Como um disco, rodando 360º
Os ossos do ofício desta vez me levaram para outro ambiente, em que eu me sentia menos estranho e mais próximo: uma reunião com alguns dos maiores nomes das picapes de hip hop do Brasil. O encontro estava sendo marcado há dias, mas todo mundo toca na noite, produz disco, toca com banda, viaja pacas… Enfim, DJs de hip hop (mais do que DJs de eletrônica, embora não pareça) têm uma agenda movimentadíssima, apesar dos ganhos nem chegarem aos pés dos bambambans da technêra. Como um deles disse, é só ver quem paga esses caras: marcas de bebida, grifes de roupa, empresas de telefonia celular. Ninguém desses caras quer se associar ao hip hop.
Só sei que, depois de datas e mais datas desmarcadas, dei um ultimato pros caras: ou segunda ou nada. Eles sabiam que tava difícil e todos me confirmaram. Bar Brahma, às 19h, certo? “Certo”, todos confirmaram.
Beleza.
Chego incrivelmente antes da hora, me surpreendendo com a própria pontualidade. “Isto não é coisa de brasileiro”, pensei, enquanto explicava para o pessoal do bar o que eu iria fazer ali. Sete da noite e nada. “Isto sim, é brasileiro”, pensava, enquanto via os minutos passarem num relógio-termômetro de rua na esquina mais famosa de São Paulo, “atrasar é normal”. Bebericando por meia hora, começou a bater o apavoro. “Esses caras vão furar de novo!”, lamentava, enquanto pensava em como refazer esse encontro. Vamos atrás desse povo, via fone.
KLJ: “Estou há um minuto daí”. King: “Eu tou te vendo falando no telefone agora mesmo”. Nutz: cai na caixa postal no exato momento em que ele entra no bar. Ney: “Tou esperando o carro chegar da oficina, já já estou aí”. Hum: Caixa postal.
“Merda”, pensava enquanto ouvia a mensagem do Humberto (“Ei, ei, ei!”). Sem o Hum a história fica incompleta. Mas, enfim, juntar esses caras de novo ia ser difícil. Deixei o recado na secretária, na esperança que ele ouvisse. “Quando você chegar, procure a Ingrid, funcionária do bar, que vai te levar para o local onde estamos conversando”.
Fomos ao segundo andar do bar, numa área isolada acima da parte de trás do lugar (onde tava rolando uma sessão de fotos bem… hm… deixa pra lá). Luz indireta, móveis escuros, um piano ao cair da tarde… A fotógrafa me fuzilou com seus belos olhos quando viu a (não)iluminação do local. Ela já havia me enchido o saco por causa da locação que eu escolhi (porque o bar é escuro), mas o lugar que nos levaram triplicava a ausência de luz. Sorri amarelo, que remédio.
Chega o Grandmaster Ney, o veterano da turma e o papo rolava solto. Demos início aos trabalhos e os caras logo estavam bem à vontade. Primeiro falamos sobre o início de suas carreiras e logo estavam estapeando a mesa, às risadas, quando lembravam dos bailinhos caseiros em que quase todos eles começaram tocando. De vez em quando um deles soltava: “Quem podia falar melhor disso era o Humberto” ou “o Humberto viu isso tudo, ele saca melhor que a gente”. Tou ligado. Mas cadê o cara?
De repente, ele surge no horizonte e a festa estava pronta. Abraços, apupos, risadas. Dali em diante, a entrevista rolou no piloto automático e logo não estava mais dando temas ou fazendo perguntas, e sim concordando e dando deixas para um ou outro causo ou comentário que eles falavam.
E eu ficava pensando: “Engraçado isso, enquanto rappers, grafiteiros, equipes de som e b-boys se afundam em intrigas, rixas bobas e egoísmo chinfrim. Não só no hip hop: briguinhas de bandas indie, tretas entre produtores de disco, músicos que não se olham, jornalistas que falam mal uns dos outros, cineastas e atores de egos inflados, escritores dando xilique, trocentas tretas incluindo gente que atua exatamente na mesma área. Ambiente de trabalho propício. Enquanto isso, alguns dos maiores DJs de hip hop do Brasil – e não é exagero falar que parte dessa história estava ali, reunida em torno de uma mesma mesa – papeava entre si como se fossem velhos amigos, compadres de longa data, sem as possíveis intrigas que a história poderia lhes alimentar”.
Sim, são velhos amigos e compadres de longa data. Mas isso não quer dizer muita coisa neste mar de egos e nomes que povoa o universo cultural brasileiro: quantas parcerias acabaram por causa de mulher, quantas bandas brigaram por causa de grana, quantos artistas não olham na cara um do outro por pura birra?
Toneladas. E ali estavam os DJs, longe desse peso todo.
