Sinto começar a semana assim, mas vamos lá. Mais uma baixa na história do rock independente brasileiro – e mesmo estando completamente plugados e ultraconectados, levei mais de dez dias para ouvir falar da morte do Véio, ex-baixista do Concreteness. A banda de Santa Bárbara d’Oeste não foi só uma das mais importantes para a criação de um circuito de shows e, portanto, uma cena entre as cidades do interior de São Paulo, como foi crucial para a consolidação daquela geração brasileira que surgia ao mesmo tempo em que as gravadoras comemoravam o Plano Real com vendas altíssimas de CDs de pagode, axé e sertanejo e a MTV brasileira procurava novos nomes locais para se apoiar.
Além do Véio, o grupo era formado pelos irmãos César, Marco e Marcelo Maluf que, em Santa Bárbara d’Oesta, uma cidade sem nenhuma tradição em música daquele tipo, eles começaram seu trabalho em dose tripla: além da banda, os irmãos mantinham uma casa noturna (o Hitchcock) e um estúdio na própria casa em que moravam. O Hitchcock tornou-se parada obrigatória para qualquer banda que viesse de outra cidade do Brasil para fazer shows em São Paulo. O Hitchcock era foco de atenção de todo mundo que ouvia rock independente no início dos anos 90 no interior do estado – e as pessoas vinham de outras cidades para passar a noite lá, que tinha programação toda sexta e sábado, reunindo fãs de indie rock, rock alternativo e hardcore de cidades como Piracicaba, Jundiaí, Campinas, Americana, Sorocaba e de São Paulo para assistir a shows de três ou quatro bandas por noite. Não, não havia discotecagem naquela época: alguém gravava uma fita que era repetida toda vez que um dos shows terminava.
De tanto ir ao Hitchcock, acabei ficando amigo de todos na banda, e acompanhei de perto a trajetória de um grupo independente que não conseguiu emplacar – mesmo fazendo shows em todo Brasil, com público cativo e músicas reconhecidas. Suas apresentações eram marcadas pelo impacto visual – os três irmãos Maluf eram uma espécie de Devo com um pé no industrial e o outro na música brasileira – todos de preto e com a cabeça raspada, dois de óculos nerd. Seu vocalista e principal compositor era o baterista Marcelo, o caçula, que deixava os irmãos Marco, introspectivo e calado na guitarra, e o tecladista César, que parecia um psicopata quando subia no palco, enfrentarem a massa. Véio fica entre os dois, mas acompanhando Marcelo, tocando seu baixo de forma robótica e rude. O som refletia aquele começo barulhento de década, com pedais de distorção e ritmo incensante, mas ao mesmo tempo ecoava a estrutura tradicional do pós-punk, de vocais berrados, guitarras fazendo barulho mais que música e baixo e bateria adicionando dance music ao 4 x 4 do rock. A banda teve uma fita demo – chamada Psicose – que vendeu quase 2 mil cópias, a maior parte da tiragem (caseira) vendida pelos correios. Internet era coisa de “micreiro” (que termo escroto) e o MP3 não havia sido inventado.
A segunda fase do selo Banguela, em que o Miranda lançou bandas como Mundo Livre S/A, Raimundos, Graforréia Xilarmônica e Maskavo Roots, foi marcada por várias coletâneas que reuniam bandas por cidades – como a curitibana Alface (que trazia as bandas Woyzeck, Boi Mamão, Resist Control e Magog) e a gaúcha Segunda Sen Ley (com quase 20 bandas diferentes). A cena do interior do estado de São Paulo foi escolhida para lançar sua própria coletânea e foram os Concreteness que sugeriram meu nome para escrever o release do disco. Além deles, o CD ainda contava com o funk metal do Lucrezia Borgia e o hardcore feliz das meninas do No Class (os dois grupos de Campinas) e o Happy Cow, de Piracicaba, o irmão mais novo do Killing Chainsaw. Foi quando finalmente fui aceito pela cena rock da cidade – onde já se viu um jornalista de Brasília vir dar espaço para as bandas locais em um jornal de Campinas? Era 1994 e eu ainda não tinha completado 20 anos. A coletânea, chamada pelo nome ridículo de Pircorococór, foi lançada quando o núcleo do Banguela passava a ser questionado por sua gravadora, a Warner, ao mesmo tempo em que era cortejado por outra, a PolyGram. Essa confusão foi o suficiente para atrapalhar o lançamento da coletânea e isso acabou se refletindo no lançamento do primeiro CD do Concreteness, Numberum. Mas a banda já estava mudando – o novo CD era composto apenas com músicas escritas em português, o primeiro passo da banda rumo a seu fim. Logo depois, os irmãos e Véio trocaram o nome da banda para Jardim Elétrico e, sempre que eu me encontrava com um deles, sabia de algum progresso na nova fase. Mas eram lentos e logo eles passavam a trabalhar com técnica de áudio com o Pena Schmidt. Marcelo virou escritor e mantém um blog. As músicas no MySpace da banda, criado como uma espécie de memorial ao primeiro disco que não aconteceu, não traz as músicas da primeira fase da banda, em inglês. Descolei uma, melhor que as que estão no MySpace:
Concreteness – “Squinting LooK (Zemba)“
Todos os quatro trabalhavam na casa enquanto as bandas faziam shows, cuidavam do caixa, do som, do palco enquanto o Véio tomava conta do bar – por isso era inevitável que em alguma hora da noite eu encostasse no balcão para falar merda com o sujeito. E sempre foi assim: enquanto o papo com os irmãos Maluf sempre foi o que cada um estava fazendo da vida, as conversas com o Véio eram sempre em tom de brincadeira. A última vez que eu o vi foi na primeiríssima Gente Bonita, quando o José Júlio passou pelo extinto Bar Treze para ver como andava a festa. Nos falamos pouco, mas nunca nos alongávamos – pois sabíamos que nos encontraríamos cedo ou tarde.
Não mais. Eis que lendo o blog do Carneiro, deparo-me com a notícia, que me leva ao Twitter do Mondobacana, do Abonico, passando a ficha técnica da passagem do amigo:
Morreu na madrugada de hoje o baixista Véio, da banda ConcreteNess (Santa Bárbara do Oeste, SP). Ele sofreu derrame cerebral há dez dias.
12:04 PM Jun 10th from web
Procurando, ainda achei o Fotolog do Phu, baixista do DFC, de Brasília, que contava com dois posts, um primeiro, sensibilizado pela entrada de Véio na UTI, e outro que trazia a mensagem de Marcelo:
Queridos Amigos,
É com imenso pesar que dou esta notícia. Nosso querido amigo/irmão Véio, partiu essa madrugada para a sua jornada espiritual…Tenho certeza de que ele estará bem…Fica a nossa imensa saudade, amor e carinho por esse irmão que a vida me/ nos deu e com quem vivi / vivemos tantas coisas boas! O importante agora é orar para que ele encontre o seu caminho e a sua luz. Vamos nos segurar, vamos estar juntos, vamos nos abraçar e continuar vibrando com amor para que ele sinta nossa energia.
Por enquanto, nÃo sabemos o horário do velório em Santa Bárbara. Ele deve demorar a chegar, já que os seus órgãos serão doados. Um grande gesto, de um grande ser humano.
Meu Abraço forte à todos,
Marcelo
O Andhie Iore, velho fanzineiro de Maringá, também lamentando a passagem do baixista em seu blog, como o Giassetti fez no blog da Mojobooks. Ironicamente, não lembro de seu nome, só do apelido, nem sei precisar sua idade (Updeite: o Júlio acaba de me confirmar tanto o nome, Carlos Braz, quanto a idade, 43). Não éramos amigos convencionais, éramos uma espécie de colegas de um trabalho que não era visto como formal – ter uma banda de rock faz tanto sentido quanto escrever sobre rock, e ambas atividades – entre outras – são igualmente desmerecidas como mero passatempo adolescente. Ríamos disso.
Todos de fone de ouvido em festa silenciosa na Virada Cultural de 2008 (foto: Mônica Bento/AE – 26/04/2008)
Nunca se fez tanta música quanto hoje. As possibilidades abertas a quem não tinha recursos ou técnica para fazer música permitiram que gerações inteiras finalmente pudessem produzir sua própria trilha sonora.
Seja criando música nova, remixando hits do passado ou regravando velhas canções, pessoas de diferentes faixas etárias se descobriram artistas e puderam finalmente reconhecer-se como músicos, independentemente de profissionais ou amadores. Mais: com a internet, essa produção passou a ser ouvida por gente que não tinha outros canais senão o rádio, o show e a loja de discos para descobrir e curtir música nova.
Ao mesmo tempo, nunca se ouviu tanta música quanto atualmente. A mesma rede que permitiu que músicos finalmente tivessem acesso direto a seu público fez que cada vez mais pessoas ouvissem cada vez mais música.
Hábitos como garimpar raridades, gravar fitas cassetes (ou CD-R) com músicas escolhidas a dedo e até mesmo manter uma coleção de discos foram acelerados pela rede de tal forma que praticamente foram reinventados.
Em vez de prateleiras, falamos em gigabytes; disco raro é aquele que nunca saiu da casa – ou da cabeça – de seu autor.
Assim, aos poucos, um termo técnico que designa a forma de adquirir um arquivo digital da rede tornou-se praticamente sinônimo de música nesta década: o download. Graças à popularização do MP3, iniciada há exatos dez anos, baixar música virou uma atividade rotineira e um hábito típico de nossos tempos.
Mas esse monte de gente produzindo e ouvindo música não está isolada em seus computadores ou em seus fones de ouvido, mesmo porque isso não é novidade – o marco zero deste isolamento musical, a invenção do walkman, completa trinta anos este mês.
E o mesmo ponto de partida para a música digital como a conhecemos hoje – a criação do Napster, o primeiro software de compartilhamento de arquivos sonoros digitais – também deu origem a uma nova forma de se ouvir música.
Se o rádio, a loja de disco e a gravadora aos poucos se tornam obsoletos, a internet oferece opções que vêm sendo abraçadas por milhões de pessoas, que estão descobrindo músicas que nunca ouviram e mostrando-as umas às outras.
O download ilegal ainda é um problema no que tange os direitos autorais e várias iniciativas têm insistido em punir uma prática que já é corriqueira.
Numa época em que ouvir música torna-se uma atividade cada vez mais social, resta achar uma solução que recompense quem produz mas que não puna quem ouve.
