Na beirinha

Chegou ao fim nesta segunda-feira a jornada que Thiago França, Rômulo Froes e Rodrigo Campos se propuseram ao encarar a temporada 3 na Ribanceira que tomou conta das segundas de abril no Centro da Terra – e a quarta noite foi de pura celebração, com os três lembrando diferentes momentos de suas carreiras ao mesmo tempo em que recebiam dois cúmplices de encruza, ninguém menos que Juçara Marçal e Marcelo Cabral. A apresentação começou com Thiago segurando a respiração do público com seu mantra de fôlego circular no saxofone, abrindo caminho primeiro para Rômulo (com sua “Pra Comer”), depois para Rodrigo (que entrou com sua “Meu Samba Quer Se Dissolver”) e os três tocaram a marchinha “Adeus Saudade”, feita para um dos primeiros desfiles da Charanga do França. Depois entrou Cabral, tocando baixo elétrico, para acompanhá-los primeiro numa versão pagode para “Muro”, de Rômulo, e depois com a faixa-título do primeiro disco do baixista, Motor, esta já com a presença da segunda convidada, Juçara. Juntos os cinco, passaram por “Três Amigos” (do Metá Metá), “Ladeira” (do trio Sambas do Absurdo), “Queimando a Língua” (do primeiro disco da Juçara), “Presente de Casamento” e “Espera” (de Rômulo), “Califórnia Azul” e “Velho Amarelo” (de Rodrigo). A ausência da noite foi Kiko Dinucci, que não pode comparecer por questões pessoais e foi lembrado quando tocaram a bela “São Paulo de Noite”, do Thiago – ou “Dinucci”, como brincaram. Também foi sentida a ausência de qualquer canção do grupo Passo Torto, que tinha 3/4 de sua formação no palco. Entre as músicas o tom era de conversa de bar, com Thiago brincando que Juçara tinha o colocado no time dos saxofonistas compositores ao lado de Milton Guedes e Jorge Israel enquanto Rômulo fazia a genealogia de cada uma das canções. Ele ainda brincou que estava chegando na beira da ribanceira, “olhando o precipício e ele olhando de volta” pouco antes de um deslize de memória (quem viu viu) que veio antes do encerramento da noite e da temporada, quando emendaram “Fim de Cidade” e “Mulher do Fim do Mundo”. Uma noite especial – e Juçara ainda soltou um spoiler do que vem por aí…

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Camadas de referência

Bastou o momento em que Juçara Marçal e Alzira E dividirem o palco na noite deste domingo pra valer o 2024 todo até aqui. Mas o encontro destas duas não aconteceu só no momento em que as duas diviram a emblemática “Tristeza Não”, pois reunir o show das duas numa mesma ocasião foi uma bela sacada da Casa Natura Musical. Alzira começou os trabalhos com seu Corte, banda formada por Marcelo Dworecki (baixo e guitarra), Cuca Ferreira (sax), Daniel Gralha (trumpete) e Fernando Thomaz (bateria), mostrando músicas do ótimo Mata Grossa, lançado no ano passado, além de passar por canções do disco de estreia do grupo, de 2017. O entrosamento entre todos está tinindo e elevam a vocalista e baixista do pantanal à sua natural posição majestática, onde, seja bradando o microfone ou empunhando seu baixo, que por vezes encontrou-se com o de Dworecki, deixando o peso da banda ainda mais evidente – algo bem realçado pelo Berna, que estava tomando conta do som.

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Quando Juçara subiu depois, todo o peso de seu Delta Estácio Blues – cada vez mais implacável a cada nova apresentação – foi elevado. Primeiro pela liga quase metálica entre ela, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral e Alana Ananias. Depois ao temperar o show com citações do disco de seu remixes que acabou de ser lançado – e que Juçara anunciou que irá se transformar em festa no porão da Casa de Francisca, com discotecagem do Mbé, nos dias 16 e 17 de maio – imperdível! Depois com a participação da mestra que abriu o show, Alzira E. A citada “Tristeza Não”, de Itamar Assumpção e Alice Ruiz, já eternizada pelo Metá Metá, ganhou um força e uma energia ainda mais intensa com a presença de Alzira e, como conversei com o Cuca logo na saída do show, aquele encontro das duas abriu camadas e camadas de referência, mostrando como a cena nascida no Lira Paulistana segue firme e forte na atual cena independente paulistana. Que momento!

