Paranoia

Vozinha

Sinishtro.

McDonald’s e Maconha, Coca-Cola e cocaína.

Assim Sou Eu

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Bizz com os Paralamas na capa (Pedro Só matando a pau na matéria), número 200, entrevistão meu com o Odair José (tem até foto minha, meninas) que eu só posto, por enquanto, o mesmo tanto que a Bizz liberou. Quando a 201 hit the bancas, eu posto tudo. E falando nisso, o podcast da revista teve a minha participação nos vocais, falando justamente sobre o OJ brasileiro. Escuta aqui. Ah, a foto é do Coskoman, grande Eugênio.

Qual sua primeira memória musical?
Meu pai mexia com terra, na região de Morrinhos (interior de Goiás), perto de Caldas Novas. Chegava a época da colheita, ele fazia uma confraternização. Foi quando vi um trio com dois violeiros e um sanfoneiro. Achei legal e pedi um violão a minha mãe, de Natal. Mas meu pai me deu um cavaquinho, porque, pelo meu tamanho, era mais adequado (ri). Tinha um cidadão que tocava violão de sete cordas na banda da cidade e me ensinava todo dia um acorde. Naquela época, eu tocava boleros, modas de viola, música italiana, americana. Aos 12 anos, quando me mudei para a capital, Goiânia, apareceram os Beatles. Eu cantava todas as músicas dos Beatles, em serenatas, numa bandinha chamada Monft.

Como é que é?
Monft – eram as iniciais da gente: Marcelo, Odair, Nadir, Fayed e Tuca… Depois fui convidado para ser crooner de banda de baile, os Apaches, que era famosa em Goiânia. Cantava Beatles, Animals… Mandava qualquer inglês, mas cantava (ri). Daí, comecei a compor. Depois, fui tocar no conjunto do maestro Marquinhos, que era mais profissional. Ele tinha um programa na televisão e eu fazia a parte considerada “jovem”, que os cantores dele não gostavam. Então, conheci o Roberto Carlos. Nosso conjunto abriu o show dele em 1965, quando eu tinha 18 anos. Fui conversar com o Roberto, falei que tinha umas músicas e ele falou: “Vai pro Rio, aqui não tem condições…”. E nisso, eu fui mesmo. Saí fugido, na calada da noite, não falei pra ninguém. Fui na ilusão de encontrar o Roberto. Fiquei um ano sem dar notícias, você imagina a cabeça da minha mãe…

E a parte do deslumbre com sucesso, dinheiro, drogas, mulheres, como você lidou com isso?
Ganhei e gastei muito dinheiro à toa. Se eu tivesse guardado a metade, estaria quaquilionário. Mas não me arrependo. Às vezes faz falta, mas não virei músico pra ganhar dinheiro. Se eu tivesse trabalhado a vida inteira no barzinho da praça Mauá, seria feliz do mesmo jeito. Sobre mulheres, curti minhas namoradas, mas sempre fui homem de uma mulher só. Não sei viver sem mulher. Até me questiono: “Será que quando eu morrer vai ter mulher pra onde vou?” Porque se não tiver, vai ser uma merda. Tem umas partes da Bíblia que Jesus diz que lá em cima, ou lá embaixo, pra onde a gente vai, não tem disso. Então, tá mal. Drogas: experimentei maconha e cocaína, mas não faziam a minha cabeça. O baseado me deixava muito zen, até demais. Sou meio marcha lenta, e aquilo me deixava mais lento ainda. A cocaína me deixava três dias com o olho arregalado, também não funciona. A minha droga sempre foi a cachaça. Não a cachaça mesmo, mas um uísque, sempre gostei de uísque, e ultimamente tenho gostado de um bom vinho. E de vez em quando faz um calor danado e uma cervejinha cai bem.

