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paulasantisteban-2018

Autora do último disco produzido pelo meu irmão Miranda, Paula Santisteban se apresenta nesta quarta na Unibes Cultural em Sâo Paulo, com a participação da Tiê (mais informações aqui) e na quinta no Blue Note Rio, com a participação da Nina Becker e do mestre Kassin (mais informações aqui). Os dois shows seguem o calendário de lançamento de seu primeiro álbum, desta vez no formato que Paula compôs o disco, com guitarra (Eduardo Bologna), teclados (Marcos Romera), baixo (Eric Budney) e bateria (Daniel de Paula). Estou tendo o prazer de trabalhar na direção deste lançamento e fui a ponte entre Paula e estas duas grandes cantoras brasileiras deste século. Antes do show de São Paulo, às 19h, eu bato um papo com ela sobre o processo de criação desta bela e delicada coleção de baladas que é seu disco de estreia, no lounge da Unibes Cultural (do lado do Metrô Sumaré), de graça. É só chegar. A Débora da Unibes conversou com Paula numa entrevista que está no site do espaço e abaixo segue o release que escrevi sobre o disco que leva seu nome.

Onde tudo se perdeu? Quando o encanto se quebrou? O que aconteceu com a magia da vida, antes tão presente e tão sentida, hoje soterrada pela banalidade dos números, das medidas, dos fatos, do mal. O pequeno tornou-se insignificante, o diferente, desprezível, o simples, ruim.

A longa e intensa jornada deste início de século parece pegar a todos pelo pescoço para que se perceba a necessidade da valorização do que é corriqueiro, rotineiro, comum. Há um ambiente tóxico criado pelo excesso de adjetivos deste novo agora que exige que tudo se destaque de forma desproporcional. Não sabemos mais o que é genial, o que é incrível, o que é único de fato – tudo é vendido desta forma ao cubo, aumentando nossos anseios e expectativas para um futuro que inevitavelmente nos causará frustrações.

Mas, como já cantava um saudoso bardo do século passado, há uma brecha em tudo e é por ela em que entra a luz. Por mais intensos e sufocantes tenham sido os últimos anos, esta sensação aos poucos cria antídotos naturais em diferentes esferas, produzindo alentos espirituais que podem vir de muitas formas – e a música é uma delas.

Paula Santisteban sabe disso. Dona de uma personalidade musical única no atual cenário musical brasileiro, ela condensa em seu primeiro disco um conjunto de sentimentos e impressões que vai de encontro à massa cultural produzida atualmente. Usando sua voz como estandarte deste manifesto, ela nos conduz à entrada de um lugar quase secreto e dado como perdido: a consciência da beleza do simples.

No conjunto de dez faixas reunidas sob seu nome, ela acalenta o ouvinte com sua voz sabendo exatamente onde o levar. São dez baladas apaixonantes e refinadas, tocadas por uma banda de músicos de primeira, gravadas como há muito não se gravava, com arranjos deslumbrantes tocados por cordas, madeiras e metais. Tudo construindo um pedestal para uma voz que prefere descer deste posto e juntar-se aos músicos como mais um instrumento – mas sem nunca perder sua centralidade.

Como queria o amigo Carlos Eduardo Miranda, um dos principais nomes da indústria fonográfica brasileira dos últimos vinte anos, responsável pela produção do disco – foi o último registro a levar sua assinatura, antes de sua morte prematura aos 56 anos, no início deste ano. Responsável por revelar nomes tão diferentes quanto Raimundos e Otto, Miranda foi crucial para o estabelecimento das carreiras como Skank, O Rappa, Chico Science e Nação Zumbi, além de personalidade-chave para o desenvolvimento de cenas independentes em Porto Alegre (sua cidade-natal), Recife, São Paulo, Brasília e Belém. Redesenhou o mapa do pop brasileiro das últimas décadas e era conhecido pela personalidade carismática, pelo enorme coração, pelo amor pela cultura pop, pelo apreço à esquisitice e pelas histórias deliciosas, sempre contadas às gargalhadas e lágrimas.

Mas Miranda tinha um lado pouco conhecido do grande público. Suas camisas floridas, seus comentários no programa de calouros Ídolos e o fato de ter lançado artistas tão jovens e jocosos como Cansei de Ser Sexy e Virgulóides escondia uma paixão pela refinação, uma verdadeira devoção pelo esmero, pelo capricho, pelo delicado e pela sofisticação. Fã incondicional da sonoridade analógica dos anos 70, ele já havia demonstrado sua excelência neste tipo de produção ao assinar os trabalhos de artistas como Nina Becker, Estela Cassilatti e da banda mineira Transmissor. E sabia que o trabalho com Paula Santisteban seria o ápice desta sua faceta como produtor. Só não sabia que iria ser seu último – e também um legado formidável para encerrar sua discografia e para lançar a carreira desta nova artista.

“O Miranda falava que esse disco seria um disco pra quem gosta de som”, me explica Paula, ao contar todo o processo que culminou com seu primeiro disco, que tomou dois anos de ensaios com sua banda – formada pelo guitarrista Eduardo Bologna, que também é o diretor musical do álbum, pelo tecladista Roberto Pollo, pelo baixista Eric Budney e pelo baterista Daniel de Paula – para escolher repertório e construir um álbum que Miranda queria que tivesse cara de LP, com quarenta e cinco minutos de duração e com uma separação entre o que era lado A e lado B.

Tinham vinte canções e destas escolheram dez. Miranda comentou as letras, ajudou a escolher os músicos e os instrumentos, além do arranjador para este trabalho, o músico Ed Côrtes. “O Miranda dizia que foi muito acertado trazer o Ed, pois ele trouxe uma atmosfera cinematográfica, visual, e até algo das orquestras do pai dele, Edmundo Villani Côrtes, um dos maiores compositores eruditos brasileiros, vivo, que também fazia arranjos para grandes orquestras de televisão e bailes”, continua Paula.

O processo de gravação ecoa a era analógica e quase tudo foi gravado em takes inteiros, sem edição, sem overdubs, sem efeitos ou nada que transformasse o som dos instrumentos originais – nem mesmo o próprio instrumento dobrado. Quase nenhuma compressão, nada que ressaltasse um instrumento em relação ao outro, como se o ouvinte pudesse estar no mesmo ambiente que os músicos. Primeiro gravaram baixo, guitarra e bateria, depois teclados, depois a orquestra e finalmente a voz.

“A maior participação do Miranda foi na construção da voz”, segue explicando Paula. “Ele simplesmente me fez olhar para minha voz verdadeira, sem truques, sem maquiagem. Foi reduzindo tudo o que não fosse a minha voz de verdade. Isso fez com que ela ficasse muito contida: era o que eu não cantava, e não o que eu cantava, que trazia a emoção nas canções. A entrega das palavras e a expressão e não a interpretação. Fui zero intérprete, fui eu!” A excelência chegou à precisão do microfone específico para aquele registro, um Neumann valvulado de 1952.

A mixagem de Maurício Cersosimo ressaltou este aspecto intimista, próprio das canções de Paula, sem perder um aspecto épico e espaçoso, devido aos respiros entre instrumentos feitos nesta fase da gravação. Greg Calbi, dos EUA, masterizou o disco respeitando estas qualidades, colocando a cantora no meio da banda como se fosse ela mesma uma instrumentista.

“Venho de uma família de artistas, não só de instrumentistas, o que me fez trazer para o meu trabalho, algo visual, tátil, além da partitura”, Paula reforça. “Os andamentos são muito lentos, pois essa ideia de desacelerar está no disco. É um disco de baladas que falam da vida, de separações, de momentos de tristeza, de constatações, de calma, de amor calmo, profundo, de maternidade, de vida e morte, de amor de casal. É um disco maduro, adulto, de uma mulher mãe, de uma cantora e compositora que vive a música na sua essência. Um disco muito humano, na essência da palavra, pois usamos muito pouco de tecnologia, somente usamos como suporte para nossas ideias. E também humano, por conta da coletividade e do amor e amizade que trouxemos através dos encontros que o disco proporcionou.”

