Renascença psicodélica

, por Alexandre Matias

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Em mais uma colaboração para a UBC, conversei com Dinho dos Boogarins, Bonifrate, Fábio Golfetti e Bento Araújo sobre a tradição psicodélica brasileira e como ela se manifesta na atual fase do gênero.

Uma nova onda
Bandas como Boogarins e O Terno bebem na fonte da Tropicália, de Novos Baianos e Mutantes; artistas e especialista comentam

Uma discreta renascença vem acontecendo no underground brasileiro. Puxada por bandas de rock tão diferentes – e, de alguma forma, parecidas – como os cariocas Supercordas (que, no fim de 2016, encerraram seu trabalho como grupo mas seguem em carreiras solos), os paulistanos d’O Terno e os goianos Boogarins, uma nova onda psicodélica vem se formando durante esta década que chega ao fim. Dialoga, assim, com uma tradição que remonta a mais de meio século de produção musical.

A definição deste gênero é um tanto ampla, uma vez que psicodelia não resume um certo tipo de instrumentação, um estilo musical ou uma natureza sonora específica. É claro que nasce do rock e de seu trio de instrumentos básicos – baixo, guitarra e bateria -, mas espalha-se por teclados, inclui música eletrônica, efeitos de pós-produção, noise e microfonia, diferentes formas de se cantar e até metais, madeiras e cordas.

Seu rótulo vem de um termo que nem à música está propriamente associado: o nome “psicodelia” foi cunhado pelo psicólogo inglês Humphry Osmond, que estudava drogas alucinógenas nos anos 50 e precisava de um nomenclatura para designar os efeitos de elementos químicos que alteravam a noção da percepção da realidade dos indivíduos que os utilizavam. Osmond recorreu à Grécia antiga e recuperou um termo que resumia a expressão oculta do cérebro humano, tornada pública através de tais substâncias – “psicodelia”, dizia o estudioso, “é o que a mente revela”.

O termo tornou-se popular à medida em que o uso daquelas drogas, ainda legalizadas, se expandia. Uma delas, a dietilamida do ácido lisérgico (mais conhecida pelo nome em alemão Lysergsäurediethylamid, depois reduzido à sigla LSD), tornou-se carro-chefe daquele novo movimento farmacêutico e psicólogo, liderado pelo acadêmico Timothy Leary, que aos poucos espalhava-se pela sociedade na década seguinte aos seus primeiros estudos.

À medida que experiências alucinógenas eram descritas por poetas, escritores e estudiosos, outros artistas começaram a fazer uso daquelas drogas e a expressar-se à luz daquela descoberta. Aquela nova onda de experimentações teria eco principalmente na música, quando bandas de rock em diferentes continentes começaram a explorar as fronteiras musicais do gênero. Grupos como os Beatles, Pink Floyd, Rolling Stones, Grateful Dead, Jimi Hendrix Experience, Jefferson Airplane, The Doors, Byrds e Love mudaram a paisagem musical dos anos 60.

No Brasil, o principal nome daquele período foi o grupo paulistano Mutantes, que aos poucos abriu as portas para uma nova safra de artistas que começaram a experimentar aquela nova forma de se fazer música – e não necessariamente através da utilização daquelas drogas, que começavam a ser proibidas pelos governos. A própria Tropicália tem influência psicodélica (especificamente do clássico dos Beatles neste gênero, “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, de 1967), que espalhou-se pelos discos posteriores de artistas como Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé.

Mas, além destes nomes de maior destaque, outros artistas ultra-alternativos – como Módulo 1000, A Bolha, Casa das Máquinas, Paulo Bagunça e a Tropa Maldita, Damião Experiença, Sidney Miller, Flaviola e o Bando do Sol, Os Baobás, Moto Perpétuo, A Barca do Sol, Veludo, O Bando, O Som Nosso de Cada Dia, Som Imaginário, Spectrum, Suely e Os Kantikus, Marconi Notaro, Guilherme Lamounier, Ave Sangria – ajudaram a reforçar a transformação nos anos 70.