O segredo? Kleber sintetizou numa frase perfeita, que sairá quando a entrevista vier a público (eu aviso, eu aviso), e eu fiquei matutando sobre aquilo, depois que o papo acabou. Será que era SÓ aquilo? Era muito simples (pelo menos pra mim) e parecia ser verdade.
Descendo rumo à rua, passamos de novo pelo bar. No palco, Paulo Caruso cantava mais um daqueles roquinhos fuleiros que ele e seu irmão cantam há muito tempo (a música da Roseana Sarney, por exemplo, é do tempo em que ela era só a filha do Sarney e nada mais…). No balcão, o Laert Sarrumor, do Língua de Trapo. Numa das mesas, Luís Fernando Veríssimo.
Ou seja: dois panteões se encontravam, sem saber. Lá embaixo, parte dos grandes nomes do humor brasileiro. Me seguindo, o Olimpo dos DJs de hip hop. Saímos da porta que levava à escada e alguns se viraram olhando para nós. Era evidente que ninguém havia reconhecido os DJs. E era evidente que os DJs não reconheceram ninguém ali.
Tanta ponte pra se construir e neguinho perdendo tempo com intriga…
Ou back in full-effect
Poizé, tentei ser diário, mas não rolou. Quer dizer, de certa forma, até rolou, mas contando com remixes de textos velhos como estepe – o que não era exatamente o que eu vinha tentando fazer. A retomada deste site foi uma espécie de aquecimento pra 2003, depois de um breve – e merecido – período de descanso mental. Três meses dedicados à leitura e ao nada fazer, com frilas solavancando a ladeira pra não cair no marasmo ou no aperreio.
Daí reativar o site (que estava funcionando como uma e-stante pros meus textos online). A idéia era um misto de exercício com terapia:chegar todo dia na frente do computador e bolar um texto a partir de um disco que eu estivesse ouvindo. Muitos textos saíram de uma vez só, outros foram sendo mastigados com o tempo e outros ainda estão sendo regurgitados na pasta Meus Documentos, aquele limbo que o Word força todos os textos a irem, antes de entrarem em suas respectivas pastas…
Mas o fato é que a retomada surtiu efeito, embora, como manda a vida, contrário ao que eu pretendia. Surgiu então essa idéia: um site simples, sem imagens, onde eu pudesse linkar toda a minha produção online de uma vez só e que, ao mesmo tempo, eu não ficasse preso à obrigação de falar de música. Sim, música é o assunto em boa parte deste site, mas eu tou com a cabeça em outras coisas, e falar só de música bitola qualquer um.
Junto com este primeiro texto e os diversos links espalhados pelas páginas, vou acrescentando outras coisas que me vierem à cabeça. Já me vieram a lista dos 50 discos do ano, um clipping de posts que valem serem citados, outros de trechos de textos que também merecem ser lidos (desculpe o inglês, mas essa altura do campeonato, precisamos de um esperanto prático e fácil de se aprender), a reedição de um blog que eu fiz em maio passado, só de links (a coisa mais legal da internet é o link, claro), coluninha de piores e melhores (pra compartilhar epifanias e exorcizar o mau humor sem agredir verbalmente), o famoso “o que eu estou ouvindo”, links pra sites, blogs, colunas, projetos e bandas de amigos e uma lista de livros em .pdf ou em .txt (eu sei que ler na tela é uma merda, mas pra que é que serve a impressora do trabalho?) que estão por aí na internet (até acharem como cobrar por isso – você já ouviu falar no Palladium?).
Muita informação, claro, mas nem tudo está aqui para ser lido de uma vez só – sequer lido. Queria apenas dar continuidade ao processo de fluxo de consciência que abri com o site que comecei em dezembro (a propósito, o conjunto da obra tá aqui). Atentem que esta é a 26ª edição do Trabajosulho (uma inversão de sílabas besta só pra dizer que tem outro nome – mas na URL ainda é trabalhosujo, como codinome mesmo), portanto, não é um site novo, mas a primeira mudança de muitas outras, que com certeza virão.
Esta foi a grande lição do ano que passou. Sem estar pronto a todo momento pra mudar tudo de uma hora pra outra, fica difícil se ajustar à lenta transformação que estamos atravessando. E não estou falando de mobilidade social, alpinismo profissional, frilancerismo econômico ou mutações morfológicas. Mas da torrente de idéias que moldam o nosso dia-a-dia, afinal, como diz um monte de gente, “it’s all in the mind“.
(Periodicidade? Nah, eu trabalho pra mim. E, não, eu não reviso)
John Cale
Sesc Vila Mariana (São Paulo)
Quinta-feira, 9 de dezembro de 1999
Foi só ele entrar no palco e todos se calaram. Parecia aquele velho professor de história que tomou alguma coisa no passado e até hoje não conseguiu voltar ao normal, dando aulas tão extravagantes quanto divertidas. Surgiu no palco com um blaser marrom sobre uma camiseta preta, calça marrom escuro, calçando um par de tênis escandalosamente vermelhos. Os comentários logo começaram a ser sussurrados, como se aquele professor de história tivesse vindo com um sapato de cada cor.