Neste sentido, o papel de Miranda foi muito além do que se espera de um mero produtor fonográfico. “Ele foi como um guru, um guia de amor o tempo todo, trazendo o caminho certo de tudo”. Inclusive na minha participação no disco. Velho amigo, Miranda me falava o tempo todo sobre o processo do disco de Paula, ressaltando que eu só iria ouvi-lo quando estivesse pronto. No dia em que morreu, conversamos pela parte da manhã e ele reforçou que queria que eu participasse deste processo – e estava conversando com Paula também sobre isso. Após sua morte, nos encontramos e ela pode me mostrar o disco, que havia acabado de ser gravado e começava a ser mixado – a começar pela tocante “As Janelas da Cidade”, o primeiro single do disco. Juntos, começamos a desenhar o lançamento deste último gesto artístico de nosso querido compadre. E a partir daí vieram as fotos de Bob Wolfenson para a capa do álbum, a assinatura com a gravadora Warner, o lançamento do álbum no Auditório Ibirapuera – e assim Paula Santisteban vai deixando sua marca, que também é a marca antevista por seu produtor.

“Acredito que o disco, em sua essência, traz essa cor laranja, azulada de um fim de tarde”, ela conclui. “Essa vontade de caminhar, de olhar paisagens, de desacelerar, de entrar em um lugar dentro, em águas profundas. Música, tocada, cantada, sem glamour. É um disco que abraça e não que afasta.”

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O MC Edgar me chamou para escrever o release de seu primeiro álbum, Ultrassom, produzido pelo Pupilo – um discão, diga-se de passagem.

A transição que atravessamos nesta entrada de século não é única: são diferentes evoluções e transformações que se superpõem causando uma avassaladora sensação de caos, desconforto e paranoia. Não é apenas a mudança do analógico para o digital ou a chegada do novo milênio, nem só a questão ambiental, o mercado financeiro ou a globalização selvagem; a metamorfose do trabalho, o futuro da medicina, a inteligência artificial e questões sexuais e raciais que se impõem frente a paralisias políticas, econômicas e culturais que achatam expectativas e frustram sonhos.

Edgar surge como uma espécie de arauto avesso desta era incerta. Ele surgiu na paisagem da música brasileira como um rapper alienígena multicolorido que faz o próprio figurino a partir de objetos descartados, mas isso apenas resvala na superfície de sua complexidade. Sem residência fixa, o cantor de Guarulhos aprendeu a rimar sozinho, ainda adolescente, a partir de aulas de percussão que teve em sua cidade-natal, encaixando palavras e sílabas para imitar a batida de tambores e repiques, enquanto entendia a diferença entre gêneros e ritmos musicais.

O rap foi uma referência que veio com os amigos – ao mesmo tempo que a música eletrônica, especificamente o psy -, mas ouvia música nordestina através dos pais pernambucanos e discos de rock por influência do irmão. Mais que alienígena, Edgar é 100% terráqueo, embora pertença já a uma nova safra de seres que ainda habitarão este planeta.

E é uma safra essencialmente brasileira, um mashup de passado e futuro que alterna momentos de delírio e desespero, de dor e de diversão, de desejo e de desilusão. Edgar é o pós-homem cordial, o pós-malandro e o pós-otário que se encontram na mesma pessoa, felizes e tristes ao descobrir, ao mesmo tempo, que estavam sendo enganados. Sua alternância de realidades vai para além do dial do rádio ou do zapping na televisão, instrumentos analógicos que não acompanham a complexidade do novo século. A cada nova música Edgar abre centenas de abas de referências, cada uma delas com hiperlinks lógicos inacreditáveis: deuses, marcas, mitos e estatísticas que confirmam ou desmentem probabilidades cogitadas no verso anterior. E isso falando apenas de suas letras – que enfileiram versos emblemáticos como “o amor está preso em uma camisa de vênus, a realidade foi posta em uma camisa de força”, “o futuro é uma criança com medo de nós”, “colocamos nossos filhos em um coma induzido” e “nossas guerras estão gerando novos games”.

Sua musicalidade é quadrada, robótica e sintética, pouco se relaciona com as bases do rap comercial e se ancora no “Planet Rock” em que Afrika Bambaataa colocou os robôs do Kraftwerk para dançar break. Não por acaso seu produtor é o baterista Pupillo, um dos fundadores da Nação Zumbi, que enxergou no DNA de Edgar algo próximo à cena em que viu nascer, em sua cidade, um quarto de século antes. Diferente da Semana Modernista de 1922 e da Tropicália, tanto o mangue beat quanto o imaginário criado por Edgar fundem o intelectual e a selva, o asfalto e o morro, a cidade e o interior. Não há mais a dicotomia entre quem tem e quem não tem, quem é e quem não é. Tudo é uma coisa só – e a melhor tradução para isso talvez seja a própria cidade de São Paulo, não por acaso cidade-natal dos poucos convidados do disco: a cantora Céu, o MC Rodrigo Brandão e o tecladista Maurício Fleury, cada um presente com seu peso e seu pulso neste grande caos organizado ao redor do cérebro de Edgar.

Suas rimas logo descrevem imagens pouco prováveis na música brasileira: misturando ficção científica com jornalismo e poesia, Edgar recria clichês e frases de efeito em uma colcha de retalhos verbal que pinta distopias nada fáceis de digerir, jogando a realidade na cara do ouvinte com todo seu surrealismo fantástico. Nômade, morou em São Paulo, em Minas Gerais, no Sul e no Pernambuco – e para onde mais sua música o levar. Ele flerta com os extremos de tudo: o luxo e o lixo, o alto astral e a bad vibe, a tensão e o tesão, o perigo e a oportunidade. Seu primeiro disco, Ultrassom, é a imagem de algo que ainda não existe – mas há uma certeza intrínseca a essa (r)existência: ela é brasileira.

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Comecei a colaborar com a revista Cultura, distribuída gratuitamente pela Livraria Cultura, escrevendo uma matéria sobre a onipresença do Facebook em nossas vidas, além de assinar a coluna de tecnologia, chamada de Inovação. Eis a matéria sobre a rede de Zuckeberg, cuja íntegra pode ser lida no site da revista.

A era digital fez nascer um novo tipo de oligopólio: o dos dados pessoais. Aproveitando-se da ingenuidade do público e de uma nova legislação norte-americana que permitia a vigilância online após os atentados de 11 de setembro de 2001, novas empresas passaram a oferecer produtos online aparentemente gratuitos – sejam redes sociais, e-mails online, aplicativos de comunicação e de relacionamento, serviços na nuvem e mapas digitalizados – que coletam informações sobre cada passo dado por seus usuários. Ao aceitar os termos de uso destes novos serviços, as pessoas aos poucos foram abrindo mão de sua privacidade e até de sua liberdade, carregando dispositivos de monitoramento online em seus bolsos.

Corporações como Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft começaram a desdobrar suas atividades para além de suas funções originais, aumentando o nível de consentida invasão de privacidade de seus usuários. Conhecendo melhor seus clientes como nenhum outro tipo de empresa na história, eles começaram a vender estas informações em forma de publicidade, personalizando os anúncios de acordo com os hábitos digitais de seus “consumidores” – que são, na realidade, o verdadeiro produto oferecido aos anunciantes pela rede social.

