Texto

Sustânça

Substance

Saiu o livro do Petillo sobre discos para levar para uma ilha deserta que, além do meu texto (aí embaixo), tem discos (d)escritos por nomes como Alex Antunes, Wander Wildner, DJ Hum, Clarah Averbuck, Jardel Sebba, Wado, Fabio Bianchini, Kassin, Abonico, Pedro Alexandre Sanches, Loop B, Gabriel Thomaz, Fernando Rosa, Simone do Valle, Adriano Silva, Glauco Cortez, entre outras pessoas que eu não conheço pessoalmente. Dá uma folheada na livraria pra ver se vale à pena (pra mim, vale) e vê se lê esse texto aí embaixo no papel, que é mar legal, vai dizer… Aliás, boa pedida: saia da frente desse computador e vá ler o livro na loja. Tá um dia tão foda lá fora, soléu, proveita…

New Order
Substance 1987

Sempre que me falam nessa maldita ilha deserta, penso no Paul’s Boutique dos Beastie Boys. Certamente é o inconsciente querendo se agarrar ao caráter enciclopédico do disco, um disco cheio de filmes, livros e outros discos, uma cápsula do tempo ainda mais eficaz que discos como Sgt. Pepper’s ou London Calling. Mas o momento mais tranqüilo do disco é “Hi-Planes Drifter”, que pode ser tensa demais pra minha vontade de sossegar. E Paul’s Boutique, mesmo tendo ouvido o disco na época, foi bater direito depois de velho, por isso não traz o vínculo mais nostálgico, essencial para esses dias solitários.

Indo pra este lado, inevitável citar discos básicos na formação de qualquer um da minha geração – do Iron Maiden ao Legião Urbana, Doors e Titãs, Plebe Rude e Clash, Beatles e Mutantes, Led Zeppelin e Velvet Underground, Pink Floyd e Smiths. Discos inteiros tatuados em cérebros de hordas de moleques dos anos 80, que hoje se arrastam ouvindo vozes do passado em pistas de dança que antecipam em vinte anos os bailes da saudade do futuro. Mas são discos de bandas que têm mais de um disco representativo, que a audição de determinado álbum pode remeter imediatamente a outro disco, que não pude escolher trazer. Provavelmente me lamentaria, buscando em acordes e timbres vocais as poucas referências tácteis (ao mesmo pro tímpano) com parte do meu passado, soterrada entre as lembranças do outro disco do artista que eu escolhi. Artistas que nem têm coletâneas decentes, qualquer um deles. Mas destes vêm à cabeça músicas sem a menor preocupação de memória – letras gigantescas inteiras, mudanças de andamento e solos de instrumentos decorados nota a nota. Todos prontos para serem lembrados, bastava desligar a vitrola com o outro disco escolhido.

E há, claro, a preocupação com o ritmo. Talvez dançar fosse a terapia mais fácil de ser posta em prática em uma ilha deserta – e certamente, a que menos requereria concentração. Algo para acompanhar o ritmo com os pés, balançar a cabeça de um lado para o outro enquanto toma sol na praia, varar o azul profundo do céu de noite e furar a muralha de silêncio contínuo das ondas do mar. E é pedir para se perder: pelo ritmo, vai-se dos Jorge Ben (África Brasil? A Tábua? O do Flamengo?), Tim Maia (76? 71?) e todo o black brasileiro a discos de samba, reggae, dub e hip hop, passando por discos de MPB instrumental (um Deodato certo salvaria uma ilha deserta, mas… qual?), toda a discografia agregada de James Brown e George Clinton, o universo de Dr. Dre (Eminem incluso), tudo que se originou com a lógica do dub, todos os filhotes da disco music, o multiversos de ritmo do Caribe inteiro, toda a África, o groove da psicodelia e do rock de garagem, a new wave feita pra dançar e as duas primeiras gerações do ska. Vodus paquistaneses, danças da chuva de povos do Leste Europeu, festas judaicas, tecneira brava, dervixes rodopiantes, eletrônicos alemães, cantores de garganta dos desertos asiáticos, IDM torto, jazzistas da Escandinávia, meditações tibetanas, punk rock chinês, J-pop – universos inteiros de ritmo impossíveis de ser catalogados em uma discoteca decente, que dizer na escolha de um único disco. Fora os de ritmo abstrato, que chamam a contemplação: Miles, Ayler, Coleman… Não dá pra escolher um só disco desta natureza, se o ritmo for o único critério.

E há de se levar também em conta a duração do disco escolhido. Porque se um compacto simples pode levar uma pessoa à loucura (que é sempre uma saída possível, como veremos adiante), um disco cheio de ambientações pode salvá-la. Discos duplos ou triplos (como o avô de Paul’s Boutique, Sandinista), proporcionariam horas a mais de diversão e fuga que, digamos, os discos gravados no começo dos anos 60, quase todos com pouco mais de meia hora. Concisão, neste caso, pode ser um defeito grave.

Mas discos duplos ou triplos sempre pecam pelo excesso de gordura. Raros compensam toda a audição – até o Álbum Branco (ops, Beatles já tá fora) tem “Revolution 9”, que pode ser uma viagem ou um tremendo pé no saco, dependendo do seu humor. Assim, enfileiramos fora quase todos os discos lançados no final dos anos 90 que, aproveitando-se da duração do CD, tornaram-se vinis duplos – como os do Radiohead, os do Chemical Brothers, discos de drum’n’bass ou os do Racionais MCs. Reunidos ao lado de outros duplos clássicos (o Tommy e o Quadrophenia do Who, o Great Rock’n’Roll Swindle dos Pistols, a Ópera do Malandro do Chico Buarque, Porgy & Bess com Louis Armstrong e Ella Fitzgerald, coisas do Tom Jobim, o Tim Maia Racional, o Blonde on Blonde do Dylan, inúmeros discos ao vivo e inúmeros discos ao vivo do Zappa), estes sempre têm músicas que pedem para ser puladas, o que pode torrar a paciência – descobrir que todas aqueles sulcos de vinil não ouvidos poderiam trazer outras canções gravadas em seus corpos…

Era preciso um disco de vinil duplo que a nostalgia tornou-o todo bom. Nem precisa ser um disco realmente bom, mas algo que se tenha ouvido com tanta freqüência em uma determinada época da sua vida, que se torna, de certa forma, parte, mais do que da sua formação musical, mas da própria formação da sensação de ser você mesmo. Música é fundamental neste desenvolvimento, até mesmo para os poucos maus sujeitos que não gostam de música.

Eu sei qual disco levaria para uma ilha deserta: a coletânea Substance 1987, do New Order. Ela sintetiza um período que, para mim, é o ápice da música pop – o surto coletivo que desconstruiu o rock via punk e a música para dançar via discoteca, que foi enquadrado pela indústria fonográfica apenas para, em sua decadência, dar origem ao mercado paralelo que movimenta DJs, bandas, jornalistas e produtores – a chamada “cena independente”. Entre os anos de 75 e 85, a música pop viveu seu período mais turbulento, o equivalente à histeria dos primeiros anos da década de 60 e a psicodelia de seus últimos dias – ao mesmo tempo. E ainda teve o Prince, a Madonna e o Thriller de Michael Jackson, não custa lembrar.

Substance reúne os singles de uma banda que, de formação bretã, não colocava singles em seus discos (como a segunda metade dos Beatles, os Smiths e o Led Zeppelin – que sequer lançava singles!). Ao mesmo tempo, fotografava a evolução de uma banda pós-punk (meu gênero favorito, repetirei isso mais adiante) rumo ao universo da dance music – trombando, pelo meio do caminho, com o incipiente hip hop, a cultura techno, inventando o universo rave, o segundo verão do amor e fazendo músicas perfeitas. Eu já falei desse disco mais de uma vez, em tom professoral:

“O New Order surgiu bem antes de ter a idéia deste nome, na primeira cidade da história moderna, a decadente Manchester. Cinzenta, a metrópole era o símbolo da decadência do capitalismo. Se um dia fora a primeira cidade industrial do planeta, transformando-se primeiro num pólo fabril têxtil (entre 1760 e 1870) e depois em um centro de produção automobilística, química e de maquinário pesado (entre 1870 e a primeira guerra mundial). Foi lá que o filósofo Friedrich Engels escreveu A Condição da Classe Operária na Inglaterra em 1844, um dos textos básicos do marxismo.

Mas as duas guerras, a depressão e os bombardeios destruíram os dias de glória e Manchester tornou-se uma espécie de parque de diversões morto. Os grandes galpões de fábrica se misturavam ao horizonte e suas casas vitorianas com tijolos à vista. Uma cidade-museu sobre a revolução industrial abandonada, Manchester perdeu metade de sua população e foi um dos primeiros grandes centros ingleses a ceder à pobreza e miséria, com subúrbios que cresciam cada vez mais.

Até que os Sex Pistols, o Clash e os Heartbreakers (de Johnny Thunders) passaram pela cidade em dezembro de 1976. Foi o suficiente para os jovens desempregados arrumarem algo que fazer além de jogar bola e encher a cara. Montar uma banda tornou-se moda entre a juventude prontamente contagiada pelo punk e Anthony H. Wilson, apresentador de um programa de música pop na TV local, percebeu uma geração a seu redor. Era uma chance única e Wilson a agarrou: investiu metade de todo dinheiro que tinha na Factory, uma gravadora independente. E entre os grupos que logo sondou, o Joy Division foi quem primeiro despontou.

Peter Hook, Bernard Albrecht e Stephen Morris decidiram montar a banda durante o show dos Pistols. Nenhum dos três sabia tocar nenhum instrumento direito, o que os liberou para criar. E depois de escolher quem tocava o quê em um sorteio, cada um tratou seu novo instrumento da maneira mais ímpar, revelando suas verdadeiras intenções. Bernard foi para a guitarra fazer ruídos e bases percussivas. Stephen desenvolveu uma técnica própria que consistia em repetir seguidamente uma determinada seqüência de batidas em alguns tambores de sua bateria, criando um loop acústico que transforma alguns clássicos do Joy em celebrações tribais. E Peter, guitarrista frustrado, passou a tocar seu baixo de forma melódica, como se este fosse uma guitarra. Usando palheta e assobiando melodias inusitadas para seu instrumento, Hook tornou-se símbolo de qualquer trabalho que aquele trio viesse a fazer junto.

Até que conheceram Ian Curtis, que de tempero, passou à substância do Warsaw, o primeiro nome que o grupo teve. As letras de Curtis eram esparsas e clássicas, com referências à poesia moderna inglesa e francesa e descreviam cenas horríveis, sentimentos pesados, questionamentos perturbadores. Seu vocal, soturno e macio ao mesmo tempo, dava às canções uma paz de espírito frente ao terror ou o desespero diante do nada. Este sentimento dava uma respeitabilidade à anarquia total dos grupos punk de Londres. Compartilhando sensações e idéias com toda sua geração, Curtis traçava uma árvore genealógica que começava na poesia francesa, passava pelo modernismo europeu, pela decadência de Berlim, por campos de concentração da Segunda Guerra Mundial (de onde tiraram seu nome – “a divisão da alegria” eram as alas das prostitutas nestes campos), a Nova York do Velvet Underground, chegando finalmente a Manchester. Era mais do que suficiente para que a cidade passasse a se gabar de ter o melhor grupo da Inglaterra, numa típica provocação dos britânicos do norte.

Ao vivo, eram incendiários. Sua performance devia tanto ao Velvet quanto aos Doors, com o grupo entrando em jam sessions de barulho interminável, acompanhados da dança peculiar e agressiva de Ian, que largava o microfone para debater-se para delírio do público. Algumas apresentações depois, os outros integrantes da banda descobriram que Curtis era epilético e que sua dança era, na verdade, fruto de convulsões cerebrais.

Este não era o único problema com o vocalista. Além de antissocial, Curtis só saía de casa para cair na noite onde, inevitavelmente, entrava em depressão. A mesma depressão que o levava a escrever, o atacou naquela madrugada de domingo, quando colocou The Idiot, de Iggy Pop, na vitrola e escreveu uma carta com as mesmas letras maiúsculas que escrevia as letras do grupo. Logo depois, se matou.

Na semana seguinte, o maior sucesso do grupo – “Love Will Tear Us Apart” – era lançado como aperitivo do recém-gravado Closer. Na mesma semana, Hook, Albrecht e Morris decidiram acabar com o grupo – não sabiam mais o que fazer. Em poucos dias, voltavam a ensaiar juntos e, como um trio, exorcizaram o fantasma de Ian em improvisos à procura de uma nova identidade.

O empresário Rob Gretton, o mesmo dos tempos do Joy Division, sugeriu a entrada da tecladista Gillian Gilbert à banda. Com um quarto integrante, o novo grupo cobria a sombra de Curtis e estava disposto para voltar à ativa. Com Bernard assumindo os vocais e as letras, eles gravaram com o mesmo produtor do Joy, Martin Hannett, as duas últimas músicas do antigo vocalista – “Ceremony” e “In a Lonely Place”. As duas faixas não davam idéia do que poderia acontecer logo depois e novamente a banda prestava tributo ao falecido grupo. Batizada de New Order, a nova banda substituía o romantismo “mal do século” pela introspeção adolescente – um nerd no lugar de Lord Byron. Nesta fase, o grupo lançou o disco Movement que marcaria outra característica (bem inglesa) da banda: os discos não traziam as faixas que eram lançadas como singles.

Mas algo estava mudando. A cena technopop que invadiu a Inglaterra no começo dos anos 80 provocou um súbito interesse pela eletrônica e pela dance music. Entre os interessados, os quatro New Order compravam discos de rap, disco music, rock alemão e música eletrônica, interagindo aos poucos com o som. Logo dispensariam a produção de Hannett e se dedicariam eles mesmos a produzir seus próprios discos.

E saía o single de “Everything’s Gone Green”, em dezembro de 1981, que apresentava ao mundo o novo New Order. Com seqüenciadores e bateria eletrônica, o grupo levava o sentimento vazio e tímido do primeiro disco para a pista de dança, mas sem perder os vínculos com o rock. Além das guitarras e baixos onipresentes, as canções do grupo tinham começo, meio e fim e estruturavam-se na forma mais tradicional da canção ocidental.

A faixa começa com chimbaus e bumbo eletrônico perseguidos pelo baixo fantasmagórico de Peter Hook, que é jogado para escanteio com a chegada do seqüenciador de Gillian, que abre espaço mais à frente para o violão elétrico de Bernard (que agora assina Sumner). Dance music, rock, dance music, rock – a seqüência é quebrada com a entrada dos vocais, que impõe a fusão de todos os elementos da longa introdução. Ecos, gritos ao fundo, repetição de certos trechos, o ritmo como nível básico da canção: o New Order trabalha como os velhos jamaicanos que inventaram o dub. Só que em vez do reggae, a base é a canção rock, o pop rumando à perfeição. E em vez da malemolência do ritmo caribenho, o que manda aqui é o pulso marcial da discoteca, martelando firme ao fundo, como se a vida dependesse daquilo. A canção era apenas uma desculpa: o que o grupo queria era prolongar improvisos elétrico-eletrônicos feitos pra dançar. Nascia o New Order como conhecemos.

“Por favor, alguém me ajude/ Quero saber onde estou/ Vi meu futuro diante de mim/ Te machucarei quando puder/ Sinto como se já estivesse estado aqui antes” – a confusão mental verbalizada por Sumner é vista com desdém pelos fãs de Ian Curtis, mas o ponto não é exatamente esse. Letras têm pouca ênfase no espaço do New Order e funcionam como acessórios – tão valiosas quanto riffs, seqüências de acordes, loops, beats. E mais tarde começamos a entender o que ele quer dizer com essa indecisão de idéias.

“Um céu, uma passagem, uma esperança/ Como um sentimento que preciso, é sério”, canta Barney em “Temptation” (single lançado em abril do ano seguinte) sobre a necessidade de acreditar em algo. “Alto, baixo, vire-se/ Não deixe-me cair no chão/ Hoje à noite eu volto só/ Encontro minha alma no caminho de casa”, canta o refrão. De que outra coisa ele pode estar falando senão do vão exercício que é a dança? Deixar-se levar pelo ritmo, entregar-se à pista de dança como se nada mais importasse, sem se importar com quem está ali (“Você tem olhos verdes/ Você tem olhos azuis/ Você tem olhos cinza”).

“Temptation” coloca o baixo pós-punk em primeiro plano, ao lado da cadência quadrada dos beats programados por Stephen Morris e Gillian Gilbert, que aproximam-se instrumentalmente enquanto tornam-se um casal na vida real. A guitarra aos poucos vai descobrindo a possibilidade de transformar ruídos em ritmo, traçando paralelos entre os guitarristas de funk dos anos 60 e 70 e os guitarristas pós-punk ingleses. O vocal de Barney está mais solto, como percebemos pela doce melodia que ele murmura ao começo da canção, e canta sobre a necessidade de explorar os limites, de ir além, de ceder à tentação como autodescoberta: “Para onde me viro, sei que vou tentar/ Para romper este círculo ao meu redor/ De vez em quando acho que perdi uma necessidade/ Que era urgente para mim, eu acredito”. E encerra a canção nos falando da alienação e apatia de sua geração (“Raios lá de cima machucam as pessoas aqui em baixo/ Povos do mundo, não temos para onde ir”), antes de listar o amor como a única esperança (“E eu nunca encontrei alguém como você”, diz antes de estalar um beijo ao microfone) – liberando a banda para dois minutos de casamento entre guitarra, teclados, baixo e bateria. As duas faixas se encontrariam no EP New Order 1981-1982.

Mas a revolução ainda ia acontecer – e aconteceu sob a autoridade sintética de beats mecânicos. “Blue Monday”, lançado em março de 1983, explodia se tornando o single independente mais vendido da história. Construído em cima da seqüência de beats mais conhecida da história (e um dos breques de bateria mais memoráveis de todos os tempos), “Blue Monday” tornava o New Order um dos nomes mais importantes da noite mundial. Logo, DJs e programadores de rádio caçavam os discos daquele grupo inglês para colocá-lo em seus setlists. Com sua letra propositadamente vazia e vocal monótono, o single mostrava para todo o planeta o potencial instrumental do grupo – elevando-o ao nível de um Kraftwerk pop. Mas eles iriam além.

“Blue Monday” também se distinguia dos outros singles pelo visual. Com sua capa preta recortada, ele lembrava um disquete antigo, daqueles de 5 ¼ polegadas. O visual era assinado pelo mesmo Peter Saville que acompanhava o grupo desde os tempos do Joy Division. Designer oficial da Factory, a partir de “Blue Monday”, Saville passou a se dedicar especialmente ao trabalho do New Order, sendo responsável pela assinatura visual do grupo. Dono de uma noção gráfica limpa e funcional, as capas de Saville criavam imagens enigmáticas com elementos simples e cores de tons semelhantes.

Enquanto isso a Factory crescia cada vez mais. Idealizada por Tony Wilson como uma espécie de bunker revolucionário, a gravadora tinha seus preceitos tirados da Internacional Situacionista, grupo de vanguarda artística influenciado pelo surrealismo e dadaísmo que atingiu seu ápice durante as manifestações estudantis de Paris em 1968. Dos textos da corrente artístico-política que Wilson tirou o conceito de diversão como protesto que atravessaria os anos 80 e chegaria à nossa década como base de toda a cultura rave. “As cidades devem ser esvaziadas para as pessoas dançarem na rua”, pregava o dono da Factory que colocou em prática suas idéias ao idealizar o clube que abriria com o New Order, a Haçienda.

E Manchester abria suas portas para o novo. Logo várias bandas começavam a aparecer entre a classe operária, sendo os Smiths, a mais importante delas. É bom ressaltar este aspecto: mais do que fundir rock com música eletrônica, o New Order reacendia o interesse inglês pela canção perfeita e pela música produzida no norte do Reino Unido. Mas o estrago feito pelo grupo estava longe de ser medido.

Enquanto isso, o New Order atravessava o Atlântico para colher os frutos do estouro de “Blue Monday”. Ciceroneados por Arthur Baker, co-piloto de Afrika Bambaataa no hit “Planet Rock”, foram apresentados à noite nova-iorquina e a um sistema de produção estranho ao grupo. Depois de passar alguns dias no estúdio de Baker (os primeiros gastos apenas com as impressões entre o grupo e o produtor), compuseram “Confusion”, que equilibrava os elementos de ambas as partes: de um lado, a visão electrofunk e o arranjo soul de rua criado por Baker, do outro, as ambiências, o senso melódico e a instrumentação do New Order. Gravaram a canção e, no mesmo dia, Arthur tocou ela em seu set à noite. “Foi a primeira vez que ouvíamos a música ser tocada na mesma noite que havia sido feita”, lembra Peter Hook, “e ver a reação das pessoas frente a algo novo foi algo revelador”.

“Você não pode acreditar/ Quando lhe mostrei o que você significava pra mim/ Você não pode acreditar/ Quando lhe mostrei algo que você não pode ver” – as letras ficavam mais vagas, mas ao mesmo tempo referiam-se à vida pessoal, fazendo que qualquer um tivesse sua versão do que Sumner estava cantando. Seqüenciando guitarras funk, backing vocals gritados e um ritmo menos minimal, mais detalhista, Baker entregava o New Order para as pistas de dança americanas de mão beijada em agosto de 1983. Antes disso, lançaram seu primeiro álbum depois da inserção eletrônica, o belo Power Corruption & Lies. No disco, algumas faixas entregavam a amplitude da influência do grupo: “Age of Consent” (“A Era do Consentimento”, termo usado pela cultura gay para designar o fim do preconceito contra homossexuais) e “Ecstasy” (que tornaria-se apelido da mais popular droga de seu tempo, o MMDA).

Depois o grupo gravaria a climática “Thieves Like Us” (lançada em abril de 1984), repleta de teclados, a faixa também foi supervisionada por Arthur Baker, embora sua presença seja mais discreta. Aqui o grupo enveredava por sua primeira balada lançada num single – o que provou uma escolha acertada. A faixa foi tão bem sucedida nas paradas que entrou na trilha sonora do filme A Garota de Rosa Shocking, estrelado por Molly Rigwald. Nas letras, a tentativa de encontrar no amor a causa para a apatia de sua geração – “Assisti seu rosto por tanto tempo/ É sempre o mesmo/ Estudei as rachaduras e rugas/ Você sempre está absorta/ Agora você vive à sombra/ Na chuva/ Chama-se amor/ E pertence a nós/ Morre tão rápido/ Cresce tão devagar/ E quando morre, morre de vez”. Mas o clima melancólico, crescido com um dos momentos mais belos do baixo de Hook, é interrompido pela esperança. “Eu vivi minha vida no vale/ Eu vivi minha vida nas montanhas/ Eu vivi minha vida à base de álcool/ Eu vivi minha vida à base de pílulas/ (…) Chama-se amor e é a única coisa que vale a pena viver”.

Abril de 1985 coincidiu com o lançamento do novo disco e o novo single do grupo. Low Life ironizava o anonimato visual do grupo ao estampar a cara de cada um deles em um das capas do LP. Fotos distorcidas, esticadas, que mostravam pessoas simples, antipopstars, num comportamento que se tornaria padrão entre os grupos de dance music. Puxando Low Life vinha o single “The Perfect Kiss”, que misturava a placidez de “Thieves Like Us” com a frieza dançante de “Blue Monday”, puro feeling cirúrgico. A letra exaltava um paraíso escondido na noite, na dança como solução para o vazio da existência: “Eu sempre pensei em ficar aqui ou sair/ (…) Fingindo não ver sua arma/ Eu disse: “Vamos sair e nos divertir”/ Eu sei, você sabe/ Acreditamos na terra do amor”. Ao mesmo tempo em que mostrava o paraíso, apontava o inferno, detectando a violência que crescia nas noites de Manchester: “Quando você está só à noite/ Você procura as coisas/ Que acha correto/ Se você desistir de tudo/ Você joga fora a única chance de estar aqui hoje/ Então outra briga começa na sua briga/ Você perde outro coração partido na terra da carne/ Meu amigo deu seu último suspiro/ E agora sei que o beijo perfeito é o beijo da morte”, canta ao cravar quatro minutos de música, seguidos de outros quatro de puro delírio instrumental New Order. Outro clássico.