***
Há 10 anos, Napster tornava a web social
Shawn Fenning só queria ouvir as músicas que seus amigos guardavam em seus PCs – e também permitir que eles ouvissem as suas. Entediado com a faculdade que fazia, começou a escrever um software que permitisse essa troca de arquivos em janeiro de 1999. Ele tinha acabado de completar 18 anos e, poucos meses depois, no início daquele junho, há dez anos, terminou o programa, que batizou com seu próprio apelido (“Napster” quer dizer algo como “dorminhoco”). Distribuiu para uns amigos e, como quem não quer nada, mudou a história da música – ao mesmo tempo em que resgatou um dos cernes da rede – seu aspecto social.
Voltando mais no tempo, quando o criador da World Wide Web, Tim Berners-Lee, tornou público seu projeto, o fez postando uma mensagem num fórum de notícias, no dia 6 de agosto de 1991. Nela, anunciava que “estamos muito interessados em espalhar a web para outras áreas (…). Colaboradores são bem-vindos!”
Sem querer, Shawn Fenning repercutiu a mensagem do criador da web para o planeta. E se no início dos anos 90 a rede apareceu como uma forma de facilitar a troca de dados e informações, no final da década esta troca seria acelerada graças à popularização do MP3.
Mas trocar músicas era só o começo. Logo o mundo compreendeu que a música poderia funcionar longe do disco, coisa que a indústria fonográfica não quis entender – o que a levou a processar seus próprios clientes e abrir espaço para a Apple, uma empresa sem tradição no mercado de música, tornar-se líder em comercialização de música digital.
Fenning não inventou apenas um software. Com o Napster, ele sublinhou que a rede não é compostas de máquinas que se conectam a grandes servidores – mas também de computadores que podem se conectar entre si sem precisar passar por um computador central. E que esses computadores são pilotados por seres humanos que querem conhecer não só mais músicas, mas outros seres humanos. Não é exagero: ao liberar a possibilidade das pessoas trocarem MP3 entre si, o Napster foi o embrião daquilo a que chamamos de “rede social” – que, na verdade, é uma metáfora para a própria web.
Afinal, a internet é social. E Fenning nos lembrou disso há dez anos, quando resgatou um verbo que estava um tanto em desuso e que tem sido vilanizado pelos motivos errados: compartilhar.
Em rota de colisão com o paradoxo
Antes de começar a falar sobre “Follow the Leader” em si, vale perguntar: essa é a última vez que veremos Daniel Faraday? A própria mãe – grávida dele mesmo (aaah, Lost…) – deu-lhe um tiro fatal e fechou-lhe os olhos encerrando a participação do físico no mundo dos vivos. Mas tem tanta pergunta pra ser respondida sobre o Faraday que eu aposto que sua participação não terminou ali. Lembram-se de sua namorada fritando na cama? Lembram da rata batizada em homenagem à mãe, que não agüentou viajar no tempo? Lembram do estado frágil e tenso que o próprio Faraday ficou em determinado tempo da série (antes de ir para a ilha no cargueiro)? Algo me diz que o caderninho mágico da senhora Hawking vai fazer com que nos encontremos mais uma vez com Daniel – pois ele pode ter conseguido viajar no tempo mesmo antes ou mesmo depois de chegar na ilha, ainda em Oxford ou em… Ann Arbor. Minha aposta é que depois de testar com Theresa, sua namorada, ele resolve fazer a viagem por conta própria mas já conhecendo a lógica da constante – e consegue fazer algumas viagens no tempo, uma deles, a que ele grava o vídeo abaixo ao lado do dr. Chang (outro ponto em aberto – percebam como Faraday reconhece Chang rapidamente e o aborda na primeira vez que o vê, sem apresentações). Eloise ainda conta que a estação Dharma construída em Los Angeles foi feita por “alguém muito especial” – o que me leva a crer que Faraday pode ter voltado para antes de 1954 e criado a estação sob a igreja, ajudado o exército americano a encontrar a ilha e mandar tropas para sua tomada (tropas que foram mortas pelos Outros). Ele pode ter conhecido Chang em 1981, depois do “incidente” e passado as informações que assistimos no vídeo abaixo. E talvez tenha encontrado consigo mesmo em 2007, ciente do que tinha de fazer e contou-lhe toda a história do avião, da ilha e do próprio sacrifício que teria de fazer para que ele passasse por isso. Isso talvez explicasse até mesmo as crises de choro de Daniel, que o acompanham desde sua estréia na série.
Dito tudo isso, que episódio! Follow the Leader está às vésperas de fazer mais engrenagens narrativas de Lost se chocarem e, em vez de causarem atrito, se encaixarão perfeitamente, nos deixando bestas de novo, como já fizeram neste mesmo episódio. Mais do que um preâmbulo para o último episódio da quinta temporada, este décimo quinto capítulo funcionou como um pequeno conto fechado em si mesmo, uma jóia delicadamente lapidada para mostrar aos fãs do seriado que esta quinta temporada não foi em vão.
Afinal, tivemos diversas perguntas respondidas, embora muitas delas tivessem sido criadas apenas para ganhar tempo (quase tudo relacionado à volta dos Oceanic 6 à ilha). Os temas clássicos de Lost seguiram intactos – talvez a maior revelação desta temporada talvez tenha sido o vínculo da ilha com o Egito antigo e, claro, a apresentação do universo Dharma para os espectadores. Mas nada foi dito sobre o monstro, os números, o por quê do vôo 815 ou se Kate vai ficar com Sawyer ou Jack. Em compensação vimos as relações de Widmore e Ms. Hawking, de Charles com a ilha, de Faraday com os pais, a história de Charlotte, uma aparição de Walt, a história da jovem Rousseau e a chegada de sua equipe à ilha, a morte e ressurreição de Locke, uma estátua vista de corpo inteiro (ainda que de costas), quem é quem na Dharma e estamos prestes a ver o incidente que causou a gravação de todos os vídeos de orientação das estações que descobrimos na segunda temporada.
Follow the Leader veio repleto destes momentos, mas meu favorito foi a aparição de Richard Alpert para Locke sendo esmiuçada como um plano do próprio Locke. A cena que antecede a chegada do careca correndo baleado na perna transcende o que eu me acostumei a referir como “Lost clássico” (aquele momento do “oooooh” que fica entre o clichê de revelação e uma reviravolta considerável na trama). Todo o diálogo de Locke com Richard e as observações feitas entre Locke e Ben dão à cena uma profundidade extra, uma camada narrativa surge de forma que estamos assistindo a um making of de uma cena dentro de uma cena. A beleza quase mística da cena – filmada no escuro, à luz de tochas – é refletida por todo o episódio e sublinha um aspecto: talvez toda a trama de Lost tenha sido motivada pelas pessoas que foram suas vítimas. O motivo de cada um daqueles passageiros estar naquele avião que caiu no início da primeira temporada talvez seja justamente esse: são eles que fazem o próprio avião cair na ilha, entre outras coisas.
Após a morte de Faraday e a constatação que Eloise faz que aquele casal – Jack e Kate – veio mesmo do futuro, resta a Jack concluir o plano de Daniel para, quem sabe, mudar a história. O fato de Eloise perceber que eles falam a verdade através da própria caligrafia é um toque de mestre – eles podiam ter trazido um vídeo ou fotos, descrito cenas que iriam acontecer em minutos no futuro, explicarem o funcionamento de aparelhos que ainda nem existem em 1977, mas quaisquer explicações destas seriam subjetivas comparadas ao reconhecimento da própria letra cursiva. Quando ela pergunta como ela não se lembra ter escrito o que está no caderno e ouve o “é porque você ainda vai escrever” – eis um “momento Lost” de ouro. Em outro acontecimento crucial do episódio, vemos Jack se transformar em um homem de fé, cujo credo é piamente racional – ele quer destruir a construção da estação Cisne, para evitar a criação da escotilha, para onde Desmond irá e que será responsável por causar a queda do Oceanic 815. Há lógica nisso, não é simplesmente o papo “a ilha que quis” que Locke sempre saca da cartola.
O problema é que ele quer fazer isso com uma bomba atômica – e quero ver sobrar vila Dharma pra contar a história. Acho mais provável que o Radzinsky e sua turma apareçam no lugar em cima da hora e, antes que Jack brinque de fim do mundo, eles o impeçam mas causem, sem querer, algum vazamento radioativo – o que explicaria inclusive o fato de mulheres não poderem ter filhos na ilha após o tal incidente. Há quem diga, no entanto, que depois de mais de duas décadas de hidrogênio vazando, a explosão da bomba terá um impacto menor do que o original. O submarino já se foi levando Kate, Sawyer e Juliette (em outra ótima cena, desta vez do departamento novela das oito do seriado, quando o casal Dharma reata seus votos de amor e a fugitiva reaparece em cima da hora), que outros se salvarão? O que tem afinal de contas no case de guitarra do Hurley e por que ele se convenceu a voltar no vôo Ajira 316? Sayid ou Jack se sacrificarão para detonar a bomba Jughead?
Em outra grande cena do episódio, Hurley, Jin e Miles são interrogados por Chang sobre sua procedência temporal e, depois de um diálogo hilário entre Hurley e Chang, Miles não apenas confessa que eles vieram do futuro como explica ao pai como proceder com ele mesmo e sua mãe, ele mesmo se tornando o causador de toda a dor que ele carregava pelo pai tê-los abandonado. É uma relação semelhante à decisão de Jack, embora o médico queira a ruptura e não a confirmação do que já aconteceu no passado.
Misture isso ao fato que Locke agora quer “matar Jacob” – seja lá o que isso signifique – e que, provavelmente, ainda veremos no capítulo final referências ao culto da sombra da estátua de Bram e Ilana. E o que Richard Alpert estava fazendo com aquele barco dentro de uma garrafa? Lembrando do Black Rock ou que a ilha em si é como um barco dentro de uma garrafa? E Desmond? Lembrem-se que a ilha ainda não acabou com ele – e a última vez que o vimos foi num hospital. Fora Bernard e Rosie, Vincent, Claire e, claro, o próprio Jacob.
A quinta temporada encerrará nesta semana e revelará uma série de respostas, inevitavelmente. Abrirá, claro, outras tantas perguntas – além de uma grande pergunta, a ser respondida nos primeiros minutos do primeiro episódio da sexta temporada. A impressão que dava é que essa temporada poderia ser resumida em menos capítulos do que 16, mas depois de Follow the Leader, percebemos que, mais do que nunca, algumas cenas fúteis e lentas, serão revisitadas para que, finalmente, saberemos o que há por trás delas.
