagers eram o meio de comunicação mais popular. Quando Adnan foi preso, seis semanas tinham se passado desde o crime. Você lembra o que fez seis semanas atrás? Com quem falou no telefone? Qual caminho fez ao trabalho? Com quem falou no caminho do trabalho? Sobre o que falou? Mas lembra mesmo? Tem certeza? Poderia contar o seu dia em detalhes na frente de um júri? Difícil.
Outro motivo que ajudou Serial e virar fenômeno foi o reddit. Envolvido em outros casos controversos de detetivão da internet, o subreddit /r/serialpodcast se tornou o ponto de encontro dos fãs Serial e também o local ideal para postar e discutir as mais variadas teorias sobre o caso. A maior parte das discussões são sobre Adnan ser culpado ou inocente. Tem usuário ali que está achando pêlo em tartaruga, mas a popularidade do reddit chegou até a família de Hae e de amigos de Adnan. Todos querem dar seu pitaco e contar a sua versão dos fatos.
O podcast não é mais de SK (como reddit chama Sara Koenig), mas de todos. A história já era pública, os detalhes não são de posse somente dos produtores, a internet virou o grande e incontrolável fórum de debate. Somos todos SK, todos queremos saber o final, todos queremos saber se Adnan é culpado ou inocente. No episódio nove e dez de Serial, SK fala que com ajuda de e-mails e novas informações, ela pôde tirar dúvidas da narrativa. Serial precisa dos detetives reddit tanto quanto a recíproca.
Outro motivo da popularidade de Serial é a conexão que podemos fazer com outros fenômenos da cultura pop. Você sabia que os detetives que investigaram o crime também trabalharam como consultores da série The Wire? E a cena em que Bunk e Lester procuram por corpos no meio da mata foi filmada no mesmo local em que o corpo de Hae Lee foi encontrado. Outra coincidência é que o filme Blair Witch Project foi filmado no mesmo parque. Coincidência? Para alguns redditors, é motivo para mais uma teoria de conspiração.
Há vários artigos contra Serial, contra os artigos contra Serial, mas a maior verdade que podemos tirar desta história é: a vida não é, nem nunca será preto no branco. Acho difícil que SK chegue a uma conclusão satisfatória no último episódio, que saberemos finalmente se Adnan é inocente ou não. E teremos que viver com isso, para sempre. Que nem o final de Lost.
(Mas graças ao Mailchimp e uma vaquinha online, teremos uma segunda temporada. Novo caso, novos personagens. Eu estou mais empolgada com a segunda temporada de Serial do que True Detective!)
Acompanho o trabalho da Juliana de Faria mesmo antes de ela lançar o site Think Olga, que faz parte de um novo movimento feminista no Brasil que aos poucos consegue voz usando a internet como plataforma. Foi através do Think Olga que a Ju fez a pesquisa Chega de Fiu Fiu, sobre a tênue linha entre a cantada e o assédio sexual, mostrando como esse tipo de abordagem é mais frequente do que imaginávamos e transformando a pesquisa em campanha. Há menos de um mês ela lançou um convite via crowdfunding para transformar o resultado da campanha em um documentário e em menos de 24 horas conseguiu bater a primeira meta – mas ainda há outras metas pela frente.
Conversei com a Ju por email sobre o Think Olga, o Chega de Fiu Fiu e sobre jornalismo.
Queria que você começasse falando de como começou o Think Olga e como vocês chegaram à conclusão que deu origem à pesquisa do Chega de Fiu Fiu.
Wow! Essa é uma longa história. Hehe. Vou tentar resumir. Sou jornalista e me especializei em jornalismo feminino. Em determinado ponto da minha carreira, senti que minhas ideias de pautas já não tinham mais espaço nos veículos femininos tradicionais. Decidi então criar a Olga não apenas para publicar as matérias que tinha vontade de escrever, mas também queria criar um espaço para discutir o espaço da mulher na sociedade, o feminismo e, principalmente, a forma como a representatividade na mídia. Bem, e como falei minhas propostas de pautas eram rejeitadas por não conversar com a linha editorial das revistas. E uma delas era sobre assédio sexual. Eu havia até mesmo sugerido criar, gratuitamente, a Chega de Fiu Fiu para uma revista. Como foi rejeitada, achei que valia a pena tocar por conta própria mesmo.A internet foi crucial para a divulgação e realização da pesquisa, mas vocês esperavam a resposta do jeito que ela aconteceu?
Ao longo de toda a jornada da Olga e da Chega de Fiu Fiu, fui constantemente surpreendida por reações cada vez maiores e mais engajadas das participantes. No entanto, quando você para para pensar, não é tão surpreendente assim. Estamos atacando um problema que atinge muitas mulheres, mas que sempre foi tolerado. E conectar em torno de um mesmo problema, de uma mesma questão é basicamente a essência da internet.Queria que você falasse um pouco também de como os temas começam a ser postos de forma extrema quando discutidos textualmente na internet. Presumo que vocês tiveram que lidar com radicais de todos os tipos. Como é lidar com isso?
Pessoalmente, sempre é muito difícil. Você tenta fazer um trabalho que pode de alguma forma mudar a situação da violência contra as mulheres e precisa enfrentar pessoas, algumas delas conceituadas, que distorcem sua mensagem e muitas vezes te ofendem. Mas é claro que você não vai conseguir tirar o privilégio de milênios de alguns grupos sem incomodar algumas pessoas. O interessante é ver como homens supostamente inteligentes e liberais se transformam rapidamente em conservadores ao perceber que há sim gente batalhando para equiparar os privilégios de uma minoria com o da maioria em que estão inseridos.Por que fazer um documentário?
