Tudo Tanto #31: Lô Borges

, por Alexandre Matias

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Mais uma coluna minha na revista Caros Amigos, esta da edição de abril deste ano, quando falei sobre o primeiro show que Lô Borges fez de seu primeiro disco solo, 45 anos depois. E, claro, os vídeos que fiz desta apresentação.

De volta à estrada
Lô Borges retoma seu mítico “disco do tênis” ao vivo, 45 anos após seu lançamento

O pequeno Salomão tinha dez anos de idade quando, ao subir pelas escadas do pequeno prédio onde morava com sua família, ouviu um timbre de voz que ecoava pelas paredes acompanhado por um violão sutil e rebuscado. Correu em direção àquele som, encantado pelo puro poder da música e viu Milton, alguns anos mais velho, tocando sozinho em um quarto na casa de seus pais. Aquele encontro mudaria a história da cultura no Brasil.

Era um encontro inevitável. Milton era amigo do irmão mais velho de Salomão, Márcio, e juntos eles eram alguns dos poucos jovens em Belo Horizonte que eram igualmente apaixonados pela bossa nova brasileira e pelos Beatles. Um grupo de amigos – Fernando, Ronaldo, Wagner, Toninho e tantos outros que o tempo esqueceu – que se descobriam músicos por sua paixão pela música. O próprio Lô, apelido familiar de Salomão, tocava com uma banda cover de Beatles ainda no início dos anos 60, ao lado de outro menino chamado Beto. O grupo The Beavers era uma sensação pop local por ser formado por pré-adolescentes que faziam os intrincados vocais de John, Paul e George com perfeição. Mas os Beavers eram de uma geração anterior à dos amigos de Milton, embora este tivesse desenvolvido uma afeição pelo menino, sempre perguntando por ele quando não o encontrava na casa da família.

Até que um dia o encontrou na porta do prédio em que haviam se conhecido e, como Marcio não havia chegado, Milton convidou Lô para esperar por seu irmão juntos em um bar ali perto. Pediu uma batida de cachaça com limão e um guaraná para o irmão do amigo, mas ficou surpreso quando o menino, então com 17 anos, disse preferir uma caipirinha como a do amigo. Foi quando Milton percebeu que o irmão de Marcio já não era um menino. Que pôs-se a lamentar, dizendo que sentia-se excluído do grupo de amigos do irmão, que tinham os mesmos interesses que ele, mas que o tratavam de forma menor, como se não fizesse parte da turma. Milton o ouviu atentamente e, fascinado, percebeu o quanto havia perdido por não ter conversado antes com Lô. Seguiram falando sobre música até o prédio onde tinham se encontrado, subiram no apartamento dos Borges e começaram a brincar com voz e violão. A delicada jam session que os dois improvisaram de olhos fechados depois seria batizada de “Clube da Esquina Nº2”, no álbum que lançaram coletivamente com os amigos dois anos depois.

Àquela época Milton já era um artista estabelecido. Deixara Belo Horizonte para conquistar o Rio de Janeiro e sempre voltava para a capital mineira para reencontrar os amigos. Até o final dos anos 70, seu nome, Milton Nascimento, já tinha ultrapassado a fase inicial da carreira musical ao gravar discos com o Tamba Trio (logo sua estreia) e Eumir Deodato (no exterior, a convite do mesmo), tendo composto uma de suas obras-primas, “Travessia”, e sendo requisitado por diferentes intérpretes por composições inéditas.

Mas a volta a Belo Horizonte o fazia retomar contato com seu amor inicial, o contato com a música puramente pelo sentimento, longe das amarras do mercado fonográfico, que até então estava a seu favor. Mas sentia-se melhor no grupo de amigos que aos poucos tomava as calçadas da esquina das ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro de Santa Tereza. O pessoal se reunia na rua e tocava violão até alta noite, apresentando composições próprias e músicas alheias, clássicos daquela geração, Beatles e Chico Buarque, um pé no Brasil e outro no mundo. Foi quando Milton decidiu capturar aquela atmosfera em disco e, quando a gravadora pediu um novo disco, ele decidiu fazê-lo com aquela turma de sua cidade. Especificamente com Lô Borges, que tinha apenas 17 anos e com quem tinha uma afinidade mágica, uma amizade intensa que criaria canções eternas.

