Sobre a cultura do conforto

, por Alexandre Matias

Já reparou que na pandemia recorremos aos mesmos discos, livros, séries, quadrinhos e filmes de sempre? Em mais uma colaboração para o site da CNN Brasil, conversei com o Ricardo Alexandre, a Fernanda Pineda e o Thiago Ney sobre a chamada cultura do conforto.

Cultura do conforto: por que consumimos as mesmas séries, filmes e discos de sempre
Não é apenas um fenômeno da pandemia, mas este período agravou a sensação de se buscar por conteúdos mais familiares. Três especialistas refletem sobre o tema

Em quase dois anos de pandemia da Covid-19, um dos setores que mais sangraram foi o da cultura. Sem condições de provocar aglomerações (sejam em casas de shows, salas de cinema ou teatros), o mundo do espetáculo reduziu-se ao contato através das vias digitais – mas nem isso foi o suficiente para sanar os percalços da classe artística.

Sem perspectiva de sair da quarentena ou de voltar a alguma normalidade, o público passou a ignorar novidades e voltar para livros, discos, filmes e séries que lhe traziam alguma familiaridade e sensação de acolhimento.

A cultura do conforto não é um fenômeno pandêmico, mas como muitos outros que também não eram, foi agravada violentamente por este período. Sem perspectiva de volta à normalidade, produtores e artistas suspenderam lançamentos, alguns adiados até hoje, à espera do melhor momento para realizá-los.

Foram filmes, séries e novelas que tiveram suas produções suspensas, até discos e livros que foram adiados para o momento em que shows e tardes de autógrafos poderiam voltar a acontecer, em paralelo ao movimento de imunização do brasileiro.

Mas o que foi lançado neste período mal foi absorvido e o público estava envolto mesmo em obras do passado que o lembravam de uma época menos diferente do que a que estamos atravessando.

De novelas clássicas ao seriado dos Beatles, passando pelo vasto acervo de conteúdo nos serviços de streaming e relançamentos recentes de obras em edições de luxo (sejam em papel, vinil ou blu-ray), o público reencontrou-se com seu passado como uma forma de mitigar o presente dos anos 20.

“Produtos mais familiares nos trazem um pouco de conforto em meio a tanto medo, sofrimento e tristeza causados pelo vírus”, explica o jornalista Thiago Ney, autor da newsletter sobre cultura MargeM.

“Nos sentimos mais confortáveis quando estamos próximos daquilo que já conhecemos. Além disso, é mais fácil e rápido ir atrás de algo que já conhecemos do que passarmos dezenas de minutos em uma plataforma de streaming tentando encontrar algo novo – e do qual poderemos não gostar, o que pode ser mais uma frustração em uma época já frustrante.”

Revisitar conteúdos sempre foi uma realidade, inclusive da era pré-streaming, “senão os famigerados box de séries não teriam vendido tanto – vendem até hoje!”, complementa a jornalista especializada em cinema e TV, Fernanda Pineda.

“O que acho mais específico deste período pandêmico é um comportamento de ir assistir a alguma coisa do passado pela primeira vez. A versão americana da série ‘The Office’ virou um fenômeno nas timelines em 2020 e meados de 2021 com muita gente se apaixonando só agora por uma série encerrada em 2013.”

“Acho bem curioso que, no momento em que o home office foi compulsório para muita gente por conta da situação de saúde, uma das séries mais comentadas na timeline era uma comédia sobre ambiente de trabalho. Talvez tenha sido até um jeito de matar a saudade daquela ‘zoeira’ que sempre rola em escritório!”, explica, citando um dos hits da quarentena.

“Nesse sentido, rever histórias, músicas ou revisitar arcos de personagens queridos se torna confortável por já ter uma noção do que vai acontecer”, continua a jornalista. “Você retoma um conteúdo com um olhar diferente e ainda tem o conforto de saber que não vai ser surpreendido negativamente. Você não sente que está investindo aquele tempo de sofá à toa – é como reencontrar um velho amigo e saber que a relação de vocês continuou.”

Antídoto à ansiedade
“A pandemia escancarou de vez o fato de que a gente não tem muito controle sobre muita coisa, o que por si só já gera bastante ansiedade”, prossegue a jornalista, que encontra eco com o que pensa outro jornalista e também escritor Ricardo Alexandre, autor do podcast Discoteca Básica, sobre discos clássicos.

