Música: Obra traz ensaios ácidos de Greil Marcus

, por Alexandre Matias

Essa é a íntegra da entrevista que saiu publicada em versão editada na Ilustrada de hoje.

“É um encontro cara a cara com todo o terror que a mente consegue juntar; movendo-se rapidamente sem jamais brecar, para que homens e mulheres tenham que vencer o terror em seu próprio passo”, “O horror fornece os limites. Ele dá forma ao medo, dá peso ao riso, desnuda a mistificação e revela o paradoxo”, “É um projeto definido: um ataque à autocensura com as ferramentas mais cruas”. Toda epicidade e tensão das descrições acima parecem referir-se a momentos históricos emblemáticos e realmente os são: é assim que o crítico musical norte-americano Greil Marcus se referiu, à época, à “Gimme Shelter” dos Rolling Stones, ao disco London Calling do Clash e ao grupo nova-iorquino Pussy Galore, respectivamente.

Um dos textos mais respeitados quando o assunto é música popular do século vinte, Marcus é um dos responsáveis pela edificação da importância histórica do rock, que deu-lhe sobrevida para além dos anos 60 e o mantém firme de pé até hoje. Ao lado de nomes como Richard Meltzer, Nik Cohn, Lester Bangs, Robert Christgau, Nick Tosches e Dave Marsch, ele compôs a primeira geração de críticos de rock como observadores da sociedade, dissecando o barulho, a adolescência e ingenuidade de seus agentes como forças-motrizes por trás do inconsciente coletivo.

Uma amostra de sua obra foi reunida na coletânea de ensaios A Última Transmissão (Conrad, 160 páginas, R$ 24,50), em que aprofunda-se em assuntos como uma música de Elvis Costello, duas bandas novas da Inglaterra (Gang of Four e New Order), o novo disco de John Lydon (o clássico Metal Box, do P.I.L.), de John Cale e da gravadora Rough Trade. Ele deu a entrevista abaixo por email e ainda falou sobre seu livro mais recente, Like a Rolling Stone, dedicado unicamente à canção de mesmo título de Bob Dylan.

Como você se envolveu com a crítica musical? Você imaginava que escrever sobre música tornaria-se uma carreira?
Comecei a escrever sobre música na universidade, para as aulas, em 1965. Em 1968, comecei a escrever para a Rolling Stone, quando eu já dava aulas. Eu achava que suas resenhas eram ruins – pois escreviam apenas sobre as letras e não sobre o som – e achei que eu pudesse fazer melhor. O fundador da revista, Jann Wenner, era um velho amigo meu da faculdade.
Eu não tinha a menor intenção em fazer uma carreira escrevendo sobre música até que eu dei aula em Berkeley por um ano e descobri que eu não sirvo para ser um professor. Eu não tenho paciência com os alunos, e um professor impaciente não é um professor. Por isso, parei de dar aulas. Isso por volta de 1972. Nessa época, eu já havia escrito e editado na Rolling Stones, entre 69 e 70, deixei a revista e fui para a Creem, e era bem ativo como crítico – simplesmente por não haver nada mais interessante do que escrever sobre música – e tudo o mais, já que a música permitia que eu escrevesse sobre qualquer coisa, ao contrário do meio acadêmico. E depois de sair da universidade, não havia outra coisa que eu soubesse fazer.
Comecei a escrever um livro sobre rock’n’roll e cultura americana, que retomava todo o trabalho que eu havia feito em Berkeley nos anos anteriores. Foi publicado em 1975, com o título de “Mystery Train”. Foi um projeto difícil e eu só voltei pro jornalismo cinco anos depois. Desde então, escrevi em vários periódicos, escrevi livros e dei palestras. Comecei a dar aulas novamente em Berkeley e Princeton no ano 2000 – onde continuo a lecionar até hoje. Desde então, aprendi a ser paciente e ouvir os alunos, em vez de dizer-lhes como pensar.

A crítica é necessária ao trabalho do artista?
Não.