Lô tinha dois desafios antes de aceitar o convite: convencer os pais e o exército, pois havia sido convocado para servir as forças armadas às vésperas de passar para a maioridade. Peitou ambos e foi para o Rio. Lá chegando, Milton e Lô se instalaram em uma casa em Niterói, na praia de Piratininga, e Lô, marinheiro de primeira viagem no showbusiness, dezenove anos recém-completos e visto como uma exigência inusitada de um nome em ascensão na música brasileira, pediu para não ir só e convocou o amigo Beto para ajudá-lo na viagem. Na casa de praia, os três compunham de uma forma peculiar: Lô compunha suas músicas em um quarto, Milton no outro e Beto Guedes indo de um cômodo a outro para sugerir harmonias, melodias, solos, instrumentações. As canções surgiam quase naturalmente e então eram entregues aos letristas que pairavam ao redor daquele grupo: Fernando Brant, Márcio Borges, Ronaldo Bastos. Dali iam para os músicos, que rearrajavam as canções entre a música brasileira pós-bossa nova, o jazz, o rock psicodélico, a música caipira, o folk e uma sensação quase barroca, de esmero e cuidado, característica da musicalidade mineira. Além dos músicos da turma de Belo Horizonte que eventualmente iam para Niterói ou que já moravam no Rio – como Wagner Tiso, Nelson ngelo, Toninho Horta, Tavito, Robertinho Silva – até a músicos estabelecidos – como Eumir Deodato, Alaíde Costa e Paulo Moura. Tudo regido por Milton, o veterano da turma, o maestro daquele clube.

O disco Clube da Esquina surgiu a partir do encontro de Milton e Lô e trazia para o país parte da sonoridade pop que tomava conta do mundo: folk rock, rock progressivo, jazz funk e rock psicodélico caminhavam lado a lado de canções bucólicas, devaneios lisérgicos, sonoridades pastoris e ecos latinos. Como o clube que o originara – que de clube não tinha nada, afinal era uma esquina a céu aberto – aquele disco duplo (que, por pouco, não foi o primeiro disco duplo da história da música brasileira, perdendo para o clássico ao vivo de Gal Costa, Fa-Tal, lançado meses antes) era um convite ao encontro, uma obra aberta que chamava o ouvinte para dentro de um mundo imaginário, emotivo e sentimental. Tão amplo quanto sua concepção, um dos primeiros discos brasileiros a creditar todos os músicos envolvidos em sua ficha técnica e em que músicos não ficavam restritos aos instrumentos que lhes foram delimitados. Todo mundo toca um pouco de tudo e até hoje há controvérsias sobre quem toca o quê em que faixa.

Lançado no início de 1972, o grupo impulsionou também a carreira do novo parceiro de Milton. A gravadora sem pestanejar pediu um disco solo para Lô que, da mesma forma, topou. Clube da Esquina havia sido um sucesso e o jovem músico despertava interesses e curiosidade. O único problema: ao gravar suas principais composições até aquela idade em seu primeiro registro fonográfico – o Clube, dividido com Milton – Lô havia esgotado seu repertório. Sem músicas novas, entrou em um processo de composição, arranjo e gravação quase industrial. Acordava, escrevia uma música, passava para o irmão que colocava a letra à tarde e, à noite, encontravam-se no estúdio, tentando colocar a canção de pé. Foi um processo convulsivo de composição, uma jam session em câmera lenta que reuniu quase todos os músicos que participaram do Clube da Esquina para firmar um disco composto por músicas curtíssimas que formavam uma colcha de retalhos psicodélicos sem par na história da música brasileira.

O disco ficou pronto e aquilo era o fim para Lô. Viu um horizonte tenso em que havia que compor músicas na marra para lançar mais um novo disco num futuro próximo e a sensação de que sua carreira musical poderia se tornar apenas aquilo lhe causou preocupação. Quando cogitaram colocar sua foto na capa do disco, que foi batizado apenas com seu nome, ele sugeriu que tirassem uma foto de seu par de tênis gasto. Era um código interno para avisar que estava pendurando as chuteiras e que iria colocar o pé na estrada. Para compor era preciso viver – e Lô desistiu da carreira fonográfica para viajar de carona pelo Brasil. Por cinco anos viveu como hippie, cruzando o país da Bahia ao Rio Grande do Sul, dormindo em comunidades, tocando música – e compondo sem parar. Quando resolveu parar, já tinha experiência e material para compor vários discos, como fez, a partir de seu segundo álbum solo, Via Láctea, lançado em 1979, retomando sua carreira musical profissional.

Mas seu disco de estreia – conhecido pela capa por “disco do tênis” – havia ficado intacto no passado. Depois de lançado no mercado, não teve show, não teve campanha de lançamento, ficou esquecido com o tempo. Até 2017. Ao completar 45 anos, Lô reuniu uma banda de jovens músicos para recriar seu clássico disco no palco pela primeira vez. Como a duração do álbum é curta (pouco mais de meia hora), foram incluídos no repertório músicas que Lô gravou para o primeiro Clube da Esquina, transformando o show – que foi lançado em janeiro em São Paulo e deve percorrer o país durante o ano – em uma celebração àquele mítico 1972.

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