“Sub-Culture” (que saiu em novembro daquele ano) segue o nível ao adicionar vocais gospel com teclados technopop à receita infalível do grupo. O vocal monótono contrasta-se com a melodia dos backing vocals e o ritmo massivo, que adorna a história da música, que escolhe a monogamia à boemia: “O que eu aprendo disso tudo? / Sempre tento, sempre erro/ Dia desses eu volto pra sua casa/ E você nem perceberá que está só/ Dia desses quando estiver só/ Você perceberá que não pode ficar com outra pessoa”. Mas lembra ao ouvinte que “essas minhas palavras malucas/ Podem estar tão erradas”. Ao fim da música, o indefectível baixo melódico entra em ação.

1986 via o grupo crescendo cada vez mais. A espera pelo sucessor de Low Life foi apaziguada por “Shellshock”, que ampliava ainda mais o espectro do grupo. Fundindo melodia, melancolia, ritmo e eletrônica, o single de março daquele ano era um manifesto pró-vida, mesmo que à força: “Não é suficiente até seu coração parar de bater/ Quanto mais fundo que você vá, mais doce é a dor/ Não desista do jogo até seu coração parar de bater”. Setembro assistia ao lançamento do melhor álbum do grupo, Brotherhood, uma incrível coleção de canções que funciona como um relógio se tocada na ordem original. O single do disco, “State of a Nation”, reduzia a eletrônica para voltar o foco à guitarra e ao baixo.

Mas o sucesso de Brotherhood foi tamanho que logo a Factory se viu obrigada a tirar um single de dentro do disco. A escolhida foi “Bizarre Love Triangle”, a música que está mais associada ao New Order. Não é pra menos, afinal todos os elementos do grupo estão ali: a melodia perfeita, um furacão de ritmo sintético, o instrumental do Joy Division diluído num dia de sol, o baixo inconfundível, o vocal sussurrado de Bernard Sumner, a indecisão entre o amor e a noite (o triângulo amoroso bizarro): “Eu me sinto bem, eu me sinto ótimo/ Me sinto como nunca deveria ter me sentido/ Quando fico assim, não sei o que dizer/ Por que não podemos ser nós mesmos como fomos ontem à noite?”.

O grupo entrou em 1987 como uma das maiores bandas do mundo. No mesmo ano, a Haçienda assistia a ascensão de uma nova tendência: a fusão de dance music com rock. Mas isso não era exatamente o que o New Order havia fazendo? Sim, só que agora toda uma geração de adolescente descobria os prazeres da dança ao mesmo tempo que debruçava-se sobre o rock psicodélico do fim dos anos 60. Consumindo ecstasy como se este pudesse sair de moda a qualquer minuto, a Haçienda tornou-se um dos maiores clubes noturnos do mundo e os jovens de Manchester não apenas construíam a cena de acid house como montariam bandas que dominariam o pop inglês na década seguinte, como Stone Roses, Happy Mondays, The Verve, Charlatans, Inspiral Carpets e Oasis.

Ao mesmo tempo DJs de todo mundo procuravam os singles do New Order para tocar em suas festas. Logo, eles se tornaram raridades no mercado, uma vez que a Factory não relançava seus singles. A solução foi uma coletânea que reuniria todo material que o grupo lançou em single: o resultado é Substance 1987, um dos melhores discos de todos os tempos. Com versões diferentes (refeitas em 87) para “Confusion” e “Temptation”, o disco reúne todas as canções descritas até aqui, mais a inédita True Faith, menor comparando-a com as outras faixas.

A coleção não é apenas uma das melhores coletâneas de uma só banda de todos os tempos (comparando-se com os duplos 1962-1966 e 1967-1980 dos Beatles) como prova o valor histórico do New Order. Recapitulando, o grupo deu início ao resgate da melodia na Inglaterra, à cultura clubber, à popularização da música eletrônica, à volta da respeitabilidade à dança, à cultura clubber e à acid house. Grupos tão diferentes quanto Orb e Belle & Sebastian devem sua existência ao quarteto de Manchester, cuja amplitude do espectro só não é maior que o dos Beatles (e talvez do Velvet Underground e do Kraftwerk). O mundo nunca mais foi o mesmo”.

(Ah, a falta de culpa da autocitação da geração ctrl+C, ctrl+V…)

O pós-punk cada vez se consagrada como meu gênero favorito, por vislumbrar flertes com o experimentalismo e com o pop deslavado. É um estilo musical meio mutante, que põe sob o mesmo guarda-chuva os revivalistas psicodélicos do Echo & the Bunnymen, as incursões cubistas do Public Image Ltd., os discos mais legais do Clash, do Wire, do Gang of Four, do Pere Ubu e do Talking Heads, toda a cena no-wave, grupos pop de primeríssima linha (Legião Urbana, Depeche Mode, U2, Smiths, Cure e R.E.M.) além de jornadas musicais que nos revelaram, em escala mais ampla e tudo ao mesmo tempo agora, mitologias inteiras, como o dub, o novíssimo hip hop, o krautrock, a vanguarda eletrônica e outros subgêneros misteriosos da história do som gravado, funcionando como lenha e munição para o nascimento de algumas das melhores bandas que já existiram: Sonic Youth, Pixies, Nirvana, Pavement, Flaming Lips, Hüsker Dü, My Bloody Valentine – enfim, o rock clássico dos anos 90.

Mas de todos estes grupos, talvez o que melhor resuma o estado das coisas – tanto na teria quanto na prática -, seja o New Order, cujo Substance é impecável, cheio de nuances emocionais e instrumentais, improvisando batidas eletrônicas, soando melancólico ou eufórico de acordo com a ocasião. O disco acerta por puro timing: foi lançado exatamente em uma época em que começava-se a esquecer o passado dark do grupo, tão pop quanto seus dias de pista. Um passo semelhante a que seu contemporâneo Cure fez com a igualmente fantástica coletânea Standing on a Beach (que, como Substance, incluiu os lados B dos singles em sua versão em CD) ou para onde o U2 foi em Achtung Baby, um disco que teria um impacto tão forte quanto os primeiros discos solo dos Beatles ou o começo dos anos 70 dos Stones, caso não fosse atropelado pelo Nevermind do Nirvana.

(Em menor escala, o Brasil viu discos igualmente fortes de bandas que nasceram na sopa de aminoácidos pós-punk, como o Õ Blésq Blom dos Titãs, o Supercarioca dos Picassos Falsos ou o Psicoacústica do Ira!, para ficarmos apenas em três exemplos óbvios)

Mas o disco duplo, mais do que quaisquer de seus contemporâneos, mostra o grupo tateando no escuro em busca do próprio som – convergindo pista de dança, lamento indie, atitude faça-você-mesmo, peito punk e sensibilidade inglesa numa versão levemente modificada do trio baixo-guitarra-e-bateria consagrado pelo rock’n’roll. Tocando seus instrumentos fora do padrão convencional e adicionando samplers, baterias eletrônicas, teclados frios e outras novidades dos digitais anos 80, o New Order não apenas deu o tom de parte do pop daquela década como o de boa parte da música pop que a sucederia.

E tem “Blue Monday”, única concorrente à altura de “Billie Jean” de Michael Jackson para o posto de melhor canção de todos os tempos, uma competição individual que travo sozinho e que já teve, entre seus competidores, nomes como “Strawberry Fields Forever” e “God Only Knows” – tanto é verdade que Quincy Jones comprou os direitos para lançar o grupo nos Estados Unidos, na época do Low Life. A música de 83, marco na cultura independente, na cena dance e na história do rock, pode se tornar a melhor trilha sonora para uma estada indefinida em uma ilha deserta. Seu bumbo sintético incessante inspira a dança ininterrupta e compactua a cumplicidade dos movimentos contínuos que auto-organizam o planeta. Beats intermináveis que furam o chão, os tímpanos, a razão. E numa audição a longo prazo, colocam-nos de frente ao único coqueiro da ilha, martelando a cabeça em direção ao tronco da árvore no ritmo das batidas eletrônicas. Até que rache o coco e consigamos ver, pela primeira e única vez, a própria massa cinzenta pulsando, quem sabe, em sintonia com o ritmo massacrante repetido, pela milionésima oportunidade, na única vitrola da ilha.

Nenhuma música parece ser melhor que “Blue Monday”, neste sentido. Até acabar.

Rolem os dados

E esse é a capa da Bizz 193, a da volta, agora de setembro. O texto é pré-edição.

Rolem os dados

A maior franquia viva de entretenimento do mundo volta a funcionar e os Rolling Stones baixam no Brasil no começo do ano que vem

Alexandre Matias

“Se você começar”, rugia rouca a guitarra de Keith Richards, “se você começar, eu não paro”. Trinta mil fãs urravam em contento uníssono, abrindo caminho para a pegada firme de Charlie Watts e, à entrada, Mick Jagger – calça de cetim azul, camiseta preta, jaqueta prateada, chapéu – repetia em inglês os versos sugeridos pelo riff de Richards, agora acompanhado por Ron Wood. Eram pontualmente oito e vinte da noite do horário local em Boston, no domingo 21 de agosto de 2005. O enorme palco montado no Fenway Park parece um estacionamento vertical ou uma versão metal do museu de Guggenhein e é o maior palco já montado na história do rock. Sim, são eles de novo.

Os Rolling Stones estão de volta e não adianta mais arranhar a garganta pra abusar de clichês sobre contradições – se eles estão nessa pela grana, o sentido de fazer rock depois de velho, a imortalidade do espírito juvenil, blá-blá-blá. Nem todo entusiasmo do “Fantástico” da Globo consegue nos convencer de que “eu sei, é só rock’n’roll, mas eu gosto”. Os Stones gastaram até mesmo esta fórmula ainda nos anos 80, mas ela foi resgatada nos anos 90 graças às duas vindas do grupo ao Brasil, em 95 e 98.

Mesmo assim eles continuam e apontam uma terceira passagem pelo país, num show que promete ecoar o mesmo papo furado sem imaginação (“as pedras continuam rolando”) na insípida mídia de entretenimento brasileira (se bem que vai ser engraçado ver o programa da Luciana Gimenez). Desta vez, elevado à enésima potência, pelo pequeno detalhe que um dos shows do grupo no Brasil (especula-se a possibilidade de haver um segundo) aconteça de graça na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, numa apresentação que, dado às proporções do evento, pode ser o maior público para um único show na história. Digno dos chavões e hipérboles que os Stones fazem questão de atrair para si mesmo.

O novo álbum também não preza pela humildade. Num comunicado à imprensa, os Stones disseram que batizaram o disco de A Bigger Bang devido à “fascinação pela teoria científica sobre a origem do universo”, um caô qualquer pra justificar um título que fale em uma explosão ainda maior do que o fiat lux que deu origem a tudo. Até parece que alguém acredita que eles estão lendo livros de física (programas de TV a cabo, vá lá), mas quem se importa? Todos sabemos que é só o ego de Mick Jagger consciente que esta deve ser sua última explosão em estúdio, ao menos ao lado dos Stones. Afinal de contas, o último disco com faixas novas do grupo (Bridges to Babylon) foi lançado há oito anos e, se lembrarmos que a soma das idades dos quatro integrantes originais chega a quase um quarto de milênio, é bem provável que não veremos mais estes quatro senhores trabalhando juntos num novo disco.

Portanto, como possível capítulo final, A Bigger Bang tem sua dignidade. Desliza por momentos de puro exibicionismo Jagger e nas baladas “Pontes de Madison” de Keith, mas condensa o que grupo significa em 2005 em bons momentos como o rockão “Rough Justice”, o blues cru de “Back of My Hand” ou o groove funk de “Rain Fell Down”. Não são apenas músicas feitas para tocar no rádio. Até o próprio rádio, território livre ocupado pelos Rolling Stones em quase todos os seus 43 anos de existência, parece obsoleto e ultrapassado – a própria banda disponibilizou faixas para download de graça em seu site oficial.

Todo exagero confere. A Bigger Bang não é simplesmente uma tentativa de voltar ao topo das paradas de sucesso (o que não acontece desde seu último grande álbum, Tattoo You, de 1983) e sim a coleção de jingles da nova campanha de marketing de uma das multinacionais mais bem-sucedidas do planeta. Um parque temático itinerante em que seus próprios CEOs prestam contas em público de um empreendimento que, só nos anos 90, faturou mais de um bilhão de dólares só em turnês, vendendo mais do que doze milhões de ingressos. “Os Rolling Stones são, de longe, a mais bem sucedida entidade em trânsito na história da humanidade”, disse o editor Ray Waddell, da revista Billboard, ao jornal norte-americano USA Today.

Mais do que uma banda, os Rolling Stones são parte de um ritual que o planeta começou a ser submetido desde que bandas inglesas começaram a migrar para o outro lado do Atlântico, tomando os Estados Unidos e, subseqüentemente, o mundo, com sua reciclagem correta do rhythm’n’blues norte-americano. Parte fundamental da histórica Invasão Britânica, que aconteceu entre a Beatlemania (1964) e a psicodelia (1967), os Stones criaram álbuns à sombra dos Beatles e singles à frente de seu tempo – “Brown Sugar”, “Honky Tonk Women”, “Satisfaction”, “Paint it, Black”, “Sympathy for the Devil”, “Jumpin’ Jack Flash”, “Street Fighting Man” -, antes de, a partir do final dos anos 60 (quando um de seus fundadores, o guitarrista Brian Jones, morreu), se tornarem uma entidade nômade para fugir dos problemas da lei, seja dos impostos da coroa britânica ou do departamento de narcóticos de qualquer outro país. Piratas em aviões particulares, ciganos elétricos.

À medida que atravessaram os anos 70, ampliavam seu caráter multinacional – moraram pela França, Jamaica, Estados Unidos, Marrocos, Canadá, Suíça e viajaram por quase todos os outros países da Europa, América e Ásia, sempre gravando e absorvendo música. Graças a turnês que ampliavam sua má fama de viver no limite da autodestruição, os cinco cresciam no imaginário ocidental como o símbolo do ego gigantesco dos anos 70 – Mick Jagger cavalgando um enorme pau inflável à medida em que Keith Richards subia na lista de apostas como o mais provável morto por overdose de drogas da vez. A rebeldia tornara-se excesso, mas foi domada pelo preciosismo de Jagger em relação aos negócios com a banda. Richards voltara do mundo dos mortos com sua lenta recuperação no início dos anos 80 e a tensão entre os velhos Glimmer Twins fez o grupo desabar de vez após Dirty Work, de 1986 – ano em que o outro fundador do grupo, o pianista Ian Stewart (que não queria tocar em uma banda adolescente e acabou se tornando roadie do grupo) morreu. Até Charlie Watts, sempre sóbrio, viciou-se em heroína neste período. Mas quando os trabalhos foram retomados, tanto Mick quanto Keith sabiam que o grupo era maior do que eles e que o logotipo da boca com a língua pra fora era uma marca tão emblemática quanto o Mickey da Disney e os arcos dourados do McDonald’s.

A grande turnê de volta dos Stones, Steel Wheels, em 1989, redeterminava todo o padrão para o mercado de entretenimento. A banda era uma franquia, um negócio e todos diretamente envolvidos com a produção a tratava como tal – só imprensa e fãs ainda viviam a ilusão de estarem assistindo a uma banda de amigos de longa data, tocando clássicos do rock’n’roll. Patrocinada pela Budweiser (quando, pela primeira vez, uma marca de cerveja investiu massissamente em um evento de música), a turnê começou a caminhar no mesmo ano em que o Muro de Berlim foi abaixo. E o cenário de ruínas da era industrial que se erguia por trás da banda parecia resumir o próprio conceito dos Stones: a falibilidade humana.

Que nos remonta, novamente, aos anos 60, quando o empresário mais famoso da banda, o espevitado Andrew Loog Oldham, forjou a imagem de antagonista dos Beatles. A relação foi muito boa para ambas bandas, que nunca brigavam de frente (sem lançar discos juntos ou fazer shows no mesmo dia, por exemplo), juntas ganhando território. Os Beatles eram um grupo de caipiras de uma cidade portuária que vestiam-se de couro e usavam topetes cheios de gel, que tiveram que ser reeducados por seu empresário Brian Epstein, tornando-se uma banda comportada e apresentável. Os Stones eram um grupo de blueseiros puristas com o risco de, se sujassem um pouco mais seu som, conquistarem um público maior e mais jovem. Os dois se completavam naturalmente.

“Os Stones se comportavam como Lennon queria que os Beatles se comportassem”, contou Richards em uma recente entrevista ao jornal “The Independent”. Marianne Faithful, em sua autobiografia, conta que Jagger ficou feliz ao ser comparado a uma cópia de John Lennon, pelo dono de galeria inglês John Dunbar: “Tudo que ele queria era ser ele”, escreve a ex-namorada do cantor. Mas mais do que “imitar os Beatles seis meses depois”, como ria Lennon, os Stones não cresceram sob a sombra do grupo de Liverpool. Eles eram a própria sombra e logo os efeitos desta escolha artística (“Paint it, Black”) começaram a ser sentidos na pele.

Primeiro, eles mesmos começaram a forçar a barra, com drogas mais pesadas, acabação full-time, militância política, espancamentos de namoradas (cortesia de Brian Jones), flertes com satanismo, homossexualismo e o crime organizado, filmando com o diretor francês Jean-Luc Godard, armas, promiscuidade e singles citando a frágil e velha natureza humana, boa ou má de acordo com a corrente. “A guerra, crianças, está a um tiro de distância”, canta Jagger até hoje, “o amor, irmã, está a um beijo de distância”. Enquanto os Beatles falavam da chegada de um amor supremo, onisciente e para todos, os Stones lembravam da natureza do individualismo, dos limites que precisam ser testados e que nem tudo na vida é fácil. O fim efetivo dos Beatles, vinte anos antes da queda do Muro de Berlim, era o início da Nova Ordem Mundial dos Rolling Stones, um período que também conhecemos como Anos 70.

Então eles começavam a atrair todo o tipo de más vibrações possíveis: além do fatídico festival de Altamont na Califórnia (e sua subseqüente passagem para o cinema, no documentário snuff “Gimme Shelter”), o grupo esteve envolvido em tretas com oficiais alfandegários, vigaristas, contadores, gangstas da Jamaica, policiais, políticos locais, cobradores, motoqueiros, roadies, traficantes, groupies, amigos junkies, aproveitadores, empresários e toda espécie de pulha que podia se reunir ao redor da Maior Banda de Rock’n’Roll do Mundo. Como os Estados Unidos sem a União Soviética, os Stones sem os Beatles foram até onde puderam ir, até que quase se acabaram no meio do caminho: Keith podia ter morrido, Mick queria lançar-se em carreira solo a todo instante, Mick Taylor não agüentava mais ser roubado por Jagger e Richards e não receber os créditos, Bill Wyman saiu da banda e voltou em seguida, Charlie não suportava mais rock’n’roll e estava mais interessado em seus canis de sheepdog e seus haras de cavalos árabes e Ron Wood estava viciado em cocaína, indo ladeira abaixo.

Foi com Steel Wheels – e daí em diante – que os Stones se assumiram ruína, para se recriar como uma paródia séria de si mesmo, algo que o U2 tentou com a turnê PopMart, em vão (aliás, o U2, seu principal rival em megalomania atualmente, mesmo 26 anos mais moço, não conseguiu esse equilíbrio entre a seriedade e o humor que os Stones tiram de letra desde, pelo menos, 1965). Assumir a máscara de lenda-viva como se encarna um personagem, sem querer convencer as pessoas de que você é de verdade ou de mentira. Por isso, o grupo, em 2005, rende tributos dos mais improváveis, como o remix do duo trance Deep Dish para “Saint of Me”, o disco-tributo Bossa’n’Stones (com regravações impagáveis de bandas fictícias como Groove da Praia, Marvin meets Banda do Sul e Michelle Simonal), o fato de Johnny Depp ter se inspirado em Keith para compor o pirata Jack Sparrow em “Piratas do Caribe” ou o convite que a revista “Playboy” fez à filha de Jagger com Jerry Hall, Elizabeth, de 21 anos, para posar em suas páginas. Não é um legado qualquer.

E é assim que os Rolling Stones acontecem em 2005. Não são só uma banda de velhos roqueiros querendo faturar um trocado a mais, como o cinismo ultrapassado à Sex Pistols (“Olhe para os Sex Pistols hoje”, ri Richards ao jornal Chicago Tribune, “nós estamos na frente, no limite. Ninguém esteve aqui antes”) poderia propor, e sim presidentes grisalhos de uma corporação global que, quando começam a trabalhar, como a Microsoft ou a Coca-Cola, abrem o mapa-múndi sobre a mesa e não falam em menos de milhões de dólares. Assim, os trabalhos a respeito de A Bigger Bang – um disco de conotação política, se permitem a inflexão – começaram sintomaticamente na mesma França que foi boicotada pelos EUA durante a Guerra do Iraque. A mesma França que assistiu à decadência aristocrática das gravações do clássico Exile on Main St. de 1972, na vila Nellcote, que Keith alugara em Villefranche (que o repórter Robert Greenfield, da “Rolling Stone” definiu como uma mistura de Suave é a Noite, de F. Scott Fitzgerald, com o disco de Greatest Hits das Shyrelles). A mesma França que assistiu às gravações do último grande arco de disco do grupo (entre It’s Only Rock’n’Roll e Tattoo You, todos gravados no estúdio Pathé-Marconi, em Paris).

O disco começou a ser composto e gravado em dezembro do ano passado, Jagger e Richards em Paris sob a atenção de Don Was, produtor que já acompanha o grupo há mais de uma década. Depois, vieram Ron Wood e Charlie Watts, este último recuperado de um câncer de garganta, para lapidar as faixas, que mais tarde seriam mixadas e masterizadas em Los Angeles. Antes disso, o grupo convocou uma coletiva no dia 10 de maio deste ano em Nova York para falar dos novos álbum e turnê, contrariando a expectativa que a viagem de divulgação da coletânea dupla Forty Licks fosse a última do grupo. Na apresentação, os quatro tocaram uma nova música do disco novo, “Oh No, Not You Again”, no meio de dois clássicos – a já citada “Start Me Up” e “Brown Sugar”. Apenas o baixista Darryl Jones, na banda desde a saída de Bill Wyman, acompanhava os quatro Stones – sem tecladista ou backing vocals.

Na coletiva, o grupo anunciou uma turnê de 12 meses que passa por 40 cidades norte-americanas, até dezembro, e que depois continua pela América do Sul, no começo de 2006, passando pelo Japão e, se o grupo conseguir, na China, onde tocam pela primeira vez. Em maio do ano que vem, eles passam pela Europa, estendendo a turnê até agosto do ano que vem.

De lá, o grupo começou a ensaiar para a turnê em clubes noturnos em Toronto, a mesma cidade em que Keith Richards foi pego com heroína pela polícia em 1977, sujando de vez sua barra e encerrando o fim de seu relacionamento com a modelo Anita Pallenberg. A mesma Toronto que acolheu o grupo sem pátria como sua banda local, que sempre retribui aquecendo suas turnês em lugares como o Palais Royale e The Phoenix. A mesma Toronto onde, em um hangar do aeroporto internacional de Pearson (cuja sigla foi imortalizada pelo Rush na instrumental “YYZ”), toda a estrutura do show estava sendo montada – nada menos que 70 caminhões!

Os Stones chegaram a Toronto no dia 14 de julho e começaram a ensaiar em uma escola particular que foi fechada para o grupo. Graças ao site do tecladista Chuck Leavell (http://chuckleavell.com) e à vigília dos fãs ao redor da escola, pode-se saber que, além das faixas tocadas pelo grupo no show de Boston, muitas outras foram ensaiadas, como “Paint it, Black”, “All Down the Line”, “Bitch”, “19th Nervous Breakdown”, “Live With Me”, “Dead Flowers”, “Sway” (que eles nunca tocaram ao vivo!), “Neighbours”, “Love Train”, “Sister Morphine”, “Loving Cup”, “Saint of Me”, “Midnight Rambler”, “Rocks Off”, “Harlem Shuffle”, além de versões para “Ain’t Too Proud to Beg”, “Mr. Pitiful”, “Get Up, Stand Up” (é, a de Bob Marley) e “Everybody Needs Somebody to Love”. Nenhuma banda na ativa tem um repertório desses.

