Quem foi ao Sesc Avenida Paulista nesta quinta-feira pode aproveitar mais uma avalanche sonora provocada pelo Test em sua versão hiperbólica, a Test Big Band, e só quem esteve presente tem noção do impacto que foi essa primeira apresentação que o grupo faz neste formato depois da pandemia. Além dos heróis João e Barata, os responsáveis por esse cataclisma de som que o público pode assistir, eles contaram com Sarine na percussão, Bernardo Pacheco no baixo, Alex Dias no contrabaixo acústico, Rayra da Costa nos eletrônicos, Livia Cianciulli no saxofone, Romulo Alexis no trompete, Flavio Lazzarin na bateria, Tomas Moreira, Chris Justtino e Jonnata Doll nos vocais e Maureen Schramm na luz. Vida longa ao Test!
O Campo Magnético que batizou o encontro de Maurício Takara e Guizado nesta quarta-feira no Centro da Terra é o da convivência artística. Os dois já participaram juntos de inúmeros shows e projetos, tocando seus próprios trabalhos ou em bandas de outros artistas numa amizade que atravessa décadas. Mas os dois nunca tinham estado sozinhos num mesmo espaço para criar juntos e entraram numa sintonia fina cada um com suas ferramentas: Takara disparando samples, bases eletrônicas, puxando percussão e até um trumpete piccolo, enquanto Guizado conduziu a partir de seu instrumento, o trumpete, processado por um computador, em que adicionava efeitos, e também sampleando a própria voz. Foram duas longas imersões em que a conexão musical dos dois era quase palpável.
Três instrumentos de sopro, um contrabaixo elétrico e base eletrônica – sem violão, sem guitarra, sem vocais, sem percussão ou bateria. Essa formação inusitada é a base do Comitê Secreto Subaquático, formado por Clara Kok, Fernando Sagawa, João Barisbe, Helena Cruz e Luiz Martins, que estreou no palco nesta terça-feira, apresentando músicas que vêm trabalhando desde o início do ano. Trajados com capas de chuva amarelas e vasculhando sonoridades que misturam o andamento incomum tanto da música eletrônica mais experimental quanto na música erudita contemporânea em canções com títulos infames e engraçadinhos como os samples e as intervenções vocais feitas por Lauiz. E o melhor: não parece com nada que você possa associar a algum gênero, artista ou cânone musical facilmente identificável. Soando únicos, passearam por diferentes profundidades sonoras sem medo de levar o público do rasinho às fossas abissais, às vezes numa mesma música. Foi mágico.
Me acordem que ainda não sei se estava sonhando. A apresentação que os Yeah Yeah Yeahs fizeram nesta sexta-feira no Cine Joia foi um dos melhores shows do ano e prova que não é preciso muito mais que três músicos num palco para encantar uma plateia devota. Tudo bem que o grupo usou de elementos cênicos durante sua apresentação, como o gigantesco balão em forma de globo ocular e os lança-confetes disparados pela vocalista Karen O, mas bastava a presença do trio para fazer nossas personalidades grudarem na parede de trás do cérebro, tamanho impacto ao vivo. Eles são certamente a banda de sua geração que melhor envelheceu (a cena dos Strokes, Interpol, Liars etc), em grande parte por conta da presença magnética da vocalista. Karen O é um espetáculo, uma aula de estética misturada com uma sedução sobrenatural, e apesar de ser a mais baixa do trio (fui checar no seu google), ela se agiganta de forma soberba. Vestindo um maravilhoso vestido cheio de franjas brilhantes que, junto com seu cabelinho la garçonne, remetia imediatamente às melindrosas dos anos 20 do século passado, Karen dominava o público como se tivesse combinado uma coreografia com todos os presentes – e se divertindo demais. “É noite de sexta-feira em São Paulo com os Yeah Yeah Yeahs!”, gritava sorrindo. Mas esses momentos pedestres logo desapareciam quando ela começava a cantar e sua voz hipnótica vinha acompanhada de um domínio corporal que transformava o show no surgimento de um personagem mitológico, como se assistíssemos uma lenda secular descortinando em frente aos nossos olhos. E mesmo que as músicas do disco do ano passado não sejam memoráveis, a parede instrumental, sendo demolida entre tambores rufando e eletrochoques de microfonia, só emoldurava a imagem transcendental da deusa. Um show curto, pouco mais de uma hora, mas que pareceu durar eras dentro da bolha mágica inflada pelo trio – ainda estou preso no momento em que o grupo enfileirou “Gold Lion”, “Maps” e “Heads Will Roll”. E sem contar que esses shows de bandas indies deste século que já podem ser consideradas clássicas são sempre oportunidades perfeitas de encontrar TODO MUNDO. Uma noite perfeita.
