Get Back, a nova série sobre os Beatles é perfeita

, por Alexandre Matias

Assisti antes da estreia e conto tudo lá no site da CNN Brasil.

Série sobre os Beatles é uma obra-prima
“Get Back”, que estreia nesta quinta-feira (25) no serviço de streaming Disney+, captura o processo criativo e a camaradagem da maior banda de todos os tempos

“Eles estão gravando, o que a gente conversa?”, pergunta, incrédulo, o guitarrista George Harrison, ainda acostumando-se com a presença de câmeras, holofotes e microfones logo no início da série “Get Back”, que estreia nesta quinta-feira (25) no serviço de streaming Disney+. Dividida em três episódios (cada um com mais de duas horas, um transmitido a cada dia, o primeiro na quinta, o segundo na sexta e o terceiro no sábado), ela, que originalmente seria um documentário de longa metragem, visita o grupo mais importante do século 20 durante todo o mês de janeiro de 1969 e é uma obra-prima, como a CNN conferiu em primeira mão.

As quase 60 horas de gravação em vídeo daquele período, que se transformaram no terceiro filme da banda, seu epitáfio “Let it Be”, lançado em 1970, foram a base para seu novo projeto que está sendo lançado este ano, encabeçado pelo mesmo Peter Jackson que trouxe ao mundo os filmes do “Senhor dos Anéis”, e desde já um dos acontecimentos mais importantes na cultura deste início de novo século.

Se dar vida aos magos, monstros e elfos criados pelo escritor J.R.R. Tolkien colocou Jackson no topo do entretenimento do século 21, visitar o grupo musical mais popular e revolucionário de todos os tempos foi uma tarefa ainda mais complexa – pois os seres mitológicos não precisavam ser criados, mas reapresentados. E se a versão original, que gerou o filme “Let it Be”, de Michael Lindsay-Hogg, trazia o tom amargo do final da carreira do grupo, a versão do diretor neozelandês Peter Jackson consegue um feito impressionante: mostrar o processo criativo dos Beatles.

Só isso valeria assistir às quase oito horas de material que o seriado apresenta para o público. É material recolhido em apenas um mês da história da banda, mas é ouro puro. Mostra não só os Beatles compondo canções do zero – como um dava pitaco nas músicas dos outros, como as ideias se completavam, tanto lírica quanto musicalmente -, como os quatro funcionavam como uma só unidade e o que precisavam fazer quando havia algum problema – seja um arranjo de uma canção ou um problema pessoal entre eles.

Originalmente previsto para ser lançado nos cinemas no ano passado, plano que teve de ser reimaginado devido à pandemia da Covid-19, Get Back chega à plataforma de streaming da Disney dissecando o dia a dia dos Beatles como se eles fossem os personagens do primeiro reality show da história. Seus filmes e suas aparições públicas, entrevistas, feitos e declarações se confundiam com sua carreira fonográfica e o público, tanto os fãs quanto os meros ouvintes, conheciam não apenas suas canções e álbuns como seus rostos, suas vozes, suas personalidades, dilemas e idiossincrasias.

Assim, “Get Back” mergulha no processo criativo de quatro amigos que trabalharam juntos há mais de dez anos, cresceram e amadureceram juntos, ao mesmo tempo em que mostra suas características humanas – e não apenas as feridas abertas neste processo, mas também como eles gostavam um do outro.

O projeto original de 1969 era reunir o grupo para tocar ao vivo, algo que os quatro não faziam desde que abandonaram os palcos em 1966 para dedicar-se apenas ao trabalho no estúdio. Para isso, alugaram o estúdio Twickenham Film Studio, onde o produtor Dennis O’Dell filmaria, em três semanas, o filme “The Magic Christian”, com Ringo Starr e Peter Sellers.