Os ensaios culminaram com um show no clube Phoenix no dia 10 de agosto, com uma hora e quarenta e cinco minutos em que passaram 14 faixas para uma platéia de mil felizardos. O show, acelerado e preciso, mostrou a disposição dos Stones em rever o próprio catálogo ao mesmo tempo em que reduziu o aspecto Broadway que marca seus shows há mais de vinte anos, jogando a maior parte dos holofotes nas guitarras e não nos arranjos cheios de vocalistas de apoio e metais.

Para o show de abertura, a prefeitura de Boston preparou um esquema de contenção de trânsito para evitar congestionamentos, um problema da cidade devido à falta de estacionamentos públicos. As placas, engraçadinhas, citavam os Stones para alertar motoristas incautos do guincho: “We GET NO SATISFACTION by Towing You: Park Legally”, “The Transportation dept. Has It’s Own BEAST OF BURDEN, It’s called A Tow Truck” e “YOU CAN’T ALWAYS GET WHAT YOU WANT, So Don’t Even Try to Park Illegally”. A abertura do show em Boston foi do grupo Black Eyed-Peas, que não teve muita atenção do público (mesmo porque tocou ainda de dia).

O disco A Bigger Bang (o primeiro com uma foto do grupo na capa desde Their Satanic Majestic Requests, de 1967) é o carro-chefe da turnê, embora, ao contrário dos últimos discos de estúdio, ele não seja o tema dos novos shows – pelo menos no show de abertura, só quatro músicas eram do novo disco, num setlist com vinte e duas faixas.

Em Boston, o grupo estava à vontade, feliz por estar de volta à ativa, mas mais comedido do que em suas apresentações no Brasil – exceção feita a Mick Jagger, que não para de correr e sacudir ombros e joelhos. Estão cercados de velhos conhecidos: Jones no baixo, Lisa Fischer nos vocais, Bobby Keys (o mesmo desde os anos 70) no saxofone, Chuck Leavell, favorito de Mick Jagger, nos teclados, além de outros sopros, percussionistas e vocalistas. Atrás deles, os andares de metal que formavam o cenário contavam com bacanas que pagaram US$ 400 nos chamados “stage tickets” para assistir, literalmente de camarote, ao show ao lado do palco. Pelo público, caminhavam nomes como Carly Simon e Steven Tyler, do Aerosmith.

Mas houve quem pagasse até cem mil dólares no ingresso, para assistir ao show ao lado do “governator” Arnold Schwarzenegger, que usou tal recurso para arrecadar fundos para sua próxima campanha eleitoral. Jagger soube da presença do austríaco republicano e alfinetou, perguntando se o público havia encontrado com ele do lado de fora, se passando por cambista e vendendo camisetas dos Stones. É parte do novo posicionamento político de Jagger (o mais à direita dos Stones, que apoiava Margareth Thatcher nos anos 80), que tornou-o explícito na faixa “Sweet Neo-Con”, do novo álbum, em “homenagem” ao neoconservadorismo americano. A música (chatinha, é bom falar) não foi executada no primeiro show, mas foi ensaiada em Toronto e deve fazer parte do repertório da turnê, bem como outras (a balada “Streets of Love”, “Rain Fall Down”) também passadas pela banda no Canadá.

Pouco antes dos Stones entrarem no palco, as quase 30 mil pessoas do público começaram um coro de “Yankee Sucks!”. A explicação é beisebolística, afinal o grupo se apresentava no estádio do time Red Sox, grande rival dos Yankees de Nova York. Mas no show de abertura da turnê de lançamento de um disco em que Mick Jagger pergunta-se “onde o dinheiro foi parar? No Pentágono?” não deixa de ser engraçado ouvir dezenas de milhares de americanos berrando que os “ianques são uma merda”.

Mas se não se baseia no disco novo, a turnê também não se apega aos grandes clássicos da banda e visita hits de épocas diferentes, como “Shattered” (com a letra mudada, pós-11 de setembro), “She’s so Cold”, “The Worst” (com vocais de Keith Richards), “Out of Control”, “Heartbreaker” e “Beast of Burden”. Rendem a clássica “Tumbling Dice” (cujo mantra final parece ser regra para os Stones, “keep on rolling…”) para em seguida entrar em A Bigger Bang com “Rough Justice” seguida de “Back of My Hand”, em que Mick assume a guitarra slide e toca apenas com Keith Richards, sacramentando a eterna dupla.

“Night Time”, de Ray Charles, é a única versão da noite, em uma homenagem ao único artista da música pop a ter uma carreira mais longeva que a do grupo, culminando com um belo solo vocal de Lisa Fischer, que abre para as apresentações da banda – as maiores salvas de palmas vão para Charlie Watts e Keith Richards, saudado com gritos de “Keith! Keith! Keith!” pelo público. O guitarrista assume o microfone e Jagger deixa o palco, para seu já clássico set de duas faixas. Desta vez foram “The Worst” e “Infamy”, do último disco, ambas com Ron Wood aos teclados.

Mick Jagger volta para o palco, de jaqueta vermelha, enquanto canta “Miss You”. Uma pequena parte do palco vai se projetando para a frente e o grupo todo se concentra neste apêndice menor, transformando o estádio em um pequeno clube. No palco menor, tocam “Oh No, Not You Again”, “Satisfaction” e “Honky Tonk Women”. O palquinho volta ao seu lugar e abaixo do telão (sobre a banda) aparece uma enorme boca inflável com a língua para fora – é o símbolo dos Stones, desta vez em azul e flores. “Out of Control” faz a transição antes da apoteose final.

Que, claro, vem com “Sympathy for the Devil”. O palco torna-se vermelho e Jagger começa a escalar o cenário, enquanto fogos de artifício explodem por todos os lados. “Jumpin’ Jack Flash” e “Brown Sugar” (mais fogos) encerram a noite e a banda vai embora. Pra voltar para o bis, em menos de quatro minutos, quando tocam “You Can’t Always Get What You Want” e “It’s Only Rock’n’Roll (But I Like It)”.

Tudo muito preciso, mas satisfação garantida. Como quem reclama da falta de sabor da carne da rede de lanchonetes ou que o tênis daquela marca é costurado com trabalho infantil, é fácil apontar as inconsistências de um show de rock de tal calibre – falta de intimidade, som superestimado, a idade dos caras. Mas não é uma empresa que está cantando, tocando e correndo de um lado do outro do palco – são os mesmos caras que tocavam no Crawdaddy lotado em 62, no Hyde Park de graça em 69, que gravaram com Phil Spector, que tiveram shows abertos pela Tina Turner e Stevie Wonder, que viram o sujeito morrer assassinado pelos Hell’s Angels no show deles mesmos em Altamont, que brigaram com Peter Tosh… É o próprio contato com a história em forma de loja de departamento viva – delivery, ainda fresco, na hora marcada. Você não pode ter tudo que quer, mas se tentar, às vezes…

Força bruta

Stooges, protopunk e cena paulistana de roque, pra capa de uma Rockpress das antigas.

***

Stooges contra tudo

Algo aconteceu no final dos anos 60. Uns culpam conjunções astrais, outros a era de ouro do capitalismo – o certo é que os hormônios da sociedade ocidental estavam em plena ebulição, uma menopausa às avessas que o planeta parece sofrer de cinqüenta em cinqüenta anos. A guerra do Vietnã servia de pretexto para uma geração inteira abandonar as regras impostas por seus pais e professores e descobrir formas próprias de cair fora do sistema. Os movimentos feministas e pró-direitos civis ganhavam força em nível mundial, ao mesmo tempo em que a América Latina sucumbia a seu período de ditaduras militares. A África vivia o ápice do processo de descolonização enquanto alunos matavam pais e professores com respaldo de Mao, na China. Tempos difíceis e interessantes, o mundo caía em uma dicotomia que abriu uma vala entre duas ideologias políticas e dois modos de vida, tendências cujas seqüelas ainda sofremos até hoje.

Mas os Stooges não se importavam. Para eles, era pouco. Como se as mudanças que o mundo atravessava fossem mais uma pequena amostra do poder de transformação do que uma mutação definitiva. As coisas ainda estavam inteiras, a raiva ainda estava contida, o máximo que víamos eram duelos entre estudantes e polícia, pouquíssimos contra-atacaram com a mesma violência do sistema. Faltava destruição. Com o mundo dividido em dois, quase toda intelectualidade migrou para o lado não-capitalista da disputa – mas poucos pegaram em armas. Muito foi dito e escrito sobre os anos 60, mas foram poucos que foram lá e deram o próprio sangue.

James Osterberg não havia dado sangue até a metade de 1966. Até então, apesar de considerado um dos melhores bateristas entre a turma de adolescentes da minúscula Ann Arbor, subúrbio de Detroit, no estado americano do Michigan, ele ainda era um moleque comportado, que estudava para as provas, vestia-se bem para paquerar as garotas e morava com seus pais num trailer. Foi a música quem o obrigou a entrar em contato com os irmãos Asheton (Ron e Scott) e seu amigo Dave Alexander. Estes três tocavam em diferentes bandas da cidade e eram conhecidos na vizinhança por sua fama de arruaceiros – quando ser roqueiro significava andar fora da linha. Em 1965, Scott e Dave venderam suas motocicletas e foram para a Inglaterra, “ver os Beatles em Liverpool”. Não deu certo, mas assistiram a shows memoráveis, como o único show do Who no Cavern Club. Vendo a excitação dos ingleses e a facilidade que eles tinham para fazer músicas e shows, os dois voltaram para o meio-oeste americano prontos para montar sua própria banda.

O mesmo havia acontecido com James, que saiu de Ann Arbor em 66 por recomendação do guitarrista Mike Bloomfield, que o baterista tinha ido adular após um show da Paul Butterfield Band em Detroit. Conhecido por Iggy por ter mantido o apelido de sua antiga banda (The Iguanas), ele foi para Chicago encontrar o verdadeiro blues. Passou a percorrer a periferia barra-pesada daquela cidade, onde era o único branco a freqüentar os shows. Mas logo havia percebido o melhor daquela música – deixar que ela saísse naturalmente, como a extensão natural de seus sentimentos.

Foi um baseado fumado às margens de uma estação de tratamento de esgoto que fez com que Iggy visualizasse seu futuro. “O lance é tocar meu próprio blues simples”, pensou enquanto experimentava maconha pela primeira vez, sozinho. Maquinava aquelas idéias quando foi ao primeiro show dos Doors em Detroit. Na platéia, a multidão só queria ouvir a banda que havia gravado “Light My Fire”. No palco, Jim Morrison cantou o show inteiro em falsete, provocando a platéia. Iggy não se aguentava, Jim fazia o que ele achava que devia ser feito, confrontava o público ao mesmo que o seduzia. “Se esse cara pode fazer isso, eu também posso”, pensava enquanto sorria vendo o grupo à sua frente, “E tenho de fazer agora, não posso esperar!”

Quando Iggy encontrou os irmãos Asheton, a explosão foi imediata. Tudo que eles queriam fazer era liberar aquela energia adolescente confrontando o público, despejar o triplo de vibração que sentiam com mais agressividade e violência. “Vamos por Dave Alexander pra tocar baixo, eu pego a guitarra e meu irmão toca bateria em qualquer coisa que dermos pra ele”, disse Ron Asheton, que logo perguntou o que Iggy faria. “Não se preocupem: farei algo”.

Quando encontraram Iggy, ele estava com as sobrancelhas raspadas, papel alumínio na cabeça e vestido num enorme macacão branco. Os irmãos Asheton começaram a rir quando o viram e lembraram de um vizinho chamado Jim Pop, um débil mental que raspava os pelos do rosto. Entre risadas, começaram a chamá-lo de Iggy Pop. Pegou.

Horas depois, estavam no palco do Grand Ballroom, em Detroit. Um ruído insuportável saía das caixas de som antes mesmo da banda subir no palco – era um liquidificador plugado na mesa de som. Logo depois, deram início a uma rotina de destruição cênica e sonora que se tornaria clássica com o tempo. Ron Asheton tocava sua guitarra ao lado de um aspirador de pó, que grudava no microfone sempre que largava seu instrumento. Iggy sapateava sobre uma tábua de lavar roupa devidamente microfonada, enquanto Scott martelava (literalmente) dois enormes galões de óleo. A grande maioria do público odiou aquilo e Iggy vomitava sua raiva incontida sobre aqueles que ficaram para vaiar. Entre os poucos felizes com aquilo estava o líder hippie John Sinclair, que mais estava cooptando outra banda de Detroit (o MC5) para clamar sua revolução à americana:

“Era uma porra tão real que era simplesmente inacreditável. Iggy não se parecia com nada já visto. Não era como uma banda, não era o MC5, nem Jeff Beck, como não era coisa nenhuma. Iggy criou um número hipnótico psicodélico como pano de fundo para suas palhaçadas na linha de frente. Os outros caras eram literalmente escadas (stooges) para suas palhaçadas. Eles apenas deixavam aquele tremendo zumbido rolar, como compassos dementes. Estavam tão perto da música do norte de África quanto do rock. E lá estava Iggy, dançando como se Esperando Godot tivesse virado um balé. Ele não era Roger Daltrey, se você entende o que eu digo”.

Danny Fields, o maluco que a gravadora Elektra contratou para descobrir novos talentos, também ficou impressionado com o primeiro show que viu do grupo: “Era 22 de setembro de 1968. Não posso minimizar o que vi no palco. Nunca tinha visto ninguém dançar ou mover-se como Iggy no palco. Nunca tinha visto tanta energia atômica vindo da mesma pessoa. Ele dançava movido pela música, como são os grandes dançarinos. Era a música que eu havia esperado minha vida toda para ouvir”.

Fields conseguiu um contrato para o grupo após Iggy Pop mandá-lo pastar quando foi procurá-lo atrás do palco. Não que Pop rejeitasse a idéia de um contrato – simplesmente não acreditou que aquele sujeito fosse de uma gravadora. Quando o dono da Elektra, Jac Holzmann, os chamou em sua sala e perguntou se eles tinham material para compor um álbum, a resposta foi positiva. Mas era mentira – tinham apenas três músicas próprias e compuseram o resto do primeiro álbum no final daquele dia.

Stooges, o primeiro disco do grupo, foi gravado por John Cale por indicação de Danny Fields. Cale havia acabado de sair do Velvet Underground e Fields deu-lhe a oportunidade de fazer algo ligado ao rock, já que este parecia disposto a voltar à música de vanguarda. Quando o grupo começou a tocar no estúdio, com amplificadores no último volume, Cale acabou com a alegria do grupo. Não dava pra gravar daquele jeito e os Stooges ficaram putos com ele. Apesar da negação, Cale queria que o grupo soasse alto e sabia que este recurso se consegue com uma boa produção – tocar ao vivo no estúdio não funcionava, fazia o som soar capenga. A contragosto, eles gravaram baixo. E o entusiasmo do grupo seguiu o volume. Por isso o primeiro disco do grupo não tem a energia que eternizada por sua reputação. Mas lá estão os clássicos: “I Wanna Be Your Dog” é o antiblues, pedindo pelo sofrimento; as monumentais “1969” (“outro ano pra você e eu/ Outro ano sem nada pra fazer”) e “No Fun” são hinos à apatia de uma adolescência sem transformações; “We Will Fall” e “Ann” cambaleiam como gigantescas rochas que prenunciam uma avalanche e esta vem com “Little Doll”, “Not Right”, “Real Cool Time”…

Mas o impacto do disco de estréia não seria sentido no vinil. Em sua primeira turnê, o grupo definiu o limite que o grupo tinha frente ao excesso: nenhum. Ao ir para Nova York, tudo estava perdido. Uma platéia de intelectuais e foras-da-lei foi seguidas vezes aos quatro shows que o grupo deu em sua estada na metrópole. Lá, tinham tudo à disposição: mulheres, drogas, bebidas, moral e dinheiro.

A colisão do pequeno grupo caipira com o bas-fond nova-iorquino foi fulminante. Na primeira apresentação, Iggy entrou no palco e vomitou na platéia. Na segunda, jogou-se sobre o público e caiu sobre Johnny Winter, que estava ao lado de Miles Davis. Este riu à beça da performance do grupo e convidou-o para cheirar uma montanha de cocaína em seu apartamento, para depois sair por Nova York elogiando o trabalho do grupo. Iggy atirava coisas na platéia, que atirava de volta. Ácidos, baseados e picos davam lugar às refeições. Era o caos.

Mas a recepção era boa – coisa que não aconteceu quando o grupo continuou sua turnê. Na maior parte dos lugares em que tocaram, o público em geral reagiu mal e quase sempre os shows acabavam em confusão – vários em briga, a banda no braço com o resto da platéia. Ao mesmo tempo, iam se envolvendo com heroína. Mas era Iggy quem fazia a diferença – lambuzava-se de pasta de amendoim e jogava-se sobre o público, cobria-se de tinta, vomitava, rolava sobre cacos de vidro, comia hamburgueres de boca aberta, deixando pedaços de carne mastigada rolar pelo peito nu. E ameaçava o público. Xingava, provocava, puxava para a briga, entrava na platéia socando, misto de mosh com pogo antes dos dois terem sido inventados.

Para o segundo disco, Funhouse (batizado em homenagem à casa em que moravam), não havia outra forma de gravação – o grupo estava tão destroçado que só conseguia tocar como se fosse um show. Convocaram o saxofonista Steve McKay para tapar os buracos de algumas canções e gravaram tudo ao vivo. Para a produção, foi chamado o mesmo Don Gallucci que assistiu os Troggs gravarem “Louie Louie”. O disco abria com a brutal “Down on the Street”, que não esperava nem um minuto inteiro para explodir o som rumo ao espaço. Tudo caía aos pedaços, como escombros após uma explosão – mas com a firmeza e pulso característicos do rock’n’roll. “Loose”, “T.V. Eye”, “Dirt”, “1970”, “Fun House”, até a apocalíptica “L.A. Blues”, que destroçava o resto de música que existia no disco ao elevar o sax de McKay aos limites ignóbeis do free jazz.

Depois disso, o grupo acabou. Foi dispensado pela gravadora (mesmo com o próximo disco – Raw Power – composto), caçado pelo imposto de renda, pela polícia e por um grupo de traficantes com que Scott havia se metido. Após um acidente com um caminhão que destruiu uma casa, uma ponte, o caminhão e todo equipamento alugado pela banda, entraram numa paranóia sem limites e transformaram a antiga funhouse num bunker antimotoqueiros. Com o dinheiro da venda de drogas, compraram armas pesadas e ficaram à espera de inimigos que não vinham. Com aquela quantidade de armas e nada pra alvejar, destruíram a própria casa com tiros de grosso calibre.

Com o fim, o grupo tornava-se uma lenda. Mas não havia mais para onde ir. O dia seguinte da primeira vinda dos Stooges não deixou pedra sobre pedra e o grupo não teve outra opção senão voltar para suas próprias casas. Na formação, um racha: Dave Alexander havia sido demitido por Pop depois de uma balada baixo astral. E um elemento alheio havia se infiltrado na cúpula do grupo – James Williamson é descrito como “uma nuvem negra baixando nos Stooges” pela irmã dos Asheton, Kathy. O que, em se tratando do grupo, só tinha um sentido.

Mas a sorte continuava sorrindo para eles quando David Bowie os descobriu do outro lado do Atlântico. Começa a ser um nome de sucesso, devido às suas entrevistas francas e hits comportados, mas ele queria mais. Através dos discos dos Stooges e do Velvet Underground, Bowie descobriu uma América do contra, um submundo de perversão e corrupção que parecia ser o único lugar que permitiria (como mais tarde permitiu) a melhor música daquela época existir, num país careta daqueles. E o imaginário de sexo, drogas e destruição que tanto Iggy Pop quanto Lou Reed descreviam em suas canções era perfeito para uns bons meses de farra.

E assim aconteceu: Bowie foi para os Estados Unidos, catou Iggy e Lou, e resolveu se esbaldar. No meio da baladaça, perguntou se Iggy queria reformar os Stooges e James Williamson deu seu jeito de entrar na história, armando um disco gravado na Inglaterra. Todos estavam tão chapados de todas as formas que Iggy esqueceu de avisar aos Asheton, que vinham acompanhando toda a zona desde o começo. A chegada de Bowie à América causou um tipo de comoção às avessas, uma vez que a parte suja dos Estados Unidos que queria deslumbrar o astro inglês com aquilo que ele vinha procurar – fartura de realidade e reputação junto à rua.

Iggy e James voaram para a Inglaterra, onde, depois de tentar várias músicos, chamaram os irmãos Asheton para o baixo e a bateria. Assim, gravaram Raw Power, que teve seu som “amaciado” por David Bowie na mixagem (uma versão recente, com o dedo de Iggy Pop, corrigiu esse erro). A sonoridade dada por Bowie tirou todo poder de ataque do grupo ao vivo, que voltava a se equilibrar perto do fim. Uma turnê em Los Angeles fez com que o grupo instalasse morada na capital do excesso, uma combinação ingrata. Ninguém mais suportava os Stooges e seus shows iam ficando cada vez mais sem limites. Agora era a platéia quem encarnava a violência de Iggy, com resultados catastróficos.

O último show do grupo aconteceu em Detroit, em 1974. Uma gangue local os havia jurado de morte e o show começou com uma chuva interminável de pedras e garrafas. Iggy sequer se intimidava, gostava do clima pesado: “Alguém tem mais cubos de gelo, ovos ou granadas que queiram tacar no palco? Vocês pagaram, agora agüentem. Vamos ouvir o cantor. Eu sou o melhor… Obrigado pelos ovos. O que eu ganho se juntar uma dúzia de ovos? Ouçam, eu jogo ovos melhor que vocês. É hora das garotas do tumulto? TUMULTO. Me dá uma toalha pra eu tirar essa gema. Eu não quero que me vejam com gema na cara. Oooh baby. C’mon mama… Lâmpadas também? Copos? É, estamos ficando violentos… Tem dois subindo no palco. Temos que sair. Vejo vocês depois”. Quando um sujeito começa a esmurrar Iggy no palco. O cara sai, Iggy pega o microfone, todo fudido, e diz que, depois dessa, o público merece uma versão de 55 minutos de “Louie Louie”. E isso está tudo em disco, no pirata Metallic K.O.

E assim o grupo acabou. Mas seu legado apenas começara. Em Nova York, seguidores fiéis compactavam seu som e misturavam com rock bubblegum dos anos 50 – eram os Ramones. Em Londres, eram citados por ninguém menos que os mestres da revolução, quando os Sex Pistols cantavam “No Fun”. Iggy Pop era tratado como uma lenda viva do punk, mas foi para Berlim no auge do movimento gravar discos solos com David Bowie. Iggy conseguiu se equilibrar entre o showbusiness e a sarjeta, limpou-se de vez no começo dos anos 90 e hoje continua firme. Os Asheton montaram um New Order antes do homônimo grupo inglês que não vingou e mais tarde Ron assumiria as guitarras do Destroy All Monsters. De vez em quando aparecem em discos dos outros, como convidados, mas vivem uma vida mais normal que a sua. A última aparição de um deles foi quando Ron gravou “T.V. Eye” para a trilha de Velvet Goldmine, ao lado de Mike Watt, Thurston Moore, Don Fleming e Mark Arm, todos discípulos fiéis dos Stooges.

***

PROTO-O QUÊ?

Clash, Ramones, Buzzcocks, Joy Division, Sex Pistols, X, Jam, Television, Fall, Cars, U2, Black Flag, Wire, Hüsker Dü, UK Subs, Suicide, Blondie, Dead Kennedys, Smiths, Echo & the Bunnymen, Richard Hell & the Voivods, Talking Heads, B-52’s… Toda a geração de bandas que pode ser englobada no chamado período punk da história do rock (que agrupou diferentes tendências como punk, hardcore, new wave e pós-punk) não teria existido sem dez anos de barulho curtido no underground americano. Toda a cena faça-você-mesmo que explodiu com o punk e criou a “segunda via” do mercado de rock no planeta não aconteceria da mesma forma não fosse um punhado de bandas ilustres e diversas bandas anônimas de uma elite comportamental chamada de protopunk.

Quem mandou o automóvel ser a moeda corrente da primeira fase do capitalismo do século 20. Afinal, foi o primeiro supérfluo (transporte público serve pra quê?) a ser vendido como indispensável pelo mercado e, como tal, logo virou sinônimo de status. Aos poucos, a garagem se tornava cômodo indispensável em qualquer residência a partir dos anos 40. Mas com o declínio da economia americana nos anos 60, o carro logo foi o primeiro indispensável a ser descartado pela classe média americana, deixando milhares de garagens livres pela América. Logo, toda casa tinha uma sala de ensaio perfeita pra qualquer tipo de banda, recurso que até hoje é seguido, como um sacramento.

