Aristides Guimarães (1945-2023)

Um dos fundadores de um dos principais focos de experimentação artística da cena psicodélica pernambucana do início dos anos 70, Aristides Guimarães morreu vítima de um infarto fulminante na última quinta-feira de 2023. Um dos fundadores do Laboratório de Sons Estranhos, que realizava happenings hippies que funcionavam como um contraponto ao tropicalismo baiano-paulista, Aristides era um grande agitador cultural daquele período e, além da música, também era artista plástico.

Genealogia psicodélica brasileira

Pesado esse show que a Bike fez com o Tagore nessa terça-feira no Centro da Terra, enfileirando hits da lisergia brasileira que colocava os dois artistas num cânone viajandão que enfileirava Arnaldo Baptista solo (LSD), Pedro Santos (“Um Só”), Cérebro Eletrônico (“Pareço Moderno”), Júpiter Maçã (“Um Lugar do Caralho”), Fábio (“Lindo Sonho Delirante”), Tom Zé (“Parque Industrial”) e Violeta de Outono (“Declínio de Maio”), entre outros clássicos da música psicodélica brasileira, todos rearranjados com muito peso, microfonia e ritmo, cortesia da química entre os integrantes da banda paulista. O ápice da apresentação foi quando o grupo soltou Tagore em cima de dois hinos do udigrudi nordestino, quando emendou “Vou Danado pra Catende” de Alceu Valença com “Nas Paredes da Pedra Encantada Os Segredos Talhados por Sumé” do mitológico Paebirú, de Zé Ramalho e Lula Côrtes, que contou com uma interpretação possessa do vocalista pernambucano.

Assista aqui:  

Bike + Tagore: MPB ou LSD?

Artistas contemporâneos e da mesma árvore genealógica, embora cada um nascido num canto do país, Bike e Tagore já estiveram juntos outras vezes, mas pela primeira vez criam um espetáculo em parceria, quando se reuniram para apresentar MPB ou LSD?, uma apresentação que funciona como uma jornada à alma psicodélica da música brasileira, cruzando os mares lisérgicos desde os tempos dos Mutantes, passando pelo udigrudi pernambucano dos anos 70, os experimentos paulistanos dos anos 80, o ácido rock gaúcho dos anos 90 e a cena retropsicodélica da qual fazem parte neste século. Essa viagem começa pontualmente às 20h desta terça-feira e os ingressos podem ser comprados neste link.

Expandindo as fronteiras da psicodelia nordestina

“Aqui é o Centro da Terra, a gente pode saltar”, comemorou Alessandra Leão após um das muitas piruetas musicais no escuro que se propôs ao lado de Rafa Barreto com sua banda Punhal de Prata (“não é duo, é banda!”, esbravejou a pernambucana), que retomou as atividades nesta terça-feira. Criado para celebrar os primeiros discos de Alceu Valença, o Punhal ampliou seu repertório ao incluir canções de outros autores contemporâneos daquela safra de discos, incluindo canções de Zé Ramalho, Cátia de França e Ave Sangria, e nesta primeira apresentação convidou Bella, Thiago Nassif e Fernando Catatau para explorar estas novas fronteiras musicais – foi a primeira vez inclusive que Alessandra e Fernando dividiram o palco! Primeiro tocando com cada um dos convidados para encerrar a apresentação com “A Dança das Borboletas” de Zé Ramalho, com todos no palco, Alessandra e Bella entrelaçando efeitos enquanto Nassif, Catatau e Barreto empinavam suas guitarras no céu. E semana que vem tem mais…

Assista aqui.  

Renascença psicodélica

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Em mais uma colaboração para a UBC, conversei com Dinho dos Boogarins, Bonifrate, Fábio Golfetti e Bento Araújo sobre a tradição psicodélica brasileira e como ela se manifesta na atual fase do gênero.

Uma nova onda
Bandas como Boogarins e O Terno bebem na fonte da Tropicália, de Novos Baianos e Mutantes; artistas e especialista comentam

Uma discreta renascença vem acontecendo no underground brasileiro. Puxada por bandas de rock tão diferentes – e, de alguma forma, parecidas – como os cariocas Supercordas (que, no fim de 2016, encerraram seu trabalho como grupo mas seguem em carreiras solos), os paulistanos d’O Terno e os goianos Boogarins, uma nova onda psicodélica vem se formando durante esta década que chega ao fim. Dialoga, assim, com uma tradição que remonta a mais de meio século de produção musical.