Empresas menores como Twitter, Spotify, Uber e Netflix, entre inúmeras outras, também coletam seus dados para “melhorar seus serviços”, embora todos almejem ter a influência e o tamanho dos dois maiores gigantes digitais: Google e Facebook. Se o primeiro não tem uma grande rede social para conectar as pessoas, é simplesmente dono do maior site de buscas do mundo, do principal serviço de streaming do planeta (o YouTube), do principal sistema operacional para celulares (o Android) e do principal serviço de mapas online do mundo (o Google Maps).

Já o Facebook parece ter uma influência maior do que a simples inteligência artificial bradada pela empresa. Ele bane a nudez (incluindo mães que amamentam), mas não tira do ar cenas violentas, por alegada “liberdade de expressão”. No mesmo inquérito realizado nos EUA, Zuckerberg assegurou que grupos de ódio são proibidos no Facebook, quando qualquer usuário percebe a tendência belicosa por trás de comentários, likes e compartilhamentos.

A crescente polarização ideológica da sociedade no mundo todo parece ter sido reforçada pela distribuição eletrônica de publicações da rede, com a criação de bolhas de interesse que não conversam entre si. Problema que o indiano Chamath Palihapitiya, que chegou a ser vice-presidente de crescimento de usuários da rede entre 2007 e 2011, apontou no fim do ano, em uma palestra na Escola de Negócios de Stanford sobre o vício em redes sociais. Para o ex-diretor da empresa, o Facebook está destruindo o funcionamento da sociedade e rasgando o tecido social ao fazer as pessoas se tornarem compulsivas no uso e na recompensa mental que seu uso traz. Na mesma época, o primeiro presidente do Facebook, Sean Parker, admitiu em um evento na Filadélfia que a rede foi desenhada para ser viciante: “Só Deus sabe o que estamos fazendo com o cérebro de nossas crianças.”

Todas essas revelações não alteraram significativamente o engajamento de seus usuários, embora um movimento de êxodo digital tenha se intensificado desde então, e o Facebook venha encontrando dificuldades em atrair usuários mais jovens. Obviamente, a opção de abandonar o Facebook é complicada, pois a rede se tornou central em uma série de relações sociais e comerciais – e ainda não encontrou um rival à altura (quadro acima).

O que nos deixa a um clique da tirania, como alertou a professora Melissa K. Scanlan, da Escola de Direito de Vermont, em um artigo no jornal britânico The Guardian: “O uso nefasto de nossos dados pessoais está em toda parte. Se a Cambridge Analytica pode obtê-los, o que impede que um governo também os tenha?” E prosseguiu: “A maior tirania seria a fusão do monopólio corporativo e do poder governamental, criando o estado de vigilância mais invasivo da história.”

Jamais poderíamos imaginar que a distopia do futuro digital que habitamos hoje fosse mais assustadora que a ficção de George Orwell e Aldous Huxley, que cogitaram, respectivamente, o estado de vigilância máxima personificado na figura do Grande Irmão no livro 1984 e o estado de êxtase alienante em Admirável Mundo Novo. O início do século 21 parece ser uma mistura destes dois cenários, em que alimentamos um Grande Irmão digital com nossos êxtases pessoais.  

Toda a matéria neste link.

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A trilha sonora do filme psicodélico dos Beatles completa meio século de idade – e eu escrevi sobre esse clássico lá no meu blog no UOL.

Quando a versão LP de Magical Mystery Tour chegou às lojas norte-americanas há cinquenta anos, no dia 27 de dezembro de 1967, os Beatles encerravam com chave de ouro seu maravilhoso ano psicodélico bem como começavam a perder a mão do próprio negócio. Embora o disco fosse impecável – a ponto de rivalizar com o emblemático Sgt. Pepper’s como uma das principais obras da banda até então -, ele era fruto do primeiro projeto do grupo que foi mal recebido pela crítica (o telefilme que batizava o disco), bem como feria uma regra tácita que a banda se impôs desde seus primeiros anos, de não incluir as canções lançadas em compacto em seus álbuns.

Magical Mystery Tour foi um projeto liderado por Paul McCartney logo após a morte do empresário da banda, Brian Epstein, no fim de agosto daquele ano. Epstein havia sido a peça-chave que fez o grupo ir além do formato tradicional de banda de rock, transcendendo para fenômeno pop global sem precedentes. A súbita morte do empresário pegou a banda de surpresa logo após o lançamento de Sgt. Pepper’s e os deixou completamente sem rumo. Era Brian quem estudava todos os passos que a banda poderia dar, dividindo com John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr as opções de carreira e a partir das opiniões do grupo dar seus ousados passos profissionais. Foi ele quem vislumbrou a estética da banda, todo o conceito de merchandising, a forma como lidava com a imprensa, a conquista de mercados pelo planeta, a possibilidade de fazer filmes, capas e títulos de discos que falavam por si só. Dos grandes passos que os Beatles deram em termos de marketing pessoal, só alguns foram dados sem a iniciativa de Brian, como o abandono dos palcos em 1966 e a ideia de criar álbuns conceituais. Da mesma forma que o produtor George Martin era o quinto beatle quando o assunto era música, Epstein era o quinto beatle em relação a estratégia e rumos de carreira, guiando a banda para fronteiras que os quatro nem imaginavam.

Não por acaso sua morte foi um choque para a banda. Ele não chegava a ter o aspecto professoral que Martin tinha em relação ao grupo (por ser quinze anos mais velho que os dos Beatles mais velhos, John e Ringo) e tinha só seis anos a mais que os dois, aproximando-o ainda mais do grupo. Era um fã de música pop como os quatro Beatles e sua relação com o grupo era menos de empresário e mais de amizade. Os quatro confiavam cegamente em Brian – e aquela morte tirou completamente o senso de realidade do grupo na hora em que estavam surfando uma onda de plena criatividade artística. Isso está claro na entrevista que John e George deram logo após chegar do retiro com o guru Maharishi Mahesh Yogi, onde souberam da morte do amigo e empresário. Olha a expressão na cara dos dois:

Paul McCartney logo entendeu que aquela notícia poderia ter um impacto negativo o suficiente para deteriorar a banda e acelerar seu fim, algo que já vinha sendo cogitado desde que o grupo pendurou as chuteiras dos palcos, e assumiu as rédeas da banda. Como havia feito em Sgt. Pepper’s – quando concebeu o conceito por trás de um disco que seria uma obra única, mais do que uma coleção de canções -, logo cogitou a possibilidade de lançar um terceiro filme da banda, sua obra audiovisual psicodélica, que, por motivos de agilidade de produção, foi transformado em um filme feito para a TV, no caso a emissora britânica BBC, onde o grupo já batia ponto regularmente em seus programas radiofônicos.

Magical Mystery Tour foi um conceito criado a partir dos chamados “mystery tours”, viagens de charrete em que os ingleses eram convidados a passear sem saber o rumo daqueles passeios, quase sempre em direção ao campo, no início do século 20. Como, para os ingleses, toda a noção de psicodelia estava intrinsicamente ligada à volta à infância e uma viagem ao passado, era natural que aquele conceito fosse transformado em “mágico” para saciar as ansiedades lisérgicas de uma geração que via o mundo deixar de ser preto e branco para assumir cores em Technicolor.

O problema é que por mais empolgado que Paul estivesse com aquele conceito, ele era apenas um jovem de vinte e cinco anos que havia dominado o mundo da música e estava delirando com a possibilidade de se tornar um autor sério. Havia começado a frequentar galerias de arte, a acompanhar cinema de vanguarda e a ler sobre cultura erudita. Aquele ímpeto jovem de se tornar um artista intelectual era bonito na teoria, mas na prática ele não tinha muita ideia do que fazer. E embora o filme tivesse sido dirigido e escrito pelos quatro Beatles, era ele o capitão daquela aventura e o aspecto livre de execução do filme seria perfeitamente exemplificado pelo roteiro escrito por Paul – um diagrama circular que funcionaria como ponto de partida para improvisos excêntricos e delírios lisérgicos da banda.

