Um quarto de século sem o Doutor Charles Zambohead
No dia 2 de fevereiro de 1997, Chico Science deixava este plano para abraçar a imortalidade. E para lembrar do mestre nestes 25 anos sem ele, conversei com Jorge Du Peixe, Lúcio Maia, Paulo André e H.D. Mabuse, todos amigos de longa data e chapas na construção da utopia que foi o mangue beat, sobre a importância do mangueboy original para nossa música, em mais uma colaboração para o site da CNN Brasil.
O que seria da música brasileira sem Chico Science, que morreu há 25 anos
Velhos amigos e companheiros de banda lembram da importância do líder da Nação Zumbi
Não é exagero dizer que Chico Science, que faleceu há 25 anos, no dia de Iemanjá de 1997, mudou a cara da música brasileira no final do século passado. O país que emergiu da ditadura militar iniciada em 1964 ainda tinha uma série de questões em relação à sua própria identidade cultural e uma autoestima baixa sobre seu próprio rumo.
E por mais que todos os artistas que emergiram nos anos 1990 de alguma forma tocassem neste nervo, nenhum deles foi tão incisivo quanto o pai do mangue beat.
“Ele tinha uma coisa que era a coragem de se assumir, de se dizer brasileiro, de querer ser pernambucano, e numa época em que o Brasil precisava muito disso”, lembra Lúcio Maia, guitarrista da Nação Zumbi e amigo de Chico desde a adolescência, mesmo que tivessem cinco anos de diferença de idade.
“A gente saiu dos anos 1980 de uma época em que as bandas brasileiras se comparavam com bandas estrangeiras, dizendo que era o Police brasileiro, os Smiths brasileiros. Chico vinha na contramão disso e se autoafirmava como sendo o que era.”
Misturando as alfaias – os tambores do maracatu – à guitarra psicodélica de Lúcio, o baixo com notas de funk e reggae de Alexandre Dengue e ao jeito de cantar que remetia tanto ao canto nordestino, ao vocal falado do repente, aos puxadores de samba e aos MCs do hip hop, Chico Science entortou o pop brasileiro do início dos anos 1990 quando colidiu os extremos da cultura brasileira e estrangeira de forma bem mais contundente que a Tropicália 30 anos antes.
“A contribuição de Chico pra música brasileira como um todo está ligada à sua capacidade de remixar e recombinar uma série de elementos que durante muito tempo ficaram separados”, emenda H.D. Mabuse, velho companheiro de mangue beat que apresentou a Chico Science conceitos de tecnologia digital antes mesmo de se tornarem populares, bem na virada dos anos 1980 para os anos 1990, antes mesmo da popularização da world wide web.
Mabuse, que depois foi um dos arquitetos do coletivo eletrônico Re:Combo e hoje é consultor e pesquisador do centro de inovação Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (César), esteve presente em momentos-chave da história do mangue beat, além de integrar um dos primeiros projetos musicais de Science, o trio Bom Tom Rádio, em que misturavam pós-punk, hip hop e música eletrônica ao lado de outro amigo de longa data de Chico, Jorge Du Peixe.
“Essa capacidade vai para além do mais óbvio, que é a questão instrumental, que puxa um elemento forte de tradição – o peso da alfaia, instrumento que ele chama pra tomar o lugar dos tambores do afro-reggae, que tinham outras particularidades – para colocar ao lado dos samples e das guitarras que fizeram parte desde sempre da vida dele, com seus irmãos, que ouviam Deep Purple.”
“Ele entendia que não era só a música e mas também a performance e a forma como ele se apresentava a qualquer momento, ele tinha consciência de sua própria imagem pública”, continua o professor. “Chico fazia com que tudo mantivesse sua própria identidade particular, você ouve a ancestralidade de cada uma das coisas, seja na guitarra psicodélica ou nas alfaias.”
Paulo André Pires, amigo de longa data de Chico e primeiro empresário da Nação Zumbi, reforça outro aspecto: a questão territorial. “Desde os anos 1970, tanto o nordeste quanto a região norte parou de ser referência para a música brasileira, não tinha nada mais fresco e contemporâneo – a não ser movimentos de turma, como a axé music e a primeira geração do forró eletrônico. Ele mostrou que dava para reforçar a brasilidade da música não importando de que região do país você viesse”.
O produtor, que fundou o festival Abril Pro Rock em 1992 no Recife justamente para divulgar o trabalho da Nação Zumbi, também enfatiza a questão da carreira internacional, mencionando que mesmo sem ter o peso de vendas de outros colegas de gravadora (como Gabriel O Pensador e Skank), tocava em rádios estrangeiras.
“O primeiro disco da Nação, Da Lama ao Caos, teve versões na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, e no volume dedicado aos anos19 90 da Enciclopédia da Virgin só constam três artistas brasileiros: Tom Zé, que é dos anos 1960 mas que o mundo só conheceu por causa de David Byrne nos anos 1990, o Sepultura, que começou a despontar nos anos 1980, e Chico Science e Nação Zumbi.”