Meu palpite é que o incidente será causado por Jack (ou quem for) realmente abrirá uma realidade paralela e que o avião da Ajira 316 já caiu nesta versão modificada de 2007 (em que o avião da Oceanic não caiu na ilha) – e a sexta temporada será dedicada a reajustar estes desalinhamentos no espaço-tempo. Toda história de viagem do tempo necessariamente confronta-se com o momento paradoxo e parece que, só agora, já o temos em nossa rota de colisão.
Lost é uma série de ficção científica?
Se antes havia um consenso entre o público de Lost, hoje há dois, bem distintos. Parte de seus telespectadores comemora o fato da série estar passando por sua temporada mais complexa, alinhando cenas dos quatro anos anteriores com acontecimentos inéditos que já haviam sido citados no passado mais a algumas novas narrativas coletivas. São os flashbacks explicados por Faraday, o vai-e-vem entre passado e futuro pelas metáforas pop de Hurley, a saga dos Oceanic Six para voltar para a ilha, a história de Hawking e Widmore e a da Iniciativa Dharma. Para a outra parte do público, no entanto, isso é tudo enrolação, papo furado – os autores se distanciaram dos personagens principais para criar uma história cheia de blábláblá pseudo-científico para explicar o encantamento daquilo que encantava justamente por ser inexplicável. Esta última reclamação reside numa afirmação falsa: que Lost começou a se perder ao tornar-se uma série de ficção científica.
Duas mentiras: Lost sempre foi uma série de ficção científica. O fato de não se passar em um planeta distante ou de não ter alienígenas ou robôs (ainda…) não tira a série do gênero. Do urso polar num ambiente tropical ao monstro de fumaça passando pelos hieróglifos, pelos Outros e pela Iniciativa Dharma, a ilha não pressupunha só mistério, mas também sua explicação. O gênero literário que sempre sublinhou Lost pressupunha a solução para as questões absurdas propostas pela série. Fosse nativo de outra escola narrativa – o realismo fantástico, a mitologia épica ou o teatro do absurdo –, todos os mistérios de Lost seriam simplesmente aceitos e não mais questionados.
A outra afirmação falsa é que Lost nunca foi uma série só de ficção científica – mas gosta de misturar diferentes elementos da tal “caixa mistério” proposta por seu produtor, J.J. Abrams. Não é simplesmente descobrir o que há dentro da caixa, mas o jogo de tentar acertar o que há lá dentro. Antes mesmo da série começar a viajar no tempo (o principal motivo dos atuais detratores se desinteressarem pela série e finalmente perceber o quanto ela é uma ficção científica), Lost já mostrava outros tipos de mistérios quase sempre também abordados pela ficção científica, como eletromagnetismo descontrolado, cura fantástica de doenças, civilização perdida, “o escolhido”, crianças com superpoderes, falar com os mortos.
Se analisarmos a história da ficção científica, ela quase sempre é metáfora para questões existenciais e filosóficas. Das viagens propostas por Julio Verne e H.G. Wells ao monolito de 2001, passando pela cidade-mecânica de Metropolis, os andróides de Blade Runner e os delírios de Philip K. Dick, quase toda a ficção científica pressupõe os clássicos questionamentos feitos pela velha filosofia: quem somos, de onde viemos, para onde vamos, se existe vida após a morte, etc., mas sempre transformados em alegorias sobre outros desconhecimentos – sejam alienígenas, robôs ou viagens no tempo. Em Lost, estas perguntas ressurgem de outra forma, com a ilha mágica assumindo o papel de principal ponto de partida.
He’s Our You veio nos lembrar de outro aspecto relacionado à ficção científica, personificado na figura do Dr. Oldham – o uso de drogas psicodélicas como recurso de expansão da consciência. Essa referência é explicitada quando o pequeno Ben leva um sanduíche para o prisioneiro Sayid junto com o livro Uma Nova Realidade, de Carlos Castañeda. Mais adiante, vemos um pôster da banda Geronimo Jackson que mostra a lagarta fumante de Alice no País das Maravilhas. Logo depois, os Dharma levam o iraquiano para a tenda do místico da Iniciativa, quando Sawyer/LaFleur solta a frase que batiza o episódio: “Ele é o nosso você”, para depois mostrar que os métodos de tortura Dharma não necessariamente infligem a dor para atingir seus intuitos. E assim Sayid é submetido ao método Oldham de interrogatório, graças a uma certa substância que ele força o iraquiano a ingerir.
O que nos leva a repensar o próprio papel da Iniciativa Dharma. Aparentemente, a equipe era formada por um monte de hippies reclusos numa certa ilha dispostos a aprender mais sobre as propriedades sobrenaturais do lugar para o desenvolvimento da humanidade. Mas os caras têm um torturador de plantão? Uma equipe de segurança? Uma cadeia? Fora a trégua com os Outros – tudo indica que estamos longe (ou melhor, cada vez mais perto) de sabermos as reais intenções dos Dharma. Lembre-se que já vimos pelo menos uma cena de lavagem cerebral, quando o namoradinho de Alex, Karl, foi capturado há algumas temporadas. Também vimos a Dharma definir, em consenso, pela morte de uma pessoa. Ou seja: por melhores que sejam suas intenções, elas não são propriamente boas…
Também assistimos à captura de Sayid e a apresentação da personagem Ilana, que aparentemente era uma policial e que agora sabemos ser contratada por alguém (as suspeitas caem sobre Ben, óbvio) para colocar o iraquiano no Ajira 316. Ou seja: Ilana não foi para a ilha por acaso, como creio que Caesar também não.
No mais, o episódio trouxe o que parecia ser uma longa enrolação sobre a relação entre Sayid e Ben, que culminou com o momento “e se matássemos Hitler?” da série. Mas não era em vão – os produtores queriam mostrar as diferenças e semelhanças entre os personagens mais perigosos da série até aqui. O iraquiano e o principal vilão de Lost até aqui se reencontraram em situações diferentes, em que Ben sempre sublinhou a natureza assassina de Sayid – explorada logo no início, quando, ainda na cidade-natal de Saddam Hussein, o pequeno Sayid mata uma galinha para seu irmão, ecoando outra cena de formação de caráter na série, quando Mr. Eko tem de matar uma pessoa para que seu irmão seja salvo. He’s Our You também trata da natureza de Ben – que passa por alguns maus bocados na mão de seu pai, Roger. Assim, aos poucos compreendemos o que ambos têm em comum – e o que faz Sayid tomar a resolução trágica no final do episódio.
Os rumos desta resolução vão ser definidos nos próximos episódios, mas, caso Ben sobreviva, já sabemos de onde ele conhece os personagens principais da série – de sua própria infância (o que explica seu apreço por Juliette, sua familiaridade com Jack, Kate e Hurley e, claro, o fato de ele saber tanto sobre a natureza da Sayid).
Mais quinta temporada de Lost:
Foto: tim2ubh
Em 2005, entrevistei o mestre por fax, pra Folha. Até nos falamos por telefone, mas ele preferiu responder a entrevista em sua máquina de escrever, no papel timbrado de seu escritório. Pelo telefone, ele elogiou algumas perguntas que fiz, mas guardo até hoje o papel enviado à distância, com um “good luck” e a assinatura do mestre no pé do papel. Um dia, quem sabe, enquadro.
Em “Terroristas do Milênio”, J.G. Ballard descreve a revolução da classe média para elucidar questões sociopolíticas atuais
Apesar de não se considerar mais um escritor de ficção científica (“A ficção científica morreu quando o homem pisou na Lua, em 1969”), J.G. Ballard, 74, ainda navega pelo gênero que o consagrou. Seu mais novo livro, “Terroristas do Milênio”, não cogita as destruições apocalípticas de suas primeiras obras, embora continue lidando com um dos principais aspectos da ficção científica: futurologia como laboratório de ensaio para idéias.
Em “Terroristas…”, à moda de seus livros mais recentes (como “Super-Cannes”, 2000), Ballard cogita previsões imediatistas para tentar elucidar charadas sociopolíticas do presente. Pelos olhos do psicólogo desiludido David Markham, ele nos apresenta uma revolta elitista de um condomínio fechado londrino como uma nova versão para a revolução.
Descreve a classe média como um novo proletariado que se rebela contra a força opressora da mesmice inventada para mantê-la em seu lugar. Liderada pelo esguio e carismático pediatra Richard Gould, esta nova revolução desordena a estrutura da rotina com pequenos atentados ao dia-a-dia -em paralelo a outro tipo de atentado, como uma bomba que explode no aeroporto de Heathrow logo no início do livro. Leia a seguir a entrevista que o escritor concedeu à Folha.
Como em seus últimos livros, “Terroristas do Milênio” parece funcionar ao mesmo tempo como uma profecia sombria e um sonho esperançoso. O sr. se considera um otimista?
Sim, mas temos de ser realistas a respeito do mundo em que vivemos. Acho que vivemos uma época muito perigosa. A velha ordem mundial -o Ocidente contra o bloco soviético- acabou, e ninguém sabe quem são seus verdadeiros aliados. Tanto o Islã quanto os Estados Unidos são vistos como uma ameaça. Nossa cultura de entretenimento deixa as pessoas entediadas. A política, a monarquia e a religião fracassaram. Será que o consumismo consegue manter tudo junto? Talvez o esporte, especialmente o futebol, seja o único cimento que previne toda a estrutura de desabar.
As questões políticas estão se tornando parte da textura do século 21? Como o sr. relaciona isso com o fracasso dos sistemas políticos do século passado?
A política fracassou completamente no mundo inteiro e não é mais capaz de resolver nossos principais problemas -intolerância étnica e racial, desigualdades de renda, epidemias globais, a destruição do ambiente, o aquecimento global, ajudar o Terceiro Mundo e tantos outros. Onde a política falha, soluções mais perigosas e radicais tendem a aparecer -como a Alemanha nazista, uma cruzada religiosa e racial fingindo ser um movimento político.
A classe média está ficando entediada consigo mesma?Acho que sim. Todas as pessoas, mesmo as mais bem-sucedidas da classe média, têm necessidades espirituais e criativas profundas, que não podem ser satisfeitas com uma bolsa da Gucci, uma viagem para Miami ou um BMW novo. Precisamos achar significado para nossas vidas. Hoje vivemos como crianças que podem comer o quanto quiser dentro de uma fábrica de chocolates.