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Itamar Assumpção vivo no Porão da Casa de Francisca

Finalmente conheci o recém inaugurado porão da Casa de Francisca – e não podia ser com uma atração melhor, quando, mais uma vez, Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Suzana Salles se juntaram para celebrar Itamar Assumpção apenas com violão e vozes. A entrada para o novo palco do Palacete Tereza fica na porta ao lado do acesso original da casa e o público desce por uma rampa abaixo de uma placa que nos recepciona para o “Cine Teatro – Espaço Imaginário e Recreativo”, que já dá a medida das possibilidades do novo espaço. O show desta quarta foi para um público sentado em poltronas ao redor do palco, que fica num tablado circular no centro do porão, mas o espaço permite várias modalidades de apresentação, inclusive além de atrações musicais, como deixa explícita a placa na entrada. A apresentação intimista pediu uma luz mais comedida e a sensibilidade dos três intérpretes nos deixava ainda mais próximos do palco. Todos de preto e óculos escuros passavam um repertório não tão óbvio das canções do mestre Ita e alternavam momentos de frágil delicadeza com espasmos de som liberados pelo violão de Kiko e acompanhado por berros de Suzana e Juçara. E tão bom quanto a apresentação da noite foi descobrir que a movimentação à entrada do Palacete, ocupando a rua em frente a outra nova área da Francisca, um bar e restaurante na parte térrea, seguia noite adentro, mesmo depois do DJ do dia, o grande Rodrigo Caçapa, que estava tocando desde o começo da noite até a hora do show começar, ter parado de tocar. Muito bom ver a Francisca tomando conta da rua e ampliando as possibilidades artísticas e culturais em uma região que, dez anos atrás, estava completamente largada. Viva a Casa de Francisca!

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Rodrigo Campos, Rômulo Froes e Thiago França: 3 na Ribanceira

Eita que abril já começou desequilibrando tudo – e a temporada das segundas-feiras no Centro da Terra reúne um trio da pesada que só aumenta a responsa do mês. Imensa honra receber Rodrigo Campos, Rômulo Froes e Thiago França, que brilham em quatro datas diferentes no nosso querido teatro do Sumaré em uma temporada em que cruzam e misturam obras e canções feitas em várias mãos na temporada 3 na Ribanceira. A primeira noite, dia 8, vê os três passeando pelas canções do disco que Rômulo e Rodrigo lançaram no ano passado, como Anna Vis e Marcelo Cabral como convidados da apresentação chamada Elefante, O Oráculo da Noite. Na próxima segunda, dia 15, eles recebem Victória dos Santos, Fernanda Sangirardi e Bia Falleiros para uma roda de samba montada no palco do teatro, batizada de Samba de Tablado. Na terceira segunda-feira, os três apresentam apenas músicas inéditas sem convidados na noite chamada Sem Paralelo e encerram a temporada chamando mais uma vez Marcelo Cabral e desta vez Juçara Marçal para desfilar seus repertórios conjunto na noite chamada Coisas Nossas. Os espetáculos começam pontualmente às 20h e os ingressos para todas as noites já estão à venda neste link.

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Vida Fodona #807: Demorei, né?

Muita coisa acontecendo.