A definição deste gênero é um tanto ampla, uma vez que psicodelia não resume um certo tipo de instrumentação, um estilo musical ou uma natureza sonora específica. É claro que nasce do rock e de seu trio de instrumentos básicos – baixo, guitarra e bateria -, mas espalha-se por teclados, inclui música eletrônica, efeitos de pós-produção, noise e microfonia, diferentes formas de se cantar e até metais, madeiras e cordas.

Seu rótulo vem de um termo que nem à música está propriamente associado: o nome “psicodelia” foi cunhado pelo psicólogo inglês Humphry Osmond, que estudava drogas alucinógenas nos anos 50 e precisava de um nomenclatura para designar os efeitos de elementos químicos que alteravam a noção da percepção da realidade dos indivíduos que os utilizavam. Osmond recorreu à Grécia antiga e recuperou um termo que resumia a expressão oculta do cérebro humano, tornada pública através de tais substâncias – “psicodelia”, dizia o estudioso, “é o que a mente revela”.

O termo tornou-se popular à medida em que o uso daquelas drogas, ainda legalizadas, se expandia. Uma delas, a dietilamida do ácido lisérgico (mais conhecida pelo nome em alemão Lysergsäurediethylamid, depois reduzido à sigla LSD), tornou-se carro-chefe daquele novo movimento farmacêutico e psicólogo, liderado pelo acadêmico Timothy Leary, que aos poucos espalhava-se pela sociedade na década seguinte aos seus primeiros estudos.

À medida que experiências alucinógenas eram descritas por poetas, escritores e estudiosos, outros artistas começaram a fazer uso daquelas drogas e a expressar-se à luz daquela descoberta. Aquela nova onda de experimentações teria eco principalmente na música, quando bandas de rock em diferentes continentes começaram a explorar as fronteiras musicais do gênero. Grupos como os Beatles, Pink Floyd, Rolling Stones, Grateful Dead, Jimi Hendrix Experience, Jefferson Airplane, The Doors, Byrds e Love mudaram a paisagem musical dos anos 60.

No Brasil, o principal nome daquele período foi o grupo paulistano Mutantes, que aos poucos abriu as portas para uma nova safra de artistas que começaram a experimentar aquela nova forma de se fazer música – e não necessariamente através da utilização daquelas drogas, que começavam a ser proibidas pelos governos. A própria Tropicália tem influência psicodélica (especificamente do clássico dos Beatles neste gênero, “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, de 1967), que espalhou-se pelos discos posteriores de artistas como Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé.

Mas, além destes nomes de maior destaque, outros artistas ultra-alternativos – como Módulo 1000, A Bolha, Casa das Máquinas, Paulo Bagunça e a Tropa Maldita, Damião Experiença, Sidney Miller, Flaviola e o Bando do Sol, Os Baobás, Moto Perpétuo, A Barca do Sol, Veludo, O Bando, O Som Nosso de Cada Dia, Som Imaginário, Spectrum, Suely e Os Kantikus, Marconi Notaro, Guilherme Lamounier, Ave Sangria – ajudaram a reforçar a transformação nos anos 70.

No mesmo período, nomes como Egberto Gismonti, Luiz Carlos Vinhas, Arthur Verocai, Zé Ramalho, Pedro Santos, Marcos Valle, João Donato e até Jorge Ben Jor experimentaram aquela sonoridade, que também atingiu o grande público graças a artistas como Novos Baianos e Secos e Molhados.

Mas, a partir dos anos 70, a psicodelia brasileira tornou-se uma espécie de clube secreto, recebendo novos sócios à medida que eles lançavam discos que iam ao encontro das tendências musicais da época, como o grupo paulistano Violeta de Outono, nos anos 80, o porto-alegrense Júpiter Maçã, nos 90, e o maceioense Mopho, já nos 2000.

Líder do Violeta, o guitarrista e compositor Fabio Golfetti associa a psicodelia a uma fase de descobertas musicais na transição da adolescência à fase adulta. “A arte psicodélica está muito ligada a um lado místico e subjetivo, que sempre está em evidência”, afirma, lembrando que há também um desdobramento com a música tribal e eletrônica, que se mistura em grandes eventos por todo o mundo.