Seu uso efetivo começou com a invasão britânica. Depois que os Beatles oficializaram o rock como gênero inglês, dando oportunidade para vários jovens conterrâneos arqueólogos do blues americano entrar no mercado fazendo seu próprio som, o próximo passo desta ascensão seria entrar nos Estados Unidos. Quem vencesse na América, vencia no mundo e foram os Beatles quem deram o primeiro passo. Deram sorte: os Estados Unidos ainda não haviam se recuperado do assassinato de seu querido presidente JFK quando os cabeludos ingleses desceram por lá. Com a Beatlemania, todas as bandas de rhythm’n’blues inglesas migraram para os EUA, na vã tentativa do sucesso. Todas elas emplacaram ao menos um hit e constituiriam, mais tarde, a primeira geração da era de ouro do rock.

Como reza a terceira lei de Newton, a chegada dos ingleses provocou um verdadeiro chamado às guitarras na terra do Tio Sam. Foi quando adolescentes por todo país montaram suas bandinhas e foram em direção às paradas. A grande maioria trombou no mínimo sucesso e uma parte deste grupo emplacou dois ou três hits no resto do país. Tocando guitarras sem muita técnica e com muito barulho, bandas como Sonics, Troggs, Kingsmen, Seeds, Music Machine e outras semidesconhecidas cruzaram os Estados Unidos sobre um único hit, transformando suas apresentações em festas explosivas de energia juvenil. Mais que as apresentações inglesas, os grupos americanos tinham uma identidade imediata com o público e cada vez mais gente se empolgava a pegar uma guitarra. Para estes, uma geração bastarda da cruza da surf music com o rock inglês, “Louie, Louie” era o hino.

Foi exatamente no meio dos anos 60 que várias diferentes correntes do mercado musical se encontravam: a Beatlemania se esgotava e os próprios Beatles procuravam outros artifícios sonoros, a música folk saía imediatamente de moda – primeiro pela debandada de Bob Dylan para o rock, depois pelo surgimento do então novíssimo folk rock -, a técnica passaria a ser quesito indispensável em qualquer músico, a psicodelia transformava a cabeça de jovens londrinos. A quantidade de grupos que nasceram neste período é incomensurável e os nomes (Chocolate Watch Band, Jefferson Airplane, Captain Beefheart & His Magic Band, Grateful Dead, Doors, Frank Zappa & the Mothers of Invention, 13th Floor Elevators) ajudavam todas a confundir-se entre si.

Três bandas distinguiam-se radicalmente das outras. A primeira delas, o Velvet Underground, era fruto do encontro de Lou Reed com John Cale, dois jovens estudantes de vanguarda dispostos a quebrar convenções impensáveis de seus meios. Reed vinha da literatura, cantava a marginália de forma suntuosa e fazia bicos em gravadoras, compondo músicas bobas de amor para grupos de doo-wop. O galês Cale vinha da música contemporânea, músico prodígio desde menino, foi para Nova York estudar com os grandes mestres da nova música, como John Cage, LaMonte Young e Cornelius Cardew e queria flertar com o lado feio da música pop. O casamento dos dois gênios era explosivo e completado pela microfonia indomável de Sterling Morrison e pelo metrônomo unissex chamado Moe Tucker dava origem a um turbilhão sonoro sem precedentes até então. Barulho, melodia e vanguarda são dispostos lado a lado e tratados da mesma forma. Apadrinhados por Andy Warhol, tiveram que gravar um álbum com a cantora húngara Nico, que nunca realmente pertenceu ao grupo. The Velvet Underground and Nico, de 1967 (o disco da banana), é obra fundamental em qualquer estante de amantes de música popular moderna. O disco seguinte, White Light/ White Heat, trazia um turbilhão de ruído nunca ouvido antes em disco, um amálgama de ritmo e barulho que destruía o chão a cada pisada. Os dezoito minutos de dois acordes que arrastavam-se por Sister Ray, populados por uma orgia de travestis e marinheiros entupidos de heroína, falam por todo disco.

A saída de Cale levou o barulho para longe do Velvet. Com Cale, o lado erudito contemporâneo de destruição da música era posto de lado em favor do artesanato pop praticado por Lou Reed, que assegurou o repertório do grupo por outros dois discos e anos. John Cale saiu do Velvet a contragosto e resolveu despejar aquela raiva em sua carreira solo – o que incluía seu trabalho como produtor. Foi ele quem comandou as primeiras sessões em estúdio do segundo grupo desta leva de desajustados. Os Stooges de Iggy Pop aceitaram ser produzidos por um músico metido da cidade grande, que logo os impôs às limitações do estúdio – onde uma grande banda de palco pode soar meia-boca. As gravações soam cansadas, mas qualquer pirata do grupo naquele 1969 (“Outro ano sem nada pra fazer”, resmungava Pop) traduzia o dínamo autodestrutivo que era o grupo.

No palco, ninguém pegava os Stooges. Suas apresentações levavam o conceito de caos aos limites do possível, com o grupo colidindo de frente com a platéia, através do som e da fúria. Cuspindo as vísceras artísticas pra fora, os Stooges eram um atentado aos bons modos que o rock de sua época acabava parecendo, seja a piromania de Jimi Hendrix ou o quebra-quebra do The Who. Ao lado dos Stooges, na mesma cidade, um terceiro grupo completava a linha de frente do proto-punk. Erguendo a bandeira da desordem como nova religião, o MC5 (o quinteto da Motor City) era o lado mau dos Rolling Stones, o que Jagger e cia. diziam ser. Citando referências tão diferentes quanto Nat King Cole e Sun Ra, o grupo encabeçava o movimento Panteras Brancas, do ativista político de araque John Sinclair, um hippie que preferia disfarçar suas verdadeiras intenções numa bandeira política. Mas para o MC5 não havia disfarce: ele explicava com todas as letras seu intuito – sexo, drogas, rock’n’roll e nenhum outro motivo, o prazer e a diversão ficavam em segundo plano em relação ao excesso. “Irmãos e irmãs!”, berrava o cabeludo Rob Tyner como pastor de uma nova religião. Wayne Kramer e Fred “Sonic” Smith (que mais tarde casou com Patti Smith) grunhiam em resposta, ao mesmo tempo que Dennis Thompson e Michael Davis empurravam o ritmo com bateria e baixo. Um disco gravado ao vivo – Kick Out the Jams – é o melhor registro da truculência do ROCK (com maiúsculas) do grupo.

Com os anos 70, todos pasteurizaram seu som – o MC5 lembrava um grupo hippie tocando clássicos do rockabilly em Back to the USA, os Stooges pareciam escondidos embaixo dos escombros graças à mixagem de David Bowie em Raw Power e o Velvet Underground gravou uma coleção de hits radiofônicos batizada de Loaded. Os três grupos logo acabariam, mas seus estilhaços podem ser sentidos em duas outras bandas – os New York Dolls e os Modern Lovers.

As duas eram opostas como dia e noite. Os Dolls vinham de diversas bandas de Nova York que só queriam farra. Vestidos de mulher, David Johansen, os guitarristas Johnny Thunders e Syl Sylvian, o lendário baixista Arthur Kane e o baterista Billy Murcia, tomaram o subúrbio da capital do mundo de assalto, com uma resposta suja e grotesca ao glam rock inglês. “Tanto em tão pouco tempo” era um dos lemas do grupo, que batizou o primeiro disco. A sonoridade era mais rock’n’roll do que propriamente punk rock – o groove da banda saía do mesmo lugar do dos Rolling Stones -, mas a altura do som e a presença de palco do grupo antecipavam o gênero que começava a borbulhar. E o picareta inglês Malcolm McLaren assistia de perto – tanto que pegou os Dolls como empresário e os tentou transformar numa banda comunista (?), toda de vermelho, com uma bandeira da União Soviética ao fundo.

Ficando com a metade tímida dos primórdios do punk, os Modern Lovers de Johnathan Richman eram o extremo oposto dos Dolls. Com sua Stratocaster e sua insegurança ao encarar o palco, Richman só podia cantar canções como aquelas – “I’m Straight” (“Eu Sou Careta”), “Pablo Picasso” (“Pablo Picasso nunca foi chamado de cuzão, como você”) e “Hospital” (narrando a espera da namorada num pós-operatório). Com Jerry Harrison (futuro Talking Heads) e Chris (futuro Cars) na primeira e clássica formação de seu grupo, Richman transformava canções sem graça em hinos de rebeldia adolescente, culminando com o maior de todos, o clássico estradeiro “Roadrunner” (e seu refrão “Radio on!”). As primeiras demos, produzidas por John Cale, só apareceram como disco quase um ano de terem sido gravadas.

Logo depois, o sonar da música pop cairia em Nova York. Depois que o glam rock esvaziou-se em Londres e os hippies da Califórnia estagnaram nos montes de dinheiro dados por gravadoras, foi a vez de um grupo de moleques descobrir um velho bar de motoqueiros que funcionaria como bunker de toda uma geração. O CBGB’s funcionou de base para bandas como diferentes como o Television, os Ramones, o grupo de Patti Smith e embriões de bandas que mais tarde seriam o Blondie, o B-52’s, o Talking Heads, os Cars, os Heartbreakers, os Voivods. Aquele impulso garagesco tomou conta de uma cena que passou a despertar interesse primeiro da imprensa, depois das gravadoras. Com seus discos debaixo do braço, eles levaram seus shows para o outro lado do Atlântico e para a costa oposta dos Estados Unidos, fazendo as cenas londrina e angelena brotarem. O punk havia nascido.

***

Protopunk à paulistana
Nos subterrâneos do rock paulistano, uma cena caminha no limite entre o ritmo, o barulho e a psicodelia. Qualquer semelhança com Nova York no começo dos anos 70 não é mera coincidência…

Tá certo que São Paulo teve sua cena protopunk nos anos 60, mas ela era, no máximo, uma versão mais vigorosa da Jovem Guarda. A violência e a fúria que descambaram no punk no final dos anos 70 teve de ser importada do exterior para nascer no concreto paulistano. Mas se, na época, o protopunk não teve a brutalidade suficiente, uma geração amadurecida durante os anos 90 equilibra as mesmas doses de psicodelia, barulho e rhythm’n’blues que seus antecessores americanos.

No centro do furacão, um trio de veteranos com histórias para contar. Marquinho veio dos Pin Ups, onde tocou bateria em toda chamada “fase de ouro” do grupo paulistano, sobrevivendo ao caos de grito e desespero que foram os bastidores deste conjunto em seu auge. Adriano “µ” Cintra calvagou outro caos, o inferno ambulante chamado I Love Miami, cuja existência bizarra vale uma biografia à parte. Sandro Garcia pode ser considerado o pioneiro de toda essa geração. Convicto em ser mod, fundou os Charts e dentro deste foi descobrindo todas as diferentes vertentes desta geração. Todos abandonaram suas bandas na mesma época (1995, o ano da seca de bandas no país) e começaram a construir nova carreira no mesmo ambiente.

É quando começa a gravadora Ordinary, comandada por Marco e sua esposa Deborah Cassano, a Debbie, e assessorada por Adriano. Juntos, Marco e Adriano respondem por duas das bandas mais importantes da cena. De mesma formação (os dois nas guitarras e o baterista Rodrigo), as duas bandas diferem-se pela abordagem musical. Enquanto o Butchers’ encarna a mesma versão suja dos Rolling Stones que o Pussy Galore imaginou em seu Exile on Main Street, de 85; o Red Meat é o que os Afghan Whigs seriam se Greg Dulli trocasse estilo por culhões, explodindo soul e rock’n’roll em alta combustão. Adriano ainda responde pela one-man-rock-band Ultrasom, que ultrapassa referências pessoais para abraçar o papel de guitarreiro solitário, uma espécie de trovador rock’n’roll (no bom sentido).

Gravando em seu próprio estúdio (Ordinary Studios, claro, na garagem do casal ordinário), o núcleo lança discos com uma velocidade muito difícil de acompanhar, dando faixas e fazendo remixes de suas músicas para lançamentos semioficiais. Sandro acompanhou o crescimento da Ordinary de seu estúdio particular, o conhecido Quadrophenia. Logo, Ordinary e Quadrophenia criaram uma cena ao redor daqueles caras que falavam de bandas antigas obscuras e de novas semidesconhecidas – e que tocavam aquela sonzeira.

Sandro suspendeu as atividades dos Charts e passou a dedicar-se a dois projetos. O primeiro, ao lado do mitológico Plato Dvorák (uma mistura de Otto com um Syd Barrett gaúcho, fanático por bandas de garagem dos anos 60 e lenda-viva em Porto Alegre), chamava-se Momento 68 e funcionava muito bem enquanto cada um deles ficava em sua cidade. À primeira apresentação ao vivo, o temperamento profissional de Garcia e a inconseqüência psicodélica de Plato bateram-se de frente e logo depois a dupla estava desfeita. Sem banda para correr, Sandro apegou-se ao Momento 68 e montou uma banda com Gregor Izidro – dos Espectros – e Carlos Rodrigues, gravando de cara uma fita com suas referências: Troggs, Who, Pink Floyd do começo, Yardbirds, Otis Redding e Love. No outro projeto, ajudou Fábio Golfetti a ressuscitar o Violeta de Outono, facilitando o desenho da árvore genealógica para aqueles que não haviam entendido, assumindo o baixo (e Izidro, a bateria) da lendária banda psicodélica.

Fazendo o circuito Alternative (“Alternative NÃO!”, reclama toda a freguesia em uníssono, antes de ver que não há outra opção por perto)/Borracharia – duas casas de show em Pinheiros -, logo novas bandas começaram a agregar-se ao epicentro da cena “churly” – rótulo usado de forma irônica pelos integrantes do grupo, numa forma de ridicularizar qualquer tentativa de rótulo. A primeira delas, o Sala Especial, teria uma história à parte.

Uma das primeiras bandas brasileiras a assumir o espírito easy-listening, logo as raízes roqueiras do grupo vieram à tona, devido à influência da cena que se formava. Aos poucos, o Sala deixava de ser uma simples banda engraçada e instrumental para se tornar uma ótima banda de rock instrumental. Logo passaram a incluir soul e rock garageiro em seu cardápio de música francesa, Jovem Guarda e discos de teste de estéreo, e suas duas fitas – Aventuras Estereofônicas Volumes 1 e 2 – venderam mais de mil exemplares, sendo copiadas outras mil vezes Brasil afora. Um verdadeiro sucesso underground, amados igualmente por paulistas e cariocas (o que não é fácil). Com o terceiro volume de suas Aventuras já engatilhado (quem ouviu, prevê outro sucesso), o grupo encontra-se na encruzilhada que outros grupos instrumentais brasileiros já cruzaram: como fazer sucesso de verdade num país viciado em letras.

Margeando a cena, ainda temos uma cena psicodélica na Móoca, formada pelos Effervescing Elephant (que troca um guitarrista por um tecladista para tornar-se o Flaming Salt) e pelo Cedar Lunen; os já citados Espectros, fazendo a linha garageira mesmo, a la Troggs; e a banda oficial da comunidade psicodélica de Cidade Ademar, os Jerssons, um combo de música aleatória que ganha fama fazendo shows memoráveis em faculdades de filosofia e cidades do interior, convidando todos os músicos presentes a subir no palco.

Enfim, uma cena. Coberta por publicações (eletrônicas ou em papel) diferentes como Magazine (das organizações Ordinary), o recheado Lo-Fi, a revista Velotrol, o venenoso Buxixo (o filhote paulistano do Tupanzine) entre outros, ela faz com que o Brasil finalmente tenha uma geração protopunk de respeito – mesmo que mais de trinta após a geração original.

Essa é a versão integral, antes da edição final, que saiu aqui, na Folha:

Pop: Chambaril faz o elogio da colagem

“Ween”, responde Cláudio N. “Pink Floyd”, diz Pi-R. A pergunta queria saber que shows eles gostariam de abrir. Entre o quarto esfumaçado dos irmãos Dean e Gene ao topo do mainstream trip rock, a lacuna entre as duas opções parece apenas exibir enciclopedismo musical, mas cataloga a banda de ambos, o Chambaril, num gênero ainda não canonizado – a lisergia impressionista nerd branca, disposta a transpor barreiras entre rótulos musicais através de montagens e superposições sonoras.

Entre outros exemplares desta espécie estão as colagens subversivas da primeira era de ouro ao ataque ao copyright (final dos 80, de nomes como Negativland, Double Dee & Starsky e KLF), os Mutantes, o hip hop instrumental de DJ Shadow e RJD2, o Primal Scream, os Beastie Boys de “Paul’s Boutique”, Bomb the Bass, Solex, Avalanches, e, claro, Ween e Pink Floyd. É desse habitat sonoro que sai o recifense Chambaril.

Que, apesar do nome estranho, não é um remédio. “Só se for pra fome”, ironiza Cláudio, o colador original, que largou a guitarra rock dos Astronautas para se dedicar à arte do cut and paste num gravador de quatro canais, “Chambaril na verdade é um prato regional, carregado de proteínas, que consiste em ossobuco, pirão, arroz e salada”.

Descritos, parecem uma reedição do conceito de “mistureba” que assolava o pop brasileiro no começo dos 90. O primeiro disco, batizado com o nome da banda e distribuído pela Peligro, abre com beats de hip hop velha guarda, cordas chorosas que parecem terem sido abduzidas do “Álbum Branco” dos Beatles, levada sintética de flash-house, baixão à Prince, piano apocalíptico, gemido de gaita de blues. Mas a indigestão é meramente textual – em disco tudo flui macio e sutil.

Começando como projeto pessoal de Cláudio em 2001, logo teve agregado à formação os amigos Vinícius também nas colagens, Pi-R nos teclados e Carlos Cabeça, dividindo as guitarras com Cláudio – todos descritos por ele como “músicos de confiança e amigos das tardes enfumaçadas e bucólicas da UFPE”. No ano passado, compuseram a trilha para o filme “Sertão de Acrílico Azul Piscina”, de Marcelo Gomes (“Cinema, Aspirina e Urubus”) e Karim Aïnouz (“Madame Satã”). “Após essa gravação, resolvi passar pro PC algumas partes interessantes de minha coleção de vinil, dando predileção aos discos de 1 real, e as utilizei em forma de loops na construção de uma porrada de músicas”, explica Cláudio.

Entre grooves de disco music, álbuns falados, levadas Jovem Guarda e violões de fossa, não é possível reconhecer quase nada, fora um Costinha contando piadas aqui e a orquestração de Rogério Duprat para “Deus Lhe Pague” do Chico Buarque acolá. “Não temos preconceito”, resume Cláudio, “não achamos que nossa música deva se prender a algum estilo”.

Chambaril
Bazuka Discos
R$ 12,00
www.peligro.com.br

Lennonologia

Em clima “Imejinóudepipôl!”, desenterrei uma semicapa (a outra metade era o Iron Maiden) sobre os 20 anos da morte do John, que também conta com um “e se…” na linha do que o Joca fez pra Folha terça. Como o texto é pr[e-edição, tem muita coisa que não saiu na revista em papel, aí embaixo.

Bem-vindo ao novo Trabalho Sujo muito louco de verão.

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Karma imediato
Como ir em frente quando não se sabe que caminho se está seguindo? Como amar quando nunca se teve amor? As dúvidas existenciais que motivaram a inconseqüentemente intensa e bela carreira de John Lennon pareciam resolver-se quando, há vinte anos, cinco tiros o separaram deste futuro que vivemos hoje

“Você não sabe o que tem até perder” (What You Got)

“Você sabe o que acabou de fazer?” – o porteiro Jay Hastings não conseguia traduzir em palavras o sentimento que passava por sua cabeça. O sujeito estava em frente ao prédio, calmo e paciente, com o livro O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger, às mãos, como se sequer soubesse o que havia acontecido há menos de um minuto, logo em frente. Eram 11 da noite quando Mark David Chapman, 25 anos naquele 8 de dezembro de 1980, virou-se para o atordoado Hastings e, entre um sorriso de alívio e um suspiro de desespero, tranqüilamente confessou: “Eu atirei em John Lennon”.

Lá estava o ex-Beatle atirado no chão, cinco buracos de bala em seu corpo, drenando sangue e outros fluidos orgânicos enquanto gemia seus últimos suspiros. “Fui baleado”, disse pouco antes de perder a consciência, entre as fitas de sua última gravação. Hastings não conseguia acreditar na cena que assistia, Lennon vomitando sangue em sua frente, dissipando todo o glamour popstar à medida que a morte chegava da forma mais rasteira e fugaz possível. Lembrava do Beatle mais esperto da invasão britânica, do pacifista polêmico do começo da década anterior, do Lennon caseiro que cuidava do filho e há dois anos o cumprimentava pelo nome: “Bon soir, Jay”. Tirou o casaco e cobriu o artista baleado. “Ok, John, vai dar tudo certo”, balbuciava nervoso ao ver o foco de seus olhos sumindo entre lentas piscadas de pálpebras. Tirou a gravata, para usar como um torniquete, mas não sabia o que fazer com ela, saindo logo em seguida à caça do agressor que apenas esperava parado na mesma rua 22 Oeste em que o crime havia acontecido. Dois carros da polícia freiaram em frente ao Dakota, onde Lennon e Yoko moravam desde o nascimento de seu único filho, Sean, e dois policiais saíram encurralando Hastings. “Ele não”, gritou um porteiro. “Foi ele!”, Jay apontou para o autor dos tiros.

Chapman havia conversado com Lennon antes de decidir assassiná-lo naquele mesmo dia. Cinco horas antes, havia cumprimentado o ex-Beatle, lhe apresentando uma cópia do recém-lançado Double Fantasy para ser autografada. “John Lennon, 1980”, escreveu o músico inglês antes de entrar na limusine branca que o levaria para o estúdio, onde gravava Walking on Thin Ice, seu próximo single. Mark esperou John voltar para casa, quando, ao sair da limusine, o abordou: “Mr. Lennon?”. John virou-se para atendê-lo e foi seguido por uma seqüência de cinco tiros disparados pelo 38 de Chapman. Mark virou-se e tomou distância, com a sensação do dever cumprido. Poucas horas mais tarde, John Lennon era declarado morto, aos 40 anos de idade.

“Na verdade eu não queria o autógrafo, eu queria a vida dele. E eu acabei ficando com os dois”, diz hoje Chapman, 45 anos, 20 deles de cadeia. O assassino de John Lennon tentou pedir a redução de sua pena por bom comportamento, no mês de outubro (quando o ex-Beatle completaria 60 anos), mas o pedido foi negado por Yoko Ono – embora muitos, Chapman inclusive, apostassem na boa vontade da japonesa mais famosa do mundo. “Eu acho que ele provavelmente gostaria de me ver livre”, disse o assassino. O advogado de Yoko, Robert Gangi, respondeu na lata: “John adoraria estar aqui para falar por si mesmo”.

Certamente, afinal Lennon sempre foi conhecido por sua língua afiada. Desde que apareceu com os Beatles era o responsável pelas frases mais sarcásticas, pelas letras mais ácidas, pelas farpas disfarçadas de elogios, pelos trocadilhos surrealistas, pelas canções mais diretas dos quatro de Liverpool. Em pouco tempo, era um dos roqueiros mais respeitados de sua geração por um motivo simples: não engolia desaforo e cuspia contra quem quer que pudesse vir em sua direção. O ataque verbal era a marca registrada de John, mas, no fundo ele sabia, era só uma forma de defesa.

Porque o mundo, apesar de suas sempre dúbias voltas, não conspirava a favor de John Wiston Lennon, que nasceu sob um bombardeio alemão sobre Liverpool no dia 9 de outubro de 1940. Filho de pais boêmios e arruaceiros (Julia vivia na noite e Alfred – ou Fred – era um marinheiro que tinha famílias de portos em portos), o pequeno John cresceu sob a conduta da irmã de sua mãe, Mary Elizabeth Smith – a tia Mimi – e seu marido George, na pequena e escura casa no número 251 da Menlove Avenue. Suas primeiras lembranças da infância recordam do pai voltando para Liverpool e querendo-o levar para morar na Nova Zelândia, quando tinha apenas 8 anos. A princípio, John aceitara, mas logo ele sentiu saudades e antes de embarcar no navio voltou para os braços da mãe, ainda horrorizada com a decisão do filho, chorando.