O diretor Michael Lindsay-Hogg, que havia acabado de gravar o programa “Rock and Roll Circus” dos Rolling Stones (que contava inclusive com a participação de John Lennon), foi contratado para gravar os Beatles para o que seria um programa de TV com um show da banda, que por sua vez se tornaria um disco ao vivo do grupo. Batizado de “Get Back” à época, o projeto também retomava as raízes do grupo, que voltava-se para o rock and roll dos anos 1950, quando tocavam versões de clássicos norte-americanos em casas noturnas alemãs durante oito horas por noite.

Mas à medida que o mês vai passando, tudo vai dando errado. Eles cogitam fazer a apresentação ao vivo no suntuoso anfiteatro Sabratha, na Líbia, mas logo a ideia muda para um show em um barco, para depois ser uma apresentação na Inglaterra mesmo, para felicidade do baterista Ringo Starr, que não queria saber de viajar a trabalho. Depois o prazo de entrega do material se confunde com o tempo em que eles têm de ficar no novo estúdio, o que os leva para a sede de seu selo, a Apple, onde a gravadora que o mantinha, a EMI, ajudou a montar um estúdio com equipamentos tirados do próprio Abbey Road.

E aos poucos o projeto de um programa de TV é abandonado para se tornar apenas uma apresentação ao vivo, sem lugar definido. O diretor Lindsay-Hogg, quase sempre fumando charutos, sente-se cada vez mais coadjuvante à medida que a série vai passando, sem saber qual é o seu trabalho, além de filmar “fumantes, coçadores de nariz e roedores de unha”, numa leitura rasa do processo criativo do grupo, quando eles não estavam tocando.

Jackson tem o cuidado de não falar apenas com beatlemaníacos e continuamente contextualiza personagens e acontecimentos ao momento em que estavam atravessando. E mostra sempre o ambiente cru: sejam nos Beatles fumando sem parar ou nas taças de cerveja e vinho branco espalhadas pelo estúdio, entre papéis, sanduíches e uma cópia do disco “The King of Delta Blues Singers”, de Robert Johnson.

Mas é para os mais fanáticos dos Beatles que o filme fala profundamente. Além do rosário de hits de praticamente todas as fases do grupo, os quatro também gravam canções e ensaiam as que seriam eternizadas em seus dois próximos discos, “Abbey Road” (1969) e “Let it Be” (1970). O documentário é caprichoso o suficiente ao avisar quais faixas estamos ouvindo, e que foram parar no disco póstumo que encerrou a carreira da banda.

Mirando nos fãs mais radicais, o documentário acerta inúmeras vezes. Primeiro tira o peso da presença de Yoko Ono no estúdio, mostrando como os outros Beatles se davam bem com a nova namorada de John Lennon, com quem ele se casaria naquele mesmo 1969. A série traz um Paul McCartney resignado, dizendo que sabe que se John tiver que escolher entre os Beatles e a Yoko, ele fica com a esposa, mas não diz isso com rancor ou ciúme, apenas constatando a vontade do velho amigo.

Depois dissipa o peso entre os integrantes da banda, imortalizado no filme de 1970. Pesado e sofrido, o filme de Lindsay-Hogg prefere mostrar a banda se desfazendo entre brigas e olhares perdidos do que a mostrar que aquilo fazia parte da rotina do grupo, bem como piadas, brincadeiras e demonstrações de afeto em diferentes níveis. Quando o clima torna-se insustentável – gancho perfeito para o fim do primeiro episódio -, os quatro tentam resolver como possível e sempre há a ênfase que todos os integrantes sabiam da importância do grupo e não o colocava em segundo plano.

Mas ao ultrapassar estes dois obstáculos, ele revela um manancial de criatividade. O grupo não para de tocar e só isso já é motivo de festa: a série registra trechos rápidos de gravações, mostrando como eles testaram um longo repertório, como o filme original fazia, mas também deixa longos trechos da banda tocando, conversando, se encarando e sugerindo coisas uns nas músicas dos outros. É uma camaradagem transcendental e em vários momentos não é preciso dizer nada – um vai se encaixando na música do outro como se tudo já estivesse ensaiado.