O século 21, principalmente por conta da volta dos discos de vinil e da cornucópia de MP3 que vinha pela internet, fez esta história ser redescoberta através de discos raros e esquecidos. “Creio que a conexão é total dessa garotada com o que tivemos de produção tropicalista, dos pernambucanos malucões e tal”, conta o jornalista Bento Araújo, autor de dois volumes sobre a discografia psicodélica brasileira, “Lindo Sonho Delirante: 100 discos psicodélicos do Brasil (1968-1975)” e “Lindo Sonho Delirante vol.2: 100 discos audaciosos do Brasil (1976-1985)”. “Hoje, qualquer moleque dessas bandas sabe quem foi Lula Côrtes. As referências são fortes.”

Assim, surge esta segunda onda psicodélica, quase meio século após a primeira, que reúne artistas tão diferentes – e de diversos lugares do Brasil – como os brasilienses Joe Silhueta, Almirante Shiva e Rios Voadores, os paulistas da Bike, Trupe Chá de Boldo, Rafael Castro, Garotas Suecas, Cérebro Eletrônico e Applegate, a capixaba My Magical Glowing Lens, os cariocas Tono, Castello Branco e Do Amor, os gaúchos Catavento, o pernambucano Tagore, os goianos Orquestra Abstrata e Luziluzia, além dos já citados Supercordas, Boogarins e O Terno. É uma cena musical dispersa e sem cidade de origem, mas que torna-se cada vez mais forte – além de reforçar a influência de cinquenta anos de experimentações sonoras no Brasil.

“Acho que há ondas de psicodelia na música brasileira, e algumas contribuições aparecem como que entre essas ondas, carregando uma chama daquilo numa fase não tão favorável”, descreve Pedro Bonifrate, líder do Supercordas. “A nova onda na certa é a mais rica, a meu ver. Meio que um portal que os Boogarins abriram e que encheu o ar de novos sons, novas bandas, e renovou a esperança de jovens artistas em fazer sua música ser ouvida por mais que um punhado de gente.”

Bonifrate mesmo acaba de anunciar seu próximo projeto ao lado do vocalista dos Boogarins, Dinho Almeida, uma dupla chamada Guaxe. Inevitavelmente psicodélica.

“A gente vem da onda do pessoal que teve mais facilidade pra se gravar e, a partir disso, começou a experimentar”, explica Dinho, que é guitarrista do Boogarins. “Eu já tinha banda, mas nunca tinha gravado minha banda antiga, aí eu conheci o Benke (Ferraz, outro guitarrista dos Boogarins), que já estava se gravando, de um jeito muito maluco, cheio de efeitos, que me lembrava de umas coisas que eu gostava, que faziam experimentações, como Júpiter Maçã e Mutantes. Acho que essa possibilidade de produções mais malucas dentro da música brasileira está acontecendo. Vários discos que não são psicodélicos têm sons bacanas e gente tentando experimentar. Essa é a maior força disso que chamam de nova psicodelia, o ponto mais positivo é essa onda de inovação e experimentação, independente de ser psicodélico ou não.”

Tudo Tanto #49: Psicodelia de Natal

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Bati um papo com Bento Araújo, do Poeira Zine, sobre o novo volume de seu livro Lindo Sonho Delirante na minha coluna Tudo Tanto desta semana – e fica a dica como presente de Natal para quem gosta de música brasileira – leia aqui.

50 anos de Disraeli Gears

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Escrevi no meu blog no UOL sobre o disco psicodélico do Cream, que completa meio século de vida nesta quinta.

Se hoje a psicodelia inglesa parece indissociável do blues elétrico é porque houve um momento em que essas duas correntes musicais – antes dispersas e alheias – se encontraram. E este encontro aconteceu exatamente há meio século, quando o Cream, o primeiro supergrupo da história do rock, lançou seu segundo álbum, Disraeli Gears, no dia 2 de novembro de 1967. Foi o disco que mostrou a toda uma geração de jovens músicos ingleses que a devoção para com a música norte-americana de décadas anteriores poderia ajudá-los a reinventar o próprio cenário musical contemporâneo sem ser saudosista e atingindo um público menos elitista e selecionado do que a panelinha que eles formavam.