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O resultado foi um filme completamente experimental e caótico, que substituía as charretes das turnês misteriosas do passado por um ônibus escolar cheio de personalidades peculiares, todas elas vindas do inconsciente coletivo imaginado pela banda, ecoando também as viagens psicodélicas promovidas pelos Merry Pranksters de Ken Kesey pelos Estados Unidos, anos antes, quando aquele grupo atravessava o país dando ácido lisérgico diluído em ki-suco em festas instantâneas. Pelo percurso do filme, curtas musicais que anteviram o conceito de videoclipe e acenos humorísticos que plantariam a semente do que o Monty Python faria em seu Monty Python’s Flying Circus, dois anos depois. Steven Spielberg e George Lucas também celebraram o aspecto de vanguarda naïf do filme, que ajudaria os dois diretores a entender como ser experimental e pop simultaneamente.

Mas todas essas qualidades foram percebidas posteriormente. Quando foi exibido após o natal daquele ano, o filme sofreu fortes críticas, principalmente por sua falta de roteiro e aparente amadorismo. O produtor George Martin também atribui o fracasso do filme ao fato de este ser um filme muito colorido e, à época, boa parte dos televisores na Inglaterra transmitirem apenas em preto e branco. O baque sofrido pela banda foi tamanho que o próprio Paul McCartney deu uma declaração para a imprensa praticamente se desculpando por ter feito o filme.

Paul McCartney, George Harrison, Ringo Starr e John Lennon

Paul McCartney, George Harrison, Ringo Starr e John Lennon

O mesmo não poderia ser dito em relação à sua trilha sonora. Lançada no início daquele dezembro como um EP, o disco continha apenas as músicas da banda que utilizadas no filme, todas inéditas. Era um compacto duplo que trazia a faixa-título e “Your Mother Should Know” no lado A, “I Am the Walrus” no lado B, “The Fool on the Hill” e a instrumental “Flying” no terceiro lado e “Blue Jay Way” de George Harrison no quarto. Como a capa de Sgt. Pepper’s, a do EP também era dupla e trazia um encarte de 28 páginas que tentava contar a história rascunhada no filme.

Mas quando o disco foi cogitado para o mercado norte-americano, ele sofreu uma grave distorção – principalmente do ponto de vista dos Beatles. Em vez de ser um compacto duplo, ele agora seria um álbum, e parte das músicas que o tornariam um disco cheio já haviam sido lançadas como compactos anteriormente, quebrando uma regra que os Beatles criaram logo após o lançamento de seu primeiro disco, o único a conter músicas lançadas também como single (a saber, “Love Me Do” e “P.S. I Love You”, que faziam parte do repertório do disco Please Please Me). Desde então, o grupo separava as músicas que tinham maior potencial radiofônico para serem lançadas como compacto, deixando-as quase sempre de fora dos álbuns. Assim, hits instantâneos como “She Loves You”, “I Wanna Hold Your Hand”, “We Can Work It Out”, “Day Tripper”, “Paperback Writer” e “Rain”, entre outras, nunca chegaram a figurar na discografia de álbuns do grupo.

O disco Magical Mystery Tour, que chegou ao mercado norte-americano há 50 anos, incluía as faixas de compactos como “Strawberry Fields Forever” e “Penny Lane” (compacto que havia sido lançado antes de Sgt. Pepper’s), “All You Need is Love” e “Baby You’re a Rich Man” (lançado após a primeira transmissão ao vivo da história, naquele mesmo ano) e “Hello Goodbye” e “I Am the Walrus”. A princípio o grupo ficou contrariado com esta nova versão, mas aos poucos cedeu às más impressões a ponto de oficializá-lo com item oficial quando a discografia da banda foi sacramentada em sua versão em CD, trinta anos depois. A inclusão daqueles compactos no antigo EP duplo também favorecia a transformação de todos os outros compactos na coletânea dupla Past Masters – Volume 1 & 2, que teria de ter um terceiro volume caso não os compactos de 1967 não fossem incluídos naquela edição.

Mas, principalmente, a nova edição coroaria 1967 como o ano psicodélico dos Beatles, reunindo toda a produção da banda naquele ano em dois álbuns, Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band e Magical Mystery Tour. Juntos os dois formam um par de discos impecável, que reúne a produção psicodélica mais intensa em um ano em que várias bandas lançaram dois discos clássicos (os Doors lançaram seu primeiro disco homônimo e Waiting for the Sun, o Experience de Jimi Hendrix tinha a estreia Are You Experienced? e o fantástico Axis… Bold as Love, o Jefferson Airplane teria seu Surrealistic Pillow e After Bathing at Baxter’s, os Stones lançariam Between the Buttons e Their Satanic Majesties Request).

Sozinho, Magical Mystery Tour é o que o filme original tentava ser: uma viagem psicodélica misteriosa, em que os Beatles, como mágicos, recebiam o ouvinte tentando emular a sensação lisérgica em letras e melodias – dos “roll up” que abrem a faixa-título ao clima nebuloso da hipnótica “Blue Jay Way” de George Harrison, da viagem instrumental de “Flying” (a primeira faixa assinada pelos quatro Beatles) ao delírio jocoso de “I Am the Walrus” (que Lennon compôs arbitrariamente de forma dúbia, apenas para atiçar a curiosidade dos que interpretavam demais suas letras), passando pela viagem à infância em Liverpool de “Strawberry Fields Forever” e “Penny Lane”, pelas baladas nostálgicas “The Fool on the Hill” e “Your Mother Should Know” e pelas letras simples, otimistas e diretas de “Hello Goodbye” e “All You Need is Love”. Um disco impecável que encerraria um ano mágico para os Beatles e os preparava para o início do fim de suas carreiras, quando, em 1968, começariam a se desfazer com o mítico Álbum Branco. Mas isso é outra história…

Um dos grandes discos da história e obra-prima de Dr. Dre completa um quarto de século de influência – escrevi sobre ele lá no meu blog no UOL.

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luke2017

Escrevi lá no meu blog no UOL minhas primeiras impressões sobre o oitavo episódio da saga Skywalker.

O melhor jeito de assistir a Os Último Jedi, oitavo episódio da saga Skywalker que estreia esta semana no Brasil, é ir ao cinema sem saber de nada – mas, calma, não precisa parar de ler o texto aqui. O próprio trailer trinca algumas surpresas ao apresentar cenários e criaturas que deixariam fãs boquiabertos caso não fossem mostrados de antemão, então se você conseguiu escapar da avalanche de notícias, fotos e cenas inéditas dos últimos meses e precisa ser convencido de que este filme vale a pena ser assistido, garanta sua sessão blindado destas notícias. Por isso, o texto abaixo mais descreve sensações e personagens do que entrega a história do filme – portanto, sem spoilers.

A principal crítica sofrida pelo Despertar da Força que fez a Lucasfilm, agora uma empresa Disney, ressuscitar sua galinha dos ovos de ouro em 2015 era que o Episódio VII era apenas uma recriação do Episódio IV, o primeiro filme da história de Guerra nas Estrelas, lançado em 1977. Com J.J. Abrams no comando, o filme é uma colcha de retalhos de referências dos seis filmes anteriores que usa a mesmíssima estrutura narrativa da produção que transformou George Lucas em milionário: Rey refaz o caminho do aprendiz de Luke, Kylo Ren é um aspirante a Darth Vader, o Supremo Líder Snoke é o novo Imperador, BB8 é o R2D2 2.0, Poe Dameron faz as vezes de Han Solo, Maz Kanata ecoa Yoda e todos os personagens que sobreviveram ao novo filme (Han Solo, Leia, Chewbacca, R2D2, C3PO) batem cartão com seus bordões na rapsódia de Abrams, que termina com uma nova Estrela da Morte explodindo após tomar um laser em seu inexplicável ponto fraco. Só o personagem Finn – o único Stormtrooper a desertar do exército do Império – e a fatídica cena central com Han Solo fogem das referências citadas estabelecidas pelo criador de Lost.