Essa pecha de cafona não te incomodava?
Gosto é uma coisa de cada um. Nunca tive mágoa na minha vida. Sempre li os comentários ao meu trabalho e nunca me magoei. Agora mesmo, na Folha de S. Paulo, o Evangelista (Ronaldo Evangelista, também colaborador da BIZZ) comparou o tributo que fizeram pra mim (Vou Tirar Você desse Lugar) com o meu disco novo, dizendo que Só Pode Ser Amor não teria novidade, que é o que as pessoas esperam do Odair José. A gravadora não gostou. Mas o que ele falou é a pura verdade, o disco é o Odair José. E não era isso que eles queriam? Tenho uma música chamada “Cadê Você?”, que parece o “Parabéns a Você” de tão simples. Mas só ela, cantada por mim ou por outros artistas, já vendeu mais de 7 milhões de discos. Agora, vai fazer uma música dessas! Fazer música cheia de acordes, de coisinhas pra lá e pra cá, é mais fácil de fazer do que “Mamãe Eu Quero”. Outro dia eu estava assistindo a TV e passou uma entrevista com o Carlos Lyra e ele falou uma coisa tão fraca: “Você sabe que nós, o pessoal da bossa nova, éramos bem informados e fazíamos música pra gente mesmo. Não íamos tocar na Rádio Nacional, onde tinha o Francisco Alves, a Ângela Maria. O nosso negócio era mais intelectual, era pra Ipanema”. O cara é um babaca! Porque todos eles eram cópias do João Gilberto, que veio lá de Juazeiro da Bahia, nunca foi intelectual e não morava em Ipanema.

Jack’s back

Eu tou selecionando umas coisas do YouTube pra linkar aqui, mas tinha que colocar isso antes

Visto de fora, nossa normalidade é a coisa mais absurda possível. Matamos e fritamos bichos pra comer. Estudamos metade da vida para trabalharmos em coisas que não tiveram a ver com nada daquilo que aprendemos. Carros usados como armas, armas usadas como brinquedos, brinquedos usados como formas de provocar os outros. O comportamento humano talvez seja a verdadeira essência da humanidade. Não é a racionalidade ou a estrutura física ou a espiritualidade que nos torna quem somos: é a forma que agimos uns com os outros, como nos portamos diante das diversas situações da vida, rituais e manias que, tiradas de contexto, não fazem sentido algum. Você não vê nenhuma espécie no planeta terra – e talvez no universo – que seja, ao mesmo tempo, tão sábia e tão idiota. Isso é a base da obra davidbyrneana, a síntese do conceito das letras dos Talking Heads. Analisando a sociedade humana como se a antropologia (ou a zoologia) fosse a sociologia, David Byrne muda um pouco o foco da realidade e vê uma coisa completamente diferente. Assim, torna-se um cara à frente do nosso tempo, mesmo que por apenas uma hora. Percebendo algumas coisas antes de todo mundo, Byrne é metade do que faz o Talking Heads uma das melhores bandas detodos os tempos. A outra metade é a poderosa seção rítmica do grupo.

Fundado em pleno punk rock, os Talking Heads (como o B-52’s, o Devo, o Fall, o Gang of Four e tantos outros) transformaram a inaptidão técnica em ritmo, criando grooves – quadrados, em geral – que nos impunham ao ritmo robótico da canção. Mas aos poucos, a banda começou a criar uma forma prática de tocar que floresceu onde ninguém esperava – na cozinha. O casal Tina Weymouth e Chris Franz era mais inofensivo que qualquer outro tipo de dupla. Ela frágil e apática, ele gordo e sorridente, usando bonés daquele jeito que só os caipiras norte-americanos conseguem. Mas dali, provavelmente da química sexual dos dois, surgiu uma máquina de ritmo sinuosa e marcial. O baixo de Tina é macio e meloso, conduzindo a dança no sentido horizontal, enquanto o maridão trabalha no sentido vertical com pulso firme e preciso; um funk minimal que cresce e controla o ambiente. Acrescente aí a guitarra e os teclados de Jerry Harrison, o mesmo que, ao lado de Johnattan Richman e sob a supervisão do ex-Velvet John Cale, gravou as primeiras demos que mais tarde se tornariam o primeiro e clássico disco dos Modern Lovers. Jerry solava bem, mas reduziu sua guitarra ao suíngue apertado de Tina e Chris e passou a usar o teclado mais como uma máquina de ruídos, tocando-o como um piano quando necessário. À frente de tudo, a figura caricatural de David Byrne. Magrelo e constantemente de olhos arregalados, Byrne não tinha cabelos espetados ou jaqueta de couro. Pelo contrário, tocava usando roupas normais, calças de linho e camisas de gola, meias de algodão e tênis. Seu ar tímido contrastava com sua performance robótica que, acrescido de sua voz nem aguda nem grave e deliciosamente desafinada e da forma percussiva que tocava seu instrumento – às vezes uma guitarra, às vezes um imenso violão. Eram os Talking Heads. Sua crítica social irônica era – junto com o marxismo do Gang of Four e o pós-modernismo do Pere Ubu – o máximo que o rock poderia se aproximar do intelectualismo sem parecer pedante ou, pior, progressivo. No final dos anos 70 esta palavra era vista com os piores olhos possíveis, criando um preconceito que atravessa décadas (alguém já disse que é impossível ignorar um gênero inteiro e isso é verdade).