Ouça abaixo:  

O melhor show de Juçara Marçal

Ainda impactado pelo que presenciei nessa sexta no Sesc Vila Mariana, arrisco dizer que a celebração ao vivo do aniversário de dez anos do disco de estreia de Juçara Marçal tenha sido a melhor apresentação que assisti dessa mulher – e olha que a vi no palco algumas dezenas de vezes. Repetindo a exata formação (“banda original”, brincou nossa musa) de uma década atrás no mesmo lugar que viu o show de lançamento de Encarnado, ela entregou-se ao álbum na íntegra, repetindo exatamente a mesma ordem das faixas do registro original e deixando-o fluir como o clássico instantâneo que sempre foi. “Esses dez anos os tornaram todos mais gatos ainda”, brincou ao apresentar seus compadres Kiko Dinucci, Thomas Rohrer e Rodrigo Campos sublinhando como a experiência dos quatro deixava o show ainda mais denso e coeso, como se só a beleza os tivesse melhorado – sem contar a própria Juçara, toda de vermelho em referência à capa do disco, que estava deslumbrante. O crescendo emocional do disco avançava a cada nova canção e, como na ordem do álbum original, culminou com a intensa “Ciranda do Aborto” cuja parede noise final desapareceu para revelar a delicadez de “Canção para Ninar Oxum” (em que até agora lamento quem bateu palma bem na hora em que o acalanto cairia em segundos do puro silêncio). Entre as faixas de fora do disco, vieram uma versão inacreditável de “Xote de Navegação” de Chico Buarque, em que Juçara foi acompanhada apenas por Rohrer tocando um fouet (!) com o arco de sua rabeca; a clássica “Comprimido” de Paulinho da Viola (em que ela transformou “um samba do Chico” em “um samba do Kiko”) e “Odumbiodé”, do EP que acompanha seu disco mais recente, o igualmente soberbo Delta Estácio Blues, o que me fez cogitar uma versão do DEB tocada com aquela formação (algo que já havia passado pela minha cabeça no início do show, pois a primeira canção, “Velho Amarelo”, faz parte do repertório do show do disco de 2021). Dois detalhes técnicos e artísticos agigantaram ainda mais essa noite: o som perfeito pilotado pelo Alex Pina (deixando o mínimo sussurro e o mais explosivo ruído igualmente cristalinos) e a luz (como sempre) maravilhosa de Olívia Munhoz (trabalhando com poucas cores, equilibrando luz e escuridão na mesma medida e jogando luzes na cara do público, difundindo até as silhuetas). “A gente tem muitas presenças importantes aqui hoje”, disse Juçara nos poucos momentos em que conversou, bem à vontade, com o público, “mas devo confessar que a mais importante pra mim é uma senhorinha de 90 anos que tá ali”, apontando para sua mãe. Ela ainda lembrou que o show de lançamento do disco original aconteceu no dia 15 de abril de dez anos atrás, aniversário de casamento de seus pais. Uma apresentação irrepreensível e a hipérbole não é em vão: estamos acompanhando a melhor fase da melhor cantora do Brasil atualmente. Não é pouca coisa. E sabe o que mais? Outros melhores virão.

#jucaramarcal #encarnado #sescvilamariana trabalhosujo2024shows 27

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Uma comemoração particular – de um país inteiro