Era um risco que precisava ser corrido. J.J. Abrams tinha o desafio de tornar a série novamente atraente e divertida após o fiasco dos Episódios I, II e III, considerados manchas pesadas em uma das marcas mais importantes da cultura pop de todos os tempos. Apelou para a nostalgia como se preferisse não mexer no próprio time, ousou em pouquíssimos momentos, mas conseguiu atrair o velho público e uma nova audiência, transformando a ressurreição da série um dos principais sucessos comerciais deste século até agora.

Os Último Jedi tinha tudo para refazer um caminho parecido em relação a O Império Contra-Ataca e usá-lo como modelo para contar uma nova história. A comparação era reforçada pela cor do logo da série, pela primeira vez em vermelho na divulgação inicial, em vez de amarelo, talvez querendo indicar que seria um filme passional e pesado como foi o Episódio V. Mas o diretor Rian Johnson preferiu dar alguns passos para trás e ver toda aquela história dos sete primeiros episódios numa perspectiva galáctica. Quem são aquelas pessoas? Por que elas são tão importantes para a história da Força? O que são os Jedi?

A partir desses questionamento, ele desconstrói os personagens apresentados no filme anterior de forma soberba. Entra na natureza de Poe Dameron numa sequência de abertura de tirar o fôlego, trabalha a complexidade emocional de Rey, lapida um vilão perfeito em Kylo Ren, humaniza ainda mais o coração de Finn. Eles ganham uma profundidade completamente nova, esquivando-se dos clichês que os vinculam a outros personagens anteriores. Rey é decidida e obstinada, ao contrário de seu espelho original, o jovem Luke. Kylo Ren ganha contornos mais decididos, mesmo sem abandonar por completo o ar birrento que o transformava em um Darth Vader mimado – Adam Driver aos poucos constrói um vilão completamente novo. Poe Dameron e Finn ganham uma importância que no filme anterior parecia passageira e têm momentos definitivos no novo filme.

Mas é um filme dos gêmeos Luke e Leia. O que O Despertar da Força nos tirou de Mark Hammill, Os Últimos Jedi entrega de forma plena, bem como toda a complexidade super-heróica da antiga princesa Leia. Os irmãos são alguns dos principais alicerces desta nova trilogia e seus destinos no novo filme determinam o desenrolar básico da história.

Além disso há novos alienígenas, novos bichos, novas naves, armas, uniformes, veículos. O aspecto visual de Guerra nas Estrelas ganha um banho de loja que aponta para possibilidades infinitas, criando cenas memoráveis e de pleno apuro visual. Toda criação de computação gráfica que George Lucas insistiu na primeira trilogia deste século e que Abrams evitou no filme anterior, surge esplendorosa e realista neste novo filme. E os novos personagens apresentados – uma soldado, um malandro e uma general (não vou nem dizer o nomes dos atores) – também fogem de possíveis comparações com outros nomes conhecidos de outros filmes. Sem contar a presença massiva de mulheres – e o tratamento de animais como seres vivos, não como fontes de comida.

Os Últimos Jedi não é perfeito. São duas horas e meia de filme que começam com um bom pique, mas aos poucos desanda quase sonolento pela sua metade. Mas o ato final é tão surpreendente e empolgante (aplaudi três cenas específicas no cinema) que esquecemos facilmente do encontro frustrado num planeta Mônaco que nos revela um dos novos personagens.

E, principalmente, foge por completo das fórmulas já estabelecidas nos filmes anteriores. Rian Johnson está procurando novos rumos, novos fios da meada, novas ambiências, novas sensações, e amplia magistralmente a mitologia criada por George Lucas. Não por acaso, ele será o responsável pela próxima trilogia da saga, a primeira sem a presença de ninguém da família Skywalker.

Até o fim de semana volto a falar sobre o novo filme, desta vez enchendo o texto de spoiler. Mas diz aí na área de comentários o que você achou de Os Últimos Jedi.

Pink Flag, 40 anos

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O mítico disco de estreia do Wire completa quatro décadas cada vez mais influente – escrevi o texto sobre a importância do disco no meu blog no UOL.

Quando 1977 chegou ao fim, parecia que o ano havia virado o rock do avesso. Depois de anos borbulhando no underground de Nova York e Londres, o punk finalmente vinha à tona – não apenas a partir da consolidação da safra nova-iorquina, que viu todas suas bandas (Television, Patti Smith Group, Ramones, Blondie e Talking Heads) assinar com grandes gravadoras encarnado, mas principalmente pela doutrina de choque e destruição dos Sex Pistols, primeiro porque a banda inglesa materializava visualmente aqueles novos ideais estéticos mas também porque validava o descontentamento de toda uma nova geração de adolescentes conterrâneos, que pegavam guitarras e máquinas de xerox, mas fazer sua própria cena musical longe das grandes casas de shows, das lojas de discos e das emissoras de rádio. Todas as grandes bandas do punk inglês surgiram ou se consolidaram ao mesmo tempo em que os Pistols: Clash, Damned, Buzzcocks, Jam, Slits e X-Ray Specs (além de artistas que orbitavam ao redor do punk, como o Police e as bandas de ska da gravadora 2Tone) saíram das garagens para as páginas dos jornais, provocando caos e desordem em shows cada vez mais rápidos e barulhentos.

Quando 1977 chegou ao fim, uma banda minúscula chamada Wire, criada naquele mesmo ano, lançou seu primeiro disco e correu riscos musicais para além dos três acordes e das palavras de ordem. Cruzando o limite que separava o punk das ousadias sonoras que viriam a ser conhecidas mais tarde como pós-punk, o grupo londrino ainda mantinha-se do lado original daquele movimento cultural, mas buscava fugir das imposições estéticas determinadas pelo próprio rock’n’roll. Ao lançar seu Pink Flag no dia 4 de dezembro de 1977, o Wire também explorava todas as possibilidades do punk – e seu legado mudaria inclusive a forma como o gênero seria percebido tanto nos Estados Unidos quanto no resto do mundo.

Formada pelo guitarrista e vocalista Colin Newman, pelo guitarrista Bruce Gilbert, pelo baixista Graham Lewis e pelo baterista Robert Gotobed, o Wire começou ao redor do guitarrista e vocalista George Gill, dono de um conceito que evoluiu para uma banda chamada Overload, no início de 1977. Mas os ensaios não empolgavam, as letras e músicas do dono da banda eram vistas com desprezo pelos outros integrantes e bastou que Gill faltasse a um ensaio (depois de quebrar a perna tentando roubar um amplificador de guitarra de outra banda), que os quatro integrantes de seu grupo percebessem que a banda tinha um problema: seu fundador. Ao mostrar para o grupo suas primeiras canções, Newman conseguiu rapidamente que os outros músicos entendessem que a falta de fluência musical vinha da presença de Gill, e aos poucos puderam ir para além das fronteiras estabelecidas pelo punk. Seus primeiros shows aconteceram em abril de 1977 e já nas primeiras apresentações experimentavam algo inédito no gênero: o corte seco das músicas pela metade, quebrando completamente a expectativa do público, que se engalfinhava em rodas de pogo conduzidas pelo barulho.

