Anna Vis Sem vacilação
Confesso que não entendi nada quando vi Anna Vis tocando suas canções ao violão. Ainda estávamos no primeiro semestre da pandemia, quando caiu a ficha que não eram alguns dias ou semanas e que a peste ia durar meses, talvez anos. E esta tragédia, como sabemos, obrigou a todos que viviam de apresentações ao vivo passar por transformações que mexiam em suas atividades originais. E de repente lá estava Anna, que conhecia como técnica de som de shows, empunhando seu violão e dedilhando composições próprias como se sempre tivesse feito aquilo – longe de todos. Passei acompanhar mais de perto essa mudança de papel e aos poucos a vi se envolvendo com Rômulo Froes, chamando Marcelo Cabral e Maurício Takara para acompanhá-la na gravação de seu primeiro disco, que ainda contou com participações de Juçara Marçal, Ná Ozzetti, Mbé, Clima e Juliana Perdigão. E neste processo, não só pude conversar com a nova cantora e compositora sobre sua nova carreira, como a instiguei sobre como traduzir este novo trabalho para o palco. Seu disco de estreia, Como um Bicho Vê, será lançado nas plataformas na próxima quinta-feira, o mesmo dia em que faz o primeiro show deste álbum no Sesc Vila Mariana (os ingressos estavam quase acabando, corre que ainda dá pra comprar). E ela topou mostrar seu disco antes de seu lançamento em primeira mão aqui no Trabalho Sujo, este que é o primeiro grande lançamento brasileiro de 2023.
Ouça aqui.
“Em abril de 2020, Romulo Fróes escreveu nos stories do Instagram dele, uma chamada em busca de novos compositores para distribuir letras, uma espécie de brincadeira séria”, me conta Anna, que compunha desde os 12 anos, mas deixou as próprias canções logo no começo da adolescência, quando se dedicou à poesia e ao estudo do violão. “Na época, eu já namorava com Luan Cardoso e perguntei pra ele, que é amigo do Romulo, se aquele papo era sério e se valia mandar algo”. Luan a incentivou e logo depois Romulo devolvia a primeira parceria dos dois, “Espantalho sem Espelho”, “Uma letra fortíssima, quase sem repetições, já que eu também não costumo ajudar às canções a terem refrão”, ri. E lembra da cara de pau que teve ao perguntar se o compositor paulistano a gravaria num disco seu, ao que ele respondeu: “nada, vamos gravar no seu disco”. “Eu, que nem sabia o que era isso de pensar em carreira musical, que tinha uma única composição, fazer um disco inteiro?”, assustou-se.
A dobradinha com Romulo a aproximou de outro letrista, Eduardo “Clima” Climachauska, e aos poucos novas composições surgiram com os novos parceiros, além da definição do time que a ajudou a materializar o disco, com Fróes assumindo o papel de diretor artístico do álbum. E o fato de ser um disco composto na pandemia por uma instrumentista que descobriu-se compositora de canções em tom menor neste processo e que nunca havia feito seus próprios shows ajuda a dar o tom sério e alerta que atravessa toda a obra, sejam nas canções mais mundanas (como a deliciosa “Água com Gás”, em parceria com Alice Coutinho, e a hipnótica “Mil Noites”, cantada ao lado de Ná Ozzetti) ou nas tensas (como o belo coral uníssono com Ju Perdigão em “Vitalina Meia Vida”, a primeira parceria com Romulo e a faixa que canta com ele no final do disco, “Moribundo”, ou minha favorita “Estrangeira”). Mesmo que seu violão não fique à frente em todas as músicas, assumindo um papel quase discreto em algumas delas, sua voz está no alto sempre, como um farol: assertiva e segura, com um forte sotaque paulistano, mesmo que Anna tenha nascido no interior, em Juquiá.
“Chegando já no fim das gravações, em abril do ano passado, estávamos adicionando os últimos detalhes de sintetizadores do Cabral, quando ele provocou tanto eu e quanto o Romulo sobre o nome do disco, que até então se chamava Aquela que Teima”, lembra, referindo-se ao título da música que abre o disco de supetão. “Cabral achou este nome um pouco pretencioso ou que esta composição poderia ser sobre mim e talvez fosse melhor separar uma coisa da outra, desidentificar. Topamos, e fomos nas letras investigar um novo nome, até que chegamos numa das letras do Clima, “Calada”, que contém esse verso ‘Vi / Como um bicho vê / Como é / Sem vacilação’ e era isso”.
“A partir do nome que percebi a conexão do disco com um poema longo que estava escrevendo há meses pra um outro projeto de vídeo-dança que acabou não vingando, mas que gerou esse poemão”, lembra, contando a história do épico picotado que atravessa as faixas do primeiro disco. “Chamei o poema de ‘Sem Vacilação’ fiz alterações e debati com o Romulo a possibilidade de ele ser dividido em pequenos pedaços entrando como vinhetas entre canções, o que deixou o Romulo meio receoso, pois poema é difícil e poderia atravancar o disco.” Ela lembra do comentário que o diretpor artístico fez dando risada: “Você sabe que aí não vai fazer sucesso mesmo, né?”, mas Anna achou que fazia sentido especificamente pelo fato de ser poeta antes de descobrir-se cantora e compositora. E chamou o produtor carioca Mbé para recortar o poema usando pedaços de seus próprios vocais, além de gravações de improviso livre que Ná e Juçara fizeram no estúdio. O poema ajuda ao clima sério e de vanguarda do disco, deixando-o ainda mais paulistano.
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