No palco, um piano de cauda, um violão no pedestal, três banquinhos, um com um pequeno teclado antigo em cima e uma mesa com samplers. Primeiro Cale pegou o violão e cantou duas músicas novas, sem apresentá-las ao público. Não precisava. Ao violão, Cale se permite ao desleixo – impensável ao piano – e a ênfase da apresentação fica por conta de sua interpretação. Sua voz parece sequer precisar de microfone, ela invade o ambiente num misto de tédio e fúria e agarra o espectador à força. Do berro ao sussurro, o maestro galês passa de músico erudito contemporâneo a velho punk em questão de segundos, entre um verso e outro.
Ele vai ao piano, seu instrumento de origem. Do mesmo jeito que acariciava e esmurrava o violão, ele é Jeckyll e Hyde em frente ao piano, mas ao contrário do outro instrumento, aqui ele sabe tudo. Interessante perceber como suas mãos acabam servindo de metáfora para si mesmo: enquanto os polegares e indicadores são incisivos, assinalando a repetição de acordes com força e violência, os outros três dedos floreiam arpegios nos espaços vazios, quase um tique de músico erudito.
Ao piano, canta dois poemas de Dylan Thomas e entra em seus clássicos. Eles surgem um atrás do outro: primeiro uma versão fria para “Child’s Christmas in Wales” seguida de uma imponente “Chinese Envoy”. “Essa é uma canção para Drella”, ele anuncia antes de entrar na bela “Style it Takes”, composta ao lado de Lou Reed no disco Songs for Drella, de 89, homenagem ao padrinho do Velvet Underground, Andy Warhol.
Volta ao violão, desta vez com “Leaving it Up to You”, tocada com míseros dois acordes. “Essa música é sobre dois caras que se apaixonam na cadeia”, brinca com o público, “na verdade é a minha versão para o filme The Ballad of Cable Hogue, um filme de Sam Peckinpah” e entra em “Cable Hogue”, do subestimado Helen of Troy, de 75.
“A Dream” dá início ao único deslize do show: a entrada de Adam Dormblum. Ele senta-se na mesa de samplers ao lado do pequeno teclado vermelho de Cale e começa a disparar ruídos eletrônicos e pedaços de música. Até aí tudo bem, o problema é que a noção de modernidade eletrônica de Dormblum ficou parada no 1994 de Dummy, do Portishead.
Mas a presença de Adam incomodava menos quando o velho Velvet abria a boca. Em suas incursões ao lado do único músico convidado do show, Cale deixava de cantar para apenas contar histórias. Começa com a já citada “A Dream”, também de Songs for Drella, onde Cale encarna um Warhol no meio de um sonho, reclamando, às vésperas da própria morte, dos amigos que o deixaram de lado – incluindo aí Cale e Reed, citados nominalmente. “Gun” – “uma música sobre uma dupla de detetives” – perde toda força e transforma-se numa peça tensa que preenche todo o teatro do Sesc – uma excelente casa de shows, diga-se de passagem. Cale não parece ter envelhecido, ele parece ser exatamente o que sempre foi. Ou melhor: ele sempre foi velho, mesmo aos 20 anos. Natural que envelhecesse com classe.
De novo ao piano, ele rendeu “Chasing Ghosts” antes de entrar em sua parceira com Brian Eno, Cordoba. “Quando estava gravando o disco Wrong Way Up com Brian Eno, às vezes não tínhamos idéias para as letras. Então entrávamos na enorme biblioteca de Brian e ficávamos passeando pelos livros. Até que encontrei um livro de exercícios de inglês para quem fala espanhol. Essa letra era o Exercise 24 do livro, cujo nome íamos manter. Mas aí eu vi uma matéria sobre um terrorista espanhol chamado Cordoba e batizei-a com este nome”. Depois de “Cordoba”, ele volta aos anos 70 – “essa é do Elvis Presley” – em sua personalíssima versão para “Heartbreak Hotel”, que perdeu os toques de soul music da versão do disco Slow Dazzle, de 75, e aparecia sóbria. Fechando o show, ele atacou “Fear is the Man’s Best Friend”, transformando o teclado piano num instrumento de percussão e destruindo a própria garganta de tanto berrar. Aplaudido de pé, voltou para o último número: uma versão para “Hallellujah”, de Leonard Cohen. Cale se despediu com um sorriso nos lábios. Um acústico e individual, mas com tanta energia e vigor quanto o outro melhor show deste ano, o dos Chemical Brtohers