E os Heads eram intelectuais. E botavam o povo pra dançar. E aos poucos ganharam omundo. Mas estamos ainda em 1979, quando o grupo ainda vinha sendo assimilado. O primeiro disco, Talking Heads’77, contou com a sorte de um hit perfeito: Psycho Killer, um clássico. O segundo, More Songs About Food and Buildings, os associava pela primeira vez com Brian Eno, num casamento que se mostrava prático e promissor. Ainda não era o suficiente. Precisavam de uma prova definitiva, um disco que não deixasse dúvidas se o grupo era bom ou não. E assim nascia Fear of Music.

Centralizando sua tese sociológica no medo, David Byrne explicava com detalhes um mero capítulo de algo que as pessoas não tinham certeza que sequer existia. Era um disco conceitual sobre o medo sem sequer citar o medo. As canções encerram conceitos definitivos sobre assuntos diversos e todos eles são encarados com estranheza, com diferenciação. O medo é decorrente. Gravado no apartamento de Chris e Tina, em Long Island (Nova York), Fear of Music começa nos apresentando ao desconhecido.

I Zimbra é uma letra do poeta nonsense Hugo Ball e não quer dizer nada, pelo menos que saibamos: “Gadji Beri Bimba Clandridi/ Lauli Lonn Cadori Gadjam/ A Bim Beri Glassala Glandride/ E Glassala Tuffm I Zimbra”. O ritmo é tenso e repetitivo e o funk torna-se sombrio e mais negro que em qualquer outro disco do Talking Heads. Culpa do baixo de Tina Weymouth, que torna-se um elástico de groove da noite pro dia e da percussão afro-caribenha que aos poucos vai tomando conta do grupo. A letra é cantada em coro como um rito tribal por todos os Talking Heads e por Brian Eno, que “trata” o disco (a definição é dele mesmo – “treatments”, nos créditos) e acrescenta teclados esquizóides ao final da canção. Na base, quieto, quase escondido, Robert Fripp ajuda Jerry e David a compor o muro de som que cresce até explodir subitamente ao fim da música.

Em Mind, o baixo de Tina (o fio condutor de todo o disco) puxa as guitarras abafadas que parecem datilografar alguma palavra. Byrne, preocupado, procura algo para mudar a mente do ouvindo, já que nem as drogas, nem o tempo, nem a ciência, nem a religião, nem o dinheiro, nem ele mesmo parecem surtir efeito. “Tento falar consigo para esclarecer as coisas/ Mas você sequer me ouve”, canta desesperado, enquanto as guitarras cantam riffs preguiçosos que deslizam pelobaixo central.

Paper tenta incitar a paranóia: “Segure o papel contra a luz (alguns raios podem atravessá-lo)/ Exponha-se lá fora por um minuto (alguns raios podem atravessá-lo)”. O suíngue torna-se massivo e, paradoxalmente, minimal, e é enfeitado com guitarras que parecem extraídas de Revolver, dos Beatles.

Cities começa baixinho até explodir num groove robótico que seria explorado melhor no disco do ano seguinte, Remain in Light. Na letra, Byrne descreve cidades pelos defeitos, enquanto procura um lugar pra morar: “Pense em Londres, uma cidade pequena/ É escuro, escuro de dia/ As pessoas dormem de dia/ Se quiserem”, “Há muitos ricos em Birmingham/ Muitos fantasmas em muitas casas/ Olha lá: uma fábrica de gelo seco/ Um bom lugar pra arrumar idéias prontas”, “Esqueci de Memphis/ Casa de Elvis e dos gregos antigos/ Eu tô fedendo? Eu fedo a comida/ É só o rio, é só o rio”. Sem avisar ninguém, Byrne “rouba” uma estrofe inteira, imprimindo apenas sualetra no encarte.