No mesmo período, nomes como Egberto Gismonti, Luiz Carlos Vinhas, Arthur Verocai, Zé Ramalho, Pedro Santos, Marcos Valle, João Donato e até Jorge Ben Jor experimentaram aquela sonoridade, que também atingiu o grande público graças a artistas como Novos Baianos e Secos e Molhados.

Mas, a partir dos anos 70, a psicodelia brasileira tornou-se uma espécie de clube secreto, recebendo novos sócios à medida que eles lançavam discos que iam ao encontro das tendências musicais da época, como o grupo paulistano Violeta de Outono, nos anos 80, o porto-alegrense Júpiter Maçã, nos 90, e o maceioense Mopho, já nos 2000.

Líder do Violeta, o guitarrista e compositor Fabio Golfetti associa a psicodelia a uma fase de descobertas musicais na transição da adolescência à fase adulta. “A arte psicodélica está muito ligada a um lado místico e subjetivo, que sempre está em evidência”, afirma, lembrando que há também um desdobramento com a música tribal e eletrônica, que se mistura em grandes eventos por todo o mundo.

O século 21, principalmente por conta da volta dos discos de vinil e da cornucópia de MP3 que vinha pela internet, fez esta história ser redescoberta através de discos raros e esquecidos. “Creio que a conexão é total dessa garotada com o que tivemos de produção tropicalista, dos pernambucanos malucões e tal”, conta o jornalista Bento Araújo, autor de dois volumes sobre a discografia psicodélica brasileira, “Lindo Sonho Delirante: 100 discos psicodélicos do Brasil (1968-1975)” e “Lindo Sonho Delirante vol.2: 100 discos audaciosos do Brasil (1976-1985)”. “Hoje, qualquer moleque dessas bandas sabe quem foi Lula Côrtes. As referências são fortes.”

Assim, surge esta segunda onda psicodélica, quase meio século após a primeira, que reúne artistas tão diferentes – e de diversos lugares do Brasil – como os brasilienses Joe Silhueta, Almirante Shiva e Rios Voadores, os paulistas da Bike, Trupe Chá de Boldo, Rafael Castro, Garotas Suecas, Cérebro Eletrônico e Applegate, a capixaba My Magical Glowing Lens, os cariocas Tono, Castello Branco e Do Amor, os gaúchos Catavento, o pernambucano Tagore, os goianos Orquestra Abstrata e Luziluzia, além dos já citados Supercordas, Boogarins e O Terno. É uma cena musical dispersa e sem cidade de origem, mas que torna-se cada vez mais forte – além de reforçar a influência de cinquenta anos de experimentações sonoras no Brasil.

“Acho que há ondas de psicodelia na música brasileira, e algumas contribuições aparecem como que entre essas ondas, carregando uma chama daquilo numa fase não tão favorável”, descreve Pedro Bonifrate, líder do Supercordas. “A nova onda na certa é a mais rica, a meu ver. Meio que um portal que os Boogarins abriram e que encheu o ar de novos sons, novas bandas, e renovou a esperança de jovens artistas em fazer sua música ser ouvida por mais que um punhado de gente.”

Bonifrate mesmo acaba de anunciar seu próximo projeto ao lado do vocalista dos Boogarins, Dinho Almeida, uma dupla chamada Guaxe. Inevitavelmente psicodélica.

“A gente vem da onda do pessoal que teve mais facilidade pra se gravar e, a partir disso, começou a experimentar”, explica Dinho, que é guitarrista do Boogarins. “Eu já tinha banda, mas nunca tinha gravado minha banda antiga, aí eu conheci o Benke (Ferraz, outro guitarrista dos Boogarins), que já estava se gravando, de um jeito muito maluco, cheio de efeitos, que me lembrava de umas coisas que eu gostava, que faziam experimentações, como Júpiter Maçã e Mutantes. Acho que essa possibilidade de produções mais malucas dentro da música brasileira está acontecendo. Vários discos que não são psicodélicos têm sons bacanas e gente tentando experimentar. Essa é a maior força disso que chamam de nova psicodelia, o ponto mais positivo é essa onda de inovação e experimentação, independente de ser psicodélico ou não.”

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