A ausência de Julia na vida do jovem Lennon causou-lhe estragos cujas marcas o perseguiram pelo resto da vida. Por mais que seus tios se dedicassem, ele não tinha o conforto dos pais e isso lhe rendeu conflitos sociais que o tornaram amargo e isolado. A morte da mãe (atropelada por um policial bêbado quando John tinha 18 anos, na época em que os dois voltavam a se falar com freqüência) e a volta do pai (querendo aproveitar-se da fama do filho no auge da Beatlemania) contribuíram para sua degradação individual, sendo cada vez mais corroído por sentimentos egoístas e antissociais. Dois gêneros modernos o viriam salvar do pesadelo/prisão que sua vida aos poucos se desenhava: a literatura (representada por Lewis Carroll) e o rock’n’roll (encarnado em Elvis Presley).

O primeiro surgiu na biblioteca da Dovedale Primary School, quando Lennon descobriu em um de seus livros de inglês o poema Jabberwocky, do livro Alice no País do Espelho. Tinha menos de dez anos e ficou fascinado com a forma que Lewis Carroll contorcia as palavras, dando-lhes duplos ou triplos sentidos apenas ao trocar letras e combinar conjunções. Um mundo mágico descortinava-se em sua frente e bastava apenas brincar com o idioma para distorcer a realidade ao seu prazer.

O segundo veio com a gradual descoberta da música para dançar: primeiro com a febre do skiffle que tomou conta do norte da Inglaterra em 1956; depois com o filme Blackboard Jungle, que lançou a canção Rock Around the Clock, e, finalmente, a rendição definitiva de Heartbreak Hotel, daquele caminhoneiro que tornara-se sensação nos Estados Unidos. Como nos EUA, Elvis Presley atacou a Grã-Bretanha como um furacão, convertendo milhares de moleques sem rumo na vida na nova religião do rock’n’roll.

John comprou um violão (por 17 libras) e começou a deixar o topete no cabelo. Comprou uma jaqueta de couro e quase todo dia à noite, sintonizava a Rádio Luxemburgo, para ver se conseguia aprender – sem professor – aquelas músicas geniais que não paravam de vir da América. De lá vinham navios cargueiros cheios de revendedores de discos, que contrabandeavam os sucessos das rádios americanas para os disc-jóqueis ingleses, criando um verdadeiro mercado negro de discos americanos. Montou um conjunto com seus amigos Pete Shotton, Nigel Whalley e Ivan Vaughan, chamado The Quarrymen (em homenagem à escola que estudavam, a Quarry Bank School. Foi Vaughan quem, em um dos primeiros shows do conjunto (uma quermesse na igreja de St. Paul, no subúrbio de Woolton, entre a apresentação dos cachorros da força policial da cidade e um concurso de tortas), apresentou o jovem Lennon a um garoto mais novo chamado James Paul McCartney. Ivan convenceu Lennon, que estava bêbado, a ir conversar com Paul quando soube que este sabia tocar 20 Flight Rock, de Eddie Cochran. John gostou do que viu (embora esnobou-o para Ivan), mas dias após aquele lendário 6 de junho de 1957 pediu para Pete perguntar se Paul queria entrar no grupo. Ele aceitou.

Com o rock’n’roll, Lennon parecia conseguir canalizar toda sua angústia adolescente em algo que, ao menos para ele, parecia produtivo. Passou a dedicar-se ao grupo que, com a adição do guitarrista George Harrison, o baixista Stuart Sutcliffe e o baterista Pete Best, passou de Quarrymen a Long John & the Silver Beatles a simplesmente Silver Beatles. Originalmente o grupo iria se chamar Beetles (besouros), como os grilos (os Crickets) de Buddy Holly ou os próprios Beetles que eram a gangue inimiga de Marlon Brandon, no filme O Selvagem. Mas Lennon propôs a troca da segunda vogal repetida por um “a”, dando diversos duplos sentidos, que iam da geração literária Beat à palavra inglesa que designa batida, ritmo. Assim viajaram para Hamburgo, na Alemanha, onde passaram a tocar shows de 10 horas seguidas em que precisavam tocar qualquer tipo de música que lhes fosse pedido. Ao mesmo tempo em que entrosavam-se como músicos, aprendiam várias canções novas por dia e pegavam pique de palco. Era inevitável que se tornassem uma boa banda.

Ao mesmo tempo, curtiam como que às escondidas aquele parque temático para maiores de 18 anos chamado Hamburgo. Entre shows de strip-tease, casas noturnas de quinta categoria, punhados cheios de toda sorte de bolinhas goelas abaixo, brigas de gangue e intelectualismo de cais de porto, os Beatles estavam prestando vestibular para o baixo calão da sociedade alemã que, arrasada no pós-guerra, transformava-se num imenso submundo para sustentar sua auto-estima. Às vésperas dos 20 anos, os Beatles viviam o paraíso de sexo, drogas e rock’n’roll que qualquer adolescente do planeta espera da vida. Lennon encontrava a fantasia perfeita para encarar a insegurança que a vida havia lhe passado.

Quando voltaram a Liverpool (Stuart ficou na Alemanha, com sua namorada, a fotógrafa Astrid Kirchner, e Paul assumiu o baixo da banda), os Beatles eram uma banda em ponto de bala, azeitada para o sucesso. E foi este quem fez o garoto Raymond Jones entrar na loja de discos Northern England Music Store naquele 28 de outubro de 1961. Jones procurava um disco chamado My Bonnie que um grupo da cidade havia gravado na Alemanha com um cantor chamado Tony Sheridan. O dono da loja ficou intrigado e tratou de querer saber um pouco mais sobre o tal grupo. Foi esta curiosidade que levou o jovem Brian Epstein a ir à casa noturna Cavern Club no dia 8 de novembro daquele mesmo ano. Quando assistiu à explosão de energia que os Beatles proporcionavam aos 200 adolescentes que se espremiam no local, não teve dúvidas e começou a gerenciá-los. O primeiro passo foi livra-los das jaquetas de couro e dos topetes (a contragosto de Lennon) e trocar o baterista do grupo (saía o galã juvenil Pete Best – sob protesto das fãs – e entrava o preciso e pacato Ringo Starr). Depois, era só vendê-los do jeito certo e o tino comercial dos Epstein finalmente aflorava em Brian, que transformou o grupo em seu maior bem empresarial. O resto, como dizem, é história.

Com os Beatles, Lennon atravessou os anos 60 galvanizando uma estranha e carismática personalidade. Ao mesmo tempo em que parecia objetivo, franco e direto em suas entrevistas cheias de sarcasmo juvenil, suas músicas pediam socorro e mostravam um artista inseguro e tímido. “Ajude-me se puder, estou me sentindo mal”, cantava com entusiasmo em Help!, “ajude-me a por os pés de volta no chão”. Viver no furacão da Beatlemania já te deixava completamente alheio às noções de realidade, morando em quartos de hotel pelo mundo, entre entrevistas e sessões de fotos. Mas ser um Beatle era mais insuportável. Toda aquela euforia girava em torno de John, Paul, George e Ringo onde quer que eles fossem, não havia descanso para aquilo. E se no começo era uma felicidade púbere de um sonho impossível realizado, dando motivos de sobra para que os quatro se especializassem em ser os Beatles (isto é: gostar de ficar juntos, brincando o tempo todo e cantando canções apaixonantes), aos poucos foi se tornando a única forma de expressar o desespero de estar na locomotiva de um trem desgovernado.

“Eu sou um perdedor e eu não sou o que pareço”, cantava Lennon, que mais sofria, no disco Beatles for Sale, de 1964. “Viver é fácil com os olhos fechados, interpretando mal tudo que se vê”, filosofava Strawberry Fields Forever, em 1967. “Eu não consigo dormir, nem parar meu cérebro, já são duas semanas e eu estou ficando louco”, desesperava-se em I’m So Tired, de 1968. A cada oportunidade Lennon demonstrava o quanto aquela vida lhe desgraçava, queria sair. “Era preciso se humilhar para ser o que os Beatles eram. E é isso o que eu me arrependo, porque eu fiz aquilo”, disse logo após sair do grupo em sua histórica entrevista ao editor da revista Rolling Stone, Jann S. Wenner, em 1971 (que está sendo lançada na íntegra no livro Lennon Remembers), “Eu não percebi aquilo, aconteceu pouco a pouco até que esta completa loucura estava à nossa volta. E você estava fazendo exatamente o que não queria fazer com pessoas que não suportava – as pessoas que você odiava quando tinha dez anos. E é isso que eu estou dizendo neste disco (Plastic Ono Band, seu primeiro disco solo propriamente dito). Eu estou dizendo: ‘Fodam-se todos! Vocês não me pegam de novo!’”.

Desde os Beatles, o desespero pessoal era sanado graças a fugas de cunho espiritual, embora sempre embaladas em formatos diferentes como drogas, religiões, linhas ideológicas, políticas ou individualistas. Foi assim que descobriu acidentalmente a psicodelia Beatle entre recortes de jornal e velhos cartazes. Foi assim que abraçou a meditação transcendental do Maharishi Maheshi Yogi, a arte de vanguarda, o blues primitivo (Lennon estava no Rock’n’Roll Circus, lembram?), o pacifismo ativista, a manipulação da imprensa, a adoração ao rock e ao grande amor de sua vida, Yoko Ono.

Durante toda sua carreira, estava à procura de algo que nunca tivera: amor. Buscava ser amado das formas mais diferentes, cantando sobre o tema com gana e desesperança. Transformou o sentimento numa espécie de verdade absoluta, seguindo a convenção básica do cristianismo e a premissa do profeta João que dizia que “Deus é amor”. Lennon, por sua vez, desacreditava da religião e transformava o amor universal numa filosofia pessoal. “Eu só acredito em mim”, cantava quando começou a se ligar em sua própria ideologia, logo quando os Beatles não existiam mais.

Por sua discografia, cantava o medo de não ser aceito, que o perseguiu por toda vida e só encerrou-se com o nascimento do primeiro filho com Yoko, na mesma semana em que seu visto de permanência nos Estados Unidos era aceito. “Dizem que sou louco por fazer o que faço/ Me aconselham de todo jeito para me salvar da ruína”, cantava ao final de sua vida, quando já sabia o que precisava para ser feliz, “eu fico aqui apenas vendo as coisas acontecerem; gosto de vê-las rodar”. Dedicando-se à vida privada após 1975, Lennon descobriu na própria família tudo que precisava.

Era simples. É simples. O melhor da vida vem em coisas rotineiras, não em milagres ou acontecimentos históricos. Tudo isso é determinado pelo gosto de outras pessoas, por interesses de grupos sociais que querem dizer-se melhor que os outros. Como o melhor rock, Lennon sabia que tudo que é bom não tem frescura. Direto, com franqueza e transparente; sem segundas intenções ou troca de favores. O amor que Lennon passou a viver nos últimos anos de sua vida (deixando os negócios nas mãos de Yoko, que os tocava à base do misticismo e saía-se incrivelmente bem), o tornou completo, fazendo com que descobrisse que tudo que sempre procurara estivesse exatamente dentro de si mesmo.

A forma com que John expunha-se, abrindo sua vida privada e seus conflitos interiores ao olho público fez com que ele revelasse a indecisão e a sensibilidade que habitam a cabeça de qualquer pai de família. A vazão de seus sentimentos em entrevistas e canções criou um novo parâmetro masculino, em oposição ao durão vendido por Hollywood e o machão sensível fechado na tríade Elvis/Brando/Dean. Lennon tornava possível qualquer um extravasar seu lado infantil, senil, púbere e maduro ao mesmo tempo, sem precisar atrelá-los a faixas etárias.

“Nos próximos dias – sem coragem de dizer adeus a John – eu percebi uma das razões que fizeram-me sentir com medo, sozinho e sem acreditar nas notícias que continuavam a passar foi que eu formei minha vida adulta em torno deste cara de uma forma muito séria”. Dez anos depois da tal entrevista, o editor da Rolling Stone Wenner sintetizava os sentimentos de toda uma geração frente à morte de Lennon. Ela que veio nos lembrar de como é fácil se perder o que se tem, quando não se toma cuidado. Até o amor.

***

Ninguém me disse que ia ser assim
Imagine se John Lennon não tivesse morrido?

Todo dia, a mesma coisa: Lennon acordava, arrastava-se da cama até a porta de casa, enfiava a mão para fora, catava o jornal e ia para a copa, onde tomava um café e fumava o baseado que havia feito escondido no banheiro na noite anterior. Yoko ainda pegava em seu pé quando o assunto era drogas e o argumento “maconha não é droga” teve que ser substituído por “café e maconha não são drogas”. Ela sabia que John fazia aquele ritual adolescente todas as manhãs, mas fingia dormir para dar ao marido o gosto do prazer proibido, que era cada vez mais lhe negado à medida que ia ficando mais rico.

Goles e tragos após a página de esportes, pegava a seção de entretenimento do jornal e teve mais uma vez a nauseante visão dos três outros Beatles remoendo na carcaça de seu antigo grupo. “Esses porras precisam de mais dinheiro ainda?”, resmungava à meia-luz do começo do dia, “será que eles acham que vão ser mais respeitados por isso?”. Odiava a forma que Paul se referia àquela pilhagem do arquivo de seu passado como “projeto Anthology”, como se realmente tivesse alguma coisa a ver com aquilo. Havia dito não ao Live Aid, ao USA for Africa, à Anistia Internacional, ao Rock and Roll Hall of Fame, a Hollywood, à MTV (cinco ou seis vezes, pelo menos), a todo produtor de qualquer tributo que, por melhor que fossem as intenções, apenas queria a fama da reunião dos Beatles em benefício próprio. Não ia concordar em voltar os Beatles justamente para Paul, ainda mais depois de dois ou três cutucões que o ex-melhor amigo havia lhe dado em entrevistas. E daí que George Harrison estava falido? Ele que arrumasse uma Yoko pra tomar conta do dinheiro.

Mas o que mais incomodava Lennon era o fato de, 30 anos depois de seu fim, os Beatles ainda ocuparem as manchetes dos jornais. Se sentia preso a uma ditadura em torno do nome do conjunto que faria com que qualquer gesto seu parecesse ainda preso aos anos 60. Era apenas isso que lhe fazia enclausurar-se cada vez mais no caminho entre sua fazenda no norte da Inglaterra e a casa/escritório do Dakota. Desde que Sean Lennon nasceu, gravou apenas cinco álbuns, cada um deles com quatro anos de diferença entre si, todos saudados como “Lennon volta à velha forma”. Depois de Double Fantasy vieram Heart and Soul (de 1984, produzido por Nile Rodgers), Back Home (de 1988, nova parceria com Phil Spector), Road (de 1992, coletânea de gravações em festas de amigos, seu único vínculo com o palco) e Closer (de 1996, composto e gravado apenas ao piano, produzido por Don Was). Estava cansado de ser tratado como uma relíquia de uma época de ouro, mas não via outra forma de expressar-se em público e não ser envolto em nostalgia. Ainda mais quando observava o pop que tomava as paradas do ano 2000.

Misturaram o conceito da Beatlemania com uma nuance hip hop e nascem o pop jeca dos Backstreet Boys, ‘N Sync e companhia limitada. Diluem a fase de transição (65-66) dos Beatles com rock de arena e criam o britpop de bandas como Blur, Oasis, Stereophonics, Travis, Radiohead… A nova psicodelia do rock independente (Flaming Lips, Mercury Rev, Olivia Tremor Control, Gorky’s Zygotic Mynci, Grandaddy, Badly Drawn Boy, Neutral Milk Hotel) nada mais é que o tratamento épico de Abbey Road levado a discos como Yellow Submarine ou Let it Be. Hits modernos de Beck e Chemical Brothers surrupiam a base de Tomorrow Never Knows. Os anos 90 eram uma chatice para Lennon, que só saiu de casa para assistir a “shows de rock”, como gostava de enfatizar (a saber: Chuck Berry, Teenage Fanclub, James Brown, Happy Mondays, Nirvana e Jimmy Page com os Black Crowes – “pode parecer brega, mas eu adoro Led Zeppelin”). Não gostava de música eletrônica e cada vez mais se aprofundava em música negra, seu grande e confesso amor musical. Ciente de sua celebridade, passava a constranger repórteres e colegas ao simplesmente responder “rock’n’roll” às perguntas que lhes eram feita. Fazendo-se de bobo, dava a todos de forma polida e sarcástica o seu ponto de vista sobre as coisas. Aproveitando-se do mote autopublicitário de Lennon, os roteiristas do programa humorístico Saturday Night Live o eternizaram em sua única aparição pública de 1990, no natal, quando fizeram um programa inteiro em que sua única fala resumia-se a repetir “rock’n’roll”.

Chegava novamente dezembro de um ano com fim zero e Lennon sabia que estava ficando mais velho. Costumava duvidar que seu nascimento fosse realmente em outubro, uma vez que a cada dez anos, em dezembro, dava um passo crucial em sua trajetória de vida. Sua mãe (como ele) era relapsa o suficiente para o ter registrado na data errada. Mas sabia que dezembro era um mês importante em sua vida, o que fazia com que constantemente – e intimamente – se comparasse com Jesus Cristo. Não como um filho de Deus, John sequer acreditava nisso (“Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”, cantou), mas como um comunicador, um doutrinador das massas, uma pessoa cujo nível de identidade com o público o tornasse extremamente popular. E lembrou que o dezembro de 1980 foi marcado por dor e sofrimento, como se Judas tivesse vindo sete anos depois. Não fosse o pobre guarda-noturno que se jogou em sua frente (Fabio, era esse o nome?), talvez estivesse morto 20 anos antes.

E John Lennon pensou o que teria acontecido se tivesse morrido quando aquele fã maluco o tornou alvo. Tirando uma ou outra música com um certo timing temporal e uma série de aspas dadas de bandeja à imprensa abelhuda, sua influência nas últimas duas décadas era mínima. As pessoas ainda queriam o Beatle John, sem pensar que Revolution, Happy Xmas e Imagine eram canções políticas, Mind Games falava de amor, Help! era um grito de desespero e Instant Karma cantava a urgência da vida. Tudo que tinha dito havia se perdido entre refrões grudentos e letras simples e diretas; a racionalidade de sua expressão trocada pelo ímpeto do rock em estado bruto. Ninguém estava prestando atenção no que eles estava dizendo. Nunca estiveram.

Dias estranhos, de fato. Por isso ele pensa se vale voltar a aparecer no dezembro do ano 2000 ou se vai romper as expectativas com o silêncio que acompanha parte de sua carreira? Pessoalmente, é uma época crucial, troca de estação e rito de passagem. Para o público, é apenas o mês de natal em que ele terá sessenta anos. Será que valeria a pena voltar? Sim, vale. Cante John, estamos escutando.

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O não de Yoko Ono
A íntegra da declaração da viúva de John Lennon à justiça norte-americana, quando da ocasião do pedido de redução da pena de Mark Chapman

“Não é fácil para mim escrever esta carta, uma vez que ainda é muito dolorido pensar no que aconteceu naquela noite e verbalizar meus pensamentos de uma maneira lógica. Com seu único ato de violência, o ‘sujeito’ cuidou de mudar minha vida inteira, devastar os filhos (de Lennon) e trazer profunda tristeza e medo para o mundo. Foi, certamente, o poder de destruição trabalhando. Sua soltura dará um sinal verde para os outros que quiserem seguir as pegadas do ‘sujeito’ para receber a atenção do mundo. Temo que vá trazer de volta o pesadelo, o caos e a confusão. Eu e os dois filhos de John não nos sentiríamos seguros pelo resto de nossas vidas. Pessoas que estão em posição de alta visibilidade como John também se sentirão inseguras”
Yoko Ono

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Música inacabada
A discografia de John Lennon extende-se à medida que suas gravações não-oficiais continuam sendo lançadas

Unfinished Music No. 1 – Two Virgins
11 de novembro de 1968
A química instantânea entre John e Yoko fez com que o casal se entregasse a uma série de projetos pessoais, entre filmes, exposições e o próprio relacionamento. Two Virgins é o primeiro experimento musical da dupla. Musical é força de expressão, uma vez que o álbum consiste apenas de gravações caseiras superpostas como uma enorme colagem a la Revolution 9. A capa com os dois como vieram ao mundo é a responsável por torna-lo memorável.

Unfinished Music No. 2 – Life with the Lions
26 de maio de 1969
Continuação de Two Virgins, Life… retrata o primeiro de uma série de abortos que interromperam o sonho de Lennon e Ono tornarem-se pais do mesmo filho. O disco protesta quanto ao fato a maternidade do hospital Queen Charlotte não ter arrumado uma cama extra para Lennon ficar ao lado de Yoko durante o processo, tanto na capa (em que Lennon aparece deitado no chão do hospital) quanto na faixa No Bed for Beatle John. O disco ainda passa por momentos delicados da história do casal, com a gravação do coração do filho que mais tarde morreria (em Baby’s Heartbeat) e o luto por ele (em Two Minutos Silence).

Wedding Album
20 de outubro de 1969
O último disco experimental do casal, Wedding Album era o terceiro disco solo e comemora o casamento celebrado no dia 20 de março de 1969, em Gibraltar. O disco consiste de um exercício da terapia primal de Arthur Janov (a faixa John & Yoko, em que um diz o nome do outro de todas as formas possíveis) e a gravação de um de seus primeiros Bed-Ins, em Amsterdam.

Live Peace In Toronto
12 de dezembro de 1969
Um dos muitos dream teams que ex-Beatles entraram, a banda deste show contava com John, Yoko, o baixista Klaus Voorman (irmão de Astrid Kirchnerr e autor da capa de Revolver), Eric Clapton e o baterista Alan White (Yes). Mas o clima aqui ia além da música e queria falar de liberdade de expressão, com Yoko competindo com a guitarra de Clapton para ver quem faz mais barulho.

John Lennon/Plastic Ono Band
11 de dezembro de 1970
O primeiro álbum solo propriamente dito de Lennon (foi gravado simultaneamente com o homônimo de Yoko Ono, outro disco expressivo), Plastic Ono Band mostra o ex-Beatle colocando todas as frustrações para fora e fazendo com que todos conseguissem identificar-se com ele. “O sonho acabou, o que eu posso dizer?”, contentava-se em God. Tornava-se confessional ao extremo ao expor ainda mais a ausência materna em sua vida com Mother e My Mummy’s Dead. Outras faixas resumem seu sentimento individualista nos títulos, como Isolation, I Found Out e Working Class Hero. Com este álbum, Lennon sacode a poeira beatle e nasce um novo artista, disposto a se reescrever.

Imagine
9 de setembro de 1971
Imagine continua a linha aberta em Plastic Ono Band, embora numa vertente mais pop e menos visceral (apesar das presenças de Gimme Some Truth e da anti-McCartney How Do You Sleep?). Baladas como a faixa-título, Jealous Guy, Oh! Yoko, a existencialista How? e a bela Oh My Love trazem um Lennon mais doce e pacífico, digerível e consumível, sem perder a essência de seu trabalho, a insegurança na maturidade, explicitada no boogie rock de It’s So Hard e I Don’t Want to Be a Soldier.

Some Time In New York City
12 de junho de 1972
Outro álbum assinado como um casal, Some Time… é um álbum duplo cujo primeiro disco é carregado de teor político, listando ativistas como John Sinclair e Angela Davis ao mesmo tempo que falava de causas polêmicas como a penitenciária de Attica e o atrito entre irlandeses e ingleses e criticava o sistema de celebridades e educacional fomentados pela sociedade capitalista. A idéia era dar as notícias às pessoas, por isso a capa imitava um jornal. O segundo álbum conta com uma versão ao vivo para Cold Turkey e a participação de John Lennon num show de Frank Zappa. Mais que consistente, Some Time… é um álbum pitoresco e cede ao declínio entre seus dois discos anteriores.

Mind Games
9 de novembro de 1973
O disco de 73 faz com que Lennon volte às políticas individualistas de seus dois primeiros álbuns, embora sem tanta convicção. Mesmo com o arranjo horizontal da faixa-título espalhando uma placidez pôr-do-sol por todo disco, Mind Games não tem a consistência de álbum que todos os discos anteriores de Lennon tiveram.