Life During Wartime (que foi surrupiada por Marcelo Nova para compor Hoje, do Camisa de Vênus, e recentemente gravada pelos Paralamas do Sucesso) é o mais próximo do Talking Heads que estávamos acostumados. Como diz o título, a canção fala da vida durante a guerra, mas sem romantismo ou pavor. A faixa conta a história de um cara que, em meio a uma guerra, tenta viver uma vida normal, apesar de tudo. A letra compila alguns dos melhores momentos do letrista. “Ouvi falar numa van cheia de armas pronta pra sair. Ouvi falar de cemitérios clandestinos perto da estrada, num lugar que ninguém sabe onde é. Som de tiros à distância, estou me acostumando. Moro na periferia, moro no gueto, moro por toda cidade. Isso não é uma festa, não é uma discoteca. Não dá pra ficar de bobeira. Não dá pra dançar ou paquerar. Não tenho tempo pra isso. Transmita a mensagem ao receptor, espere respostas, algum dia. Tenho três passaportes, um par de visas, não sei nem meu nome de verdade. Perto da colina, estão abastecendo caminhões, tudo está pronto pra sair. Durmo de dia, trabalho à noite, nunca mais chego em casa. Isso não é uma festa, não é uma discoteca. Não dá pra ficar de bobeira. Não tenho tempo pro Mudd Club ou pro CBGB. Não tenho tempo pra isso. Ouviu falar de Houston? Ouviu falar de Detroit? Ouvi falar em Pittsburgh, PA? Melhor não ficar à janela, alguém pode vê-lo. Tenho umas frutas e manteiga de amendoim pra alguns dias. Não tenho caixas, não tenho fones, nem discos pra ouvir (…) Adoraria te beijar, adoraria te abraçar, não tenho tempo pra isso”.

Memories Can’t Wait fecha o lado A com a mais séria canção dos Heads. Pesada e deprê, Memories… fala em amnésia e coma, mas de forma pertubadora e sutil: “Você lembra de alguém aqui?/ Não, você não se lembra de ninguém/ Estou dormindo, deitado/ Nunca acordei, não me arrependo/ Há uma festa na minha mente/ Que nunca acaba/ Uma festa lá em cima o tempo todo/ Vão festejar até cair/ Outros podem ir pra casa/ Outros podem ir dormir/ Estou aqui o tempo todo/ Não posso ir embora”. Pela primeira vez as guitarras assumem o comando e o resultado é a música mais assustadora dodisco.

O lado B começa no extremo contrário. Air é doce e suave (com belos backing vocals) e dá ao baixo os controles do disco, mais uma vez. Agora o objeto de insegurança e aflição é o ar, que, segundo Byrne, “também pode te machucar”.

Heaven talvez seja um dos melhores momentos do disco. Rock lento e onírico, a faixa descreve o céu como um lugar que nada (ou “o nada”) acontece o tempo todo. “A banda no céu toca minha música favorita/ Toca mais uma vez, toca a noite inteira”, “Quando esse beijo acabar, recomeçará/ E não será diferente, será exatamente o mesmo”. O nada e a morte tornam-se objetos de uma apreciação lúdica e inédita na música pop. “É difícil acreditar que o nada absoluto possa ser ser tão excitante, tão divertido”.

Animals brutaliza a banda para falar da agressividade e do instinto animalesco do ser humano. “Descobri que os animais não ajudam/ Eles pensam, são bem espertos/ Cagam no chão, vêem no escuro/ Nunca estão lá quando precisamos deles/ Nunca estão lá quando os chamamos/ (…) Animais pensam, entendem/ Acreditar neles é um grande erro/ Animais querem mudar minha vida/ Eu sempre foi ignorar conselhos de animais”. Realçando o lado animal do ser humano, Byrne transforma os bichos em seres tão racionais como nós, apenas para ridicularizar nossas ansiedades e fobias.

A guitarra elétrica é posta em um tribunal em Electric Guitar. O som é um antiska que conta a história de um atropelamento (da própria guitarra), que chega a algumas conclusões: “Nunca ouça a guitarra elétrica” e “Alguém controla a guitarra elétrica”.

Drugs encerra o disco com uma atmosfera ao mesmo tempo tensa (culpa do baixo, dos teclados e da guitarra esparsa) e bucólica (culpa dos sons florestais sob o som da banda).

Fear of Music é mais uma versão contemplativa que o Talking Heads faz da raça humana, observando-a desta vez pelas coisas que lhe incomoda, que lhe assusta. E é o disco em que o funk do grupo está mais coeso e denso, antes de explodir no universo de ritmos caribenhos que seria o próximo disco do grupo, Remain in Light. Mas isso é outro papo…

Mais um defunto no meu obituário pessoal: meu PC Tranqüilo, que me acompanha desde 1998, pediu arrego terça passada. Dedos cruzados pro HD não ter ido pro saco, mas se tiver, paciência. Zerar é sempre bom pra cabeça.