À medida que o novo século começa, as pessoas tornam-se mais individualistas devido à desilusão para com as instituições ou começam a agir de uma forma mais coletiva? Isso é consciente?
As pessoas de hoje são muito menos individualistas do que eram há 50 anos. Nós vivemos uma época muito conformista. Um número enorme de regras e convenções sociais domina nossa vida -limites de velocidade, como educar os filhos, quando e onde eles devem ir à escola, como tratar nossas mulheres e maridos, que drogas podem ser tomadas ou não, e por aí vai. A maior parte das grandes decisões econômicas de nossas vidas hoje são decididas por companhias multinacionais, pelo Banco Mundial e pelo FMI. Mas as pessoas são incansáveis, e vemos isso em crimes sem sentido; o ataque do 11 de Setembro foi um protesto contra o modo de vida ocidental e sua cultura de entretenimento corrupta, que aplaca nosso impulso religioso.
Qual é o papel do terrorismo atualmente? É uma questão de desestabilizar o status quo ou são as Forças Armadas dos fracos?
Ambos. Atos terroristas espetaculares, como o 11 de Setembro, podem desestabilizar nações inteiras e até mesmo o mundo, a ponto de os Estados Unidos atacarem o Iraque como uma resposta cega e movida por emoções. Quando as pessoas se sentem enfraquecidas, elas voltam-se para suas emoções, como fizeram Bush e os novos conservadores depois do 11 de Setembro, e as emoções são muito mais perigosas do que ambição fria.
Revolução e crise são sinônimos para a mesma coisa, vistas por ângulos diferentes?
A maior parte das revoluções fracassou, e aquelas que foram bem-sucedidas tenderam a esmaecer, deixando apenas rastros ou continuaram fluindo, como rios por baixo da terra.
O entretenimento matou o sonho?
Nossa cultura de entretenimento atual sufoca tudo e redefine a realidade, ao, com efeito, provar que a cultura de entretenimento é a nova realidade.
Por que sempre parecemos viver em um momento crucial da história?
A mudança acontece tão rapidamente hoje que nós podemos sentir as variações no terreno. Mas é uma época genuinamente desafiadora. Em contraste, os anos 70 e 80 foram épocas mais calmas, até a queda do Muro de Berlim e a derrota do comunismo global.
Qual é a sua opinião sobre a era eletrônica?
A internet é um fenômeno impressionante, com o mesmo potencial de mudar o mundo que o rádio e a TV. Ela já começou a expandir a consciência humana. Tudo pode acontecer. Surgirá a primeira religião da internet, a primeira aldeia, o primeiro movimento político. Percebo uma mudança na consciência humana.
O sr. ainda se considera um escritor de ficção científica?
Não. Parei de escrever ficção científica nos anos 60. A ficção científica morreu quando o homem pisou na Lua, em 1969. Mas, de muitas formas, a ficção científica venceu, foi bem-sucedida ao atingir seus alvos e foi absorvida pelo mercado comercial.
O sr. usa a internet?
Uso o computador da minha namorada -adoro a poesia acidental que se encontra na rede. No site do litoral da Califórnia, em que você pode flutuar como um pássaro por horas. Você pode explorar silos nucleares em desuso. Acompanhar a migração de aves equipadas com rádio em viagens enormes entre a Europa e a África.
“Terroristas do Milênio” poderia acontecer nos EUA?
Já está acontecendo nos EUA. Cultos religiosos estranhos, movimentos antiaborto, hostilidade para com a evolução darwiniana. Esse grupos de protestos são, em sua maioria, da classe média, insatisfeitos com a ordem atual.
Com qual personagem o sr. melhor se relaciona, Richard Gould ou David Markham? O intelectual em dúvida é o par perfeito para o revolucionário carismático?
Acho que Richard Gould está mais próximo de mim; concordo com suas idéias, mas não com suas ações. Como reconciliar ambas as coisas é o grande problema.
Quais são os melhores e piores legados do século 20?
O melhor: liberdade individual, a dedicação da ciência em fazer um mundo melhor e o sentido que somos um mesmo planeta e uma mesma família humana. O pior: a facilidade com que um ditador ambicioso pode escravizar as pessoas, seja fisicamente como Stálin, ou mentalmente, como Hitler. É triste, mas as duas coisas devem ocorrer novamente.
Como o sr. vê o declínio da Europa e dos Estados Unidos enquanto faróis culturais dos séculos passados? Quem deverá sucedê-los?
A Europa e a América são lugares muito diferentes. Os Estados Unidos têm uma cultura de entretenimento popular que é atrativa, mas que não satisfaz, como um hambúrguer ou um pacote de chicletes. A Europa tem uma cultura mais elitista, que não é simples de ser compartilhada, mas que satisfaz muito melhor. Mas a nova supereconomia chinesa mudará tudo.
E o Brasil?
Eu visitei o Rio em 1969 e fiquei muito surpreso com sua vitalidade, charme e as mulheres mais lindas do mundo. O Brasil sempre ocupou um lugar especial na imaginação ocidental, graças em parte ao Rio, em parte à nossa imagem da Amazônia e suas florestas imensas, que representam um sonho profundo do coração primevo da humanidade. Desejo-lhes tudo de bom!
Lily Allen @ Roseland Ballroom
Nova York, 20 de abril de 2009
“Cara, olha como isso tá cheio! E hoje é segunda-feira e tá chovendo!” – não, quem fez esse comentário não foi qualquer pessoa da platéia e sim de um segurança do clássico Roseland Ballroom. A enorme casa de shows na rua 52 de Nova York quase na Broadway (“que metido ele, citando endereço em Nova York”) já foi palco de pelo menos um disco ao vivo histórico (o terceiro álbum da discografia oficial do Portishead) e é vizinho do Ed Sullivan Theatre, onde os Beatles começaram a conquistar o mundo. Por fora, parece um cinema; por dentro, lembra uma versão melhorada do velho Olympia em seus melhores dias.
E, como salientou o segurança, estava lotada – e em plena segunda-feira. Chegamos no meio do show da banda de abertura, o Natalie Portman’s Shaved Head, uma banda empolgadíssima que tocava umas músicas bem mais ou menos, uma espécie de sub-Franz Ferdinand com um pezinho na eletrônica (bem de leve) sem um pingo de noção para compor um refrão válido – “Me & Yr Daughter”, a música com que eles encerraram o show, era o mais perto disso que eles conseguem fazer. O público gostou, mas apenas como aperitivo para o show da musa da noite.
Musa? Lily Allen comporta-se como o oposto disso. Seu show em Nova York foi o segundo “último show da turnê” que assisti da cantora – o primeiro foi no festival Planeta Terra, quando ela encerrou sua primeira turnê mundial num show completamente bêbada, esquecendo as letras das músicas e divertindo-se mais no palco do que a platéia. Era o final de 2007, o ano que consagrou a aparição de Lily Allen não apenas no rol de popstars surgidos graças à web como uma aspirante à liga júnior do mundo de celebridades. Quase dois anos se passaram desde sua primeira aparição e aquele show no Brasil foi uma espécie de terapia em público, com a cantora falando sem parar sobre qualquer assunto, como se expurgasse os próprios fantasmas num porre em que repassou, com banda, seus hits até ali.
Corta para 2009 e lá está Lily, um pouco mais velha, falando, bebendo e fumando sem parar, mas sem o clima de fim de feira do show no Brasil. Pelo contrário – ela está em Nova York e seu show de despedida da cidade não pode ser de qualquer jeito, mesmo porque pode ser o último na América do Norte, mas a turnê de It’s Not Me, It’s You, seu segundo disco, ainda está pela metade. Mas é bom descobrir que cigarros, bebedeira e a falação desembestada não são a exceção – e sim a regra de suas apresentações. E mesmo que ela esteja com mais pose de popstar do que de menininha, mesmo que o palco escreva seu nome com letras grandes três vezes, mesmo que metade das meninas da platéia sejam miniclones de Lily (franjinha, saltões, sainhas, leggings, casaquinhos sobre camisetas compridas, blusas soltas, cores fortes), mesmo que abertura de seu show projete sua silhueta batendo os pezinhos no chão como uma marca registrada, ela não está nem aí para o papel de exemplo a ser seguido ou de ícone cultural. E em vez de fazer-se de diva intocável, equilibra suas músicas com uma faceta pouco explorada entre as manchetes de tablóide – a de que suas frases que às vezes viram manchetes deslocadas por partirem de monólogos que estão mais próximos da comédia stand-up do que da música pop. Não é acaso o fato de ela fazer dois fãs participarem de um concurso para ver quem come mais rápido antes de começar mais uma faixa, “It’s Not Fair”.
E antes de cada música ela alongava uma pequena introdução e contava uma história, explicava uma situação ou falava um pouco sobre a música a seguir. “Essa (“Him”) é para o cara lá em cima”, “essa (“He Wasn’t There”) é sobre o meu pai”, “essa (“Chinese”) parece ser sobre um namorado, mas é sobre a minha mãe”, “essa (“Fuck You”) pode ser sobre qualquer pessoa, mas na verdade é sobre um cara que já era”. Antes de “22” dedicou a faixa às meninas da sua geração (Lily nasceu em 1985) que querem um namorado mas passam o tempo todo ficando com os caras errados (sem mencionar que ela disse isso usando a expressão “sucking cocks”). Antes de “It’s Not Fair” desculpava-se ter dito “fuck” quando queria dizer “making love”.
Ao seu redor, uma banda formada por baixista, guitarrista, baterista e tecladista, acompanhava a garota para onde ela fosse – e se sua segunda coleção de faixas lançada num disco de plástico começou a existir parecendo habitar o território de uma new wave açucarada ou um tecnopop com gosto do girl power das Spice Girls, ele logo a ampliou em um leque de canções de gêneros musicais diferentes, como se estivesse exercitando, musicalmente, o mesmo tipo de terapia/fantasia que inclui em suas letras. O que permitiu até um infame “momento acústico” e uma hilária reação da platéia – sugerida pela própria Lily – que acompanhou “Fuck You” (que era mais sutil quando foi lançada no MySpace ano passado como “GWB (Guess Who Batman)”) erguendo os dedos do meio para a cantora, adolescentes de diferentes idades expurgando suas frustrações num jazzinho pseudo-cabaré cujo potencial de hit parece ter sido boicotado só pelo palavrão do refrão.