“Acho que as pessoas estão tentando buscar saídas para um mundo inundado de informação e um sistema de comunicação que tende à ansiedade, as barras de rolagem infinitas, as notícias 24/7, o tempo todo…”

Ricardo continua, explicando como a comunicação e o consumo de cultura mudaram nos últimos anos. “Se você for pegar os mapas de consumo de atividade online de hoje em dia e comparar com os de dez, quinze anos atrás, a gente tinha os horários de pico: quando as pessoas chegavam no trabalho, quando as pessoas chegavam em casa ou quando voltavam do almoço nas empresas. Hoje esse gráfico é uma barra maciça, as pessoas estão o tempo todo conectadas, recebendo informações. É óbvio que isso é insalubre”.

Ele acha que o público já percebeu isso e cogita outras formas de se proteger em relação a isso. “Está claro para as pessoas que faz mal e eu acho que a gente não sabe muito bem como se proteger disso, porque a relação também de quem produz conteúdo é inundar todo mundo o maior tempo possível”, continua. “Arriscaria a dizer que a tendência à cultura do conforto tem uma raiz aí, com as pessoas tentando se proteger desse universo hiperestimulado das novidades digitais, das atualizações frenéticas.”

Ricardo constata outra tendência que aconteceu durante a pandemia: o resgate de produtos culturais já comprados mas não explorados por seus consumidores. “Vi muita gente comentando que havia descoberto discos, livros, DVDs que tinham há anos em casa e nunca os tinham explorado, consumido de fato”, constata.

Tudo pelo algoritmo
Thiago Ney também reforça a influência do algoritmo na forma como ele pauta nossas vidas – à medida em que utilizamos serviços de streaming, ele “aprende” nossos gostos e nos oferece apenas programas, músicas e filmes que conversem com o que já acompanhamos. “O algoritmo não é feito para nos desafiar e sim para nos trazer aquilo que gostamos, que estamos acostumados”, explica.

Fernanda Pineda concorda explicando que a tendência é que estes canais de streaming produzam cada vez mais conteúdos a partir do que aprendem com nossos gostos através dos algoritmos. “Mas será que são produções novas mesmo? Será que um remake honesto não é mais interessante do que conteúdo que parece requentado?”, questiona a jornalista.

E há outro ponto de vista, o da evolução tecnológica. “O surgimento do digital e do 4K enterrou todos os acervos de clipes e telenovelas, porque é muito desagradável você assistir a uma novela dos anos 1990 numa televisão 4K, de LCD”, continua Ricardo. “Há uma certa urgência em refazer esses conteúdos para que eles se adequem aos nossos olhos – nossos olhos mudaram!”. Ele cita a remasterização das imagens do seriado “Get Back” dos Beatles como um exemplo desta tendência.

O jornalista também reforça que mercado brasileiro não se arrisca em novidades há tempos. “A gente vive uma crise de oportunidade muito grande, pois há uma tendência para a inércia e cada vez mais me parece mais improvável que veículos de mídia queiram assumir o risco, a responsabilidade de romper com essa inércia.”

Ele prossegue: “No Brasil, vivemos há muitos anos um momento em que o universo de cultura não dá mais espaço para novos nomes, o que antes, era tido como uma missão. Havia uma crença de que você construiria um veículo com mais apelo, respeito e durabilidade se você fizesse isso.”

“Hoje as medições são muito mais imediatistas, a ideia de construir um veículo que vá viver da sua credibilidade a longo prazo não existe, você tem que viver das métricas imediatas”, continua o jornalista.

“Então você chega a uma situação em que programas de TV que historicamente levariam artistas novos, já não levam mais. Você pega uma trilha sonora de uma novela que era um espaço por excelência de lançamento de novas músicas que são compostas inteirinhas por regravações de clássicos da MPB. E rádios que se concentram nas mesmas músicas de sempre. Por quê? Porque é mais vantajoso do ponto de vista imediatista. É muito preocupante isso.”

Qual alternativa?
E como sair dessa? “Fuja das recomendações do algoritmo do streaming!”, crava Fernanda. “Se você quer fazer parte da conversa das redes sociais, vale buscar recomendações da galera na timeline, ler críticas em sites e reviews de influenciadores. Agora se você quer se desligar desta necessidade de maratonar para acompanhar os papos, a dica é pegar um artista que você gosta e ir atrás de outros trabalhos dele.”

“Escape do algoritmo”, Ney concorda, dando dicas de como fazer isso. “Em relação à música, tento ouvir rádios de lugares diferentes do mundo, que tocam coisas diferentes. Com relação a cinema e séries, vejo o que recomendam nas redes sociais, procuro em sites por aí. Se procurar, dá pra achar muita coisa.”

Ricardo Alexandre faz coro e reforça a construção de um espaço para o novo como uma missão a ser encarada por veículos e profissionais, sejam novos ou velhos. “Porque se ninguém romper isso, ninguém romperá. E isso é um mal do Brasil desde os roceiros: eles destroem o terreno que eles próprios ocupam. Parece que é uma maldição que a gente carrega por muitos séculos.”

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