Até a metade dos anos 60, a Inglaterra vivia anos de descoberta da música que vinha dos Estados Unidos, quando a geração nascida após a Segunda Guerra Mundial deu as costas para a produção cultural nativa para descobrir o que acontecia do outro lado do Atlântico, curiosidade desperta pela explosão do rock’n’roll na década anterior. A safra de artistas liderada por Elvis Presley, Chuck Berry, Buddy Holly, Little Richard e Jerry Lee Lewis havia atiçado novos ouvintes a buscar artistas que iam além da parada de sucessos norte-americana e aos poucos vários adolescentes ingleses começavam a se interessar por discos e músicas que não tinham um grande público em seu país – especificamente a geração de artistas do blues urbano, que levavam os ensinamentos do blues rural criado nas plantações de algodão na virada do século 19 para o 20 para as grandes cidades. Nomes como Muddy Waters, Little Walter, B.B. King, John Lee Hooker, Willie Dixon, Bo Diddley, Junior Wells e Elmore James haviam pavimentado o caminho para que o rock’n’roll pudesse ganhar as massas ao eletrificar o velho blues, criando um subgênero batizado de rhythm’n’blues.

A explosão dos Beatles – primeiro na Inglaterra e depois nos EUA – fez este interesse ganhar ainda mais força e logo uma série de bandas surgiam reinterpretando clássicos da música norte-americana ou fazendo versões próprias daqueles rhythm’n’blues. A primeira safra, contemporânea dos Beatles, apresentava novas bandas como os Rolling Stones, Animals, Hollies, Them e Herman’s Hermits que miravam nas paradas de sucesso e num público jovem. A segunda leva de artistas, no entanto, tinha preocupações estéticas além de comerciais e dividia-se em dois grupos. O primeiro deles eram os mods, inspirados pela soul music dos EUA e pela moda do continente europeu, que eram puxados por grupos estilosos como o Who, os Kinks, Creation, Action e os Small Faces. O segundo era formado por artistas que bebiam diretamente na fonte do blues, como o músico Alexis Korner (o pioneiro desta geração), os Yardbirds, os Bluesbreakers liderados por John Mayall e a Graham Bond Organisation, que eram mais especialistas e puristas em relação à música comercial de seus contemporâneos. Esta cena começou a se desfazer – ou melhor, a se metamorfosear – à medida em que os Yardbirds, sua banda-símbolo, abraçou as paradas de sucesso nos EUA com seu single “For Your Love”.

Foi o momento em que seu guitarrista e principal arma secreta, o jovem Eric Clapton, deixou a banda por ela ter se tornado comercial demais. Tocou um tempo com outras bandas e lançou um disco com os Bluesbreakers de John Mayall ao mesmo tempo em que adubava sua reputação como o principal guitarrista de sua geração. Mas não queria lançar-se em carreira solo e logo que ficou sabendo que o baterista Ginger Baker havia deixado a Graham Bond Organisation pelas brigas constantes com o fundador que batizava a banda, convidou-o para formar um novo grupo. A única condição era que ele conseguisse tirar o baixista Jack Bruce de seu grupo anterior, com quem Baker também vivia brigando. Mas o baterista deixou seu ego de lado (coisa difícil se lembrarmos que ele foi um dos primeiros bateristas de rock a tocar com dois bumbos – onde escrevia seu nome nos próprios instrumentos, em vez de dispor o nome da banda, como era o padrão) e logo os rumores corriam por Londres: que três dos maiores músicos daquela cena de blues elétrico estavam tocando juntos. O nome de batismo foi apresentado em seguida sem nenhuma modéstia: era o Cream – “a nata”.

Ginger Baker, Jack Bruce e Eric Clapton

Ginger Baker, Jack Bruce e Eric Clapton

O primeiro disco, Fresh Cream, lançado em dezembro de 1966, mostrou para a cena e para o público os rumos que poderiam ser traçados, principalmente ao ampliar o leque de composições para além do blues. Havia, claro, standards do gênero como as versões definitivas para “Spoonful” (de Willie Dixon), “Four Until Late” (de Robert Johnson), “Rollin’ and Tumblin”‘ (eternizada por Muddy Waters) e “I’m So Glad” (de Skip James), mas ia para o lado da canção pop em números inusitados como “Dreaming”, “Sleepy Time Time”, “I Feel Free”, “Toad” (do primeiro solo de bateria da história do rock) e do single “Wrappin’ Paper”. Eles aproveitavam a aura de supergrupo para experimentações musicais, mas sem levar em conta outro grande movimento cultural que acontecia em Londres: a psicodelia.