Um dos motivos que me fizeram criar o Inferninho Trabalho Sujo foi a percepção de que há uma mutação acontecendo no cenário musical brasileiro. A tragédia pandêmica que nos isolou por tanto tempo fez com que voltássemos de forma muito viva aos encontros presenciais. Shows, peças, blocos de carnaval, jantares de família, restaurantes, botecos, casas de amigos: todo mundo está se encontrando muito mais e de forma mais intensa do que fazia antes da praga, talvez por uma questão de compensação ou mais provável por uma sensação de que perdemos algo que tínhamos como certo, então ninguém quer perder a oportunidade de estar junto com outras pessoas.
Isso também está acontecendo do ponto de vista artístico. A profissionalização do mercado de música brasileiro dos últimos anos colocou o artista solo (seja ele intérprete, músico, DJ, cantautor, produtor) como unidade básica do mercado. Os motivos são fáceis de entender (é mais fácil gerir a carreira de uma pessoa do que de um grupo), o que fez com que as bandas parassem de surgir, pode reparar.
Mas isso mudou depois da pandemia. Ter uma banda hoje não pressupõe gestão de carreira, gastos de produção, divisão de cachê e de tarefas. Comecei a notar bandas surgindo pelo motivo que sempre deveriam ter surgido: porque é legal tocar junto com outras pessoas. As bandas voltaram a ser turmas de amigos, mais do que CNPJs da indústria do entretenimento. E bandas que tocam em qualquer quintal, qualquer buraco, qualquer lugar em que elas possam ser ouvidas. E do mesmo jeito que não são empresas, fogem das tendências de mercado, inclusive estéticas. Estão buscando rumos artísticos novos e diferentes só porque é legal fazer isso. E bastou que eu começasse a frequentar o Picles para saber que aquele era o palco perfeito para uma festa pensada para essas bandas.
A edição desta quinta-feira do Inferninho Trabalho Sujo era exatamente o que eu havia pensado quando o conceituei. Duas bandas novíssimas, quase desconhecidas, fazendo música de um jeito muito pessoal e particular, ambas melódicas e barulhentas na mesma medida. E lembro ter conversado com integrantes das duas bandas (especificamente a Anna d’Os Fadas e a Stéfanie do André Medeiros Lanches), mesmo antes de começar a festa, sobre a necessidade da existência de um lugar como esse. De alguma forma é o antônimo do trabalho que estou fazendo no Centro da Terra, mas paralelo e complementar. Ver as duas bandas tocando para um público feliz e lotado mostrou as coisas estão dando certo. Que venham os próximos!
Foi lindo o batismo de fogo de Paola Lappicy no palco do Centro da Terra nesta quarta-feira, em seu primeiro espetáculo autoral, Que Mágoa é Essa Que Me Chama?. Apresentando as músicas que se tornarão seu disco num palco pela primeira vez, ela deixou o lugar de instrumentista e musicista convidada para abrir seu coração com suas próprias músicas – e o resultado foi um show, literalmente, de chorar. Acompanhada de Dustan Gallas, Caio Chiarini, Léo Carvalho, Rogério Roggi e Luciana Rosa (além da participação surpresa e arrebatadora de Raquel Tobias), ela passeou por seu repertório quase todo ancorado na sofrência e na tristeza, com variações do termo “choro”, espalhadas pela noite, e deslizou pelo piano, seu instrumento-natal, mas também foi para o violão, sempre segurando com sua bela voz aquelas canções tão tristes, que ainda foram salpicadas por versões de outros temas de fossa, como a clássica “Espumas ao Vento” e a cortante “Alvejante” que reuniu Priscila Senna e Zé Vaqueiro, para encerrar sua apresentação. Chora, peito.