Enquanto seu substituto não sai da parteira, estou freqüentando lan houses, esse antro subcultural de jogos em rede e meninas adolescentes que acessam o MSN em dupla. Como eu me sinto numa bowa por aqui…

Na Folha de hoje

Romance: Em “Coma”, Alex Garland mistura delírio e realidade

Do mesmo jeito que com uma ruptura violenta em um paraíso terrestre Alex Garland atingiu seu grande momento literário, ao amarrar seu novo protagonista em si mesmo, o autor inglês parece caminhar para um beco sem saída. Felizmente, não é artístico. Ao deixar os conflitos exteriores de seus dois primeiros livros fora do horizonte, Garland e o pai, Nicholas, embarcam numa viagem sem volta em “Coma”, que acaba de sair no Brasil.

A história é simples e o tema é quase clichê: Carl sai tarde do trabalho e toma uma surra ao se meter numa tentativa de assalto. Acorda em coma. A partir daí, imagina alternar momentos de consciência e vazios de razão e a discussão reverte-se nas diferenças entre sono e despertar, fatos e lembranças, vida e morte.

Garland opta por uma estética enxuta, deixando maneirismos filosóficos e intelectuais de lado para discutir sobre a existência, a natureza da consciência e os limites entre ser e não ser usando exemplos corriqueiros, como a lembrança dos pais, um perfume conhecido, uma loja de livros, uma música antiga (no caso, “Good Golly Miss Molly”, de Little Richard). Contado em capítulos curtos, por vezes mínimos, o ritmo do livro choca-se diretamente com o não-ritmo de um coma, o não-movimento contínuo.

Pontuando os capítulos estão 40 xilogravuras feitas pelo pai de Alex, o ilustrador Nicholas Garland, do jornal Daily Telegraph. Escuras, elas são enormes janelas de tinta preta que apontam para o nada e tentam, como Carl, emoldurar alucinações e sonhos para apegar-se à alguma realidade – e saber se o coma, afinal, terminou. A morbidez sóbria das ilustrações, que distorce minimamente o caminho não-linear percorrido, tem um parentesco improvável com os quadrinhos negros do brasileiro Lourenço Mutarelli, este cada vez mais sóbrio e menos mórbido.

Diferente de seu livro de estréia do autor, o aclamado best-seller “A Praia”, “Coma” mergulha num abismo em que até as emoções tornam-se incertas e os olhos nunca parecem estar abertos. Garland, que se envolveu com o mesmo trio dos filmes “Trainspotting” e “Cova Rasa” (o diretor Danny Boyle, o roteirista John Hodge e o produtor Andrew McDonald) na adaptação de seu primeiro livro para as telas, em 2000, pegou gosto pelo cinema e colaborou na adaptação de seu segundo livro, “O Teressacto” (dirigido pelo cineasta de Hong Kong Oxide Pang Chun, em 2003), além de criar uma história original para o filme seguinte de Boyle, “Extermínio”, de 2002.

“Coma”, com suas extraordinárias imagens simples, prova-se uma adaptação um pouco mais difícil, com o risco de perder-se momentos cruciais da leitura, como o vento no parapeito de um prédio, a sensação de transparência, um cômodo “sentido” em vez de visto, o mergulho no vazio, a perda da razão. Percorrer estas passagens dão ao curto livro um ritmo tenso e familiar, que torna possível deschavar o livro em menos de uma hora num sofá de megastore – e esquecer, por completo, tudo ao redor.

No entanto, é na modalidade clássica da atividade leitora (sozinho, de noite, em casa, um abajur) que “Coma” mostra-se forte. Num mundo hiperlinkado, de comunicadores móveis e exibicionismo histérico, o objeto livro pede que seu usuário entre em seu coma pessoal e desconecte-se do dito “real” para mergulhar em si mesmo.

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“Coma”
Autor: Alex Garland
Editora: Rocco
160 páginas
Preço: R$ 24,00

Esse Google…

Sabe qual é o primeiro resultado que aparece quando você digita “failure” no Google?

Dezovê

Poizé, deixei pra ver O Jardineiro Fiel depois da hora e não o inclui entre os melhores de 2005 enquanto o ano ainda vigorava – mas faço isso djá. O terceiro filme de Fernando Meirelles é mais um salto quântico na carreira do diretor brasileiro, em diversos aspectos: cinematografia, densidade dramática, complexidade do argumento e, principalmente, a escolha do tema. A equação “indústria farmacêutica + África” pode parecer a princípio insípida como uma nota de agência de notícia gringa numa página burocrática de noticiário internacional, mas pode ganhar cores mais densas aos destrincharmos cada um dos elementos, onde que chegamos em “empresas multinacionais que faturam cada vez mais dinheiro + continente mais miserável do planeta em que centenas morrem por dia”. É nessa tecla que bate Meirelles. E bate. E bate. Para que não fingimos que não sabemos o que está acontecendo.