A psicodelia começa na Califórnia por descendência dos beats, que apresentaram o LSD para uma cena que mais tarde pariria bandas como Grateful Dead, Jefferson Airplane e os Doors, mas também a partir de artistas de rock que começaram a experimentar novas sonoridades, como os experimentos musicais dos Beach Boys em Pet Sounds ou a aproximação dos Byrds da música indiana no single “Eight Miles High”. Estas experimentações eram percebidas na Inglaterra e ecoadas de forma bem particular principalmente por dois grupos: os Beatles, que começavam a desconstruir a imagem de boy band que ficou associada a eles durante a Beatlemania, e o Pink Floyd, cujo líder, o guitarrista e vocalista Syd Barrett, afastava seu instrumento o mais distante possível do blues (apesar de ter batizado a banda em homenagem a dois nomes do gênero, Pink Anderson e Floyd Council). As duas bandas gravaram seus discos mais psicodélicos no primeiro semestre de 1967 lado a lado, os Beatles gravando seu Sgt. Pepper’s no estúdio 2 de Abbey Road e o Pink Floyd gravando seu Piper at the Gates of Dawn no estúdio 1. Ambos foram impactados por outro evento considerado histórico para a época: a chegada de Jimi Hendrix à Inglaterra, que resultou em seu influente disco de estreia, Are You Experienced?, lançado naquele mesmo ano.

O Cream foi influenciado diretamente por Hendrix e até mesmo Eric Clapton, que já era incensado nas ruas com o pixo “Clapton is God” (“Clapton é Deus”) que aparecia nas ruas de Londres, admitia ter sido impactado pela vinda do guitarrista norte-americano à Londres pré-psicodélica. Tanto que o grupo resolveu fazer o caminho inverso de Jimi e gravou seu segundo disco em Nova York, no mesmo semestre que os Beatles e o Pink Floyd gravavam suas obras-primas em Londres, mas problemas com a gravadora fizeram que Disraeli Gears fosse lançado quase no final daquele ano, parecendo que ele havia sido influenciado pelos discos destes artistas, que saíram depois que o segundo disco do Cream já havia sido gravado.

A principal mudança no tom do grupo era justamente esta aceitação psicodélica, que vinha sendo conduzida pelo produtor Felix Pappalardi, baixista que mais tarde fundaria o clássico grupo Mountain. Foi ele que percebeu que a banda poderia ir para muito além do blues elétrico pesado e experimentar canções pop meio fora da curva que pudessem se encaixar com o já consagrado instrumental do grupo. O melhor exemplo de sua influência é a música que abre o disco, “Strange Brew”. Ela é basicamente outra faixa do Cream, “Lawdy Mamma” (que seria registrada no disco seguinte, o duplo Wheels of Fire), com outra linha vocal, fora do estereótipo blues e bem mais pop.

“Strange Brew” é apenas uma das músicas que mostram o Cream indo para além do que poderia ser uma amarra estética definitiva para o grupo. Em vez de manter o grupo dentro do cercado do blues pesado, Felix, que agia quase como um quarto integrante do grupo, instigava os músicos a ir para rumos lugares musicais fazendo canções como “Swlabr”, “World of Pain”, “We’re Going Wrong”, “Dance the Night Away” e “Tales of Brave Ulysses” soarem quase experimentais, mas sem perder o pé na química instrumental do grupo: a bateria agressiva e precisa de Baker, os solos melancólicos e riffs rasgados (com o pé fundo no pedal wah-wah) de Clapton e os vocais doces e linhas de baixo complexas de Jack Bruce chegam ao ápice da banda, criando um assinatura musical única, fazendo Disraeli Gears soar como poucos discos na história do rock.

O melhor exemplo é, claro, sua faixa mais emblemática, o hino “Sunshine of Your Love” que Eric Clapton tem que tocar até hoje. Composta por Bruce no baixo acústico, a faixa teve seu andamento indígena sugerido pelo engenheiro Tom Dowd e o solo de Clapton inspirado em “Blue Moon”, trazendo elementos de fora do blues que era associada a banda para compor uma das melhores canções da história do rock.