Walls And Bridges
26 de setembro de 1974
Descrito como “uma carta aberta à ausência de Yoko”, Walls and Bridges foi gravado durante o período de sua vida que Lennon batizou de “fim-de-semana perdido”, quando entregou-se às regalias da vida de celebridade na Califórnia, saindo para farras intermináveis com Ringo, Keith Moon e Elton John., deixando Yoko Ono em Nova York por mais de um ano. O disco reflete bem o estado de espírito de Lennon à época, entre o devaneio (#9 Dream), a confissão (Going Down on Love) e o remorso (What You Got).

Rock ‘N’ Roll
17 de fevereiro de 1975
Lennon desce aos porões da adolescência para, ao lado do parceiro Phil Spector, resgatar seus vínculos seculares com sua arte essencial, o rock primitivo. Ele visita Elvis (Just Because), Buddy Holly (Peggy Sue), Gene Vincent (Be Bop-A-Lula), Ben E. King (com a definitiva versão para Stand By Me), Chuck Berry (You Can’t Catch Me e Sweet Little Sixteen), Little Richard (Slippin’ and Slidin’), Sam Cooke (Bring It On Home to Me), entre outros. Num álbum memorável que prevê a aposentadoria do artista ao encerrar com um profético “Goodbye!”.

Shaved Fish
24 de outubro de 1975
Ao nascimento de Sean Ono Lennon, John despediu-se do mercado com a coletânea Shaved Fish, em que reunia seus maiores sucessos em carreira solo antes de recolher-se à sua vida de dono-de-casa (househusband, como brincava). O grande atrativo da compilação era o fato de tornar disponível faixas como Cold Turkey, Instant Karma, Give Peace a Chance, Power to the People e Happy Xmas (War is Over), que antes só haviam aparecido em compactos.

Double Fantasy
17 de novembro de 1980
Último disco de Lennon em vida, Double Fantasy celebra o auge da vida a três com Yoko e Sean com a atmosfera caseira e pé-no-chão daqueles dias. A faixa (Just Like) Starting Over pode ser considerada responsável pelo retorno de centenas de artistas dos anos 60 que sumiram de cena naquele começo dos 80. Mas esta é a única responsabilidade do álbum, em que o autor prefere explicar como enxerga a vida aos 40 anos de idade em canções contemplativas como Watching the Wheels, Woman e Beautiful Boy (Darling Sean). Equilibrando com o bom humor do marido vem algumas das músicas mais pop da discografia bizarra de Yoko Ono.

John Lennon Collection
8 de novembro de 1982
O primeiro lançamento oficial após a morte de Lennon, a coletânea é, na verdade, um upgrade de Shaved Fish, com quatro faixas de Double Fantasy e uma de Rock’n’Roll. A versão em CD conta com quatro faixas a mais.

Milk And Honey
23 de janeiro de 1984
Começa a pilhagem do arquivo póstumo de Lennon, quando Yoko Ono comete o erro de lançar o disco que Lennon estava planejando quando morreu. Milk and Honey é uma pálida continuação de Double Fantasy, com faixas ainda na pré-produção, sem o tratamento genial que somente Lennon (e às vezes, nem ele) poderia dar às próprias canções. Um hit – Nobody Told Me – e o disco foi recolhido de catálogo pela própria viúva, tornando-o uma espécie de “pirata oficial”.

Live In New York City
24 de fevereiro de 1986
Dois anos depois, a viúva volta a lançar mais material inédito de Lennon. A diferença é que Live… é um show inteiro – e que show! A última aparição de Lennon ao lado de Yoko num mesmo palco, o disco flagra a apresentação de Lennon com a Elephant Memory Band no dia 30 de agosto de 1972. Com um som cheio e massudo (há duas guitarras, dois teclados, dois baixos, dois tudo), Lennon desfila seu magnetismo de palco com brilho ímpar, botando toda a platéia no bolso. Memorável.

Menlove Ave.
3 de novembro de 1986
Mais sobras de estúdio voltam a aparecer em forma de coletânea. Aqui o material é tirado das sessões de Walls and Bridges (Steel and Glass, Old Dirt Road, Here We Go Again e Rock and Roll People) e Rock’n’Roll (Angel Baby, To Know Her is to Love Her e Since My Baby Left Me). O disco é batizado após a rua em que Lennon cresceu em Liverpool.

Imagine: John Lennon
10 de outubro de 1988
Nova coletânea, novas raridades. Trilha sonora para o documentário Imagine (feito em resposta à escandalosa biografia The Lives of John Lennon, de Albert Goldman), o disco duplo conta a história de Lennon desde os Beatles até 1980, ressuscitando-o do passado com uma faixa que seria retomada pelos beatles remanescentes em 1996, Real Love.

Lennon
30 de outubro de 1990
Nova coletânea, novas raridades. Esta caixa de quatro vinis está fora de catálogo desde que foi lançada, mas conta com um tratamento visual de primeira e com as últimas apresentações ao vivo de Lennon (sem Yoko), quando o ex-Beatle subiu no palco com Elton John para cantar I Saw Her Standing There e Lucy in the Sky with Diamonds, em 1974.

Lennon Legend
27 de outubro de 1997
Feita sob medida para a geração Oasis, a coletânea Legend volta a enfatizar os hits do autor, uma vez que a John Lennon Collection desapareceu das prateleiras inglesas. Nada a acrescentar na discografia do inglês, a não ser popularidade.

John Lennon Anthology
2 de novembro de 1998
Aguardada caixa com o melhor do arquivo de Yoko Ono, Anthology traz momentos memoráveis e não-oficiais da carreira de Lennon, como paródias (ele transforma Yesterday num filme de horror e imita Bob Dylan diversas vezes), participações especiais em programas de TV, shows antológicos (como a apresentação sem bateria no lendário teatro Apollo), sua versão para Be My Baby (orquestrada pelo próprio Phil Spector), além de versões alternativas, caseiras, diferentes, inesperadas e os conflitos no estúdio envolvendo Lennon. Para quem não é fã, a faixa é como uma biografia não-autorizada, como se pudéssemos olhar a história de Lennon pelo buraco da fechadura. Para o fã, é obrigatória. Para quem não pode pagar a caixa, a gravadora lançou simultaneamente a coletânea Wonsaponatime.

Eram quatro sujeitos briguentos, geniosos, difíceis de se lidar. Mimados como a primeira tropa da nova revolução musical e comportamental no planeta, os quatro tornaram-se ainda mais temperamentais, explodindo raiva em cima de todos com quem conviviam, incluindo eles mesmos. Mas, juntos, Mick Jones, Joe Strummer, Paul Simonon e Topper Headon tinham um entrosamento difícil de conceber mas transparente, intacta.

“Raiva pode ser poder” cantaram em seu disco mais memorável – o clássico London Calling – e seguiram este credo por toda sua curta existência, erguendo, como na gênese do rock, a bandeira da insatisfação, apatia e rebeldia de toda uma geração contra uma série de regras preestabelecidas por adultos de forma agressiva e sem meios termos. Grunhindo opiniões sobre todos tipos de política (governamental, individual, social, internacional, sentimental, existencial), o grupo traduzia os elementos básicos do rock como parte de uma revolução pessoal que, através de suas músicas, batia em todas as portas recrutando soldados da nova cruzada. “O rock da revolução”, como eles mesmos disseram, “é um estado de choque”.

Mas embora a química perfeita dos músicos combine com suas personalidades exigentes e sua imagem praticamente intacta (comparando-se apenas ao Who no quesito “rock perfeito”), o Clash começou através das mãos de um empresário, Bernie Rhodes, que quis aproveitar o vácuo deixado por mais um das picaretagens de seu rival, Malcolm McLaren. Este havia juntado quatro moleques com total liberdade para serem os piores possíveis e tocarem o mais alto que conseguissem (criando os Sex Pistols). Com eles, o empresário conseguiu o espaço que queria para lançar suas idéias e, depois de circular pelas ruas de Londres à noite, inventou a estética do punk e a vendeu para a mídia.

Rhodes havia percebido a possibilidade de McLaren estar certo e na mesma hora catou músicos da banda 101ers com da London SS, duas bandas barulhentas que lutavam por um lugar ao sol pelos squats londrinos. Da 101ers (cujo nome saiu do número do squat que eles moravam – o mesmo da sala de tortura de 1984, de George Orwell) saíram o guitarrista Keith Levene, o vocalista Joe Strummer e o baterista Terry Chimes (também conhecido por Tory Crimes, apelido que pode ser traduzido por “crimes do partido trabalhista”). Da London SS saíram o guitarrista Mick Jones e o baixista (e estudante de arte) Paul Simonon. O nome, Clash (“confronto”), era uma palavra freqüente nas manchetes dos jornais.

Levene saiu da banda logo no começo, iniciando sua carreira de outsider (sairia também, mais tarde, do Magazine e do Public Image Ltd.), Chimes substituído rapidamente por Tony James (que depois iria para o Generation X e, mais tarde, para o Sigue Sigue Sputinik), que saiu para dar lugar a Topper Headon (que havia tocado no London SS). Como um quinteto, eles entraram na primeira turnê dos Sex Pistols pela Inglaterra em 1976 – na lendária Anarchy in the UK Tour (que deu origem a grupos como Joy Division, Buzzcocks e Siouxsie & the Banshees) – e logo se tornaram o equivalente Rolling Stones dos Beatles Sex Pistols.

A princípio, a comparação era justa. Em seus dois primeiros discos (The Clash – ainda com Chimes – e Give’Em Enough Rope), o Clash era uma banda tão barulhenta como os Pistols, mas mais viscerais. Como os Stones, o Clash bebia direto na fonte da música negra: enquanto Jagger, Richards e Jones contrabandeavam discos de blues e rhythm’n’blues norte-americanos no início da década de 60, os quatro punks vinham se embebedando de música jamaicana, que ao mesmo tempo que tomava conta dos guetos londrinos vinha ganhando popularidade e entrando na mídia através de Bob Marley.

Gravaram “Police & Thieves”, de Junior Murvin, em um de seus primeiros singles, e “Complete Control” foi produzido por Lee “Scratch” Perry. Este contato com o reggae e seus afluentes deu-lhes não apenas uma noção mais pessoal e ao mesmo tempo global da noção de política que o grupo pregava em seus hinos do contra com menos de dois minutos, como funcionou como a chave para a expansão do conceito punk que o Clash abriria logo depois de gastar sua munição pesada nos discos de estréia.

Como os Sex Pistols, o Clash esgotou-se após o segundo disco. O punk tosco e primitivo contra tudo e contra todos dos dois grupos começaria a se repetir, foi a gota d’água. Os Pistols debandaram em San Francisco, depois da única e fatídica turnê pelos Estados Unidos, em que Syd Vicious furava suas mãos com cacos de vidro gigantescos só para impressionar os caubóis americanos. O Clash desviou o esgotamento criativo por culpa do reggae. Ao adotar o ritmo jamaicano, o grupo inglês logo tinha um vínculo com algo maior que a classe operária inglesa. Logo falavam de problemas mundiais, de crises internacionais e dos oprimidos em geral. Musicalmente, o reggae libertava-os dos padrões estéticos tradicionais do punk. Por um lado, a influência latina e africana os deixava confortáveis com as variantes de ritmo. Por outro, tomavam emprestado o soul e o blues que os reggaeiros surrupiaram dos EUA para transformar o ska em rock steady. E finalmente o dub os mostrou que não há limites se o assunto é experimentação em estúdio.

Assim, começaram a gravar o disco que os consagraria na história do rock. Mais do que firmá-los como sobreviventes da primeira leva do punk inglês, London Calling transformou o grupo num grupo de rock perfeito. Expandindo seus horizontes musicais à medida que o disco vinha sendo gravado, o Clash resolveu aventurar-se por diferentes terrenos sonoros, indo cada vez mais longe à medida que iam andando. E à medida que iam gravando, assistidos pelo produtor Guy Stevens (o mesmo do Mott the Hopple), desvendavam a amplitude da música popular de seus tempos e ligavam pontos e gêneros, descortinando não apenas o amadurecimento musical do grupo, mas todo um universo musical cujas partes insistiam em fingir não ser um todo. “Eclético” foi o adjetivo usado para descrevê-lo no início, mas o Clash não estava sendo várias bandas, mas apenas eles mesmos, quem eles queriam ser. Com o auxílio do tecladista Mickey Gallagher (que tocava nos Blockheads, com Ian Dury) e de um time de metais, o disco tem reggae, jazz, rockabilly, rock, música latina e a versão que a dinâmica entre quatro sujeitos de convivência difícil dava à música que eles tocavam.

“London Calling” abre às marteladas que Joe Strummer e Mick Jones dão em suas guitarras à medida que Topper Headon golpeia metronomicamente sua bateria. Paul Simonon entra escorregadio, sorrateiro, como se observasse o tumulto à distância até a introdução deixar Strummer berrar o início da música. “Londres chama as cidades distantes/ Agora que a guerra começou e a batalha vem aí”, Joe canta sobre uma Londres decadente, mas de outro ponto de vista. Se antes gritava London’s Burning como se comemorasse o caos que é o inferno, agora assiste a tudo friamente, sem emoção: “A era glacial está vindo/ O sol se aproxima/ Máquinas parando, o trigo cresce magro/ Um erro nuclear, mas eu não tenho medo/ Porque Londres afunda e eu vivo à margem”. A mensagem é simples, mas descrita de forma apocalíptica e fatal; o instrumental também amadurece instantaneamente. Mick Jones empunha sua guitarra como um verdadeiro guitar hero (mas sem solar, apenas soltando os guinchos que o punk lhe ensinou), a cozinha deixa a canção com ar pesado e sombrio, Strummer canta como se fosse o último homem vivo e eles se dão ao luxo até de alguns overdubs, como as guitarras invertidas da metade da música e o código morse ao final.

A faixa-título cai com a força de uma bomba, mas mesmo entre a poeira levantada percebemos ser uma canção correta, bem acabada, pop (tanto que o Kid Abelha surrupiou sua introdução para compor “Educação Sentimental II”, substituindo o baixo pelo sax). Não tem a agressividade de um coquetel molotov nem a violência de um porrete, mas acerta em todos os alvos em que mira justamente por tirar o punk da sociedade. Enquanto a maioria reclama das condições de vida e contra o sistema, o Clash sai um pouco da cidade e tenta observar tudo de fora. Com este distanciamento – e graças à então nascente crítica musical rock nos Estados Unidos -, eles contaram a história do rock de seu próprio ponto de vista. O punk não era uma ruptura, era apenas uma afirmação de uma certa marginalidade que sempre existiu no ser humano. A diferença é que marginal vem de “margem” e não significa ladrão ou mau caráter. Por todo London Calling assistimos histórias de personagens que negam-se a viver como o sistema quer justamente por ir de encontro ao indivíduo. E entre caubóis, soldados, apostadores, fugitivos, artistas, rude boys, rockers, mocinhos e operários, o Clash mostra que é preciso sair da vida quadrada que planejaram pra gente se quisermos ter um mínimo de verdade em nossas vidas.

“Brand New Cadillac” aponta para uma direção que não havíamos pensado no punk inglês. Enquanto o punk americano sabiam quem eram seus ancestrais (os Ramones amavam surf music e bubblegum, os Talking Heads e o Blondie era um grupo de garagem, os Feelies recitavam Beatles e Rolling Stones e Modern Lovers e Velvet Underground, o Television urbanizava a guitarra psicodélica), a versão britânica do surto de rebeldia juvenil que tomou o planeta de assalto nos anos 70 faziam questão de mostrar o quanto diferente eles eram de tudo que havia vindo antes. A primeira onda de punk da Inglaterra é tosca, mal tocada, grotesca, rude, primitiva: Sham 69, X-Ray Specs, Damned, 999.

O Clash surgiu como uma das primeiras bandas daquela tropa pioneira capitaneada por Johnny Rotten, Syd Vicious, Steve Jones e Glen Matlock. Mas à medida que esta primeira geração se viu presa no próprio estilo que haviam irrompido, uma segunda aparecia sem vergonha de dizer que eram herdeiros de alguns ídolos do passado. O Joy Division citava Velvet Underground e Doors, o Gang of Four usava Marx e funk ao mesmo tempo, as bandas da 2Tone – Specials, Madness, Selecter – desvendavam o ska dos anos 60 para a eternidade, os Buzzcocks e os Undertones vinham da fase careta dos Beatles. Podia ser um mundo novo, mas existia um passado.

Quando o Clash invade os anos 50 de jaqueta e topete empolgadíssimo com o Cadillac novinho que a namorada do protagonista acabou de comprar, eles oficializam essa tendência. Encarnam o rockabilly com uma garra não vista desde “Long Tall Sally” e Strummer encarna o mocinho que toma um pé na bunda na última cena (“Balls to you daddy”/ Ela não vai voltar pra mim!”) com perfeição, enquanto a banda, afiadíssima, galopa o rock caipira americano em direção ao punk. E enquanto todos esperam que o herói da música seja o vocalista, vemos sua namorada, com um carrão, deixando o cara pra trás.

“Jimmy Jazz” volta ainda mais no tempo e muda o espaço. Logo estamos num beco sujo e mal iluminado, onde a guitarra perambula chutando latas ao som de pessoas conversando em algum clubinho noturno. O assobio desinteressado entra em ação junto com o baixo e Strummer explica a situação: “A polícia entrou procurando Jimmy Jazz/ Eu disse, ele não está aqui, mas já esteve”. Boemia de subúrbio, jazz ainda sendo tratado como coisa de marginal, a canção dança enquanto caminha, rebolando à medida que anda, contando os tempos da música a cada passo. A primeira intervenção do trio de metais acontece nessa faixa, tirando o Clash do punk e sua filosofia de vida dos anos 70. Logo o punk não é mais bandido, nem os bandidos são os vilões, os vilões têm um charme próprio deles. “Que alívio”, agradece Strummer, “me sinto como um soldado e pareço um ladrão”.

“Hateful” entra incisiva, disposta a quebrar o ambiente sossegado que o lado A parece estar criando. Mas no lugar de um esporro punk tradicional, eles conduzem sua energia para as tradicionais batidas pesadas de Bo Diddley, numa ótima faixa, com backing vocals trabalhados de forma inteligente e criativa, que canta sobre a triste relação de pseudoamizade entre usuário e traficante de drogas: “Tudo que eu quero ele me consegue/ Tudo que eu quero ele me dá, mas não de graça/ É odiável/ E é pago e eu agradeço por não estar em nenhum lugar”. “Rudie Can’t Fail” encerra esta introdução do disco com mais um reggae na carreira do Clash. Canta sobre fugir de casa e encarar o mundo “bebendo cerveja como café da manhã”. Mas diferente dos outros reggaes do grupo, este é mais melódico, com o time de metais e com cozinha bem amarrada transpondo o Clash para o Caribe. E é o primeiro vocal de Mick no disco (“Sing Michael Sing”, ordena Strummer no começo da canção): “Fui ao mercado entender minha alma/ O que eu preciso, não tenho”.

Depois de cinco faixas que explicam didaticamente os limites do álbum, London Calling começa pra valer. “Spanish Bombs” nos leva à Guerra Civil espanhola, numa das melhores músicas do disco. Novamente com vocais de Mick Jones, a faixa descreve um cenário em que as forças militares do governo espanhol (que deram um golpe liderado pelo General Franco em 1936) aniquilavam os rebeldes anarquistas em fuzilamentos em praça pública. Jones canta sobre os “buracos de bala nas paredes do cemitério”, “o exército esfarrapado consertando baionetas para lutar em outro front” e “os carros pretos da Guardia Civil”. No refrão, em espanhol, Mick traz a revolução para o nível pessoal, declarando-se apaixonado pela causa que persegue: “Yo te quiero y finito/ yo te querda, oh, mi corazón!”. Em outras músicas ele continuará cantando entre o global e o individual, usando o amor como metáfora da política e explicando o jeito certo dos dois darem certo – com a verdade.

A voz fria e grave de Mick Jones contrapõe-se à garganta rasgada de Strummer, cujo excelente timbre o transforma numa espécie de roqueiro seminal, clássico, irmão temporão dos primeiros rockers e dos galãs de Hollywood dos anos 50. E é assim que ele entra em “The Right Profile”: “Onde eu que eu vi esse cara?/ No Rio Vermelho?/ Em Um Lugar ao Sol?/ Talvez em Os Desajustados/ Ou A Um Passo da Eternidade?”. Descreve o acidente de carro que matou o ator Montgomery Clift (“Eu vejo um carro destruído à noite/ Cortar o aplauso e diminuir as luzes/ A cara de Monty está quebrada no volante/ Ele tá vivo? Ele sente?”) e da reação de espanto dos transeuntes, que o reconhecem incrédulos: “Todo mundo diz: ‘Ele tá legal?’/ Todo mundo diz: ‘Como ele é?’/ Todo mundo diz: ‘É lógico que é engraçado/ É o Montgomery Clift, honey!”). Strummer canta a apatia do protagonista morto (“Nembutol anestesia tudo/ Mas eu prefiro álcool”) e o desespero dos fãs (tendo um colapso próximo ao fim da música), encarnando ambas formas de energia como se pudesse senti-las. “The Right Profile” também conta com metais, que dão o groove jazzy que os Stones conseguiram em Exile on Main Street.

“Estou perdido no supermercado/ Não posso mais comprar alegremente/ Eu vim aqui por causa daquela oferta especial: / Personalidade garantida”, Jones canta sussurrando sobre a base que sua guitarra havia desenhado dos oito primeiros compassos de “Lost in the Supermarket”. Tocado de forma leve e correta, este refrão acaba criando a sensação de desespero totalitarista que o capitalismo impõe (“Estou sintonizado, assisto seus programas/ Guardo cupons dos pacotes de chá/ Eu tenho meu disco de grandes hits da discoteca/ Esvazio uma garrafa e me sinto um pouco mais livre”). Durante as estrofes, o teclado de Mickey Gallagher surge sutil e ao mesmo tempo imponente, deixando Jones livre para suas recriações na guitarra. Ele não decide entre a base ou o solo e deixa o instrumento falar mais alto no primeiro solo de guitarra. E durante um lamento sobre a solidão (“Os garotos no pátio e os canos na parede/ Fazendo barulho como companhia”), Mick Jones batiza o grupo de humor canadense Kids in the Hall.

“Clampdown” é a vez de Strummer atacar o sistema. As três últimas músicas do lado B do disco são petardos pessoais contra o imperialismo vigente. “Lost in the Supermarket” usa da ironia e da inversão de valores; “Clampdown” é direta e didática; “Guns of Brixton” – de Paul Simonon – vê pelo ponto de vista do oprimido. A versão de Joe Strummer para a investida ideológica explica, sobre um punk tradicionalmente clashiano (baseado no ritmo e na seqüência de simples acordes), as principais regras do jogo, ao trabalhar para um patrão. “Você cresce e se acalma/ (…) E começa a vestir azul e marrom/ Então precisa de alguém para mandar/ Pra se sentir grande/ Você afunda até brutalizar/ Você acabou de matar pela primeira vez”. A agressividade marcial da canção ajuda a enfatizar a força das letras: “Deixe a fúria ter sua vez, raiva pode ser poder/ Você sabia que pode usá-la?”. Jones entra no meio da canção, invadindo com um trecho de uma música sua que não conseguiu sobreviver ao tempo, tornando-se coadjuvante de Strummer ali. Mas não fez por menos: “Vozes em sua cabeça estão dizendo/ ‘Pare de gastar seu tempo, nada vai acontecer/ Só um tolo acreditaria que alguém irá te salvar/ Os caras da fábrica estão velhos e gastos/ Você não tem nada a perder, por isso saia correndo/ São os melhores anos da sua vida que querem roubar”.

É claro que um conjunto pode se basear apenas no talento de uma só pessoa. Mas quando duas personalidades dividem o mesmo palco, uma tensão criativa emblemática é travada, gerando jóias perfeitas. A existência de um terceiro elemento nesta disputa, um ponto de equilíbrio entre os dois egos do grupo, é uma das características mais clássicas na história do rock. É só pensar em George Harrison nos Beatles, Sérgio Dias nos Mutantes, John Bonhan no Led Zeppelin, Keith Moon no Who, Sterling Morrison no Velvet Underground e por aí vai.