Encontrei Kiko, Thiago e Juçara logo que cheguei na Casa de Francisca nessa quinta-feira saindo do elevador que agora dá acesso ao camarim em direção ao palco. Pude cumprimentá-los rapidamente antes que eles começassem a apresentação e desejar um bom show (no caso deles redundância, mas a saudação importa) quando Thiago frisou: “Sabe que hoje é aniversário daqui, né?”. Não estava sabendo, mas há exatos sete anos a Casa de Francisca arrancava suas raízes na rua José Maria Lisboa nos Jardins para replantá-las no coração de São Paulo, há poucos metros da Praça da Sé, no Palacete Tereza que hoje é a cara do lugar. Feliz por estar participando mais uma vez de um momento histórico desse palco sagrado (ainda mais com show do Metá Metá!), também comemorei que esse poderia um bom começo de carnaval, embora a vibração fosse distinta. Até que começaram a cair umas fichas: primeiro que aquele começo de carnaval tinha começado algumas horas antes, quando a polícia federal deteve o passaporte do meliante que ocupou a presidência da república, aproximando-o de seu destino desejado, a cadeia. O efeito dominó que as notícias da quinta-feira causaram (e seguem causando) inevitavelmente desdobraram-se na série de piadas e numa contagem regressiva que a prisão do desgraçado poderia ser o início do carnaval (eu acho que não vai rolar agora, vai ser um carnaval fora de época daqui a pouco). E depois me lembrei do show que vi daquele mesmo Metá Metá na outra Casa de Francisca, no fatídico dia 12 de maio de 2016, quando o Senado autorizou o início do golpe na Dilma. Foi o começo da era de trevas da qual ainda estamos saindo e lembro direitinho (até escrevi sobre isso na coluna que tinha na Caros Amigos na época) de como aquela notícia pesou nosso encontro antes do show e como o show em si foi um exorcismo daquele futuro ruim que sabíamos que viria. Oito anos depois, lá estava o mesmo Metá Metá – só os três de novo – em outra Casa de Francisca comentando a possibilidade de prender a pessoa que só chegou onde chegou porque derrubaram a presidenta naquele passado não tão distante. Ainda não estamos festejando o que deve ser festejado, mas o futuro sombrio (que ainda se avizinha, à espreita, fingindo-se de desentendido) está mais distante do que estava naquela noite de 2016. E mais uma vez era a música que mostrava o rumo a ser seguido. Viva a resistência cultural! Viva a Casa de Francisca! Viva o Metá Metá! Viva o Brasil e viva a música!

#metameta #casadefrancisca #trabalhosujo2024shows 15

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Os melhores de 2023 pinçados por Guilherme Werneck

O compadre Guilherme Werneck passou por um 2023 intenso e uma das novidades deste período foi o estabelecimento de sua newsletter Ladrilho Hidráulico como uma das melhores agendas culturais de São Paulo. E já entrando no ritmo de fim de ano, em vez de falar de programação cultural, ele chamou compadres e comadres para dar dicas de discos que mais gostaram neste ano que está chegando ao fim. E lá estou eu dando meus pitacos ao lado de bambas como Juçara Marçal, Acauam Oliveira, Barbara Scarambone, Pérola Mathias, Carla Boregas, Gaía Passarelli, Romulo Fróes, Gilberto Monte e Thiago Cury. Valeu, Gui!

Abstrato e industrial

Transcendental o Anganga que Cadu Tenório e Juçara Marçal fizeram nesta terça-feira no Centro da Terra. Trazendo cânticos de trabalhadores escravizados que foram recuperados no início do século passado, os dois atualizaram melodias e versos seculares para a cacofonia do século 21, com Cadu disparando bases industriais para Juçara soltar sua voz de forma lírica e abstrata, conversando com a luz detalhista, por vezes quase impressionista e outras quase na penumbra, desenhada por Cristina Souto. Fisgando o público na veia, era possível ouvir um silêncio quase milenar, que parecia pairar sobre aquele ritual.

Assista aqui:  

Juçara Marçal + Cadu Tenório: Anganga

Enorme satisfação de receber pela primeira vez a dupla formada por Juçara Marçal e Cadu Tenório, que apresentam sua obra Anganga nesta terça-feira no Centro da Terra. O espetáculo foi inspirado nos vissungos (cantos de trabalho) resgatados pelo linguista Aires da Mata Machado Filho nos anos 1920 em São João da Chapada, município de Diamantina em Minas Gerais, em 65 partituras publicadas no livro O Negro e o Garimpo em Minas Gerais. Essas partituras transformaram-se num disco chamado O Canto dos Escravos, gravado em 1982 por Clementina de Jesus, Geraldo Filme e tia Doca da Portela. São esses cantos que Juçara e Cadu revisitam desconstruindo-os eletronicamente em uma versão ainda mais pesada do que suas versões originais. O espetáculo começa pontualmente às 20h e ainda há ingressos disponíveis neste link.