Depois de Disraeli Gears, o grupo lançou o já citado duplo Wheels of Fire no ano seguinte – com um dos discos ao vivo com apenas quatro faixas (duas delas com dezesseis minutos) dando pistas de que a autoindulgência poderia estar pondo o futuro da banda em risco – e terminou consciente de seu fim com o pálido disco Goodbye, de 1969, com faixas gravadas pouco antes da última turnê, no ano anterior. Nenhum destes discos chegava aos pés do impacto do disco que completa 50 anos hoje, um dos grandes álbuns dos anos 60 e da discografia de Eric Clapton, que só conseguiria ultrapassá-lo em outra obra-prima com outro grupo, três anos depois, quando gravou Layla and Other Assorted Love Songs ao lado dos Derek and the Dominos, depois de experimentar com o Blind Faith e o casal Delaney & Booney voltando de vez para o blues elétrico. Mas nem Clapton, nem Bruce ou Baker voltariam a viajar tão alto quanto no segundo disco que lançaram como Cream.

Psicodelia visual

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O episódio mais recente de Twin Peaks levou a série para perto de Júpiter, como nos lembram esses mashups que eu publiquei no meu blog no UOL.

Ainda estamos sentindo os primeiros tremores do espasmo sensorial que foi o oitavo episódio da terceira temporada de Twin Peaks – enquanto alguns tentam decifrar os códigos deixados nas entrelinhas e outros buscam o sentido metafísico em relação ao resto do seriado, muitos deixam-se levar pelo simples aspecto lúdico da exposição ao imaginário sombrio e transcendental de David Lynch e os primeiros filhotes já começam a surgir em forma de paródias, remixes e memes. Um dos melhores até agora é esse incrível mashup entre a deslumbrante cena da primeira bomba atômica ao som de “Echoes”, do Pink Floyd, na versão que o grupo tocou ao vivo em um teatro de arena nas ruínas da cidade de Pompéia, na Itália. Preciso dizer que há spoilers da série para quem não viu o episódio? Tudo bem, está dito:

Não é a primeira vez que “Echoes” se mistura a uma cena imediatamente clássica, deslumbrante e psicodélica. Os fãs do Pink Floyd devem reconhecer essa superposição genial entre a música que ocupa todo o lado B do disco Meddle e o terceiro ato do épico existencial de Stanley Kubrick, 2001 – Uma Odisséia no Espaço.

E é claro que iriam fazer o caminho de volta, recriando a cena do episódio histórico de Twin Peaks com a trilha sonora do clássico da ficção científica de Kubrick, “Réquiem para Soprano, Mezzo-Soprano, Dois Corais Mistos e Orquestra”, do compositor húngaro György Ligeti:

Já foi comentado o grau de parenteso entre as duas cenas e a trilha sonora utilizada por Lynch em sua cena original, a tensa “Threnody to The Victims of Hiroshima” do compositor polonês Krzysztof Penderecki já havia sido usada pelo próprio Kubrick em outro de seus clássicos, o filme de horror psicológico O Iluminado, de 1980. É uma composição de tirar o fôlego:

Ainda estou digerindo o episódio e devo escrever sobre seu significado em relação ao resto da série em breve.

Psicodelia brasileira clássica

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A psicodelia brasileira é um gênero bem específico da música lisérgica mundial que pouco a pouco ergue-se como um cânone de respeito. Se antes ela era referida basicamente pela obra dos Mutantes e da psicodelia naïf dos discos de Ronnie Von, hoje ela já responde por um volume de artistas e discos que, em sua maioria desconhecidos do grande público, formam a base de uma tradição sólida dentro da cultura brasileira. Se antes eram bicho grilos doidões tocando som alto, hoje respondem por uma linguagem e uma estética própria, bem definida e completamente brasileira.

Esta é a constatação ao ler o ótimo Lindo Sonho Delirante – 100 discos psicodélicos do Brasil (1968-1975), livro bilíngue escrito pelo Bento Araujo, editor do já clássico Poeira Zine, bravo foco de resistência do jornalismo musical impresso no Brasil. Com o foco original em resumir a cronologia brasileira a cem discos, ele teve de optar por limitar-se ao período da psicodelia original, entre 1968 e 1975. Conversei com ele sobre o livro, que pode ser comprado no site do Poeira Zine com frete gratuito.