“O primeiro disco da Nação, ‘Da Lama ao Caos’, teve versões na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, e no volume dedicado aos anos 1990 da Enciclopédia da Virgin só constam três artistas brasileiros: Tom Zé, que é dos anos 1960 mas que o mundo só conheceu por causa de David Byrne décadas depois, o Sepultura, que começou a despontar nos anos 1980, e Chico Science e Nação Zumbi”, continua o ex-empresário.
Paulo André também lembra que a banda colocou seus dois primeiros discos entre os dez mais ouvidos das rádios de world music da Europa de acordo com a World Music Charts Europe. “Da Lama Ao Caos ficou por dois meses, entre fevereiro e março de 1995, entre os dez mais ouvidos, e Afrociberdelia, o segundo disco, ficou entre os cinco mais ouvidos entre junho e agosto de 1996”, lembra.
Mas é a presença humana que mais traz saudade a quem conviveu com ele. Jorge Du Peixe, atual vocalista da Nação, emociona-se ao lembrar do amigo de infância. “Ele faz falta, sempre. A cada subida no palco, a cada feitura de disco, a cada vez que ouço um disco novo e coloco em alto volume para que ele escute de alguma maneira”, lembra, com poucas palavras.
“Eu tenho mais lembranças da fase pré-Nação Zumbi do que do tempo da banda”, continua o guitarrista da Nação. “Lembro de quando a gente saía e ia pra Sé de domingo e ficava tomando cerveja, eu com dezoito anos e ele com 23. Ele sempre foi bem espontâneo, autêntico, e me adotou como irmão mais novo, dividindo todas as informações que tinha comigo. Era muito generoso.”
“A maior falta que sinto é a saudade da amizade”, lembra Paulo André, que fala da última vez em que Chico subiu num palco, no fim de semana antes de sua morte, quando tocou ao lado de Antonio Nóbrega e uma Orquestra de Frevo, para promover o bloco Na Pancada do Ganzá, liderado pelo primeiro.
O show aconteceu em um baile “meio burguês, com camarote”, como lembra Paulo, o que fez os dois saírem logo após o show. “Fomos dar um rolê à noite de Landau, falando da vida e dos desafios dos próximos anos. A gente falava muito de perspectiva de futuro e comentávamos em ir para Nova York, alugar um loft para a banda toda, para a gente não só abrir o mercado de shows, mas também compor e trabalhar um disco com calma, com um produtor e em um estúdio local. A ideia era ganhar o mundo e colaborar com um monte de gente.”
Paulo André também afirma que a banda foi cotada para tocar em uma das primeiras edições do festival Lollapalooza nos EUA e só não conseguiu por não ter apoio da gravadora. Mesmo período em que outras gravadoras estavam de olho na Nação Zumbi, ainda presa ao contrato com a Sony.
Já Mabuse conta do dia em que começaram um sábado tomando cachaça e caldinho na região próxima de onde Chico morava para cair na Universidade Federal de Pernambuco, que sediava a 45ª reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1993, e que ficaram assistindo uma vídeo-aula sobre fractais como se estivessem vendo um show de rock.
“Dentro da visão do todo que ele tinha, ele conseguia entender que as referências da matemática fractal tinham o mesmo peso para o que ele fazia que uma linha de baixo do Bootsy Collins. As coisas se organizavam e se agrupavam assim”, lembra o amigo, que recorda de ter comprado naquele mesmo dia uma edição da revista “Ciência Hoje” que levou para o apartamento onde moravam. “Era uma edição que falava sobre a teoria do caos e no fim de semana seguinte ele havia composto ‘Da Lama ao Caos’”.
Os amigos cogitam o que teria acontecido com Chico caso o fatídico acidente de trânsito não tivesse lhe tirado a vida no início de 1997. “Ele estaria virando de cabeça pra baixo todas as possibilidades tecnológicas, do ritmo à composição e performance”, cogita Mabuse. “Pensando nele como uma pessoa de possibilidades impossíveis, como dizia Jorge Ben, acho que ele estaria muito além da música.”
“Não tenho nenhuma dúvida que ele estaria usando a facilidade de comunicação pelo mundo digital para colaborar com um monte de gente, produzir uma galera nova”, completa Paulo André, que está preparando uma exposição para comemorar os 30 anos do mangue beat ao lado da família do amigo. “Consigo enxergar que Chico teria um apartamento em mais de uma cidade e se fosse vivo, estaria dividindo o tempo dele entre o Brasil e outros lugares.
“Nem existia câmera digital e ele já tirava um monte de selfies, antes do termo sequer existir, então também acho que ele estaria barbarizando com todas essas possibilidades de se filmar, de postar, de trocar uma ideia, não tenha dúvida que Chico seria muito atuante nesse meio digital.”
“É totalmente hipotético, mas acho que ele estaria envolvido com coisas bacanas”, completa Lúcio. “Chuto que ia se envolver com cinema, fazer trilhas e até produzir filmes, e também ia se envolver com a questão do veganismo. Ele sempre se cuidava, ia ter uma alimentação bem exemplar”, lembra com saudades o amigo. Jorge não cogita possibilidades mas é taxativo: “A resposta fica no ar porque é difícil, mas ele não estaria fazendo o que já foi feito, tenho quase certeza.”
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