Aos poucos reduziam o tempo das canções drasticamente, muitas vezes por considerarem o material desenvolvido em um único ensaio suficiente. As músicas às vezes não tinham refrão, só duas estrofes, ancoradas sempre por riffs de guitarras secos e minimalistas como o ritmo tribal de sua percussão, deixando o baixo e o vocal livres para explorar novas frentes melódicas. Ao assistir a shows dos Buzzcocks e dos Ramones no meio daquele ano os fez perceber que a velocidade também era um limite a ser rompido – daí passaram a compor faixas ainda mais curtas e diretas, bem como números com andamento mais lento que aquele do punk tradicional.

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Pink Flag sintetizava todo o espírito da banda de forma definitiva. Eram vinte e uma canções em pouco mais de meia hora de disco, com músicas que nem mesmo um minuto tinham, em alguns casos. Os temas eram muito mais diversos que os explorados pelo punk: a tensa “Reuters”, que abria o álbum, descrevia uma zona de conflito do ponto de vista de um correspondente de guerra; a urgência de “Start to Move”, “It’s So Obvious” e “12XU” contrastava com o ar contemplativo de canções sentimentais como “Fragile”, “Strange”, “Lowdown” e “Feeling Called Love”, questões políticas fugiam de discussões partidárias em faixas como “Mr. Suit”, “The Commercial”, “Brazil” e a faixa-título. Todas as canções pareciam pequenos manifestos modernistas e poderiam ter suas letras sido escritas no início do século 20, com frases de efeito que tinham origens futuristas, dadaístas, situacionistas e pós-modernistas. A novidade estética era a urgência dos sons e palavras, quase sempre indo além do que se esperava de um disco de punk rock.

A inventividade e a criatividade do grupo logo o levariam para além daquele lugar musical. Nos discos seguintes, especialmente Chairs Missing, de 1978, 154, do ano seguinte e o ao vivo Document and Eyewitness, de 1981, o Wire transcendia a pressa e a selvageria do punk primal, abraçando a natureza artística que acompanhava o grupo desde seus primeiros passos. Novos instrumentos, temas e andamentos foram incorporados ao som do grupo e cada um destes quatro primeiros álbuns poderia ter sido gravado por uma banda diferente, tamanhos os saltos evolutivos que deram entre um registro e outro, quase sempre negando os preceitos tecidos no trabalho anterior.

Mas o impacto de Pink Flag atravessaria o Atlântico e teria uma influência muito maior do que em seu país de origem, mesmo não vendendo bem em nenhum dos mercados. Mas como os Estados Unidos estavam ainda entendendo o que era o punk a partir do punk inglês (pois haviam pouquíssimas bandas punk para além das de Nova York), todos os discos punk ingleses que apareciam eram tratados como mensagens vindas de um planeta utópico – e Pink Flag parecia ensinar que o punk poderia ir para muito além da cartilha dos três acordes básicos, descendentes do rock mais cru.

Assim, o disco tornou-se fundamental para uma nova geração de bandas punk. Ele praticamente serviu como um dos pilares da cena de hardcore de Nova York, com músicas regravadas pelo Minor Threat (“12XU”) e por Henry Rollins (“Ex-Lion Tamer”), repercutiu na cena californiana (sua “Mannequin” foi regravada pelo Firehose e os Minutemen sempre assumiram o disco como influência para suas músicas curtíssimas), além de ter sido regravado pelo R.E.M. em seu disco Document (com a música “Strange”). Seu legado norte-americano praticamente consolidou um novo gênero musical descendente do punk, o hardcore, que evoluiria ainda mais com outras influências locais.

Mas o grupo, que está na ativa até hoje, sempre fugiu de fórmulas. Tanto que quando fez sua primeira turnê pelos Estados Unidos, no final dos anos 80, cientes que estavam sendo esperados pela influência de seu primeiro disco, contratou a banda Ex-Lion Tamers para tocá-lo na íntegra como show de abertura. Assim, os punks que queriam apenas ouvir seu disco favorito da banda sentiam-se satisfeitos logo no início e o grupo não precisaria se preocupar em revirar o passado. Um dos discos mais influentes do punk inglês, Pink Flag continua sendo passado de geração para geração como um segredo, uma lenda urbana, uma comunicação em código. Felizmente.

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Um disco que consolidou a reputação de Brian Eno completa quatro décadas – escrevi sobre ele no meu blog no UOL.

Brian Eno é um dos principais nomes da música popular contemporânea, embora não seja reconhecido do grande público. Pensador e provocador, o “não-músico” (como gostava de se referir) teve uma breve carreira de popstar ao integrar a formação clássica do Roxy Music no início dos anos 70, mas logo sairia da banda rumo a experimentações estéticas que consolidariam a reputação de grandes ícones do pop do final do século passado, como David Bowie, Talking Heads e U2, além de viajar em seus próprios trabalhos solo, seja ao lado de músicos de alto calibre (como Robert Fripp, John Cale, Kevin Ayers, David Byrne, Jah Wobble, Daniel Lanois, entre outros), seja estabelecendo os parâmetros para sua grande contribuição autoral para a música moderna, firmando os paradigmas do que hoje chamamos de ambient music. Mas se passou parte dos anos 70 rascunhando o futuro da música moderna como a conhecemos hoje, estes traços musicais atingiram o ápice no dia 2 de dezembro de 1977, quando, há quarenta anos, lançava o quinto disco com seu nome, que cravava sua importância com o espetacular Before and After Science.

Eno ficou conhecido por provocar seus companheiros de banda a buscar novas alternativas para além das convenções musicais estabelecidas. Brincava que se tivesse se atrasado ou adiantado no dia em que conheceu o saxofonista Andy McKaye no metrô de Londres talvez nunca tivesse entrado no ramo da música e seria um acadêmico das artes sem nenhum vínculo com a música comercial. A passagem pelo Roxy Music, que durou apenas dois anos, foi o suficiente para que ele aplicasse, na prática, conceitos estéticos que explorava enquanto era universitário. Só foi subir no palco com a banda – fazendo vocais de apoio ao vivo e tocando teclados – depois de começar apenas na cabine de som, mixando o som da banda ao vivo. Ao ir para a ribalta, aproveitou a estética glam de sua banda para levar ao extremo suas aparições ao vivo, transformando-se em um modelo cênico radical dos conceitos que aplicava na música, vestindo-se de forma extravagante. Gostava de dizer que seu principal instrumento era o gravador de fitas (e orgulhava-se possuir mais de trinta aparelhos desse tipo) à medida em que estabelecia sua carreira solo, dizia que não tocava músicas e sim músicos.

Brian Eno

Brian Eno

Seus primeiros quatro discos solo reforçariam essa mentalidade. Os dois primeiros, Here Come the Warm Jets e Taking Tiger Mountain (by Strategy), ambos de 1974, forçavam os limites sônicos da música pop sem precisar desestruturá-la. Nos dois discos, Eno liderava um grupo de músicos que reunia titãs da música europeia dos anos 70, como todos integrantes do Roxy Music (à exceção de Bryan Ferry), membros do King Crimson, Hawkwind, Pink Faries, Genesis, Soft Machine e Winkies, enquanto Eno aparecia tocando instrumentos batizados como “piano simplista”, “laringe elétrica” e “guitarra-cobra”. Gravados em pouco tempo, seus dois primeiros discos também consolidariam uma técnica criativa que ele materializa como um conjunto de cartões chamado Oblique Strategies (Over One Hundred Worthwhile Dilemmas) (Estratégias Oblíquas – Mais de Cem Dilemas Que Valem a Pena), que traziam desafios estéticos para os músicos com quem estava gravando. Chamava um músico e puxava uma carta, que vinha com instruções simples e desafiadoras, como “tente fingir”, “apenas um elemento de cada tipo”, “o que aumentar? o que reduzir?”, “honre o erro como uma intenção oculta”, “pergunte ao seu corpo” e “trabalhe em uma velocidade diferente”. Além disso, ele usava o próprio corpo – dançando ou fazendo gestos – para guiar as experiências musicais que queria introduzir, mas sem nunca deixar as canções soando experimentais ou esquisitas.