Entre a série de versões alheias que o seriado desfila, há clássicos de Chuck Berry (“Johnny B. Goode”, “Rock and Roll Music”, “School Days”) e de Bob Dylan (“I Shall Be Released”, “Quinn the Eskimo”, “Mama You Been on My Mind”), hits country (“You Win Again”, “Bye Bye Love”), clássicos do rock dos anos 1950 (“Good Rocking Tonight”, “Save the Last Dance for Me”, “Blue Suede Shoes”, “20 Flight Rock”), músicas tradicionais norte-americanas (como “Midnight Special” e “House of the Rising Sun”), uma versão zoada para “Stand by Me”, outra maravilhosa para “Twist and Shout” e John Lennon solando o tema de “O Terceiro Homem”, filme de Carol Reed, entre tantas outras pérolas.

O documentário registra a primeira vez que Paul canta “Oh! Darling”, todo o processo de composição de “Get Back” (em três momentos que, magicamente, vemos o grupo tendo ideias para o que se tornaria um de seus grandes hits), Yoko Ono conversando com Linda Eastman, a filha de Linda, Heather, causando no estúdio, John Lennon tocando baixo, Paul McCartney tocando bateria, George Harrison elogiando a barba de Paul, Ringo Starr tocando piano e vários coadjuvantes célebres da história da banda – os assessores Derek Taylor e Neil Aspinall, o roadie Mal Evans, o tecladista Billy Preston, o produtor George Martin, o engenheiro Glyn Johns, o assistente Alan Parsons, entre vários outros – ajudando o grupo a tornar sua música real.

E os Beatles dançam no estúdio, riem da cara um do outro, lembram dos velhos tempos, Paul se pendura num andaime, John sai valsando com Yoko, saúdam o aniversário de Elvis Presley. Paul fica com os olhos cheios d’água numa cena em que vislumbra o fim da banda dias antes de ler a íntegra de uma matéria que cogita o fim do grupo em tom jocoso. E, claro, o tempo todo implica com John, elogia John, brinca com John, briga com John – a química entre a dupla de compositores mais importante do século passado é registrada com esmero.

Enquanto isso, ouvimos músicas dos Beatles que nunca foram gravadas: “Just fun”, “Thinking of Licking”, “Song of Love”, “Won’t You Please Say Goodbye”, “My Imagination”, “You Wear Your Women Out”, “Madman”, “Too Bad About Sorrow”, os Beatles encarnando The Band em “Because I Know I Love You So”, uma faixa meio Neil Young – “The Castle of the King of the Birds”, com George tocando bateria -, a hilária “Commonwealth”, com John respondendo “yes” num falsete infame, os tátátá de “Suzy Parker” e “I Bought a Piano Yesterday”, que junta Paul e Ringo no mesmo instrumento. É uma mina de ouro que se revela em frente aos nossos olhos e ouvidos.

Isso sem contar clássicos de todas as épocas do grupo, revisitados de diferentes maneiras. Mas enfatizo a soberba versão para o primeiro single do grupo, “Love Me Do”, que encerra o segundo episódio, já na hora dos créditos. Que banda!

E tudo se encerra com seu famoso último show, mantido na íntegra, inclusive com as canções repetidas. O grupo sobe na sede de sua gravadora para fazer sua última apresentação ao vivo para o público londrino e o documentário acompanha também a chegada da polícia e o último momento em que os Beatles foram uma banda.

No mesmo episódio em que a chegada de um futuro empresário, o vilão Allen Klein, dá origem a um dos momentos mais enfadonhos da série, vemos a banda em seu auge gravando ao vivo alguns de seus maiores hits e coroando uma carreira espetacular e única – cujo caixão começaria a ter sua tampa fechada ali. Naquele 30 de janeiro de 1969, começava o fim dos Beatles – e a versão que Peter Jackson faz para isso é deslumbrante.

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