Então por que continuamos lendo e escrevendo sobre arte e música? Arte não precisa ser explicada para ser compreendida…
Algumas pessoas podem escrever sobre arte de uma forma que amplia a experiência que já existe originalmente ou a sensibilidade que ela pode trazer. Mas eu também não acho que a arte precisa ser explicada para ser compreendida. Eu sempre acreditei que, no meu caso pelo menos, tudo que estou fazendo é elaborar respostas que qualquer um, quer dizer, os outros, pode ter em relação a certos artefatos ou eventos estéticos. Eu não estou contando nada que eles não saibam, estou apenas retirando a resposta que já está presente ou a capacidade para a resposta que pode ser trazida por este artefato ou evento.

Você acha que a música está perdendo seu valor emocional, à medida em que toneladas de música estão disponíveis a um clique do mouse e enquanto a indústria do disco trata-a apenas como um produto?
Não sei. Outro dia, ouvi “Concrete Jungle” dos Wailers no rádio e foi como se eu nunca a tivesse ouvido, nao parecia com nada que eu já tivesse ouvido. Parecia sobrenatural, com sua força e profundidade. As pessoas continuam fazendo música – formando bandas, escrevendo canções, aprendendo instrumentos – pelos mesmos motivos de sempre: para sentir o que outros sentiram quando eles, os outros, fizeram os sons que fizeram os músicos iniciantes imaginar como deve ter sido a sensação de se sentir tão vivo, quando os outros criaram as músicas que lhes inspiraram.
No novo livro de Dana Spiotta, “Eat the Document”, que se passa em 1998, conhecemos um garoto de 15 anos obsecado pelos Beach Boys e pela música dos anos 60 como um todo. Os detalhes sobre a arte das capas, os créditos, o desenho dos rótulos e as diferenças entre as mixagens provocam mais pensamentos, imaginação e fantasia do que eu jamais tenha visto escrita ou dramatizada. É uma espécie de fábula sobre obsessão adolescente e como espertos e educados os jovens podem ser. Então, para responder, eu duvido.

Você se lembra a primeira vez em que ouviu “Like a Rolling Stone”?
Não me lembro, é estranho, mas é verdade. Eu lembro quando eu ouvi falar sobre a música, quando trabalhava em Washington D.C., no verão de 1965, e um amigo da Califórnia me escreveu perguntando se eu já havia ouvido o novo single do Bob Dylan que ele dizia ser sobre os Rolling Stones.

E como a música virou um livro?
Culpa do Clive Priddle, editor da ForeignAffairs de Nova York, que me ligou e disse que queria que eu escrevesse um livro sobre a canção. Eu disse “não”. Não parecia uma boa idéia. Mas eu não conseguia parar de pensar naquilo. Me encontrava escrevendo notas e até escrevi a introdução em menos de uma ho – para um livro que eu não ia escrever! Tornou-se um desafio. O escrevi muito rapidamente.

Além de Dylan, sempre nos referimos aos Beatles e aos Rolling Stones quando falamos deste acontecimento, o rock nos anos 60. Mas à medida em que os anos passaram, outros artistas surgiram com apelo de público ainda maior – Led Zeppelin, Nirvana, hip hop, Michael Jackson – mas nenhum deles conseguiu equiparar o impacto que Dylan, os Beatles e os Stones tiveram antes. É só devido ao fato de eles terem surgido na era da TV via satélite (como Kennedy, Pelé e Muhammad Ali)?
Não sei se consigo responder e continuar fazendo sentido para o leitor brasileiro. Certamente, aqui nos EUA há uma surpreendente familiaridade com a música feita há 40 ou 50 anos. Na aula em que dou, a maioria dos alunos, com idade entre 20 e 40 anos, consegue associar a canção gospel “Down on Me” dos anos 20 com a versão gravada pela banda de Janis Joplin. Mas é muito mais comum a completa ignorância em relação ao qualquer coisa que tenha mais de cinco anos de idade. Para muitas pessoas, Led Zeppelin é infinitamente superior aos Beatles, Dylan e Stones, mas para a maioria Led Zeppelin sequer existiu e os Beatles, Dylan e os Stones estão perdido nas brumas do passado junto com Al Jolson e Abraham Lincoln.

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