E a banda a segue para além das demonstrações de versatilidade embaladas em forma de canção que formam It’s Not You It’s Me. Um dos melhores momentos do show foi no bis, quando a banda brincou de drum’n’bass e dub em cima do reggaeinho original de “Smile” – com Lily disparando efeitos sonoros graças a um dispositivo portátil, que funcionou como uma ótima introdução a “The Fear” (homônima e por que não sobrinha da faixa que abre o classudo e denso This is Hardcore, do Pulp), que também vira parque de diversões instrumental para a banda – desta vez numa jam puxando mais para o eletrônico.
Mas o grand finale aconteceu com um cover – e a segunda versão para “Womanizer” apresentada por Lily Allen ficou longe da primeira tentativa engraçadinha que fez ao lado de Mark Ronson no final do ano passado. Em um arranjo idêntico ao original de Britney Spears em 2009, a canção mostra sua força de chiclete robótico existindo num formato essencialmente rock (o cover do Franz também ressaltou esse aspecto) e reintegra a crítica ao “mulherengo” que batiza a faixa ao universo de Lily. E por mais que tenha ironizado o próprio sucesso em “The Fear”, ela mesma se põe ao lado de Britney Spears (nascida em 1980) para lembrar que mesmo que cantem sobre facetas diferentes de camadas distintas do século 21, ambas coexistem e atravessam situações semelhantes em escalas paralelas. E assim ela não se acanha em assumir o papel de anti-Britney – uma musa pop imperfeita por definição, ao contrário de Britney que encarou a imperfeição como um karma inevitável à condição perfeccionista. E, ao optar por ser uma resposta ao fenômeno popstar do que mais uma releitura, Lily Allen é uma das personagens mais interessantes do cenário pop atual. Ela se dispôs a atravessar o furacão de mídia, fama e celebridade para conseguir seu lugar ao sol – e até hoje vem lidando bem com o desafio. Se continuar assim, pode realmente tornar-se importante.
O Itaú Cultural fez um especial sobre a Jovem Guarda, com farto material multimídia e vários textos sobre o tema – vale a visita. E entre artigos assinados por bambas como o Fernando Rosa e o Ricardo Alexandre, me pediram para escrever uma matéria sobre a influência do movimento cultural no pop brasileiro do século 21. Olha o texto aê (para o ler o original, entre no site e clique na seção Textos).
***
E que tudo mais vá pro inferno
Geração pop endossa a importância da jovem guarda para a história da música brasileira
Dá para imaginar o que seria da música brasileira se não houvesse a jovem guarda? Mesmo que não possa ser ouvido como um gênero específico – afinal, começou como a diluição do impacto mundial do rock por meio do senso estético e passional da América Latina –, o movimento talvez tenha sido o principal fenômeno musical do século passado no Brasil. Sua força vai além das canções e dos filmes de Roberto Carlos. Jovens, urbanos e elétricos, seus músicos conseguiram atingir o país com o mesmo impacto dos reis e das rainhas do rádio nas gerações anteriores e tiveram suas principais características absorvidas por quase todos os músicos, compositores e intérpretes que vieram em seguida. Do samba-rock ao tropicalismo, passando pela cena funk/soul dos anos 1970, pelos Mutantes e pela própria MPB, e indo até a música sertaneja e o rock dos anos 1980, todos reconhecem que a jovem guarda foi uma das manifestações populares mais autênticas da música brasileira, cuja repercussão ainda é sentida no país.
Por mais diverso e esquizofrênico que pareça ser o cenário pop atual, ele tem suas raízes inteiramente vinculadas ao movimento inaugurado pelo trio Roberto, Erasmo e Wanderléa. E da jovem guarda é possível colher frutos tão improváveis quanto a eletricidade dançante do trio Autoramas, as guitarras do La Pupuña, a autocrítica pop do Cabaret, o romantismo descarado do Cidadão Instigado, as melodias do Mombojó e o apelo direto de Lucas Santtana, além de toda a escola de rock gaúcho inaugurada pela Graforréia Xilarmônica, do carisma do pernambucano China e do tom confessional do Los Hermanos.
Um exemplo dessa influência direta está em Gabriel Thomaz, do Autoramas, que se reuniu com outros músicos de sua geração para, ao lado do tecladista Lafayette Coelho, reverenciar o período com a banda Lafayette e os Tremendões. Já China e alguns integrantes do Mombojó celebram a importância de Roberto Carlos com o grupo Del Rey. Trata-se de uma geração que cresceu ouvindo esse ritmo sem os preconceitos dos que, naquele período, o tachavam de música descartável ou rotulavam os músicos da jovem guarda de alienados políticos.
“Uma pitada sacana”
“Não sei se existe outro movimento nacional mais influente quando se fala em música popular. Todo mundo ouviu e tirou alguma coisa da jovem guarda, de Caetano Veloso ao brega paraense, de Amado Batista ao Autoramas”, explica Gabriel Thomaz. O gaúcho Frank Jorge, fundador da Graforréia Xilarmônica, concorda: “Foi ela quem trouxe o tipo de formação instrumental baixo, guitarra, bateria, voz e órgão, um novo enfoque para os arranjos”. O paulistano Curumin complementa: “Não consigo imaginar, por exemplo, o que teria acontecido com a tropicália, a psicodelia, o samba-rock e o rock dos anos 1980 caso a jovem guarda não tivesse acontecido”. Para Adriano Sousa, baterista da banda paraense La Pupuña, “o maior legado são as guitarras, os teclados do Lafayette e, claro, as letras, ingênuas mas com uma pitada sacana”.
Márvio dos Anjos, da banda Cabaret, teoriza: “Radicalizando, sem a jovem guarda o cenário pop do Brasil teria abraçado esse conceito babaca de linha evolutiva da MPB de raiz. Haveria rock, mas Cabeça Dinossauro [1986], dos Titãs, por exemplo, não seria precedido por canções deliciosas como Sonífera Ilha e Insensível. O Los Hermanos teria inaugurado a carreira com Bloco do Eu Sozinho [2001], e perderíamos Anna Júlia, que é a obra-prima deles. Sem falar o que devem a eles várias bandas do fim dos anos 1990, como Autoramas, e todo o rock gaúcho. Por outro lado, os caminhos de Rita Lee – com o Tutti-Frutti – e de Lulu Santos não teriam sido pavimentados por uma série de corinhos, e talvez eles fossem menos subestimados do que são por parte da geração atual. Enfim, o problema é que, com ou sem jovem guarda, o Brasil ainda é muito preconceituoso com a música adolescente. A galera quer ver maturidade em tudo e não repara que isso é coisa de velho”.
Já o compositor baiano Ronei Jorge pondera a extensão da influência da jovem guarda: “Não sei se dá para precisar o legado da jovem guarda na atual geração. Muitas coisas se passaram e se misturaram: tropicalismo, bossa nova, música cafona, mangue-beat etc.”. Kassin, que participa de projetos como o + 2 e o Artificial, além da banda Acabou la Tequila, pontua: “Acho que as gravações mudaram muito com a jovem guarda – a forma de orquestração, a introdução da guitarra. Isso abriu as portas para o que veio depois”. BC, guitarrista da banda brasiliense Móveis Coloniais de Acaju, complementa: “Houve um lado tecnológico, quando surgiram guitarras, baixos e amplificadores nacionais”.
Liberdades individuais
O fenômeno pop da jovem guarda deve-se em grande parte à expansão da cultura rock ’n’ roll pelo planeta, que estabeleceu um novo parâmetro para a música feita no Brasil. “A jovem guarda é a precursora do rock no país e tem um papel importantíssimo num conceito de rock sobre e para a diversão”, continua Márvio. “Hoje, o engajamento político está cada vez mais démodé, as democracias estão aí como queríamos, os movimentos sociais e as ONGs, mas o que a nossa geração quer mesmo são as liberdades individuais. A jovem guarda falava disso e virou referência, mesmo com uma rebeldia mais ingênua. ‘Manter a fama de mau’ para sair com mulheres, o sonho com o carro, a insatisfação com a ilegalidade dos prazeres ou com a rigidez da moral vigente”. Kassin emenda: “Para mim, aquelas músicas do Chico Buarque falando coisas pelas beiradas não faziam o menor sentido quando eu era adolescente. Minha reação era: ‘Por que ele não fala o que está pensando?’. Claro que hoje entendo melhor o período, mas a jovem guarda não precisava ser explicada”.
“Música emociona ou não emociona”, diz o cearense Fernando Catatau, guitarrista e líder do Cidadão Instigado. “As pessoas queriam ouvir canções politizadas no Brasil, então qualquer uma que não fosse assim parecia não ser legal. E na jovem guarda era tudo muito simples e puro”. Frank Jorge concorda: “Os tempos pediam posicionamentos. E eles diziam coisas que faziam sentido para eles e, é claro, para milhões de brasileiros. Podiam não ter uma postura política orgânica, engajada, mas a exerciam na prática”.
“Quase orixás”
Lucas Santtana cita uma música como exemplo da força do movimento: “Quero que Vá Tudo pro Inferno, de Roberto e Erasmo Carlos, já começa negando a tradição da canção popular brasileira ao indagar: ‘De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar?’. Símbolos que sempre foram orgulho nacional são postos à prova para no refrão culminar no que Fausto Fawcett chamaria de ‘puro-desabafo-egotrip-adolescente’: ‘Só quero que você me aqueça nesse inverno/E que tudo mais vá pro inferno’”. Gabriel concorda: “A jovem guarda reside no trio Roberto, Erasmo e Lafayette, e Quero que Vá Tudo pro Inferno tem o dedo dos três. É o som característico da jovem guarda”. “É uma obra-prima”, afirma China. “Como um artista consegue fazer sucesso com uma música que manda tudo pro inferno? É meio surreal se levarmos em conta todo o momento político da época.”
A dupla Roberto e Erasmo tem papel crucial nessa história: “É clichê falar deles como Lennon/McCartney, Jagger/Richards, mas a alimentação entre os dois, a provocação, as piadas internas, a competição e a busca por aprofundamento de caminhos musicais sem sair do pop os tornam artistas muito mais interessantes. Como se não bastasse o repertório”, lembra Márvio.
