O Terno reverencia Lóki?

, por Alexandre Matias

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Diferente do show de Emicida em homenagem a Cartola, a noite do projeto 74 Rotações que teve O Terno recriando o clássico Lóki? de Arnaldo Baptista foi mais reverente do que inventiva, mas tanto a banda quanto o disco requeriam aquele tipo de apreciação.

Para começar, Lóki? não é só um apanhado de canções românticas, é um disco-sentimento em que Arnaldo Baptista jorrava toda seu coração em música. É fácil imaginar que as canções que hoje consideramos clássicas são partes de um fluxo de consciência emocional contínuo, como pode ser observado a partir das jam sessions registradas no primeiro disco dos Mutantes sem Rita Lee, O A e o Z, que só foi lançado nos anos 90. O que Arnaldo Baptista cantasse enquanto tocava seus teclados – piano ou elétrico – naquela época fazia parte de uma enorme canção em sua cabeça – canção esta que se desracionalizou completamente quando sentiu o baque de perder Rita Lee e compôs/gravou Lóki? O disco é um misto de Astral Weeks com Madcap Laughs e uma pitada do mítico Smile, um disco confessional, extremamente pessoal e gravado nos limites da emoção. Por isso qualquer tentativa de recriá-lo corre o risco de soar falso ou sem sentimentos.

Daí a importância d’O Terno optar pela reverência, tocando as músicas quase literalmente como no disco, incluindo aí a ordem das faixas. A outra barreira frente ao show do sábado passado é que Lóki? é um disco composto e tocado ao piano, enquanto o trio paulistano não conta com o teclado em sua formação. Por isso quando as cortinas se abriram e o guitarrista Tim Bernardes estava sentado frente a dois teclados a responsabilidade do grupo pareceu ter aumentado a dificuldade: será que Tim era tão desenvolto no piano quanto na guitarra? E apesar da resposta negativa isso não foi propriamente um problema. Primeiro porque ele manteve-se firme na base das canções, sem tentar nenhum malabarismo instrumental que talvez não pudesse alcançar – este era espertamente dividido com o baixista Guilherme d’Almeida, que percorria linhas melódicas de tirar o fôlego (tocadas originalmente por Liminha, talvez o melhor discípulo de Arnaldo no baixo). No meio, o baterista Victor Chaves ajudava a acertar o clima das canções, por vezes como um Keith Moon (ou Dinho Leme, como seria mais apropriado) endiabrado, por outras clássico e discreto como Charlie Watts ou Ringo Starr.

Mas Tim não ficou só nos teclados nem a banda ficou só no fac-símile. Um dos momentos mais interessantes do show foi quando “Honk Tonk” (escrita e tocada originalmente apenas no piano) virou um rock pesado instrumental tocado pelo power trio ensandecido que é O Terno – emendando abruptamente na quase faixa-título (reforçando o fato de que a banda é da era do CD e atropelou a clássica virada do lado A pro lado B). Quando ia para a guitarra, Tim emulava a guitarra tropicalista Sérgio Dias e Lanny Gordin com a alavanca do instrumento e notas estridentes, numa evidente saudação aos mestres. Até na letra ele arriscou uma brincadeira, quando, em “Será Que Eu Vou Virar Bolor?”, trocou Alice Cooper por Arctic Monkeys, adaptando perfeitamente o sentimento de não-pertencimento de Arnaldo nos anos 70 para essa década de 10 (aliás, cabe um parêntese pra falar como Lóki?, como registro sentimental, ainda segue atual mesmo quando não se fala apenas em sentimento – explicitado especificamente em “Navegar de Novo” – que pensei que Tim fosse trocar “o modelo do meu carro que eu comprei só há seis meses já está fora de moda” por “o modelo do iPhone… etc.”).

O show, curtíssimo, mostrou que O Terno está pronto para viagens ainda mais loucas e encerrou com duas músicas de outros discos: “Beijo Exagerado” do último disco dos Mutantes com Rita Lee e “O Cinza” do disco que lançou esse ano. O desafio de recriar a atmosfera dentro da cabeça e do coração de um dos mestres do rock brasileiro foi cumprido à risca, com alguma (natural) tensão, mas sem deixar a bola cair. Foi quase como se o trio tivesse feito a prova do vestibular da psicodelia brasileira na frente das poucas centenas de pagantes do Sesc Santana – e visto a aprovação sair em seguida. E por mais que acertassem em diversos pontos, tiraram nota 10 no conjunto do disco, do correr da obra, na redação do show. Afinal, Psicodelia é Ciências Humanas.

Abaixo, os vídeos que fiz de todo o show, assista e deleite-se:

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