Os dois discos seguintes, Another Green World e Discreet Music (ambos gravados em 1975), iam para o outro extremo, justamente ao descartar o formato canção. Apenas cinco das quatorze músicas de Another Green World (considerado seu principal álbum) tinham letras e as melodias se estendiam em longas texturas horizontais minimalistas, que começariam a definir o conceito de música ambiente (concebido a partir de outra ideia ousada, do compositor Erik Satie, a “música-mobília”), que aos poucos seria toda uma nova vertente desde a incipiente música eletrônica do período até hoje. Discreet Music ia ainda além, principalmente a partir da faixa-título, que ocupava todo o lado A do vinil com trinta minutos de contemplação sonora.

Receoso de se repetir, Brian Eno deixou os holofotes e passou para o estúdio, começando sua bem-sucedida carreira como produtor de artistas estabelecidos, ajudando David Bowie a se reinventar em sua trilogia gravada em Berlim, onde o músico inglês abraçou completamente os conceitos estéticos de Eno, principalmente no lado B do disco Low. Nos dois anos entre seus quatro primeiros álbuns e o vindouro Before and After Science, Eno começou a trabalhar no equilíbrio entre essas duas personas: o experimentalista pop e o compositor de vanguarda.

O disco de 1977 é praticamente um manifesto de suas duas metades. O lado A é composto por canções baseadas em ritmo, que, além de ajustar o formato canção para uma novidade que vinha se desenvolvendo do outro lado do Atlântico (a disco music que seria o big bang para toda a dance music do final do século passado) também conectava-se com seus novos colaboradores alemães. Eno chamaria integrantes de bandas como Can, Cluster e Harmonia da mítica versão alemã para o rock progressivo da época (conhecidos pelo termo pejorativo krautrock) e em músicas “No One Receiving” e “Kurt’s Rejoinder” anteciparia em décadas a cena disco punk nova-iorquina puxada pelo grupo LCD Soundsytem.

Na faixa “King’s Lead Hat” saudava os novatos Talking Heads no título da música (um anagrama para o nome da banda de David Byrne), estreitando o contato que o tornaria produtor daquele grupo em seus três próximos álbuns (More Songs About Buildings and Food, Fear of Music e Remain in Light), ajudando a banda de Nova York ultrapassar o pós-punk e abraçar as músicas eletrônica, caribenha e africana. O lado B do disco, uma obra-prima por si só, elevava os conceitos de ambient music para além, aos poucos dissolvendo-os com a música pop experimental que havia lapidado em seus dois primeiros discos.

Before and After Science é o disco que marca o fim de sua carreira como popstar e sela seu destino como tutor para bandas em ascensão, além de experimentalista conceitual. A partir deste disco, Brian Eno passa a usar sua discografia como exercícios de estética ao mesmo tempo em que auxiliava artistas como Devo, James, Slowdive, Laurie Anderson, Grace Jones, Coldplay e, principalmente, o U2 a explorar novos territórios musicais. É o produtor da coletânea de noise vanguarda No New York e gravou ao lado de nomes como John Cale, David Byrne, Robert Fripp, Cluster e Harold Budd, entre outros. É o álbum que demonstra para os anos 70 como seria a música pop do futuro ao mesmo tempo em que consolida sua reputação, tornando-o livre para fazer o que quiser sem precisar dar nenhuma satisfação – comercial ou não.

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Escrevi no meu blog no UOL sobre o porque do fracasso da DC e o sucesso da Casa das Ideias ser ruim para o cinema de entretenimento.

Vamos à real: a disputa entre Marvel e DC no cinema, que até pouco tempo atrás poderia ser considerada séria, não existe mais. A Marvel vem nadando de braçadas em seu próprio universo cinematográfico e mesmo que a DC não estivesse no páreo, a transformação da editora em estúdio de cinema já seria um dos eventos mais importantes da cultura neste século. Mas depois do fracasso de Liga da Justiça e da sequência de sucessos da Marvel de 2017 (o segundo Guardiões da Galáxia, o novo Homem Aranha, um surpreendente terceiro Thor e agora o trailer do próximo Vingadores), é nítido que a DC sofreu uma derrota que dificilmente recuperará seu universo, mesmo após o ótimo filme de estreia da Mulher Maravilha. Não há Flash ou Aquaman que possa reverter esse cenário. Talvez novos filmes do Batman, mas mesmo assim… É preciso ser muito otimista – e descolado da realidade.

O anúncio que a sessão para a imprensa do terceiro Thor aconteceria na mesma semana do novo trailer do primeiro filme da Marvel em 2018 (o Pantera Negra) mostrou que a Casa das Ideias estava aos poucos desfazendo a unidade de seu universo para atingir um público ainda maior. Tanto o trailer do filme que se passa na África quanto todo o filme que ocorre no espaço a anos-luz da Terra mostram histórias que acontecem dentro deste universo já estabelecido sem que necessariamente vinculasse os filmes entre si, o que tornaria a compreensão do todo cada vez mais complexa para o público que ainda não foi convertido. Como Doutor Estranho e o segundo Guardiões já haviam mostrado, o universo cinematográfico Marvel pode criar climas completamente diferentes e filmes que pertençam a gêneros que não conversam esteticamente entre si. Só o novo Homem Aranha que escorregou no excesso de referências, embora isso não tenha abalado a reputação como sendo o melhor filme que já foi feito deste herói.

O novo trailer, nesse sentido, funciona como uma pequena sinfonia. Ele prenuncia o segundo ato da terceira fase do universo inicial com o primeiro Homem de Ferro e vai elencando todos heróis disponíveis como motivos musicais ou instrumentistas exímios. Dá alguns indícios para onde vai o filme, tem pequenas revelações, cenas grandiosas e closes em rostos emocionados e atiça o público sem entregar o ouro, como todo teaser deveria fazer. Para os fãs, um deleite. Para o público que vai ao cinema sem saber que filme vai assistir no dia, é um marco territorial, definindo a existência de mais um novo filme de heróis a partir do semblante de um ótimo novo vilão, Thanos.

O problema é que com a DC fora da disputa, o gênero super-herói tende a ficar preso à Marvel. E por mais que o novo estúdio se desdobre em mil possibilidades diferentes, esse monopólio artístico e comercial tende a estagnar essa vertente cinematográfica à agenda de uma única empresa, mais ou menos como o conglomerado que a comprou fez com a animação entre os anos 50 e 90: pouquíssimos longas de desenho animado emplacaram comercialmente durante a época em que a Disney reinava, antes da ascensão da Pixar (outra empresa que a Disney comprou anos depois) e da Dreamworks.

E o culpado desse fiasco é inevitavelmente a mão pesada de Zack Snyder, que estraçalhou dois filmes do Super-Homem ao tentar atingir o nível de hiperrealismo dos Batman de Christopher Nolan. O tempo nublado de Snyder contagiou os demais filmes da parceria da DC com a Warner (outra culpada, por não confiar no próprio taco e refazer os filmes dezenas de vezes, a ponto de protagonizar o momento mais ridículo da história do cinema comercial deste século, com o bigode do Super-Homem apagado por computador). Mulher Maravilha conseguiu jogar uma luz natural momentânea nesse universo de explosões à noite, mas Liga da Justiça afunda ainda mais uma estética fadada ao fracasso. Se ninguém quer ver um filme com o Super-Homem, a Mulher Maravilha e o Batman juntos, quem vai querer ver o filme do Ciborgue?