Foi o desenvolvimento natural da campanha. Acreditamos que o documentário pode ser uma chance de nos aprofundarmos no tema, assim como usa-lo, quando pronto, como ferramenta de informação acessível e gratuita para a população.E depois do documentário feito, como vai ser sua divulgação?
Queremos que o documentário seja uma ferramenta acessível a todos. Nossa ideia é disponibilizá-lo gratuitamente na internet, de forma a ser exibido por escolas, universidades, ONGs e instituições públicas. Queremos também que ele seja utilizado em formações de advocacy. Além disso, já há canais de TV interessados também em exibi-lo. 🙂Vocês já ultrapassaram a cota sugerida. Quanto tempo demorou para isso ser atingido entre a divulgação e o cumprimento da meta?
Em 19 horas, batemos nossa meta. Nosso financiamento coletivo para o documentário foi o 4º projeto que mais arrecadou nas primeiras 24 horas de existência em toda a história do Catarse – e o 1º no ranking da categoria Cinema & Vídeo. É uma conquista enorme, pois se trata de um projeto feminista, que fala sobre violência contra a mulher — tópicos que normalmente geram polêmica, não geram o interesse que merecem ou causam uma resposta extremamente violenta por pessoas mais, digamos, conservadoras. Além disso, oferecemos pouquíssimas recompensas materiais. Ou seja, as pessoas estão apoiando, pois sabem que é um assunto que deve ser debatido e solucionado com urgência. Ficamos muito felizes!Quais os próximos projetos do Think Olga?
Nosso próximo passo é começar a trabalhar com empresas, ONGs e instituições governamentais para aumentar a representatividade das mulheres. Sentimos que em todos os meios de comunicação a mulher costuma ser retratada de uma maneira tradicional que não condiz mais com a realidade.Isso é jornalismo? Como você vê o jornalismo que está sendo produzido no Brasil hoje, dentro e fora das redações?
A Olga lida com colaboração, comunidades online, conteúdo em várias midias e com um propósito muito honesto e bem definido. Sem dúvida, pro público que a segue, é uma publicação relevante e confiável. Não sei se é o futuro do jornalismo, mas acredito que podemos tirar boas lições disso que estamos fazendo 🙂
Thurston Moore montou um mini-Sonic Youth para gravar seu novo disco solo, The Best Day. Primeiro veio o próprio Steve Shelley na batera, velho escudeiro de discos anteriores. Para o baixo chamou uma mulher (ninguém menos que que Debbie Googe, ex-My Bloody Valentine) tão experimetalista em seu instrumento quanto sua ex-mulher, Kim Gordon. E para a outra guitarra chamou um clone inglês de Lee Ranaldo, o inglês James Sedwards, um instrumentista educado no rock clássico (o glam era evidente em certos trechos de seu instrumento), mas completamente inserido no contexto de noise e microfonia proposto pelo velho indie.
Mas em sua recente apresentação em São Paulo, esse formato foi quebrado devido a um problema de saúde – Steve Shelley descobriu, no Brasil, que havia descolado a retina e por isso tinha de se afastar das baquetas. E o quanto antes, tanto que nem pode subir no palco do Cine Jóia. Em vez dele a produção chamou o baterista que acompanha Jair Naves, Babalu, que foi pego de surpresa com o convite e recebeu aulas de bateria do próprio Steve Shelley durante o ensaio (que deveria ser apenas uma passagem de som). O Lucio, que organizou o show, conta como foi a saga sônica de um baterista desconhecido para o palco com um dos grandes nomes do underground mundial.
Babalu entrou completamente em sintonia com o trio e, apesar do (natural) ar de insegurança no início do show, não comprometeu em nenhum momento, seguindo a cartilha que havia aprendido na mesma tarde à risca. Profissa. À sua frente, três veteranos das cordas elétricas duelavam-se entre espasmos de ruído e delicados dedilhados. O fio condutor foi basicamente o Best Day que Thurston acaba de lançar – a única fuga deste script foram “Pretty Bad” e “Ono Soul”, de seu primeiro disco solo, Psychic Hearts, a última também a única música de outro disco que ele tocou quando trouxe seu Demolished Thoughts ao mesmo palco paulistano há dois anos e meio (além de “It’s Only Rock’n’roll (But I Like It)”, dos Rolling Stones).
Thurston e sua guitarra já são um só faz muito tempo, então ele nem sequer precisa pensar para levá-la de um extremo a outro – é sua assinatura de palco, ao lado de seu grave vocal quase balbuciado e seu ar de criança de dois metros de altura. Esticando músicas do disco desse ano para além dos 10 minutos, ele inevitavelmente caía em breaks instrumentais em que desafiava os outros músicos a sair do formato canção, por mais bruta que fosse sua versão, quebrando-se em tsunamis de microfonia e marolinhas ambient, regendo seus músicos com o braço de seu instrumento. Um show catártico, conciso, intenso e reconfortável, uma vez que sempre podemos reconhecer os mesmos traços que desenharam a discografia de um grupo tão importante para aquele meio quanto o Sonic Youth. Venha mais, Thurston!
Abaixo os vídeos que fiz do show:



