De volta ao Opinião

Híbrido de peça e apresentação musical, o espetáculo Pega, Mata e Come: 60 anos de Opinião, que foi exibido em duas sessões neste fim de semana no Sesc Vila Mariana, foi concebido por Paulo Tó ao lado do Instituto Augusto Boal antes mesmo do período pandêmico, que acabou por adiar sua existência. Retomada dentro da programação Territórios do Lembrar que aquela unidade do Sesc está fazendo para que não esqueçamos da tragédia política e cultural que foi o golpe empresarial-militar de 1964, a peça musical aproveitou a infame efeméride para realçar a importância de um espetáculo que hoje é lembrado mais como o palco para os primeiros passos das carreiras de Nara Leão e Maria Bethania do que como o que realmente foi: a primeira obra artística a se revoltar contra o revolução de araque que as forças armadas e parte do empresariado brasileiro deu contra a democracia brasileira sob o pretexto de “interromper o avanço comunista”, mentira repetida até hoje por seus agentes até para justificar crises políticas do país neste século. Montado pelo herói do teatro brasileiro Augusto Boal, Opinião foi revisitado por seu filho Julian Boal e a dramaturga Mariana Mayor, companheira de Tó, que assina a direção musical do espetáculo, dirigido por Jé Oliveira. À frente da apresentação, Xis, Ellen Oléria, Xeina Barros, Alessandra Leão e o próprio Tó, apresentavam-se como os integrantes da montagem original, assumindo personalidades que ajudavam o público entender o contexto da época ao mesmo tempo em que desfilaram tanto as canções do espetáculo original (“Peba na pimenta” de Dominguinhos, “Guantanamera” que foi cantada pela viúva de Boal, Cecília Boal, “Borandá” de Edu Lobo e, claro, a faixa de Zé Kéti que batizou o espetáculo original e a de João do Valle que trouxe o verso que batiza esse novo espetáculo) quanto músicas contemporâneas que conversam com a alma do espetáculo, como “História Para Ninar Gente Grande” (samba-enredo da Mangueira em 2019), “Lama” (de Douglas Germano), “Zumbi” (de Jorge Ben) e “Obá Iná” (do Metá Metá), além de músicas dos próprios intérpretes: Tó (contemplado em “Samba do Perdoa” e “De Cara no Asfalto”), Ellen (que trouxe “Testando” e sua versão para “Miss Celie’s Blues”), Xis (“De Esquina” e “Us Mano e As Mina”) e Alessandra (com “Exu Chega”, “Atirei” e sua versão para “Xangô”). Na banda que acompanhou o grupo de perto, um grupo pesado formado por Marcelo Cabral, Thiago Sonho, Lua Bernardo e Rodrigo Caçapa. Pena só terem rolado duas apresentações, temporada curta para uma apresentação deste porte ganhar corpo e lacear entre os intérpretes. Vamos torcer para outras edições pintarem em outras unidades do Sesc.

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Sandra Sá não deixa ninguém parado

Dos maiores nomes da música preta brasileira (e ela mesma responsável por criar esse rótulo, no disco ao vivo de mesmo nome lançado há vinte anos), Sandra Sá arrasou como de praxe na segunda de suas duas apresentações que fez neste fim de semana no Sesc Vila Mariana. Acompanhada de uma banda enxuta e pesada (Junior Macedo na guitarra, Misael Castro no baixo, Maikon Pereira na batera e Bebeto Sorriso na percussão), ela atravessou pouco mais de uma hora de show reunindo um rosário de hits invejável. Ela abriu a noite pesando seu “Soul de Verão” (sua versão para a música-tema do filme Fama, de 1980) passou por “Demônio Colorido” e depois emendou baladas irresistíveis como a imortal “Retratos e Canções”, “Sozinho”, “Solidão” e “Certas Coisas” (de Lulu Santos, que a levou às lágrimas). Depois passeou por sucessos alheios ao citar dois exemplos de música preta brasileira que transcendem a cor da pele ao emendar uma música “de um neguinho do interior das Alagoas” (“Flor de Lis” de Djavan) com outra de “um branquelo playba, carica e universitário” (“Madalena” de Ivan Lins), puxando depois um Sérgio Sampaio (a clássica “Eu Quero Botar Meu Bloco na Rua”), um Cazuza (“Blues da Piedade”, em que fez referência à prisão dos mandantes do assassinato de Marielle Franco, “já começou…”) e uma Marina Lima (“Uma Noite e Meia” calibrada no samba). Na segunda metade da noite, voltou ao seu próprio repertório, passando pela gigante “Bye Bye Tristeza” (definida por ela mesma como “uma oração”, quando regeu o público dividindo-o em dois corais durante o refrão), “Dançando com a Vida”, “Boralá” e encerrando com seu primeiro grande sucesso, a irresistível “Olhos Coloridos”. E como essa mulher segue cantando pacas: além de rimar raps em várias músicas, também declamou poemas novos sobre velhas canções e soltou sua voz mostrando-a intacta em vários momentos. Se tiver a oportunidade de assistir a um show da mestra, não titubeie: Sandra Sá – que tirou mais uma vez o “de” do meio de seu nome artístico – ao vivo faz jus ao seu legado e não deixa ninguém parado, seja fazendo dançar ou rolar lágrimas. Uma divindade da música que nos move com seus pulmões.

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O melhor show de Juçara Marçal

Ainda impactado pelo que presenciei nessa sexta no Sesc Vila Mariana, arrisco dizer que a celebração ao vivo do aniversário de dez anos do disco de estreia de Juçara Marçal tenha sido a melhor apresentação que assisti dessa mulher – e olha que a vi no palco algumas dezenas de vezes. Repetindo a exata formação (“banda original”, brincou nossa musa) de uma década atrás no mesmo lugar que viu o show de lançamento de Encarnado, ela entregou-se ao álbum na íntegra, repetindo exatamente a mesma ordem das faixas do registro original e deixando-o fluir como o clássico instantâneo que sempre foi. “Esses dez anos os tornaram todos mais gatos ainda”, brincou ao apresentar seus compadres Kiko Dinucci, Thomas Rohrer e Rodrigo Campos sublinhando como a experiência dos quatro deixava o show ainda mais denso e coeso, como se só a beleza os tivesse melhorado – sem contar a própria Juçara, toda de vermelho em referência à capa do disco, que estava deslumbrante. O crescendo emocional do disco avançava a cada nova canção e, como na ordem do álbum original, culminou com a intensa “Ciranda do Aborto” cuja parede noise final desapareceu para revelar a delicadez de “Canção para Ninar Oxum” (em que até agora lamento quem bateu palma bem na hora em que o acalanto cairia em segundos do puro silêncio). Entre as faixas de fora do disco, vieram uma versão inacreditável de “Xote de Navegação” de Chico Buarque, em que Juçara foi acompanhada apenas por Rohrer tocando um fouet (!) com o arco de sua rabeca; a clássica “Comprimido” de Paulinho da Viola (em que ela transformou “um samba do Chico” em “um samba do Kiko”) e “Odumbiodé”, do EP que acompanha seu disco mais recente, o igualmente soberbo Delta Estácio Blues, o que me fez cogitar uma versão do DEB tocada com aquela formação (algo que já havia passado pela minha cabeça no início do show, pois a primeira canção, “Velho Amarelo”, faz parte do repertório do show do disco de 2021). Dois detalhes técnicos e artísticos agigantaram ainda mais essa noite: o som perfeito pilotado pelo Alex Pina (deixando o mínimo sussurro e o mais explosivo ruído igualmente cristalinos) e a luz (como sempre) maravilhosa de Olívia Munhoz (trabalhando com poucas cores, equilibrando luz e escuridão na mesma medida e jogando luzes na cara do público, difundindo até as silhuetas). “A gente tem muitas presenças importantes aqui hoje”, disse Juçara nos poucos momentos em que conversou, bem à vontade, com o público, “mas devo confessar que a mais importante pra mim é uma senhorinha de 90 anos que tá ali”, apontando para sua mãe. Ela ainda lembrou que o show de lançamento do disco original aconteceu no dia 15 de abril de dez anos atrás, aniversário de casamento de seus pais. Uma apresentação irrepreensível e a hipérbole não é em vão: estamos acompanhando a melhor fase da melhor cantora do Brasil atualmente. Não é pouca coisa. E sabe o que mais? Outros melhores virão.

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Uma viagem pesada com os Boogarins

Show dos Boogarins é sempre um acontecimento transcendental – a liga desenvolvida entre os quatro filhos do Centro Oeste transforma qualquer momento de entrosamento musical dos quatro em um delírio particular que pode ser esticado por horas se eles quiserem. Às vésperas da primeira turnê pelos EUA desde o período pandêmico, o grupo passou pelo Sesc Vila Mariana neste fim de semana celebrando os dez anos do aniversário de seu disco de estreia, Plantas Que Curam, que finalmente ressurgiu em vinil após anos fora de catálogo, e assistir a Dinho, Benke, Rapha e Ynaiã passeando por um repertório que já tem uma década não só reforça a importância do grupo na história da psicodelia brasileira como mostra que sua evolução é coesa, intensa e ampla, fluindo quase organicamente. A apresentação deste domingo contou com a íntegra do disco de 2013 – em ordem diferente -, trazendo ainda faixas que não entraram na edição original e que ressurgem nesta nova versão (como “Resolvi Ir”, que, como faziam há dez anos, fazia o show começar já engatado, “Olhos”, “A Sua Frente” e “Refazendo”), “Foi Mal” e uma faixa inédita, do próximo disco (“Cais dos Olhos” – é isso, Benke?). Por uma hora e meia de transe, o quarteto do cerrado nos submeteu a uma hipnose sonora auxiliada pelo time-família titular para além do palco (Renatão e Alejandra no som, Chrisley como roadie, Rolinos nas imagens e Igor na luz) que expandia minutos por horas psíquicas. O final da primeira parte do show, em que “Infinu”, “Fim”, “Doce” e “Eu Vou” se fundiram em uma só, foi só um dos vários exemplos que eles colocaram em prática a natureza psicodélica de seu som. Uma viagem pesada.

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Pelados de fim de ano

Com o ano chegando ao fim, precisava ver alguns shows pra arrematar alguns ciclos. Foi o caso da show dos Pelados, uma das minhas bandas contemporâneas favoritas, que não via ao vivo desde que fizemos aquele show no Inferninho Trabalho Sujo há quase um semestre. O quinteto paulistano participou do evento Sacola Alternativa, que a Balaclava Records faz em parceria com o Sesc Vila Mariana e que traz debates e feira de material independente, além dos shows neste sábado e domingo – com todas as atividades gratuitas. A feliz coincidência os colocou no mesmo palco em que lançaram seu excelente disco Foi Mal no fim do ano passado, no Auditório daquela unidade, com quase um ano de diferença – e quanta diferença um ano de shows faz com uma obra. Comparando com o show de um ano atrás, em que o grupo parecia tenso com a estreia e ainda contava com três participações especiais, desta os Pelados estavam voando só os cinco no palco e trabalhando o mesmo repertório com uma intimidade ainda mais intensa. A entrega dos primeiros Manu Julian e Vicente Tassara aos seus instrumentos (voz e guitarra, respectivamente) está cada vez mais plena, enquanto a base formada pela cozinha pós-moderna que inclui a baixista Helena Cruz, o baterista Theo Cecato e o tecladista e programador Lauiz está vez mais firme e coesa, consagrando o grupo com o melhor grupo indie de São Paulo atualmente, fechando o show com seu épico intimista “Yo La Tengo na Casa do Mancha”, canção que não sai do meu rádio mental e que fez o público levantar-se das cadeiras do teatro. Foi foda.

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Calor do norte

Outro encontro de gerações que aconteceu no fim de semana foi quando a paraense Luê chamou seu pai, Júnior Soares, um dos fundadores do Arraial do Pavulagem, para dividir o palco do Sesc Vila Mariana consigo, no primeiro encontro de pai e filha no palco desta última. Luê está lançando o EP 091, mergulho em suas raízes nortistas, que funciona como preâmbulo para o álbum que lança em breve, Brasileira do Norte, em que mistura gêneros caribenhos, amazônicos e latinos na mesma sonoridade pop e dançante – e com sua mágica rabeca sempre à mão. Esse foi o tom do show que aconteceu no domingo e Luê conseguiu aquecer o público com o calor de canções autoexplicativas como “Verão no Pará” e “Dançadeira do Arrozal” mesmo com o frio de quase 10 graus do lado de fora. O show aainda contou com ninguém menos que Felipe Cordeiro nas guitarras e depois Luê chamou o pai para dividir o single que lançaram juntos, “Preamar”, para depois passear pelo repertório paterno – sem esquecer a clássica versão que Beto Maia fez para “Wicked Game” de Chris Izaak, rebatizada de “Lilian”. Noite quente.