No Clash, este terceiro vértice era o baixista Paul Simonon. Enquanto Strummer se esforçava para transformar-se num bad boy à americana, Simonon era tudo que ele queria ser. Topete, olhar distante e ar de apatia que dava o tom blasé que Strummer incorporava, Paul era estudante de arte e morava nas ruas, um misto de James Dean com Dean Moriarty do punk. Tocar baixo numa banda punk era só mais uma das coisas que ele achou que podia fazer, mesmo sem nunca ter tocado um instrumento. Foi lá e conseguiu seu lugar. A ponto de compor sua primeira música no Clash em seu melhor álbum e transformá-la em um dos principais momentos do disco.

“Guns of Brixton” não tem meios-termos. “Quando chutarem sua porta da frente/ Como você vai sair?/ Com as mãos na cabeça/ Ou engatilhado?/ Quando a lei vier/ O que você vai fazer?/ Baleado na calçada/ Ou no corredor da morte?”. É um reggae fantasmagórico, que o usa o poder de hipnotismo do dub para juntar nuvens negras sob o disco. O baixo de Simonon é ostensivo e agressivo, como uma arma levantada em direção ao ouvinte, e combina com o vocal monocórdico e com sotaque rasta forçado. “Você pode nos esmagar/ Você pode nos pisar/ Mas terá que responderá/ Às armas de Brixton”, saúda a principal colônia jamaicana em Londres. Como “Within You Without You” no meio de Sgt. Pepper’s, “Guns of Brixton” tem um papel fundamental em London Calling: é ela quem dá o crédito de rua do grupo. Sem ela, London Calling soaria como a árvore genealógica do rock contada por analistas políticos. Com ela, o disco ganha de volta toda energia punk que abandonara a favor do rock’n’roll.

A eficácia de “Guns of Brixton” pode ser sentida na ordem das músicas a seguir. “Death or Glory”, um dos mais céticos e apaixonados hino ao rock’n’roll, seria a opção perfeita para abrir a segunda parte de um disco cujo nome de trabalho era The New Testament (O Novo Testamento). Mas invejosos do trunfo de Simonon, Strummer e Jones resolveram recomeçar com um reggae, para mostrar que também conseguiriam fazer aquilo (dariam a resposta na dobradinha “One More Time”/ “One More Dub” no álbum seguinte, Sandinista!).

“Wrong’Em Boyo” começa como uma balada punk (com teclados e sopros mágicos), descrevendo uma partida de pôquer entre Billy e Stagger Lee, até que o primeiro, percebendo que vai perder, anuncia mentalmente ao parceiro de mesa que vai roubar “Vou ter que deixar minha faca em suas costas”. “Vamos começar tudo de novo”, pára Strummer no meio da música, transformando-a num ska festivo. A letra é um sermão: “Por que você tenta roubar/ Passar por cima dos outros/ Você não sabe que é errado roubar aquele que tenta?/ É melhor parar, é onda errada” e o clima da canção transforma a aula numa pregação gospel nas ruas de Kingston, num dos melhores momentos caribenhos do grupo.

Sem esperar, “Death or Glory” entra com a base do refrão, para que o público possa cantá-lo antes da música efetivamente começar. Num belíssimo trabalho de guitarras, eles explicam a mitologia do rock’n’roll em uma frase: “morte ou glória torna-se apenas mais uma história”. Eles explicam a repetição da história e como esta acaba se justificando, despindo o rock de suas farsas: “Qualquer idiota cheio de trejeitos cavando ouro do rock’n’roll/ Pega o microfone e diz que morrerá antes de se vender/ Mas acredito nisto e foi confirmado em pesquisas: ‘Aquele que come freiras, mais tarde se junta à igreja’”. Jogando a fama no lixo, eles explicam qual é a deste sentimento chamado rock – “De todo porão sujo e de toda rua suja/ Ouço cada uma das palmas batidas sobre cada um dos ritmos/ É o ritmo do tempo, o ritmo que deve ir/ Se você tem tentado por anos, já ouvimos sua canção”.

“Death or Glory” é uma ode ao gênero maior que “Rock’n’Roll” do Led Zeppelin, “It’s Only Rock’n’Roll” dos Stones e talvez até que “Rock and Roll” do Velvet Underground. Ela varia tempos, abre espaços, cria cenários diferentes à medida que é executada praticamente sem sair do ritmo original, sempre tocado com vigor. Quando Strummer começa a improvisar, balbuciando que “vamos marchar um longo caminho/ vamos viajar por um bom tempo/ vamos viajar pelas montanhas/ vamos viajar sobre os mares”, ele parece um Winston Churchill do punk, só carisma e presença de espírito, clamando as tropas para uma luta que possivelmente não acabe nunca: “Vamos criar problemas, vamos criar o inferno!”, brada entusiasmado, antes da banda voltar ao refrão.

“Elevador, subindo”, sorri o mesmo Strummer no começo de “Koka-Kola”. Na mira do Clash agora está a cocaína, que, em 1979, era a droga da moda. Apesar de conhecer os efeitos nocivos da droga, o grupo não quer reprimi-la – apenas a usa como forma de ironizar da nascente nova classe dominante, jovens executivos engravatados que mandariam nos anos 80 achando que eram modernos porque usavam brincos e… cheiravam cocaína. “Nos corredores lustrosos do 51º andar/ Dinheiro pode ser feito se você quiser mais/ Decisão executiva – precisão clínica/ Pula da janela, cheio de indecisão/ Recebi uma boa nova do mundo da propaganda/ (…) Koka adiciona vida onde não existe/ Então, pare cara. Pare” – ele diz “so freeze man, freeze”, como se apontasse uma arma para o ouvinte.

“É a pauta que refresca nos corredores do poder/ Quando os altos cargos precisam de altas doses um pouco antes do happy hour/ Sua mala de pele de cobra, suas botas de couro de jacaré/ Você não precisa de lavanderia, mande-os pro veterinário”. Yuppies e publicitários, “seus olhos parecem bolas de pinball/ Sua língua fica igual um peixe”, eles acabariam com os anos 80. “Propaganda de Koka-Kola e kokaína/ Descendo pela Broadway na chuva/ A luz do neon diz isso”. A música aponta que a cocaína está onde poucos pensavam na época “Na Casa Branca, que eu sei/ Em Berlim (fazem há anos)/ e em Manhattan”.

“The Card Cheat” começa ao piano, uma baladaça anos 50 tocada com a força de uma banda punk. “Eis um solitário gritando: ‘Me segure’/ Só porque está só/ Se o senhor do tempo correr devagar/ Ele não continuará vivo por muito tempo/ Se ele ao menos tivesse tempo de dizer todas as coisas que planejou/ Com uma carta na manga, o que ele conseguiria?/ Não quer dizer nada”, ele canta novamente sobre uma mesa de cartas e a vontade de roubar o adversário cuja face “quebra com um sorriso/ quando ele baixa o rei de espadas”. Cantando como se realmente dependesse disto (em um de seus melhores vocais), Jones passa de apostador a soldado e chora a perda da amada: “Da guerra dos 100 anos à Criméia/ Com uma lança, um mosquete ou um dardo romano/ A todos os homens que enfrentaram sem medo/ A serviço do rei/ Antes de encontrar seu destino/ Certifique-se antes de desaparecer/ Sua amada pode não estar mais na volta”.

“Lover’s Rock” abre o último lado do disco num rock sossegadíssimo, respirando ares caribenhos para cantar o jeito certo de fazer amor: “Você deve tratar sua garota direito/ Se quiser fazer o lover’s rock/ Você deve saber onde beijar/ Se quiser fazer o lover’s rock”. A música prega a atenção às preliminares e uma visão menos machista do ato sexual, afinal “ela não precisa daquela coisa que ela tem que engolir”, canta Strummer para logo depois certificar-se “sabe do que eu tô falando?”. O final da música perde o apelo caliente para ganhar velocidade e ritmo.

Em “Four Horsemen” o grupo chega como quatro caubóis correndo contra a corrente. “Lhes deram todas as comidas da vaidade/ E todas as promessas de imortalidade/ Mas saíram correndo gritando ‘insanidade!’”. A própria formação do grupo é descrita, num misto de velho oeste, Easy Rider e sua própria história: “Um veio do abismo, o outro do penhasco/ Outro bebia todas com um enorme baseado/ Quando pegaram o carona, este não queria mais sair”. E perguntam ao ouvinte o quanto ele está envolvido: “Mas você, você não está procurando, está?/ Não está olhando pra lugar nenhum/ Nunca andará uma milha só/ Ou colocar a si mesmo em julgamento/ Você me disse que a sua vida está ruim/ Eu acredito, mas pra mim parece triste/ Mas esse é o preço a se pagar/ Por ficar de preguiça todo dia”. I’m Not Down, cantada por Jones e Strummer, é o cuspe na cara do torturador: “Fui espancado, jogado fora/ Mas não estou mal, não estou mal/ Fui exposto, mas cresci/ E não estou mal, não estou mal”. O rock de resistência termina com um desafio: “Você agita por aí e acha que é o mais durão no mundo, em todo mundo/ Mas você está ruas distante de onde fica realmente duro/ Você nunca foi lá”.

O disco termina com “Revolution Rock”, um reggae de celebração ao punk rock. “Todo mundo destrua as cadeiras e dance neste ritmo novo/ Esta música aqui abala nações/ Esta música aqui causa sensação/ Diga à sua mãe, diga ao seu pai/ Tudo vai ficar bem/ Você sente? Não o ignore/ Vai ficar legal”. O clima pra cima do ritmo jamaicano contrasta-se com o manifesto que é London Calling, mas é essa a mensagem: a revolução é uma festa, não é uma guerra – e o rock é o meio.

Escondida sem créditos, o boogie rock “Train in Vain”, gravada para o semanário NME, traz Mick Jones trazendo os conceitos políticos novamente para o nível pessoal. “Você disse que me amava e isso é um fato/ Agora me deixa, dizendo-se aprisionada/ Algumas coisas você pode explicar/ Mas meu coração ainda dói/ Você ficou ao meu lado?/ De jeito nenhum”. Com o coração partido, o marginal sofre da única coisa que realmente o fere. Românticos, o Clash entra para a história do rock como um dos grupos mais coesos de todos os tempos (ou “a única banda que importa”, como clamam seus fãs). London Calling é seu credo – segui-lo não é necessário. É inevitável.

1. London Calling
2. Brand New Cadillac
3. Jimmy Jazz
4. Hateful
5. Rudie Can’t Fail
6. Spanish Bombs
7. The Right Profile
8. Lost in the Supermarket
9. Clampdown
10. The Guns of Brixton
11. Wrong ‘Em Boyo
12. Death or Glory
13. Koka Kola
14. The Card Cheat
15. Lover’s Rock
16. Four Horsemen
17. I’m Not Down
18. Revolution Rock
19. Train in Vain (Stand by Me)

Continuando o papo sobre trabalho e a decadência da mediocridade, mais dois textos que valem a citação – e pra ninguém ficar me chamando de “libertário” ou “anarquista”, o primeiro (que trombei “sem querer” outro dia na rede) é do Bertrand Russell (de 1932) e o segundo (que a Kátia, do B*Scene me mandou) saiu na Veja este ano. Esse é o primeiro, o Elogio ao Ócio (se alguém se dispor a traduzir, eu publico e dou crédito):

“First of all: what is work? Work is of two kinds: first, altering the position of matter at or near the earth’s surface relatively to other such matter; second, telling other people to do so. The first kind is unpleasant and ill paid; the second is pleasant and highly paid. The second kind is capable of indefinite extension: there are not only those who give orders, but those who give advice as to what orders should be given. Usually two opposite kinds of advice are given simultaneously by two organized bodies of men; this is called politics. The skill required for this kind of work is not knowledge of the subjects as to which advice is given, but knowledge of the art of persuasive speaking and writing, i.e. of advertising.

Throughout Europe, though not in America, there is a third class of men, more respected than either of the classes of workers. There are men who, through ownership of land, are able to make others pay for the privilege of being allowed to exist and to work. These landowners are idle, and I might therefore be expected to praise them. Unfortunately, their idleness is only rendered possible by the industry of others; indeed their desire for comfortable idleness is historically the source of the whole gospel of work. The last thing they have ever wished is that others should follow their example.

From the beginning of civilization until the Industrial Revolution, a man could, as a rule, produce by hard work little more than was required for the subsistence of himself and his family, although his wife worked at least as hard as he did, and his children added their labor as soon as they were old enough to do so. The small surplus above bare necessaries was not left to those who produced it, but was appropriated by warriors and priests. In times of famine there was no surplus; the warriors and priests, however, still secured as much as at other times, with the result that many of the workers died of hunger. This system persisted in Russia until 1917, and still persists in the East; in England, in spite of the Industrial Revolution, it remained in full force throughout the Napoleonic wars, and until a hundred years ago, when the new class of manufacturers acquired power. In America, the system came to an end with the Revolution, except in the South, where it persisted until the Civil War. A system which lasted so long and ended so recently has naturally left a profound impress upon men’s thoughts and opinions. Much that we take for granted about the desirability of work is derived from this system, and, being pre-industrial, is not adapted to the modern world. Modern technique has made it possible for leisure, within limits, to be not the prerogative of small privileged classes, but a right evenly distributed throughout the community. The morality of work is the morality of slaves, and the modern world has no need of slavery.

(…)

This is the morality of the Slave State, applied in circumstances totally unlike those in which it arose. No wonder the result has been disastrous. Let us take an illustration. Suppose that, at a given moment, a certain number of people are engaged in the manufacture of pins. They make as many pins as the world needs, working (say) eight hours a day. Someone makes an invention by which the same number of men can make twice as many pins: pins are already so cheap that hardly any more will be bought at a lower price. In a sensible world, everybody concerned in the manufacturing of pins would take to working four hours instead of eight, and everything else would go on as before. But in the actual world this would be thought demoralizing. The men still work eight hours, there are too many pins, some employers go bankrupt, and half the men previously concerned in making pins are thrown out of work. There is, in the end, just as much leisure as on the other plan, but half the men are totally idle while half are still overworked. In this way, it is insured that the unavoidable leisure shall cause misery all round instead of being a universal source of happiness. Can anything more insane be imagined?

(…)

When I suggest that working hours should be reduced to four, I am not meaning to imply that all the remaining time should necessarily be spent in pure frivolity. I mean that four hours’ work a day should entitle a man to the necessities and elementary comforts of life, and that the rest of his time should be his to use as he might see fit. It is an essential part of any such social system that education should be carried further than it usually is at present, and should aim, in part, at providing tastes which would enable a man to use leisure intelligently. I am not thinking mainly of the sort of things that would be considered ‘highbrow’. Peasant dances have died out except in remote rural areas, but the impulses which caused them to be cultivated must still exist in human nature. The pleasures of urban populations have become mainly passive: seeing cinemas, watching football matches, listening to the radio, and so on. This results from the fact that their active energies are fully taken up with work; if they had more leisure, they would again enjoy pleasures in which they took an active part.

In the past, there was a small leisure class and a larger working class. The leisure class enjoyed advantages for which there was no basis in social justice; this necessarily made it oppressive, limited its sympathies, and caused it to invent theories by which to justify its privileges. These facts greatly diminished its excellence, but in spite of this drawback it contributed nearly the whole of what we call civilization. It cultivated the arts and discovered the sciences; it wrote the books, invented the philosophies, and refined social relations. Even the liberation of the oppressed has usually been inaugurated from above. Without the leisure class, mankind would never have emerged from barbarism.

The method of a leisure class without duties was, however, extraordinarily wasteful. None of the members of the class had to be taught to be industrious, and the class as a whole was not exceptionally intelligent. The class might produce one Darwin, but against him had to be set tens of thousands of country gentlemen who never thought of anything more intelligent than fox-hunting and punishing poachers. At present, the universities are supposed to provide, in a more systematic way, what the leisure class provided accidentally and as a by-product. This is a great improvement, but it has certain drawbacks. University life is so different from life in the world at large that men who live in academic milieu tend to be unaware of the preoccupations and problems of ordinary men and women; moreover their ways of expressing themselves are usually such as to rob their opinions of the influence that they ought to have upon the general public. Another disadvantage is that in universities studies are organized, and the man who thinks of some original line of research is likely to be discouraged. Academic institutions, therefore, useful as they are, are not adequate guardians of the interests of civilization in a world where everyone outside their walls is too busy for unutilitarian pursuits.

In a world where no one is compelled to work more than four hours a day, every person possessed of scientific curiosity will be able to indulge it, and every painter will be able to paint without starving, however excellent his pictures may be. Young writers will not be obliged to draw attention to themselves by sensational pot-boilers, with a view to acquiring the economic independence needed for monumental works, for which, when the time at last comes, they will have lost the taste and capacity. Men who, in their professional work, have become interested in some phase of economics or government, will be able to develop their ideas without the academic detachment that makes the work of university economists often seem lacking in reality. Medical men will have the time to learn about the progress of medicine, teachers will not be exasperatedly struggling to teach by routine methods things which they learnt in their youth, which may, in the interval, have been proved to be untrue.

Above all, there will be happiness and joy of life, instead of frayed nerves, weariness, and dyspepsia. The work exacted will be enough to make leisure delightful, but not enough to produce exhaustion. Since men will not be tired in their spare time, they will not demand only such amusements as are passive and vapid. At least one per cent will probably devote the time not spent in professional work to pursuits of some public importance, and, since they will not depend upon these pursuits for their livelihood, their originality will be unhampered, and there will be no need to conform to the standards set by elderly pundits. But it is not only in these exceptional cases that the advantages of leisure will appear. Ordinary men and women, having the opportunity of a happy life, will become more kindly and less persecuting and less inclined to view others with suspicion. The taste for war will die out, partly for this reason, and partly because it will involve long and severe work for all. Good nature is, of all moral qualities, the one that the world needs most, and good nature is the result of ease and security, not of a life of arduous struggle. Modern methods of production have given us the possibility of ease and security for all; we have chosen, instead, to have overwork for some and starvation for others. Hitherto we have continued to be as energetic as we were before there were machines; in this we have been foolish, but there is no reason to go on being foolish forever”

E este é a quase íntegra do outro, de um tal de Stephen Kanitz:

“Nenhum ditado popular explica tão bem os problemas do Brasil e do mundo como “Em terra de cego quem tem um olho é rei”. Ele mostra por que existe tanta gente incompetente dirigindo nossas empresas e nossas instituições. Mostra também por que é tão fácil chegar ao topo da pirâmide social sem muita visão ou competência. Basta ter um mínimo de conhecimento para sair pontificando soluções.
(…)

Existe um corolário desse ditado que me preocupa por suas conseqüências. “Em terra de cego, quem tem um olho é rei, e quem tem dois olhos é muito malvisto.” Indivíduos inteligentes e capazes são encarados como uma enorme ameaça e precisam ser rapidamente eliminados pelos que estão no poder.

Por essa razão, pessoas com mérito e competência dificilmente são promovidas no Brasil. Promovidos são os bajuladores e puxa-sacos. Quando aparece alguém com dois olhos, os reizinhos tratam de eliminá-lo, quanto antes melhor.

Já cansei de ver gente competente que, de um momento para o outro, deixou de ser ouvida pela diretoria. Já vi muito jornalista que, de repente, caiu em desgraça. Já vi muito jovem comentar algo brilhante na aula e ser duramente criticado pelo professor, sem saber o motivo. Todos cometeram o erro fatal de mostrar que tinham dois olhos. Por favor, não deixe que isso aconteça com você.

Se você é dos milhares de brasileiros que possuem dois olhos, tome cuidado. Em terra de cego, você corre perigo. Nunca mostre a seu chefe, professor ou colega de trabalho os olhos que tem. Lamento não poder dar nenhum bom conselho, eu sou dos que têm um olho só.

A maioria dos dois-olhos que conheço já desistiu de lutar e optou pelo anonimato. Quando eles têm uma idéia brilhante, colocam a solução na mesa de seus chefes e deixam que a idéia seja descaradamente roubada. Eles se fingem de mortos, pois sabem que, se agirem de modo diferente, poderão tornar-se vítimas. Mas há saídas melhores.

Se seu chefe tem um olho só, mude de emprego e procure companhias que valorizem o talento, que tenham critérios de avaliação claros e baseados em meritocracia. São poucas, mas elas existem e precisam ser prestigiadas.

Ou, então, procure um chefe que tenha dois olhos e grude nele. Ele é o único que irá entendê-lo. Ajude-o a formar uma grande equipe. Se ele mudar de empresa, mude com ele. Seja diferente, procure os melhores chefes para trabalhar, não as melhores companhias. Normalmente, as grandes empresas já são dominadas por reizinhos de um olho só.

Por isso, considere criar um negócio com outros como você. Vocês terão sucesso garantido, pois vão concorrer com milhares de executivos e empresários de um olho só. Nosso erro como nação é justamente não identificar aqueles que enxergam com dois olhos, para poder segui-los pelos caminhos que trilham. Eles deveriam ser valorizados, e não perseguidos, como o são. O Brasil precisa desesperadamente de gente que pense de forma clara e coerente, gente que observe com os próprios olhos aquilo que está a sua volta, em vez de ler em livros que nem foram escritos neste país.

Se você for um desses, tenha mais coragem e lute. Junte-se a eles para combater essa mediocridade mundial que está por aí. Vocês não se encontram sozinhos. Nosso povo tem dois olhos, sim, e é muito mais esperto do que se imagina. Ele está é sendo enganado há tempos, enganado por gente com um olho só.

Foi-se o tempo de uma elite pensante comandar a massa ignara. Hoje, a maioria do povo tem acesso à internet e a home pages com mais informação do que essa intelligentsia tinha quando fez seu doutorado. Se informação é poder, ela não é mais restrita a um pequeno grupo de bem formados. Nosso povo só precisa acreditar mais em si mesmo e perceber que cegos são os outros, aqueles com um olho só”.

Mais uma vez, a ênfase: cada vez mais gente fala nisso.

eunaosoucachorronao

Como muita gente não conseguiu abrir o link com a entrevista que eu fiz com o autor do livro Eu Não Sou Cachorro, Não, Paulo César de Araújo, para o site da Som Livre, segue abaixo a reprodução da mesma:

A música brasileira recente parece dividir-se entre os artistas da tradição e os de vanguarda. De um lado, a força dos valores autênticos de um país que conta com uma das culturas mais ricas do mundo, lembrada na música caipira, no cancioneiro tradicional, no samba, no forró e tantas outras manifestações populares. Do outro, a transformação proposta pela modernidade, pelo pop, pela eletricidade e novas tecnologias. Riqueza rural e pluralismo urbano. O choque da cidade com o campo parece ser a metáfora perfeita para descrever o big bang da música nacional.

Mas, olhando de perto, vemos que há campo na cidade e cidade no campo. E nestas entrelinhas estão personagens e movimentos comportamentais convenientemente colocados a escanteio pelo traço da classe dominante. Apontando para a exclusão cultural de toda uma geração, o historiador Paulo César de Araújo nos conta a história de uma outra música de protesto, bem diferente das rodas vivas e opiniões consagradas pela versão oficial que conhecemos.

Em Eu Não Sou Cachorro, Não (Record), ele narra biografias de artistas que, quando lembrados pela memória nacional, vêm à tona em forma de chacota. Mas que venderam milhões de discos e emocionaram toda um público alheio às agitações dos cadernos de cultura, dos circuitos universitários e de temporadas no exterior: o povo brasileiro.

A tese de Paulo César é ousada: eram artistas como Odair José, Agnaldo Timóteo e Waldik Soriano quem verdadeiramente incomodavam a ditadura militar, furando o bloqueio da repressão para passar mensagens de resistência que atingiam multidões muito maiores do que os fãs de Chico Buarque e Caetano Veloso. No decorrer de sua argumentação (sólida e bem defendida, aliás), ele atira contra diversos bastiões da história da MPB: de seu aspecto elitista ao seu alinhamento com a boa imagem que a ditadura queria para o país, passando por mitos e preconceitos que povoam nosso imaginário até hoje.

Um dos pontos centrais de seu livro é que só durante a ditadura dos anos 70 que houve democracia no Brasil, pois todos os cidadãos, e não só os pobres, estavam sujeitos a tratamentos agressivos e violentos por parte das autoridades. O título do livro também não é um mero rótulo, pois o autor defende o maior hit de Waldik Soriano como um grito de desespero das classes mais baixas contra o tratamento dado pelas elites brasileiras, e não apenas um bolero dor-de-cotovelo.