“Tem um negócio aí nesse negócio de trio”. O formato trio tem uma força magnética que aproxima e afasta os envolvidos exatamente à mesma medida, fazendo com que a presença individual de cada um acabe buscando um equilíbrio a partir da ausência dos outros e a busca por essas lacunas acaba abrindo suas próprias aberturas para que tudo flua naturalmente. E não importa que tipo de trio, mas quando estamos falando de música, a fluência dessa conexão é exatamente o corpo que a torna possível, como se esse magnetismo se traduzisse em som. E assim foi a apresentação do Thiago França Trio nesta terça-feira no Centro da Terra, encontrando um ponto em comum entre as apresentações que fazia com o codinome de Sambanzo (quando tocava ao lado de seus dois compadres da percussa tanto de Xepa Sounds quanto da Charanga do França, Wellington “Pimpa” Moreira e Samba Sam, e de dois integrantes do Clube da Encruza, Kiko Dinucci e Marcelo Cabral, tocando baixo elétrico) e o trio de free jazz Marginals, composto por Cabral (tocando baixo acústico) e Tony Gordin. Reunindo-se apenas a Cabral e Pimpa, ele enxuga ainda mais o Sambanzo e abre novas janelas de ritmo com o formato trio, apresentando tanto temas que já gravou em seus dois primeiros discos solo (Etiópia e Coisas Invisíveis) e alguns inéditos que deverão materializar-se num novo disco (com outras formações) em breve, entre elas inspirada na coulrofobia do carnaval periférico do Rio chamada apropriadamente de “Fear of the Bate-Bola”. Mas não posso deixar passar minha empolgação ao ouvir um dos meus temas favoritos do saxofonista, a originalmente elétrica “Capadócia”, quase um Talking Heads com o dedo na tomada, vertida a instrumentos acústicos, com pouquíssima interferência elétrica. Foda demais.
Sozinho no palco, só com sua guitarra, pedais e máquinas para disparar efeitos, Dinho Almeida se submeteu a uma sessão de terapia em público. Ergueu véus e projetou imagens para criar um efeito cênico que deveria ser central na apresentação que fez nesta segunda, abrindo sua temporada Águas Turvas no Centro da Terra, para logo em seguida começar a conversar com o público sobre aquele processo: subir num palco sozinho e mostrar canções que nunca havia mostrado para mais que alguns amigos, em eventos domésticos. E entre lindas canções de natureza sentimental e confissões espontâneas no palco (e os gritos de seu filho pequeno, que estava brincando na sala de entrada do teatro, aumentando ainda mais a carga emotiva da noite), Dinho abriu-se completamente no palco como se estivesse sentindo a temperatura da água, ele que não sabe nadar. E entre composições inéditas, uma música feita para Ava Rocha (“João 3 Filhos”), outra para Céu (“Make Sure Your Head Is Above”), uma da banda que tinha antes dos Boogarins (Ultravespa, que o fez chorar enquanto tocava) e algumas de sua querida bandinha, o guitarrista goiano começou uma nova fase em sua carreira. É um caminho sem volta.
Sobrenatural a apresentação que Tiganá Santana fez de Milagre dos Peixes neste domingo no Sesc Pinheiros. O cantor baiano releu o disco cinquentenário de Milton Nascimento há três anos, quando o registrou ao lado dos comparsas Sebastian Notini (percussão e sax) e Ldson Galter (contrabaixo), e nunca havia tocado o disco ao vivo no Brasil. Esta primeira apresentação contou com os músicos Cauê Silva (percussão), Marcelo Galter (pianista irmão do baixista) e Juninho Costa (o Junix, guitarrista do BaianaSystem) e com a presença intensa de Conceição Evaristo, que pontuou a apresentação com comentários sobre música. Tiganá também aproveitou o momento para celebrar dois outros clássicos que também completam 50 anos em 2023 quando resgatou a eterna “Na Linha do Mar” do mágico Marinheiro Só de Clementina de Jesus e “Estácio Holy Estácio” do disco de estreia do nobre Luiz Melodia. “Viva a arte preta do Brasil!”, saudou antes de encerrar a apresentação com a arrebatadora “Cais”. Viva!
Desde o dia em que convidei Sandra Coutinho para fazer a temporada no Centro da Terra ela comentava, mesmo antes de confirmar se conseguiria conciliar sua agenda com a proposta, que uma das noites tinha de ser dedicada ao que ela chamava de “lado B das Mercenárias”: todo um repertório do clássico grupo de pós-punk que moldou parte da cena paulistana dos anos 80 que nunca tinha sido gravado de verdade, sendo tocado apenas em shows e circulando em gravações domésticas não-oficiais. Depois que confirmou sua temporada para este mês de agosto, ela deixou essa data como sua última participação e em vez de simplesmente trazer a atual formação da banda – com ela no baixo, Sílvia Tape na guitarra e Pitchu Ferraz na bateria – resolveu convidar reforços de peso para essa noite histórica. Além do único integrante do sexo masculino nas décadas de carreira da banda, Edgard Scandurra (que foi baterista da primeira formação da banda, mas que nesse show tocou guitarra), ela também reuniu um coro da pesada – Bibiana Graeff, Amanda Rocha e Mayla Goerisch – que assumiu vocais de canções que, mesmo com quase quarenta anos de idade, ainda soam atuais. Foi a coração de uma temporada que nasceu clássica – agora vamos ver se essas músicas inéditas finalmente podem ser registradas!