Lucas Santtana pontua que “a canção popular brasileira foi geneticamente modificada pela dupla e sua herança é nítida até hoje quando ouvimos artistas atuais como China, Ronei Jorge, Catatau, Rubinho Jacobina e Flavio Basso”. “Os dois são quase orixás”, arremata Kassin.
E por falar em Watchmen, Assisti aos tais extras do filme que acabaram de sair em DVD lá fora. Um é uma bomba gigantesca, já o outro…
Primeiro, a bomba. Contos do Cargueiro Negro, como eu já disse, é uma história em quadrinhos dentro da história em quadrinhos. No Watchmen original, ela é lida por um personagem mais do que secundário, mas sua narrativa aos poucos vai sendo superposta à história original, contrapondo aspectos do gibi de piratas com a saga de Watchmen. Toda a discussão sobre como ela poderia ser encaixada na versão para o cinema (será que, em vez de ler uma HQ, o tal personagem teria um DVD player portátil) ficou para trás depois que Zack Snyder anunciou que a transformaria em uma história à parte, num desenho animado. Aí a dúvida mudou: em vez de perguntarmos como ela coexistiria no filme, agora é a vez de saber se ela se sustenta sozinha.
Eu achava que não, mas a animação consegue ser ainda pior do que eu supunha. Pra começar, não existe relação nenhuma da história com Watchmen (a única sugerida, quando o sobrevivente do naufrágio ergue a vela de sua jangada mórbida, é de uma tosquice descomunal). Depois, principalmente, pelo fato da história ter sido completamente modificada. Se no quadrinho ela era um monólogo tétrico e sem esperança, no desenho surge personagens que dialogam com o protagonista. Qual o sentido dessas alterações? Não bastasse a falta de lógica, a mudança não melhora a narrativa – pelo contrário, piora e muito. E mesmo com trechos inteiros citados diretamente da obra de Alan Moore, ela agora é piegas e chinfrim, sem o peso depressivo que tinha originalmente. Para finalizar, a animação é um anime bem meia-boca e a voz do protagonista, cortesia do ator Gerard Butler, não passa sentimento algum.
Já Sob o Capuz é outra história. A princípio, o média metragem parecia ser mais um dos trocentos vídeos virais feitos para divulgar o filme, só que com a extensão prolongada. E é isso – mas não apenas isso. Os três capítulos da autobiografia do primeiro Coruja, Under the Hood, originalmente vinha no final das três primeiras edições de Watchmen, como se fosse um livro. Servia para contextualizar a história do time de super-heróis que precedeu Watchmen, os Minutemen.
Quando torna-se um filme, no entanto, a mudança de linguagem valoriza o novo formato. Assim, assistimos a um programa de TV nos anos 70 que, devido à recente lei que proibira heróis mascarados, resolve reprisar trechos de uma reportagem feita pelo próprio programa dez anos antes, quando Hollis Mason – o Coruja original – foi entrevistado devido ao lançamento de sua autobiografia – que, por sua vez, tem boa parte dos acontecimentos ocorridos nos anos 50.
Então temos um filme que superpõe três décadas – tanto em termos de comportamento quanto estética – com maestria televisiva (afinal, não é um filme, e sim um programa de TV), ao mesmo tempo em que se aprofunda na história dos Minutemen, que foi apenas aludida no primeiro filme. De fato, é um um vídeo da mesma natureza das dezenas de virais que apareceram antes do filme vir à tona. Mas também é parte crucial da história de Watchmen – se conseguimos entender a idéia geral de realidade levemente paralela cogitada no universo criado por Alan Moore no filme, em Sob o Capuz conseguimos ir além sem necessariamente tornar a história (ainda) mais densa. O extra é um filme leve e divertido, com algumas cenas e passagens que aludem à violência e depressão do filme de Snyder, mas que olha para os lados para tentar explicar o que aconteceria se super-heróis – com superpoderes ou não – realmente existissem em nossa realidade.
Sob o Capuz poderia ser, muito mais do que o Cargueiro Negro, tranqüilamente diluído na edição do filme original, tornando-o ainda maior do que as três horas e dez minutos proposta pela versão definitiva de Zack (que, se tudo der certo, chega aos cinemas no meio do ano ou, se tudo der errado, vai direto pro DVD). Intercalando cenas de um programa de TV com as diferentes histórias paralelas poderia dar um certo ar Frank Miller para o filme (vocês lembram do papel da mídia como narrador em O Cavaleiro das Trevas, que foi surrupiada por Paul Verhoeven no primeiro Robocop, né?), mas certamente funcionaria – incluindo seus comerciais setentões (meu favorito é o da Seiko, lançando o relógio digital).
Mas talvez seja melhor deixá-lo à parte. Assim o filme não torna-se ainda mais demorado e podemos entrar num hiperlink da história. E eis um salto narrativo considerável, primo do própria forma artesanal com que a história original foi concebida – escrita por uma pessoa, desenhada por outra, colorizada por mais uma para, só então, ir para o processo industrial. Sem querer, Watchmen abre uma possibilidade de ampliar ainda mais um único produto. Se a produção se esmerasse nisso, talvez teríamos ainda mais desdobramentos num leque de produtos e formatos ainda mais amplo do que o que está sendo usado.
Falando só em Watchmen: se o filme fosse um sucesso, poderia ver outros subprodutos ainda mais complexos da franquia, com a publicação da própria autobiografia de Hollis Manson, uma série de programas de TV sobre super-heróis nos anos 60 e 70 (e não apenas um extra), a transformação do New Frontiersman num blog com notícias de verdade, gibis pornô estrelando Sally Jupiter (referido no filme e sublinhado em Sob o Capuz) até a materialização de uma franquia do restaurante Gunga Din (ou, se sua megalomania não pode conceber isso, a transformação mensal de uma franquia de fast food em um Gunga Din).
O mesmo poderia ser feito em relação a Lost – todos os personagens poderiam ter subprodutos com suas vidas anteriores ao acidente com o vôo 815. Na verdade, a própria ABC já ganha um bom dinheiro vendendo vários produtos com a marca Dharma (uma grife fictícia). Battlestar Galactica vai além – após o uso de determinadas roupas, cenários e apetrechos, eles vão simplesmente à leilão através do site Sci-Fi Channel.
O pop do futuro será consumido em camadas cada vez mais profundas e interconectadas, seja ficção ou não-ficção. Fora do material ficcional é fácil desdobrá-las: afinal os personagens de reality shows todos têm suas próprias vidas e as receitas e hotéis em programas de gastronomia e turismo existem de verdade. Mas é na ficção que reside o maior desafio: se antes Tolkien ou Roddenberry eram considerados excêntricos e nerds por inventarem as linguagens élfica e klingon, no Senhor dos Anéis e em Jornada nas Estrelas, respectivamente, hoje essa é a regra para quem quiser começar a conceber ficção. O começo, meio e fim têm de estar arquitetados de tal forma que explorar o universo fictício não seja apenas possível, mas inspire o leitor/espectador/ouvinte a mergulhar cada vez mais e, claro, participar. Lost, Watchmen e Battlestar Galactica (entre muitos outros) são apenas alguns degraus no rumo disso – a década seguinte, aposto, será dedicada a este tipo de descobrimento.
Radiohead domina corações e mentes e incita nova era de shows no Brasil
Tanto no Rio quanto em São Paulo, foi em “Idioteque” que bateu. Por mais que já tivessem hipnotizado o público em “There There”, o cortejado de perto com “Karma Police” e “All I Need” e lhe arrebatado em “The National Anthem” e “Jigsaw Falling Into Place”, o Radiohead tornava-se real no terço final da primeira parte dos shows, quando, pela primeira vez em ambos shows, soltava nossos corações ou mentes, deixando-os finalmente livres para dançar. Os tubos acima do palco eram iluminados com pouca luz, com tonalidades entre o roxo e o azul escuro, o suficiente para dar o ar de pista de dança que a música de Kid A exigia. Os blips do início drenavam toda a ênfase de show de rock que vinha até ali – saía o piano, saía a dinâmica entre as guitarras, violão e teclados que dava a tônica da apresentação e a força do som era reduzida ao diálogo entre a ruídos eletrônicos disparados pelo guitarrista Jonny Greenwood e a bateria metronômica de Phil Selway. Ao lado do baterista, o baixista Colin Greenwood iniciava a seqüência de acordes gelados no teclado que identificavam a canção para as multidões, que saudaram o reconhecimento com o mesmo urro com que havia recebido os hits anteriores. Mas a ausência do miolo instrumental clássico da banda, reduzindo as canções a beats, ritmo e frios acordes de teclados (traçando aí o paralelo genético com o Kraftwerk que abriu os shows) enfatizou a presença solene de um público embasbacado. Ed O’Brien, ainda com seu instrumento em punho, preferiu grunhidos elétricos do que os solos e acordes clássicos que caracterizavam sua participação, enquanto Thom Yorke entregava seu vocal ao delírio robô dançado pela platéia.
“Isso está realmente acontecendo”, soltava-se Thom, baixinho, braços movendo-se para o lado entre saltos e olhos fechados, dança reprisada pelo público, balançando-se sem acreditar. Estava realmente acontecendo – o Radiohead estava finalmente fazendo um show no Brasil, doze anos depois de OK Computer, dois anos depois de In Rainbows, reprisando o disco mais importante da década na íntegra, enquanto repassava as principais faixas de um dos discos mais importantes da década anterior e costurava o resto do show com faixas tiradas dos três álbuns lançados entre estes e dois hits sacados de seus dois primeiros discos. Mas independentemente das músicas que foram escolhidas, eis um paradigma vencido. A vinda do Radiohead talvez tenha encerrada uma adolescência do Brasil em relação a shows, sejam internacionais ou brasileiros, iniciada com o primeiro Rock in Rio – mas depois eu falo mais disso.
O Radiohead é uma banda cujo carisma e apelo popular não está em gestos ou na comunicação com o público – e sim através das canções e na forma como estas foram dispostas nos shows. Sua apresentação não conta com um vocalista populista e sorridente, que veste a camisa da seleção brasileira e tenta balbuciar agrados em português. Seus dois heróis da guitarra são pouco usuais – embora Ed O’Brien esteja mais próximo do que se espera de um guitarrista clássico, ele sabe que seu papel é coadjuvante (é o principal cavaleiro de Sir Yorke, seu Lancelot) e secundário, enquanto o verdadeiro guitar hero da banda, Jonny, seja um magrelo tão chegado aos beats eletrônicos e efeitos de dub do que aos solos de guitarra. A cozinha formada por Colin e Phil é avessa aos holofotes e prefere olhar-se nos olhos em vez de encarar o resto da banda. Thom Yorke, por sua vez, seduz o público apenas com sua voz.