Amparado pelo ágil thriller hiperrealista do escritor John Le Carré e por ótimas e discretas atuações (Ralph Fiennes e Rachel Weisz dissolvem seus sentimentos lentamente, deixando a dor e a raiva transparecer sutis, dentro do espectador – e não na tela), Meirelles humilha. Cutuca feridas abertas em diferentes níveis, lembrando que a hipocrisia humanitária de governos fechados com empresas arrogantes sem medo de exibir o poder do dinheiro é a mesma que nos faz fechar o vidro do carro quando alguém mais pobre (e, via de regra, pardo, pelo menos) se aproxima. O filme não é um apelo às armas ONG, e sim a voz da consciência virando nosso olhar para onde fingimos não ver.

Os temas abordados pelo diretor de Cidade de Deus vão da epidemia de Aids da África, matadores de aluguel e política corrupta à especulações no mercado financeiro, fraudes em escala global e o sorriso falso do benfeitor. “É tudo parte de um mesmo jogo”, sublinha o diretor. Ao mostrar campos de refugiados sendo dizimados por piratas do deserto, pacientes morrendo por negligência médica, o exercício dos pequenos poderes e a descrição de torturas bárbaras, Meirelles o tempo todo faz e refaz a rede de contatos, dados e troca de informações – ativistas online, mensagens em secretárias eletrônicas, conversas em campos de golfe, ameaças de morte, cartas comprometedoras e relatórios encobertos. É tudo parte de um mesmo jogo.

Enquanto a trama se desenrola e se revela, a direção contrasta a miséria humana com a riqueza africana, seja nas paisagens, nos cantos ou nos olhares das crianças brincando na rua, ao mesmo tempo em que a burocracia européia revela-se mais cruel do que a tomada sangrenta do continente, séculos atrás, o tempo todo representadas por estátuas heróicas e altos palácios – a invasão e destruição continuam, mas há mais business que o mero aprisionamento de escravos. A câmera treme como a de um cinegrafista amador tentando filmar um vulcão em plena erupção, a lava parece que desce devagar, mas já queima o solo longe dos olhos, por baixo.

Meirelles começou bem debaixo dos nossos narizes, tratando o apartheid social brasileiro velado (a empregada doméstica) como uma crônica bem-humorada sobre nosso preconceito em seu segundo filme, Domésticas, de 2001 (O Menino Maluquinho 2 foi o primeiro). Depois foi conhecer o lugar de onde elas vêm, num filme de ação que tornou-se o melhor filme brasileiro de todos os tempos (e ponto), com Cidade de Deus. Agora volta-se para o continente de onde as cidades de deus do mundo vieram para nos pegar sem fôlego, como um soco na boca do estômago, e enfiar a nossa cara em uma África mais intensa do que o grande continente favelado que a nossa culpa branca exotique finge não ver para esfregar o problema: é o maior campo de concentração da história, o verdadeiro Holocausto.

Não sei qual é o próximo filme do sujeito, mas esse eu não vejo tão depois. Inda não viu? Vai ver. Divide o posto como melhor filme do ano com A History of Violence, do Cronenberg, mas este (do meu cineasta favorito) é mais um exercício de estilo. O filme de Meirelles também, mas há tantas nuances e camadas de preocupação que não dá pra classificá-lo apenas como um filme, como eram os dois filmes anteriores. Há um trabalho de explicação e conscientização que vai além da mera arte, embaralhando cinema com jornalismo, comunicação e política. Algo que já vem sendo feito pela nova safra de documentários da virada do século (todo mundo, do Eduardo Coutinho ao Michael Moore), pelos primeiros feitos da geração DV e por diferentes produções de TV para o cinema (das maxisséries da HBO aos filmes do Guel Arraes). Só que Meirelles está a quilômetros de distância, abrindo caminho – fora que internacionalizou o gestual de Renato Aragão (o V de vitória intercalado rapidamente com o polegar de positivo) na transmissão da festa do Oscar. O Jardineiro Fiel já é o que o cinema vai ser.

E, a propósito, não vi Manderlay ainda. Vou corrigir essa falha também.

“Bob George”, do Prince. A música que deu origem ao gangsta rap.