Antes de falar do livro, queria que você contasse um pouco sobre o Poeira Zine – como ele começou, como ele se sustenta, como tem crescido e, enfim, como ele te fez se aproximar do assunto do livro.
A Poeira Zine é um fanzine independente sobre música que eu edito há treze anos. Na verdade a pZ está hibernando atualmente, pois em abril deste ano eu interrompi – temporariamente – a sua produção bimestral para me dedicar 100% ao livro. A publicação se manteve principalmente graças aos fieis leitores e assinantes e aos anunciantes, que são lojas de discos. A publicação começou da necessidade de falar sobre bandas e artistas que ninguém falava no Brasil e, com os anos, foi natural todo aquele contingente de informação abrir caminhos para o livro.

Como surgiu a ideia de transformar esta fase em um livro?
Costumo dizer que esse livro na verdade começou por volta de 1999, quando eu trabalhava na loja de discos Nuvem Nove, e descobri os discos psicodélicos do Ronnie Von. Luiz Calanca havia dado a dica e ficamos malucos. Na mesma época saiu o Tecnicolor dos Mutantes e aquela mítica Bizz com eles na capa e um pouco da história da psicodelia nacional. Desde então fiquei com isso na cabeça e passei a estudar o assunto. De dois anos pra cá eu decidi colocar o livro em prática, pra valer. Aquela palestra que eu assisti com o Fernando Rosa, organizada por você, também me ajudou na fase final do livro, fechando uma linha de raciocínio que eu comento na introdução.

Quando você determinou o escopo do livro? A ideia sempre foi falar deste primeira fase apenas?
Não, o intuito original era abordar a cena psicodélica brasileira como um todo, dos primórdios até hoje. Obviamente o lance saiu do controle… Então precisei parar em 1975 para ter os 100 discos desta “primeira fase”.

A ideia do livro sempre foi viabiliza-lo via crowdfunding? Como foi sua experiência no processo?
Sim, isso foi prioridade. Durante a minha carreira, eu passei pela experiência de oferecer livros para algumas editoras, mas geralmente o que eles oferecem ao autor é quase uma ofensa. Então, desde sempre, o crowdfunding me pareceu a melhor opção. Como eu vinha de mais de uma década trabalhando totalmente independente com a pZ, a base estava criada. A experiência foi bem bacana, estudei bastante a ferramenta e foi prazeroso. Em dez dias a meta inicial foi batida e foi quase dobrada ao final da campanha. Fiquei bem feliz.

O livro é bilíngue porque há um interesse estrangeiro por essas informações ou você acha que é preciso divulgá-las ainda mais?
As duas coisas. A demanda é grande lá fora, até maior que no Brasil, mas acho que ainda há um enorme terreno a ser percorrido.

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Você comenta na introdução do livro que foi na virada dos anos 90 para o século 21 que a psicodelia brasileira se reconheceu como cânone – e de lá pra cá é muito mais fácil identificar e reconhecer grupos e discos psicodélicos, mesmo que não necessariamente façam referência a esta primeira fase. Mas entre essas duas – a original e a atual – o que foi produzido de psicodelia no Brasil? Um volume 2 do livro, que abrange entre 1975 e 1996 (ano do Sétima Efervescência) conseguiria reunir 100 discos?
Certamente, acho que seria possível esse recorte em um segundo volume. No final da década de 70, e até mesmo pelos anos 80, existiu uma grande cena – ainda obscura – de folk psicodélico, com nomes como Quintal de Clorofila, etc. Isso sem contar outros grandes grupos psicodélicos, como o Violeta de Outono, etc.

Você está pensando em fazer um volume 2?
É uma ideia que me ocorre constantemente, mas no momento estou pensando apenas em surfar essa onda gerada pelo “volume 1”.

Quais são suas bandas psicodélicas brasileiras favoritas – de hoje e de sempre? E o grande disco psicodélico brasileiro, aquele que você apresenta tanto pro discófilo que desconhece essa cena quanto para o ouvinte iniciante em geral? E o seu disco psicodélico de cabeceira?
As favoritas são Mutantes, Liverpool, Ave Sangria, Som Nosso – mais chamado de prog, mas com temática totalmente lisérgica. Quanto ao disco, é o Paêbirú: o discófilo pira com a raridade e a história, o gringo fica maluco com a música e a temática, e o iniciante já tem a letra se vai segurar a barra da viagem, ou não. Já o meu disco psicodélico de cabeceira, eu fico entre Forever Changes, do Love, e Odessey and Oracle, dos Zombies.