E que voz. Mais do que o palco aceso e colorido, a voz de Thom Yorke é o principal elemento no show da banda. Não é ela quem determina o tom das canções – este quase sempre é definido pelo conjunto musical, quase sempre em discussões entre os instrumentos de Colin, Phil e Jonny – mas é o vocal quem o dissemina sobre o público. O timbre de Yorke, como os diferentes acordos instrumentais propostos pela banda, não pertence a um único território. Ele pode balbuciar como um bêbado e soar como um anjo na mesma canção (“Exit Music (for a Film)”, por exemplo), deixar sua voz atingir picos melódicos virtuosos (“Reckoner” ou o final de “All I Need”), soltar grunhidos ininteligíveis (no meio de músicas mais pesadas, como “National Anthem” ou “Bodysnatchers”) ou escárnios cínicos – em especial em “You and Whose Army?”, talvez seu momento de interação mais direta com o público, através de uma webcam posicionada em frente ao piano, deixando-o à vontade para brincar com a imagem de seus olhos tortos. Quase sem falar com o público no show do Rio, só falou com os paulistas alguns “obrigado” ditos quase sem sotaque. A única exceção veio antes de “You and…”, quando anunciou a música “para os ianques” nos dois shows e antes de entrar na segunda vez em que “Creep” foi tocada no Brasil, em São Paulo, quando perguntou se o público sabia qual era a próxima. No Rio, o diálogo ficou por conta de Ed, em português mesmo, que apresentou a banda em “Airbag” (“nós somos Radiohead”) e mandou um “bom pra caralho!” que resumiu o espírito do show depois de “Reckoner”, fechando o segundo bis na Apoteose.
Guitar hero compenetrado, Ed é instrumentista de rock clássico, herdeiro de uma genealogia de seu instrumento que inclui Eric Clapton, Jeff Beck e David Gilmour, que sabe a hora em que deve ficar no centro da canção e quando é hora de deixar outro músico brilhar. Já Jonny é o típico guitarrista pós-punk, porém destemido frente à grandiosidade – ecoa tanto a guitarra de The Edge quanto à do Public Image Ltd, do Pere Ubu e dos Talking Heads. Sabe que a eletricidade pode comunicar com ou sem a guitarra, por isso dedica-se tanto às seis cordas quanto à manipulação de ruídos em sintetizadores analógicos e pedais de efeito, jogando transmissões de rádios brasileiras para dentro de “National Anthem” e, em São Paulo, tratando-as como dub em “Climbing Up the Walls”. Completos à perfeição, ambos guitarristas ladeavam Thom Yorke como se respondessem pelas duas personalidades do cantor – às vezes mais o doutor Jeckyll (Ed), outras senhor Hyde (Jonny) – ao mesmo tempo em que agem de forma semelhante. Basta ver como se comportam em momentos distintos, longe de seus instrumentos – quando assumem a percussão em “There There” ou quando dedicam-se apenas a manipular efeitos sintéticos e a gravação com a voz de Thom em “Everything In Its Right Place”.
Eis a estrutura básica da banda – Colin e Phil agem como um mesmo instrumento, uma cozinha clássica de banda de rock inglês que evoca tanto o Led Zeppelin quanto os Smiths ou o Clash. A dupla de guitarristas conversa com o piano, a guitarra ou o violão de Thom Yorke em progressões de acordes remanescentes de clássicos ingleses dos anos 70 como Abbey Road, Dark Side of the Moon, Arthur, Phisical Grafitti, A Night at the Opera e The Lamb Lies Down on Broadway. As canções ganham aspecto épico e tratamento rebuscado que fazem muitos menosprezarem a banda como intelectualizada demais – como foram menosprezados seus antecessores. Mas o Radiohead é uma banda que, por mais que componha álbuns conceituais e acene para a música eletrônica de vanguarda, sobrevive em suas canções, na forma como eles cristalizam determinadas emoções em seqüências de acordes, refrões memoráveis, letras que traduzem sentimentos contemporâneos e a reinvenção da dinâmica instrumental do rock entre os anos 60 e 70.
E ao vivo estas faixas mostram sua força – principalmente as de seus três grandes discos, OK Computer, Kid A e In Rainbows. O repertório dos dois shows foi muito parecido e seguiu a média da turnê do ano passado. Tocaram tanto o In Rainbows na íntegra quanto as mesmas faixas de Kid A (“Idioteque”, “National Anthem”, “Everything In Its Right Place”) e do Hail to the Thief (“There There” e “The Gloaming”), além de uma única música em comum do Amnesiac (“You and Whose Army?”). Do OK Computer, só “Paranoid Android” e “Karma Police” foi tocada nos dois shows – “Airbag” e “No Surprises” só foram ouvidas no Rio, “Exit Music”, “Lucky” e “Climbing Up the Walls” apenas em São Paulo. As duas apresentações ainda contaram com faixas do segundo disco da banda (“Just” e “Street Spirit” no Rio e “Fake Plastic Trees” em São Paulo) e com o encerramento por conta de “Creep”, encerrando por vez a discussão a respeito da canção mais popular do Radiohead no Brasil. Outras sutis diferenças puderam ser sentidas – enquanto “How to Disappear Completely” só tocou no Rio, “Pyramid Song” e “Talk Show Host” só foram ouvidas em São Paulo. Mas se você acompanha o Radiohead como um todo e não é fixado em apenas um álbum, assistir a apenas um show já deu um belo panorama da carreira do grupo. Várias faixas ficaram de fora (“Wolf at the Door”, “Knives Out”, “Let Down”, “2 + 2 = 5”, “Planet Telex”, “Morning Bell”, “High and Dry”, “Electioneering”), mas quem assistiu a apenas um dos dois shows teve um belo panorama da força da banda ao vivo e de como ela coloca suas canções em primeiro plano. O público respondeu à altura: no Rio, a massa continuou “Karma Police” sozinha, cantando “for a minute there/ I lost myself/ I lost myself” mesmo depois que a banda deixou de tocar, enquanto em São Paulo o público continuou “Paranoid Android” sem a banda com seus “rain down” sendo seguidos por Thom Yorke – que quase ameaçou tocar “True Love Awaits”, mas foi levado pela força das próprias canções.
Até o cenário favorecia às músicas. Ao contrário de outros medalhões que enchem suas apresentações com efeitos especiais, fantasias, dançarinos, criaturas infláveis ou estruturas gigantescas, o Radiohead preenche o próprio palco com um efeito simples e genial. A série de tubos dispostos na vertical sobre a banda funciona como um telão projetado sobre um candelabro, uma luz refletida em código de barras, que amplificava a iluminação como as caixas aumentavam a potência sonora da banda. A cada faixa, tons fortes tomavam conta da ribalta, vinculando cores (In Rainbows, afinal de contas) a andamentos musicais – laranja, vermelho e roxo brigam nos momentos mais intensos, o azul cai sobre as baladas mais sentimentais, o amarelo anuncia climas áridos e o verde vinha nas músicas mais rápidas.
Alternando as cores com claros e escuros e as próprias imagens em telões colocados atrás e nas laterais do palco (equipamento que falhou durante as cinco primeiras músicas do show de São Paulo), a iluminação da turnê In Rainbows servia apenas para destacar as qualidades musicais da banda, usando estrobos e luzes negras para enfatizar mudanças de andamento, solos instrumentais e efeitos eletrônicos. Triste para quem não foi ao show: as gravações em vídeo quase nunca fazem jus aos tons de cores usados ao vivo.
No centro de tudo, dominando milhares de corações e mentes em pouco mais de duas horas, o Radiohead é dessas bandas que funcionam melhor quando falam às multidões. Descendentes diretos do U2 dos anos 80, eles ecoam simultaneamente a fase mais católica do grupo irlandês quanto seu período europeu do início dos anos 90 – soando quase sempre dúbio e ambíguo, entre o desespero e o conforto, o doce e o amargo, e assim conectando-se com outra importante banda em sua formação, os Smiths. O quinteto consegue fazer os dois grupos soarem próximos em canções que também remetem às carreiras solo dos Beatles, ao momento em que o Who começou a soar opulento e ao Genesis antes da saída de Peter Gabriel. O som da banda então é revestido por duas camadas diferentes de contemporaneidade ao fim do século 20 – a redescoberta do refrão proporcionada pela conjunção grunge/britpop no início dos anos 90 e à lenta diluição das diferentes facetas da música eletrônica (desde a mais séria ao seu lado mais fútil) com a música pop. Difícil imaginar que o cenário pop atual florescesse e abrisse espaço para bandas como LCD Soundsystem, TV on the Radio, Killers, The National, Bloc Party, Sigur Rós, Interpol, Modest Mouse, Árcade Fire e Franz Ferdinand não fosse a importância e o pioneirismo do Radiohead nos anos 90.
E a vinda da banda ao Brasil no início de 2009 fechou não apenas o ciclo aberto com o certa vez mítico anúncio dos shows da banda no país como talvez uma adolescência longa demais no que diz respeito a apresentações internacionais por aqui. Desde que foi cogitado pela primeira vez, logo após o lançamento de Kid A, em outubro do ano 2000, o show do Radiohead no Brasil era algo que deixava de ser um mero boato e ganhava contornos de lenda. Nesse meio tempo, vieram para o Brasil artistas que pareciam ainda mais inatingíveis que o grupo liderado por Thom Yorke, além de quase todas as bandas e novidades internacionais que apareceram neste início de século.