A monocultura que pode ser protagonizada pela Marvel ainda tem esse agravante: tira do páreo histórias novas dos dois heróis mais emblemáticos da história dos super-heróis. Batman e Super-Homem são infinitamente superiores a qualquer herói da Marvel, somente o Homem-Aranha chega perto da importância dos dois. Nomes como Thor, Homem de Ferro, Hulk e Capitão América (sem contar desconhecidos do grande público como Doutor Estranho, Guardiões das Galáxias, Pantera Negra) são mais reconhecidos por sua iconografia do que por suas histórias. Mas na medida em que a Marvel conseguiu recapturar o Aranha de volta para seus filmes (abrindo a possibilidade de isso também acontecer com os X-Men), cada vez mais o estúdio se blinda contra possíveis ameaças ao seu recente reinado nas bilheterias.

Talvez a melhor solução para a DC fosse reiniciar seu universo, como tantas vezes fez nos quadrinhos. Usar esse recurso narrativo inclusive para apresentar novos atores e diretores, zerar histórias, começar de novo. Fazer como fizeram outras tentativas de universo compartilhado que não deram certo comercialmente, como o “monstroverso” da Universal que fechou suas produções após o fracasso de A Múmia.

Porque assim teríamos a possibilidade de ver versões convincentes no cinema para clássicos do quadrinho moderno, como Red Son, O Homem Que Tinha Tudo, A Piada Mortal, As Dez Noites da Besta, Asilo Arkham, Crise de Identidade, O Reino do Amanhã. Se a DC continuar insistindo nessa linha narrativa com esses atores e diretores inevitavelmente contemplará fiasco atrás de fiasco. À sombra cada vez mais forte da Marvel.

Ave PJ Harvey

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A deusa inglesa faz um show impecável e pode mudar o paradigma dos shows de rock no Brasil – escrevi sobre isso no meu blog no UOL.

Antes mesmo do show extra que a cantora e compositora inglesa PJ Harvey fez nessa terça-feira em São Paulo começar, os presentes sabiam que estavam prestes a testemunhar algo histórico. Não apenas o show em si, segunda vinda de uma das principais artistas contemporâneas ao Brasil, mas o contexto em que ele se encaixava, tirando o nome mais importante do meio de um festival com várias outras bandas (o Popload Festival, que acontece nesta quarta) e pondo-a em um palco mais que adequado, perfeito, para uma apresentação daquele porte. O público era veterano – numa faixa etária entre os trinta e os cinquenta – e claramente todos passaram parte considerável de suas vidas escutando som alto e indo para shows e festivais insalubres para ver seus artistas preferidos ao vivo. É uma mentalidade que tem mudado, mas fãs de rock no Brasil ainda são vistos como adolescentes que topam qualquer roubada para encarar shows que realmente querem assistir – desde pagar ingressos com valores descolados da realidade brasileira a se submeter a condições precárias e mal-ajambradas apenas para satisfazer objetivos de cunho emocional.

A situação anterior àquele show era inversa: grande parte do público sequer havia pago para assistir ao espetáculo, que em vez de cobrar dinheiro, preferiu pedir para os fãs trocarem seus ingressos por trabalhos de assistência social. Um modelo de negócios radical, uma vez que dentro do recinto não era possível ver nenhuma marca patrocinadora. E o show aconteceu num teatro que, afora uma precisa consideração de um mago moderno (“teatro de shopping é gaveta“) atendia necessidades que o público brasileiro de rock nem sabia que tinha.

A sensação era de estar num evento de gala, mesmo que o público usasse, em sua maioria, jeans, tênis e camiseta (de banda). A atmosfera poderia ser vista como sisuda ou convencional demais para um show desta natureza, mas era apenas uma sensação que vinha de décadas assistindo a shows de rock no Brasil que não levavam o público em consideração. No teatro, com lugares marcados, visibilidade perfeita, som intacto, estávamos prontos para assistir não apenas a um show de rock de uma artista importante, mas um espetáculo transcendental de uma das maiores artistas da virada do século.

Baseado em seus dois discos mais recentes (Let England Shake de 2011 e The Hope Six Demolition Project de 2015, de fortes tons políticos), o show começou com um leve atraso de quinze minutos e trouxe todos os nove músicos que a acompanham em suas apresentações no exterior: Alain Johannes, Alessandro Stefana, Enrico Gabrielli, James Johnston, Jean-Marc Butty, Kenrick Rowe, Terry Edwards, Mick Harvey e John Parish subiram ao palco enfileirados como uma banda marcial, mantendo o clima solene e cívico que embala os discos mais recentes de Polly Jean. Revezando-se entre vários instrumentos, a banda se moldava em diferentes formações, que poderiam ter quatro guitarras, três saxofones (inclusive um tocado pela cantora) ou três teclados simultâneos, uma bateria desconstruída que por vezes retomava o aspecto de banda militar (acompanhada de acordeão, flautas e violino), vocais de apoio de timbre grave que mantinham o tom patriótico da noite – o de uma pátria sem nação, sem fronteiras, cuja abordagem política era essencialmente humanista.

Todo esse altar hierático perdia seu sentido protocolar assim que PJ fazia o ar vibrar com sua voz. Sua presença magnética recolhia-se aos momentos em que se calava – ela mesma indo para trás dos músicos por diversas vezes para fazer-se coadjuvante nos trechos instrumentais -, mas bastava ela se aproximar do microfone que a tensão política se dissipava para ganhar contornos ainda mais grandiosos e a solenidade tornava-se ritual, cerimonial.

PJ Harvey não é uma diva, nem uma musa. Ela não é uma mulher num pedestal esperando ser admirada, apenas uma inspiração por sua presença irresistível. Ela é um agente de transformação, uma maestra de sentimentos que canaliza o inconsciente coletivo em suas canções. Ela também não é uma sacerdotisa num ritual pagão que converge diferentes sensações (o sagrado feminino, a majestade da canção, a tradição bretã, as dores do mundo, a resistência, o blues). Todos os nove homens que a cercam se apequenam à sua voz e a força feminina surge arrebatadora de suas cordas vocais e da forma como se movimenta no palco.

PJ Harvey é uma deusa. Toda de preto, ela encarna nossos anseios e ilusões, nossas esperanças e vontades, nossa força e inspiração em palavras cuspidas, gestos de exaltação, cantos hipnóticos, mantras celestiais, dancinhas sedutoras, letras que acertam o fígado, olhares que atravessam o público. É como se ela pudesse olhar nos olhos de todas as pessoas naquele teatro, acertar o fundo de suas almas com questões que nos esquivamos de responder. O público, completamente embevecido por sua presença catártica, assistia pasmo a um repertório concedeu poucos momentos à nostalgia (quatro músicas do século passado – “50 ft Queenie”, “The River”, “Down By the Water” e “To Bring You My Love”, todas ao final do show – e três da década passada – “Shame”, “White Chalk” e “Dear Darkness”) e reforçava a mensagem de seus discos mais recentes: que o importante é o humano, não o institucional. Que o que sobra é a civilização, não são marcas nem o dinheiro. Que deveríamos viver a cultura e a arte, sublimes, não a política e a economia, rasteiras.

Deusa de seu próprio ritual, ela se dirigiu verbalmente poucas vezes ao público (dois “obrigada” e um “minha banda” em português antes de apresentar o público), mas nem precisava falar. Sua mensagem é ela mesma, sua oração é sua presença e estávamos todos boquiabertos concordando, “amém”. E certamente parte da magia deste ritual veio das condições perfeitas de temperatura e pressão que foram apresentadas neste show que, acredito, começa a mudar o paradigma dos shows de rock no Brasil. O melhor show do ano (da década?) até aqui.