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Perspectiva histórica

Os Garotas Suecas estão em ponto de bala. Uma banda que é uma família e um grupo de amigos ao mesmo tempo e que sobrevive às tretas e à rotina deste tipo de convívio por quase 20 anos consegue manter uma conexão espiritual entre seus integrantes que inevitavelmente transparece no som. Mais do que nas canções e composições, os quatro têm uma dinâmica de palco que só um relacionamento desta categoria poderia prover e isso ficou muito evidente ao trabalhar com o grupo no show de lançamento de seu disco mais recente: 1 2 3 4 foi composto e gravado antes, durante e depois da pandemia e funcionou como tábua de salvação para a saúde mental dos quatro integrantes, que transformaram sua execução em um exercício contínuo. Tanto que quando começamos a definir como seria esse show de lançamento o que menos preocupava era a entrega da banda, todos estavam confiantes de seu poder e coesão musical que isso era o menor dos detalhes. O que fizemos juntos no show que eles apresentaram no Sesc Vila Mariana nesta quinta foi justamente ter uma noção de perspectiva histórica – tanto na biografia do grupo (que teve diversas fases visitadas pelo repertório, embora a ênfase fosse o disco recém-lançado) quanto no contexto maior da música produzida em São Paulo, o que os fez emendar “Saudosa Maloca”, de Adoniran Barbosa, com sua “Gentrificação” (mostrando que o drama das duas canções, mesmo décadas de distância uma da outra, é o mesmo) e pinçar um clássico de Tatá Aeroplano (“Tudo Parado na City”), que inclusive estava presente sem saber que ouviria uma versão de uma música sua e que transformou-se numa música do Garotas justamente por sua fluência como conjunto. O número quatro que paira sobre o disco – é o quarto de uma banda de quatro integrantes – espalhava-se em outros aspectos, como a ênfase no fato que é uma banda com quatro vocalistas (cantando, inclusive, números vocais em que abriam notas em coral) ou a capa do disco (originalmente uma tela de Thiago Haidar) dividida em quatro colunas atrás dos quatro. Um show que mostrou que, mesmo quase vinte anos em atividade, os Garotas Suecas ainda têm muito o que mostrar.

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Garotas Suecas ao vivo no Sesc Vila Mariana


(Foto: Fausto Chermont/Divulgação)

Nesta quinta-feira o grupo Garotas Suecas finalmente mostra seu recém-lançado quarto álbum, 1 2 3 4, ao vivo no palco do auditório do Sesc Vila Mariana. Acompanho o grupo desde antes de eles terem lançado seu primeiro disco – e lá vão quase vinte anos vendo a banda abrir caminhos pelo underground brasileiro ao mesmo tempo em que faziam pontes no exterior. Mas desde que venho trabalhando como curador me tornei mais próximo dos integrantes da banda, fizemos shows e uma temporada no Centro da Terra juntos ao mesmo tempo em que pude acompanhar diferentes estágios do processo criativo do grupo, especificamente o disco que compuseram durante a pandemia. E conversando sobre os rumos do disco, começamos a trabalhar juntos – e além de ter assinado o release do disco novo da banda também fui convidado para dirigir o novo show do grupo, que estreia nesta quinta. Foi um jeito de conhecer melhor Tomaz, Nico, Irina e Perdido, que mostram esse disco que reflete os anos de trevas que atravessamos recentemente. A apresentação começa às 20h e chegando em cima da hora sempre dá pra conseguir uns ingressos.

As mudanças dos Garotas Suecas

Na próxima quinta-feira, dia 24, o grupo Garotas Suecas mostra seu recém-lançado disco 1 2 3 4 pela primeira vez ao vivo, no Auditório do Sesc Vila Mariana, num show em que o quarteto paulistano, uma instituição do rock independente da cidade, às vésperas de completar duas décadas em atividade, me convidou para fazer a direção. Assim, pensamos juntos em como mostrar um disco que ao mesmo tempo é um retrato da época trevosa que estamos finalmente saindo, e também tem uma importância crucial nestes quase vinte anos de banda. Os ingressos para o show já estão à venda (neste link) e a banda ainda traz algumas surpresas, que estão preparando nos ensaios. Enquanto isso, vão arredondando cada vez mais o disco novo só os quatro, como filmei nessa versão para “Todo Dia É Dia de Mudança”.

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Jazz como um jogo

O jovem maestro Bruno Bruni pode mais uma vez concretizar uma de suas obsessões no palco, quando apresenta as trilhas sonoras de games clássicos da Nintendo, Super Mario 64 e Mario Kart 64, enviesando-as para o jazz em formato big band. Para isso, chamou Vicente Pizzutiello (bateria), Nino Nascimento (baixo), Thomaz Souza (sax soprano), Anderson Quevedo (sax alto) e Tiago Souza (sax tenor), Pedro Luce (percussão e MPC) e das vocalistas Marina Marchi e Flavia K. para reger, com ele mesmo tocando teclados, seus arranjos para as clássicas composições de Koji Kondo e Kenta Nagata, compositores importantes para sua formação, no último domingo das férias escolares no Sesc Vila Mariana, quando o grupo apresentou-se para grupos de famílias na praça central da unidade. Foi muito astral.

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