O livro tem um potencial de virar algo audiovisual – uma série de vídeos sobre cada disco, um documentário e até uma ficção. Você já cogitou ou foi procurado para fazer isso?
Sim, são ideias que andam orbitando também. Algumas produtoras me procuraram e estamos estudando a melhor maneira de viabilizar algo do tipo. Tem também a parte das aulas, cursos, encontros e workshops, que eu curto bastante, como o que está rolando no Sesc. O mais bacana é contar essa história e trazer sempre um convidado que viveu aquilo tudo.

Dentro da mente de Júpiter Maçã

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“No ano retrasado fui assistir a um show do Júpiter em São Paulo e, depois do show, ficamos conversando e eu sugeri a ele que fizesse um livro, exatamente por conta da qualidade das letras das músicas dele, que eu acho extremamente originais, criativas e escrachadas”, me conta o músico gaúcho Juli Manzi, conterrâneo do mito psicodélico brasileiro, que acaba de lançar, como ele mesmo diz, uma “autobiografia fictícia” de Júpiter Maçã chamada A Odisseia: Memórias e Devaneios de Jupiter Apple, que já está à venda pela Azougue Editorial (dá para comprar no site da editora por aqui).

“Ele me respondeu dizendo que sempre quis escrever um livro contando a história da vida dele, e que estava procurando um ghost writer para fazê-lo”, continua o autor do livro. “Me deu um longo abraço e disse ‘senti uma energia boa nos meus chakras’, assim começou a nossa parceria. Poucas semanas depois, começamos a trabalhar. Quando ele iniciou a contar sua história dizendo que o Mick Jagger e o Keith Richards estiveram na sua maternidade, eu logo entendi qual era a pegada do livro.”

Júpiter, que morreu no final do ano passado, foi um personagem crucial na consolidação tanto da psicodelia brasileira quanto do rock gaúcho na virada do século passado para o atual e era conhecido tanto por um indefectível senso melódico, por sua maestria multiinstrumental, pelo humor boca suja e por uma noção épica de sua própria importância, principal característica do livro, costurado a partir de papos entre biógrafo e biografado que somam mais de 30 horas de conversa. “É um material fabuloso, que subsidiou o livro”, explica.

Júpiter Maçã e  Juli Manzi

Júpiter Maçã e Juli Manzi

“Chamamos o livro de uma autobiografia ficcional porque toma os episódios da vida dele como pontos de partida para novos saltos criativos, recheados de muito bom humor e inventividade, que eram marcas registradas do Júpiter”, resume Manzi, que convidou o músico e discípulo de Júpiter Tatá Aeroplano para escrever a apresentação do livro, reproduzida com exclusividade aqui no Trabalho Sujo, leia abaixo:

Impossível me esquecer do dia em que comprei meu exemplar do clássico A Sétima Efervescência na Baratos Afins… Voltei pra casa a pé como de costume… Pré-Internet… Eu não tinha a mínima ideia do que ia encontrar pela frente… Coloquei o disco pra rolar… “Um Lugar do Caralho”… E meu roommate apareceu na sala dizendo: “– QUE PORRA É ESSA!?”, com uma das melhores caras que eu vi ele fazer em toda minha vida. Disse ao “Paul”: “– Isso é JÚPITER MAÇÔ.

A Sétima foi um dos alumbramentos mais lindos e psicodélicos que eu tive… E na sequência veio o Plastic Soda, outra pedrada do man… Acabamos amigos, fizemos o média-metragem Apartment Jazz… E fizemos algumas festas que duraram alguns dias… O meu amigo “Paul”, apelidado carinhosamente pelo Júpiter, chegou a achar que a gente andava transando alguma droga muito poderosa pra ficar tantos dias ligados no 220v ouvindo som na sala… Era só música o tempo inteiro saindo de uma caixa mono, papos transcendentais, café e alguns drinks… A gente escutava os discos dos Beatles e Stones sempre duas vezes… Por conta do som sair em mono… A gente mudava o cabo e fazia outra audição.

O Flavio Basso tinha esse magnetismo incrível… Era de outro tempo… Outra existência. A gente conversava sobre tudo… Eram madrugadas de alta filosofia… Ele abrigava um universo maravilhoso dentro daquela cachola.

Em A Odisseia estão registradas histórias loucas que o man viveu e imaginou, algumas ele me contou enquanto tomávamos o power coffe da três da matina… Outras fiquei sabendo lendo esse delicioso livro…

Tá tudo aqui. Sua ironia fina, sua gargalhada esparramada. Saudades, man