Mais: uma reivindicação cultural do papel do povo na história do Brasil. E este seria o motivo de seu verdadeiro sucesso. Em entrevista, Paulo César conversou sobre alguns dos temas mais polêmicos de seu livro.

Eu Não Sou Cachorro, Não toca num dos pontos mais sensíveis da história da música brasileira: o conceito de “bom gosto” e as relações entre os que conceituam este “bom gosto” e os principais nomes da MPB. Este foi seu ponto de partida ou você percebeu isto à medida em que estudava os chamados artistas cafonas?
Desde o início decidi que não faria um livro apenas sobre música, mas sim um trabalho de história social e cultural, priorizando a análise da canção popular sem emitir juízo de valor estético. Afinal, quais os critérios de seletividade e julgamento na escolha da boa música popular? Quem determina estes critérios como universalmente válidos? Os críticos e historiadores da música popular brasileira excluíram os bregas de seus livros sob o argumento que esta produção musical é “ruim”, “vulgar”. Mas alguém já disse, e eu concordo, que este negócio de crítica musical não é objetivo. Implica um julgamento de valor tipo “eu sou melhor do que você, portanto o que eu gosto é melhor do que o que você gosta”. Ou seja: a luta de classes também se expressa na questão estética. Por isso, sempre me incomodou esta desqualificação do repertório “cafona” e a excessiva exaltação dos cantores da MPB.

Como você fugiu disso?
No meu livro procurei fugir destes dois extremos. Ali, focalizo a produção musical popular como um fenômeno social. Não emito qualquer juízo de valor estético – nem para as canções de Waldik Soriano, nem para as de Chico Buarque – ambas tratadas como documentos da história brasileira. Não opino se a voz de Nelson Ned é boa ou ruim ou se ele é um compositor completo ou não. Eu analiso a repercussão social de sua obra, o sucesso popular e a sua ausência na historiografia. Interessa-me o fato de Nelson Ned ser ouvido em cerca de trinta países, lotar por duas vezes no mesmo dia o Carnegie Hall e de contar entre os seus milhões de admiradores com o prêmio Nobel de literatura Gabriel Garcia Márquez. Da mesma forma não discuto se a música de Odair José é de alta ou baixa qualidade, mas sim, que ela aborda questões cruciais da sociedade brasileira – racismo, homossexualismo, drogas, exclusão social… -, o que fez de seu autor um dos mais proibidos artistas da época da ditadura militar. E para um amante da MPB que acha a música de Odair José muito simplória e banal, saiba que existem amantes de jazz e de música clássica que também acham a música de Chico Buarque muito simplória e banal. Em última instância o que vale é o poder de quem possui o “discurso competente” para afirmar que tal produção artística é boa ou ruim.

Qual seu posicionamento frente à crítica?
O crítico deve existir, é importante que ele exista. E será melhor crítico se tiver consciência das limitações de seu ofício; saber que ele julga segundo valores de seu meio social. Mas o problema maior não é dar estrelinhas para discos e shows. Isto é um trabalho de utilidade pública cultural como outro qualquer. O problema é quando não há separação entre o ofício do crítico e o do historiador. Veja-se o caso, por exemplo, do crítico e historiador José Ramos Tinhorão. Nos seus livros de história não aparecem a produção musical brega porque o crítico acha esta música ruim, desprezível. Aí é que está o problema. Ele ignora, exclui um capítulo da história da nossa música popular motivado por um suposto bom gosto musical. Neste caso a ação da crítica se torna perniciosa, nefasta, autoritária, excludente. O crítico, o pesquisador ou o historiador tem todo o direito de considerar a música de Odair José ruim. O que não correto é excluir este cantor da história, como se ele não tivesse existido. É esta ação excludente da crítica que eu considero autoritária e denuncio no meu livro.

A mídia é a principal arena do preconceito no Brasil?
A mídia apenas expressa e reforça o caráter preconceituoso, excludente e autoritário da nossa sociedade. E por ser mídia este caráter autoritário se torna mais visível. Mas preconceito e autoritarismo também existem nas universidades, nas instituições religiosas, nas forças armadas, nas câmaras legislativas, enfim, em todas as principais instituições da nossa sociedade. Não é um problema apenas da mídia.

Analisando a história da música brasileira no século 20, você consegue estabelecer um marco inicial para o surgimento desta “música de bom gosto”, que ignora vendas de discos para conceber discos mais “nobres”? Quando a música popular brasileira pôde se deixar ao luxo de deixar de ser popular?
Isto aconteceu após a eclosão da bossa nova, no fim dos anos 50, quando efetivamente a canção popular começou a ser objeto de análise e debate por parte da intelectualidade. É quando surgiu também um novo público consumidor de discos. Até então a nossa música popular era direcionada exclusivamente para a grande massa ouvinte dos programas de auditório. E este universo dos cantores do rádio era é visto pelas elites como o reino do improviso, do descompromisso profissional, do baixo nível artístico, da futilidade. De certa forma, não se atribuía qualquer importância a essa produção musical. Nomes hoje consagrados da música popular brasileira como Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues e Luiz Gonzaga só obtiveram reconhecimento da crítica quando o período de maior sucesso popular de cada um deles já havia terminado. Na época, Mário de Andrade se referia a obra destes compositores como “popularesca”. Os estratos mais altos da população brasileira não se identificavam com a música popular produzida neste país. Isto começou a mudar por volta de 1958, com o aparecimento da bossa nova. A partir daí foi incorporado um novo público para o mercado de discos e as principais gravadoras organizaram seu elenco com basicamente dois grupos de artistas: os de “prestígio, para atender as classes A e B, e os “comerciais” ou “cafonas”, voltados para os segmentos C, D e E.

Por que a bossa nova? Qual é o “truque” do gênero para se estabelecer como marco tão forte? Seria o sucesso no exterior aliado à mentalidade servil do brasileiro em relação ao estrangeiro?
É fato que as elites culturais do Brasil sempre consideraram “cafona” um tipo de música mais identificado aos gêneros e ritmos de países subdesenvolvidos. De mau gosto sempre foram o bolero, a guarânia, a rumba, a conga. De outro lado, eles sempre admiraram aquela música mais identificada aos Estado Unidos, principalmente o jazz. Alguns dos próprios músicos de bossa nova como Johnny Alf, João Donato e Carlos Lyra afirmam que na fase de adolescência eles não se interessavam por música popular brasileira. O que fazia a cabeça deles eram os temas, as melodias e as harmonias das canções americanas. Ou seja: foi a partir da bossa nova, com a fusão do samba com o jazz, que uma geração de jovens brasileiros passou a se interessar e a se identificar com a música popular do nosso país. A bossa nova aproximou o samba da música norte-americana e talvez por isso foi tão bem aceita pela elites culturais.

Você acha que é possível haver um reconhecimento crítico, póstumo ou tardio, em relação aos artistas citados no seu livro? De certa forma, algo desta natureza já está acontecendo com nomes – como Roberto e Erasmo Carlos – que desde os anos 80 são associados ao mau gosto…
De fato, o caso Roberto Carlos é um exemplo recente deste fenômeno. E para isto muito contribuiu a revelação de que a sua música “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” fora feita em homenagem a Caetano Veloso, quando este estava no exílio em Londres. Isto mostra que são vários os aspectos que determinam a valorização de um determinado trabalho artístico, e estes aspectos muitas vezes são exteriores a obra em si. Este fenômeno também pode acontecer também com artistas desta geração de cafonas. A própria existência do livro Eu Não Sou Cachorro, Não é um reflexo disto, e também pode contribuir para esta mudança. Depois do livro, algumas pessoas podem olhar com outros olhos nomes como Benito di Paula, Luiz Ayrão e Odair José. A vida é dinâmica, a sociedade é dinâmica e isto se reflete na avaliação artística.

Fale um pouco sobre o seu próximo livro, sobre Roberto Carlos…
Ainda não tenho quase nada decidido sobre este livro. A única certeza é que não será uma biografia nem um mero relato jornalístico. Pretendo fazer uma análise histórica da produção musical de Roberto e Erasmo Carlos. Estarei iniciando a pesquisa ainda neste semestre. Inclusive este papel social de Roberto Carlos será estudado por mim agora, ainda não tenho uma resposta afirmativa. A data de lançamento também não tenho. Eu Não Sou Cachorro, Não me consumiu sete anos entre pesquisa e redação. Desta vez espero gastar menos tempo, até porque tenho mais prática no ofício e alguns erros poderão ser evitados. A minha previsão é de que o livro fique pronto no máximo até 2005.

Você consegue destacar o maior artista brasileiro deste gênero, a chamada “música cafona nos anos 70”?
Sem dúvida, Odair José, não por acaso o personagem mais citado no meu livro. Ele foi um cantor corajoso, provocador e contestador na época do regime militar. Ainda mais porque, ao contrário de artistas como Caetano Veloso e Milton Nascimento, que atingiam um segmento de classe média, universitário, progressista, Odair falava para os baixos estratos da população, um público majoritariamente católico, conservador, apegado aos tabus, aos valores sociais vigentes. As composições de Odair José focalizavam diversos temas do cotidiano e convidavam seu ouvinte à reflexão e ao questionamento. Suas canções abordam, por exemplo, prostituição (“Vou Tirar Você Desse Lugar”); homossexualismo (“Forma de Sentir”); drogas (“Viagem”); anticoncepcionais (Pare de Tomar a Pílula); exclusão social (“Deixa essa Vergonha de Lado”); religião (“Cristo, quem é Você?”); alienação (“Novelas”); adultério (“Pense ao Menos em Nossos Filhos”). E como se não bastasse, ele ainda idealizou uma ópera-rock de protesto religioso, o que provocou a fúria da Igreja e levou alguns padres até a ameaçá-lo de excomunhão. Proibido pela Igreja e pelo regime dos generais, Odair José ainda enfrentou a ruidosa vaia do público do Anhembi no show com Caetano Veloso no Phono 73. Aliás, este espírito ousado, provocador e inquieto de Odair foi sintetizado por ele numa canção composta em 1972: “Eu Queria Ser John Lennon”.

Vamos aos fatos

Bem legal esse texto. Tipo “coisas que precisam ser ditas”:

“Tradicionalmente, o mercado musical tem sido baseado em uns poucos nomes. Estes alimentavam os menores, de forma que tudo funcionava a contento. Ou seja, a gravadora investia em 10 artistas e, destes, só um dava certo, de forma a pagar pelo investimento dos outros 9. Por sinal, este número é real e coincide com a taxa normal de retorno de qualquer investidor institucional. Ou seja, nada de especial até aqui: a coisa funcionava bem. Porém, a concentração de nomes tem se intensificado muito ultimamente, e isto se originou em vários fatores.

Um destes foi a súbita descoberta das grandes cadeias de lojas em detrimento dos pequenos lojista. As gravadoras passaram a se focar quase que exclusivamente em megastores como Lojas Americanas, Carrefour, WallMart, etc, passando a ignorar o pequeno lojista. Isto devido ao fato das megastores comprarem muito mais do que uma pequena loja, dando assim menos trabalho. Isto foi um erro fatal, pois o pequeno lojista possui muito mais espaço e interesse em ter um estoque variado do que uma megastore, uma vez que ele vende exclusivamente música. Já as megastores vendem um pouco de tudo e, assim, não tem nem o interesse e muito menos o espaço para comportar muitos nomes e álbuns. Assim, o pequeno lojista acabou fechando as portas, adicionando ainda mais para a concentração de mercado nas megastores. O efeito final é que hoje é extremamente difícil se encontrar CDs que não sejam os manjados Sandy e Júnior, Padre Marcelo Rossi, e Kelly Key [urgh!], pois as megastores não se interessam em vendê-los, e as pequenas lojas que sobreviveram perderam o cash-flow necessário para se dar ao luxo de manter CDs com pouca liquidez nas prateleiras.

Outro motivo apareceu quando as rádios descobriram um excelente filão: não pagar mais royalties e, em vez disso, cobrar pela execução de músicas. O mercado, entretando, em vez de simplesmente se opor a este absurdo, concordou, e deixou que ele se estabelece-se. Isto criou uma enorme carga financeira nas gravadoras, que passaram a poder lançar somente uns poucos nomes, contribuindo ainda mais para a concentração musical.

Paralelo a esse mercado ‘oficial’, aparece um ‘paralelo’ chamado internet. Neste, o artista se vê reduzido a um mero arquivo MP3. Não importa o quanto coloque em marketing, publicidade, Relações Públicas, e blábláblá, o arquivo MP3 não vai crescer nem ficar mais bonito por isso. Não importa o quanto se fale sobre a qualidade da música contida nele, o arquivo sempre será um entre zilhões circulando no ciberespaço todos os dias. Não importa o quanto coloquemos de mídia, um zé-ninguém pode, com um investimento mínimo exatamente nesse marketing, publicidade, Relações Públicas, e blábláblá, obter o mesmo nível de exposição. Ou seja, foi introduzido no mercado a pior coisa que poderia acontecer nele: a DEMOCRATIZACÃO.

Porém, entra agora a pergunta que não quer calar: alguém proibiu o mercado de música de usar essas mesmas ferramentas para o seu bem? Obvio que ninguém. Nesse caso, porque, em vez de usá-las, tentam impedir que elas sejam usadas? Não porque elas sejam ‘piratas’, ou ‘ilegais’, ou o que for. É porque ele mesmo percebeu que invalida o seu negócio na medida em que o democratiza. É porque ele percebeu que a democratização da música faz muito mais mal do que qualquer pirataria. E isto se faz notar quando órgãos reguladores que processam pessoas acusadas de pirataria na internet afirmam estarem defendendo ‘toda a indústria’. Toda não, cavalheiro, pois há muitos músicos e selos independentes que não concordam com a maneira que a música está sendo levada, usam a internet com sucesso para divulgar os seus artistas, e nunca pediram para serem representados por ninguém. Porém, como estes não tem voz publica, acabam sendo engolidos pela retórica dos grandes players do mercado. Porém, uma vez mais, a própria internet vêm como salvação, permitindo que o público saiba realmente o que está acontecendo, como você mesmo está fazendo agora”

Qual é a melhor banda da história do rock brasileiro? Fácil: os Mutantes. Olhando à distância, o rock nacional nunca teve grandes bandas, daquelas cujo estrago pode ser medido tanto pelas influências na geração seguinte quanto pelo apelo pop, esta qualidade enigmática que faz com que diferentes canções consiga tocar o ouvinte mais fundo que a distância entre o tímpano e o cérebro, mesmo que por pura diversão. De um lado temos bandas grandes (Legião, Paralamas, Titãs, Sepultura, Engenheiros, Secos & Molhados, RPM) cujo impacto de sua música em alguns momentos de suas carreiras balançaram o alicerce central da cultura brasileira. Do outro temos os injustiçados esquecidos pelo mercado (Tomzé, DeFalla, Walter Franco, Cascavellettes, Fellini, Arrigo, Joelho de Porco, Black Future, Picassos Falsos, Gang 90, Erasmo, Tim Maia, Premê) que ainda terão sua herança nacional reconhecidas com o tempo, finalmente premiando sua ousadia fora de época que lhes custaram as próprias carreiras. Os Mutantes equilibravam tanto experimentalismo quanto popularidade, embalando hits como Panis et Circensis e Ando Meio Desligado com álbuns que fundiam a transgressão sônica e lírica proposta pelo rock mundial da época, o desbocado humor brasileiro e uma energia que só adolescentes são capazes de liberar. E acabaram funcionando para o Brasil como o referencial mais próximo dos Beatles que nós temos.

Mas o que se sabe sobre os Mutantes? Todos conhecem a história, as histórias e os maiores sucessos do grupo (na voz deles mesmos ou em algum dos diversas canções-tributo ao trio/quinteto paulistano), mas sua música ainda é uma incógnita. E por apenas duas vezes na história tivemos a possibilidade de redescobrir o grupo através de reedições. A primeira e mais clássica delas aconteceu durante os anos 80, quando a gravadora independente Baratos Afins se dispôs a lançá-los de volta ao mercado. Ainda conseguiu relançar jóias perdidas relacionadaos ao grupo, como o primeiro disco solo do tecladista Arnaldo Baptista, o clássico Lóki?. Nesta mesma época, o jornalista e músico Thomas Pappon (então no Fellini) se dispôs a registrar pela primeira vez a história do conjunto, entrevistando os principais envolvidos e escrevendo um marco na história da história do rock brasileiro, publicado em duas edições da extinta revista Bizz. O advento do CD trouxe novo interesse pelo trabalho do grupo no começo dos anos 90, quando a gravadora PolyGram trouxe os Mutantes para o disquinho prateado. Além das “todas as letras revisadas por Arnaldo Baptista”, a remessa trouxe toda discografia do grupo, Lóki?, os dois primeiros discos solo de Rita Lee (o primeiro – Build Up – com a participação de todos os Mutantes em diferentes faixas, o segundo – Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida – com os Mutantes como banda de apoio da cantora, considerado por muitos o melhor disco do grupo) e o disco engavetado do conjunto, O A e o Z. Sem Rita, este álbum entregava os pontos que o quinto disco da banda (Mutantes e Seus Cometas no País dos Bauretz) e descambava para o rock progressivo do calibre do Yes. Se você tem discos brasileiros dos Mutantes em casa ou são vinis lançados na época ou nos anos 80 ou são CDs do começo dos anos 90. Nenhum disco do grupo saiu de outras senão destas três safras.

Até que o jornalista Carlos Calado resolveu estrear sua bibliografia biografando o grupo paulista. Com o óbvio título de A Divina Comédia dos Mutantes, o livro de 1996 não trazia grandes surpresas no enredo da história já contada por Thomas quase dez anos antes. Mas entre as surpresas descobertas pelo escritor, estava um disco inédito do grupo, formado apenas por faixas conhecidas, quase todas cantadas em inglês. O álbum foi gravado em Paris quando o grupo passou em uma temporada de shows no final de 1970. Escoltados pelo produtor inglês Carl Holmes (que insistia na sonoridade brasileira do grupo), os Mutantes entraram no Studios Des Dames em Paris em novembro daquele ano e registraram Tecnicolor, o disco que lançaria a banda na Inglaterra e na França. Mas por algum motivo, a Polydor inglesa não se interessou pelo álbum, como sua sucursal brasileira, a Phillips. A fita foi arquivada num estúdio londrino e desenterrada por Calado, embora trechos do disco fossem conhecidos pela rede de pirateiros especializados no grupo. O autor ensaiou um relançamento do disco à época que o livro saiu, mas problemas burocráticos empacaram o processo. Mas uma recente onda de música brasileira no exterior fez com que o interesse pelo grupo crescesse tanto ao ponto da gravadora de David Byrne lançar uma coletânea do grupo (Everything is Possible) e o selo indie Tal reeditar os três primeiros álbuns dos Mutantes. Tal mania pela música do grupo fez com que os realizadores deste projeto conseguissem agilizar o lançamento do álbum inédito com a PolyGram (que, pra complicar ainda mais as coisas, foi vendida para a Universal – a empresa, não a igreja). O resultado chega às lojas esta semana.

Historicamente, Tecnicolor se situa entre as duas fases do grupo: a careta (dos três primeiros discos, quando a ingenuidade e espontaneidade do grupo eram a força-motriz de sua criatividade) e a chapada (dos três últimos, quando a técnica passa a ser fator primordial no método de composição, até o grupo tornar-se um monstrengo progressivo). Ao gravar um disco fora do país depois de alguns anos habituados com o estúdio, os Mutantes tiveram a oportunidade de reescrever sua história a partir do zero, pescando os melhores títulos e adaptando-os para o inglês e para sua sonoridade de então. Transbordando criatividade, o disco é o ponto de mutação do grupo, o momento em que as duas fases se convergem para o mesmo lugar. Este lugar é o disco em questão e se você não consegue decidir-se qual dos dois estágios do grupo você prefere, Tecnicolor é o melhor disco dos Mutantes.

“É hora de entrar em contato com as coisas que nos importamos”, sussurra, em inglês, Rita Lee na faixa que batiza o álbum. É uma boa desculpa para adentrarmos no universo do grupo. Sabemos da importância dos Mutantes, mas poucos se dispõem a mergulhar em sua biosfera de psicodelia apaixonada e jogos de calçada. Com Tecnicolor, é impossível resistir ao convite musical que a banda nos propõe, acompanhado dos mais belos vocais já cantados pelo trio principal: Arnaldo, Rita e o guitarrista Sérgio Dias. A química entre os cinco músicos (Liminha no baixo e Dinho na bateria) é perfeita e é possível detectar claramente o que foi improvisado no estúdio e o que nasceu de observações à parte.

Tecnicolor é, antes de tudo, um registro preciso do amadurecimento técnico do instrumental dos Mutantes. Aqui eles policiam seus excessos e prolongam as faixas ao instante em que elas parecem nos fazer querer mais, reduzindo o volume até a jam continuar apenas em pensamento. Os vocais são sussurrados e sob controle (Rita geme em Batmacumba, seduz em Baby, assombra em Le Premier Bonheur du Jour; Arnaldo lamenta-se em I’m Sorry Baby e o trio hipnotiza com Tecnicolor, na reprise de Panis et Circensis e Adeus Maria Fulô) e os poucos arranjos são inéditos, emboras muitos (Virgínia, El Justiciero, Baby, Saravá) fossem aproveitados quase integralmente no álbum seguinte à gravação do disco francês, Jardim Elétrico. As mudanças mais drásticas acontecem em I Feel A Little Spaced Out (Ando Meio Desligado) com o improviso comendo solto entre o baixo condutor e o teclado e a jam session de hard blues na parte final da canção e em Adeus Minha Fulô, onde a levada caribenha ganha ares de caixinha de música acompanhada com cuíca e marimba. Fora estas, poucos detalhes ajudam a envernizar o glamour das faixas do grupo, como o pesado teclado futurista em Virgínia, a bela guitarra de Le Premier…, o final que mescla Ob-La-Di Ob-La-Da com Rain (as duas dos Beatles) em She’s My Shoo-Shoo (divertida versão para A Minha Menina, de Jorge Ben), a versão crua de Saravah, o solinho de piano jazzy ao final de Baby… A brasilidade come solta por Batmacumba (onde parte da percussão é feita por guitarra e contrabaixo) e She’s My Shoo-Shoo (com agogô e cuíca), enfatizando a intenção do produtor Holmes em lançar o grupo no mercado europeu aproveitando a nova febre de música brasileira no mercado. Duas faixas (She’s My Shoo-Shoo e Baby) citam nominalmente “samba” e “bossa nova” em suas adaptações para o inglês, embora não contem com os termos nas versões originais. A delicadeza e respeito que o grupo tem para sua musicalidade faz com que, mais uma vez durante o disco, lembremos de Plastic Soda, o disco recente de Jupiter Apple.

O disco só peca por seu acabamento. O limpeza de som proposta por Carlos Freitas é menos digital que a média, mas perde-se parte dos graves que as válvulas dos amplificadores do grupo faziam rugir (poderia ser pior se caísse nas mãos do Liminha). O design de Paulo Pelá Rosado e Gê Alves Pinto lembra os últimos discos do Legião Urbana, feitos sem cuidado e com um duvidoso senso de estética. A capa só precisava de uma faixa prateada por cima para ser assinada pelo Hans Donner. A gravura de Sean Lennon (fã de última hora do grupo) na contracapa é ineficaz: não tem nem o primitivismo rústico dos desenhos do pai John, nem a esquizofrenia trêmula do traço de Arnaldo Baptista. Dessem este serviço a Arnaldo (que atualmente mais desenha do que toca) ou ao inglês Alan Voss (que ilustrou a capa de Jardim Elétrico e No País dos Baurets), o resultado conseguiria capturar o astral dos dias de glória do grupo. Mas mesmo com toda a produção executiva de Marcelo Fróes remando contra, o conteúdo passa incólume, indiferente a tratamentos plásticos que possam arruinar sua embalagem. Nunca os Mutantes estiveram tão em forma quanto nesta gravação que, mesmo sem o brilho pueril dos primeiros álbuns, é item obrigatório no panteão da banda. Perfeito.

1. Panis et circencis
2. Batmacumba
3. Virginia
4. She’s my shoo shoo (A minha menina)
5. I feel a little spaced out (Ando meio desligado)
6. Baby
7. Tecnicolor
8. El justiciero
9. I’m sorry baby (Desculpe, babe)
10. Adeus, Maria Fulô
11. Le premier Banheur du Jour
12. Saravah
13. Panis et circensis