Se existe uma coisa de que não podemos reclamar hoje em dia, é de shows internacionais no Brasil. Quando éramos a periferia da periferia do mundo – quando “Brasil” era quase sinônimo de “Acapulco” ou “Bahamas” –, grandes nomes do showbusiness mundial só pisavam aqui de férias. Entre as visitas de Brigitte Bardot a Búzios e dos Rolling Stones ao interior de São Paulo nos anos 60, o Brasil recebeu visitas esporádicas de grandes artistas que quase nunca vinham fazer shows, apenas espairecer ao sol tropical de nossas bucólicas e desertas praias do passado. Quando vinham fazer shows, artistas como Kiss, Alice Cooper, Police e Queen causaram comoção no inconsciente coletivo na década de 70 e início dos anos 80 – pode parecer estranho, mas houve um tempo em que toda a cultura relacionada ao rock era vista como algo alienígena no Brasil. Daí a importância da geração dos anos 80 – consagrada nacionalmente em um evento (o primeiro Rock in Rio) que trazia, numa só vinda, mais artistas estrangeiros para o país em uma semana do que todos os grandes shows internacionais desde o início daquela década (Sinatra no Maracanã incluso). O festival inaugurou a era que parece encerrar agora, em que grandes artistas são capazes de arrastar multidões para estádios e reviver épocas passadas em palcos do terceiro mundo.
Se hoje rimos da décima oitava vez que o Deep Purple se apresenta em uma cidade do interior de Minas ou quando pela enésima turnê em que três ou quatro bandas australianas passeiam pelo litoral do sul brasileiro, um dia estes mesmos eventos já foram recebidos como acontecimentos históricos. De 1985 para cá, assistimos a shows de todos os principais artistas da história da música moderna –os titãs do pop, os fundadores do jazz, a nata do rock alternativo, os maiores nomes da música eletrônica, os pais do rock’n’roll, os criadores da black music, grandes bandas de heavy metal, hardcore, reggae e disco music. Esta história da música moderna foi revista enquanto vários artistas novatos puderam visitar o Brasil em seus primeiros passos e quando o circuito de shows internacional passou a ser pulverizado. Tudo bem, são menos que dez empresas que ainda trazem os grandes espetáculos internacionais para cá (juntando aos nossos shows favoritos apresentações de espetáculos da Broadway ou do Cirque de Soleil). Mas hoje já há uma segunda divisão considerável de empresários e agentes de shows que buscam shows que não necessariamente pertençam ao ambiente de negócios que se tornaram as vindas de artistas estrangeiros para cá. Assim, ano passado pudemos assistir tanto aos shows de Bob Dylan, Justice, Madonna e Kanye West quanto aos de Will Oldham, Vaselines, Young Gods, Black Lips e Yelle, que passaram pelo Brasil em apresentações bem menores – e em cidades que não são apenas o Rio de Janeiro e São Paulo.
Resta saber o que vai acontecer a partir de agora. Afinal, são 25 anos que nos colocaram no circuito de shows do mundo, que viram nossas estruturas para este tipo de evento crescer (embora ainda estejamos bem distantes do ideal) e artistas brasileiros entrarem neste mesmo mercado de shows – seja o Sepultura, o DJ Marlboro ou o Cansei de Ser Sexy. A vinda do Radiohead ao Brasil parece encerrar uma era de ineditismo de grandes shows por aqui e vem junto com o fim do Tim Festival, que viu em sua edição passada a última oportunidade de se cobrar separadamente ingressos para artistas que vêm num mesmo evento (paradigma redefinido pelo festival Planeta Terra e seguido à risca pelo Just a Fest). O próprio nome “Just a Fest” entrega a vala comum que este tipo de evento acabou se tornando: traga um grande artista, empurre mais outros dois, um brasileiro e eis um festival.
É hora de repensar esse formato. Ao mesmo tempo em que os grandes nomes da indústria do disco vão se reduzindo a um mero punhado de veteranos, o conceito de festival parece fadado a entupir palcos com dezenas de bandas que contam com duas ou três músicas legais e que são mal vistas por multidões desinteressadas. Talvez fosse hora de investir em um novo padrão, em novas experiências de contato com o público. Por que não há um festival grande destes só com artistas nacionais? Cadê o South by Southwest ou o CMJ brasileiro? Por que a Virada Cultural de São Paulo não pode se tornar tão importante quanto o festival de Roskilde, na Dinamarca? Onde estão nossos shows ao ar livre, as discotecagens que acontecem de dia, apresentações na rua, em teatros, em escolas?
Quando acabarem todos os grandes shows, quais você vai ver?
***
Mais Radiohead?
– A César o que é de César: o show foi do caralho, já o Just a Fest foi um grande foda-se pro público
– In Rainbows, o disco da década
A Iniciativa Dharma, os anos 70 e a nova fase da série
Se LaFleur já tinha me feito recobrar as esperanças em Lost – num grande episódio feito em homenagem a um grande personagem -, Namasté oficializou essa nova fase. Só o início do episódio, recriando o acidente com o vôo 316 da Ajira Airways, teve mais emoção, adrenalina, revelações e carga dramática do que toda a história dos Oceanic Six. Sim: houve o clarão e Jack, Hurley, Kate e Sayid desapareceram para reaparecer na ilha, 30 anos no passado. Não: o avião da Ajira não caiu, mas pousou – aos trancos e barrancos. Sim: o avião pousou na pista que os Outros estavam fazendo em 2004. Não: o avião ficou mesmo em 2007.
(Antes de continuar o episódio, vale cogitar o motivo de Sun, Locke e Ben não terem voltado com o clarão. Locke é mais ou menos fácil adivinhar – ele estava morto e a energia que teoricamente o levaria para o passado só foi suficiente para revivê-lo. Ben nos leva ao ponto crítico da suposição: afinal, se uma das formas de viajar no tempo em Lost é a transferência da consciência de uma época para a outra, que passa a habitar o corpo de uma fase da vida com a mentalidade de outra, Benjamin Linus não poderia ser transportado para 1977 pois ele também habitava a ilha nesta mesma época, só que ainda adolescente. O que nos leva ao ponto crítico da teoria – Sun. Será que ela esteve na ilha nos anos 70? Será que ela é o bebê que vemos chorar no início desta temporada?)
Enquanto isso, retomamos o fim do episódio passado, quando Sawyer e Jin reencontram Hurley, Jack e Kate. Jin logo sai de cena quando o avisam da possibilidade de Sun estar viva, dirigindo pela ilha desenfreadamente, como se pudesse encontrá-la a qualquer momento. Resta a Sawyer não apenas explicar aos três recém-chegados o que está acontecendo – e quando estão – como explicar para a Dharma quem são aquelas três pessoas.
Namasté ainda mantém o clima iniciado em LaFleur, quando, depois de conseguir infiltrar os três na Iniciativa Dharma (olá, Pierre Chang!), Sawyer faz questão de colocar Jack em seu lugar, provando que sua transformação não foi apenas sazonal – nem que foi abalada pela chegada de três dos Oceanic Six.
Mas o episódio é sobre a nova fase da temporada 2009 e ela fala sobre a Dharma. Assim, somos apresentados a um novo núcleo de ação, como novos protagonistas. Alguns são velhos conhecidos (nossos, não dos personagens) – Radzinsky já tinha sido citado por Kevin Inman, o companheiro de Desmond quando ele ainda era apenas um náufrago apertando um botão numa escotilha subterrânea em uma ilha perdida, e Horace Godspeed já havia aparecido em um sonho de Locke, construindo a cabine em que John encontraria o sinistro Jacob (sua esposa Olivia também já tinha dado as caras). Outros são apenas nomes e rostos, como Amy (que, ora ora, batizou seu filho de Ethan), seu falecido marido Paul, Phil, Raymond, Rosie, Tom (que aparece num rápido momento na oficina de Juliet – será o mesmo Tom que mais tarde tornaria-se um dos Outros?), Anthony, Elmer e Jay. Outros personagens, como Doctor, Jerry e Heather já haviam sido apresentados no episódio anterior – além de todos os que já têm nome e ator exibidos no episódio The Man Behind the Curtain. Essa enxurrada de personagens não vem anônima – alguns, certamente, não passarão de figurantes com nome, mas outros devem ser aprofundados e postos em conflito com os outros personagens da série. Fora que ainda outros devem aparecer, como o mítico casal Gerald e Karen DeGroot, fundadores da iniciativa e, quem sabe, seu patrocinador, o soturno e enigmático Alvar Hanso.
Ainda no passado, Jin reencontra outro 815 perdido em 1977. Sayid é rapidamente confundido com um Outro e trancafiado como se tivesse quebrado a tal trégua que a aparição de Sawyer já havia ferido.
No futuro, Ben descobre que Sun está o seguindo pois acha que pode encontrar Jin. Aliás, o reencontro de Jin e Sun promete ser o grande momento romântico da temporada, como foi o de Desmond e Penny na passada (por isso, preparem os lenços aí, mulherada). Mas enquanto ela não o encontra, a vimos sendo apresentada à alternativa sugerida por Ben – deixar a ilha menor rumo à ilha principal. Na fuga, os dois encontram o piloto Frank Lapidus e, quando imaginávamos que Sun iria cair no papo de Ben, ela dá uma remada (!) na cabeça do sujeito e segue com a canoa para a ilha.
Lá chegando, os dois encontram o acampamento Dharma que, em 2004, havia sido tomado e transformado na Vila dos Outros. Mas o detalhe é que em 2007, a Vila parece estar abandonada há muito tempo – bem mais do que três anos -, além de contar com os logotipos da Iniciativa banidos pelos Outros. O que nos leva a crer que a vila foi abandonada – e talvez não tenha sido usada pelos Outros. É o primeiro aceno a uma possibilidade tida como inexistente em Lost até agora – a que existe uma linha do tempo paralela, diferente da que conhecemos. Ou seja, existe a possibilidade da regra de Faraday (“O que aconteceu, aconteceu”) não ser uma regra. Afinal, já tinha dito Ben quando viu sua filha morrer, regras foram mudadas…
(Fora a aparição de Christian Sheppard e a possível aparição de Claire, mas tá muito cedo pra especular em cima disso ainda.)
E, falando em regras que podem ser mudadas, o episódio terminou com Sayid sendo visitado pelo jovem Ben, que se apresenta para, logo depois, ser felicitado pelo encontro. “Prazer em te conhecer, Ben”, diz o iraquiano, numa cena que, pelo andar da carruagem, vai se desdobrar.
Em Namasté, demos os primeiros passos no playground que vai ser a Dharma até o final da série. Novos personagens virão, novos conflitos entre personagens ocorrerão, velhos ressuscitarão (velhos personagens também? Vai saber…). Mas se estamos mesmo à beira de um paradoxo temporal, ele vai ser deflagrado nos anos 70. Afinal, os 815 sabem que Ben matou toda Iniciativa Dharma – mas será que vão deixar isso acontecer no futuro?
***
Mais quinta temporada de Lost: