Renascença psicodélica

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Em mais uma colaboração para a UBC, conversei com Dinho dos Boogarins, Bonifrate, Fábio Golfetti e Bento Araújo sobre a tradição psicodélica brasileira e como ela se manifesta na atual fase do gênero.

Uma nova onda
Bandas como Boogarins e O Terno bebem na fonte da Tropicália, de Novos Baianos e Mutantes; artistas e especialista comentam

Uma discreta renascença vem acontecendo no underground brasileiro. Puxada por bandas de rock tão diferentes – e, de alguma forma, parecidas – como os cariocas Supercordas (que, no fim de 2016, encerraram seu trabalho como grupo mas seguem em carreiras solos), os paulistanos d’O Terno e os goianos Boogarins, uma nova onda psicodélica vem se formando durante esta década que chega ao fim. Dialoga, assim, com uma tradição que remonta a mais de meio século de produção musical.

A definição deste gênero é um tanto ampla, uma vez que psicodelia não resume um certo tipo de instrumentação, um estilo musical ou uma natureza sonora específica. É claro que nasce do rock e de seu trio de instrumentos básicos – baixo, guitarra e bateria -, mas espalha-se por teclados, inclui música eletrônica, efeitos de pós-produção, noise e microfonia, diferentes formas de se cantar e até metais, madeiras e cordas.

Seu rótulo vem de um termo que nem à música está propriamente associado: o nome “psicodelia” foi cunhado pelo psicólogo inglês Humphry Osmond, que estudava drogas alucinógenas nos anos 50 e precisava de um nomenclatura para designar os efeitos de elementos químicos que alteravam a noção da percepção da realidade dos indivíduos que os utilizavam. Osmond recorreu à Grécia antiga e recuperou um termo que resumia a expressão oculta do cérebro humano, tornada pública através de tais substâncias – “psicodelia”, dizia o estudioso, “é o que a mente revela”.

O termo tornou-se popular à medida em que o uso daquelas drogas, ainda legalizadas, se expandia. Uma delas, a dietilamida do ácido lisérgico (mais conhecida pelo nome em alemão Lysergsäurediethylamid, depois reduzido à sigla LSD), tornou-se carro-chefe daquele novo movimento farmacêutico e psicólogo, liderado pelo acadêmico Timothy Leary, que aos poucos espalhava-se pela sociedade na década seguinte aos seus primeiros estudos.

À medida que experiências alucinógenas eram descritas por poetas, escritores e estudiosos, outros artistas começaram a fazer uso daquelas drogas e a expressar-se à luz daquela descoberta. Aquela nova onda de experimentações teria eco principalmente na música, quando bandas de rock em diferentes continentes começaram a explorar as fronteiras musicais do gênero. Grupos como os Beatles, Pink Floyd, Rolling Stones, Grateful Dead, Jimi Hendrix Experience, Jefferson Airplane, The Doors, Byrds e Love mudaram a paisagem musical dos anos 60.

No Brasil, o principal nome daquele período foi o grupo paulistano Mutantes, que aos poucos abriu as portas para uma nova safra de artistas que começaram a experimentar aquela nova forma de se fazer música – e não necessariamente através da utilização daquelas drogas, que começavam a ser proibidas pelos governos. A própria Tropicália tem influência psicodélica (especificamente do clássico dos Beatles neste gênero, “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, de 1967), que espalhou-se pelos discos posteriores de artistas como Gal Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé.

Mas, além destes nomes de maior destaque, outros artistas ultra-alternativos – como Módulo 1000, A Bolha, Casa das Máquinas, Paulo Bagunça e a Tropa Maldita, Damião Experiença, Sidney Miller, Flaviola e o Bando do Sol, Os Baobás, Moto Perpétuo, A Barca do Sol, Veludo, O Bando, O Som Nosso de Cada Dia, Som Imaginário, Spectrum, Suely e Os Kantikus, Marconi Notaro, Guilherme Lamounier, Ave Sangria – ajudaram a reforçar a transformação nos anos 70.

No mesmo período, nomes como Egberto Gismonti, Luiz Carlos Vinhas, Arthur Verocai, Zé Ramalho, Pedro Santos, Marcos Valle, João Donato e até Jorge Ben Jor experimentaram aquela sonoridade, que também atingiu o grande público graças a artistas como Novos Baianos e Secos e Molhados.

Mas, a partir dos anos 70, a psicodelia brasileira tornou-se uma espécie de clube secreto, recebendo novos sócios à medida que eles lançavam discos que iam ao encontro das tendências musicais da época, como o grupo paulistano Violeta de Outono, nos anos 80, o porto-alegrense Júpiter Maçã, nos 90, e o maceioense Mopho, já nos 2000.

Líder do Violeta, o guitarrista e compositor Fabio Golfetti associa a psicodelia a uma fase de descobertas musicais na transição da adolescência à fase adulta. “A arte psicodélica está muito ligada a um lado místico e subjetivo, que sempre está em evidência”, afirma, lembrando que há também um desdobramento com a música tribal e eletrônica, que se mistura em grandes eventos por todo o mundo.

O século 21, principalmente por conta da volta dos discos de vinil e da cornucópia de MP3 que vinha pela internet, fez esta história ser redescoberta através de discos raros e esquecidos. “Creio que a conexão é total dessa garotada com o que tivemos de produção tropicalista, dos pernambucanos malucões e tal”, conta o jornalista Bento Araújo, autor de dois volumes sobre a discografia psicodélica brasileira, “Lindo Sonho Delirante: 100 discos psicodélicos do Brasil (1968-1975)” e “Lindo Sonho Delirante vol.2: 100 discos audaciosos do Brasil (1976-1985)”. “Hoje, qualquer moleque dessas bandas sabe quem foi Lula Côrtes. As referências são fortes.”

Assim, surge esta segunda onda psicodélica, quase meio século após a primeira, que reúne artistas tão diferentes – e de diversos lugares do Brasil – como os brasilienses Joe Silhueta, Almirante Shiva e Rios Voadores, os paulistas da Bike, Trupe Chá de Boldo, Rafael Castro, Garotas Suecas, Cérebro Eletrônico e Applegate, a capixaba My Magical Glowing Lens, os cariocas Tono, Castello Branco e Do Amor, os gaúchos Catavento, o pernambucano Tagore, os goianos Orquestra Abstrata e Luziluzia, além dos já citados Supercordas, Boogarins e O Terno. É uma cena musical dispersa e sem cidade de origem, mas que torna-se cada vez mais forte – além de reforçar a influência de cinquenta anos de experimentações sonoras no Brasil.

“Acho que há ondas de psicodelia na música brasileira, e algumas contribuições aparecem como que entre essas ondas, carregando uma chama daquilo numa fase não tão favorável”, descreve Pedro Bonifrate, líder do Supercordas. “A nova onda na certa é a mais rica, a meu ver. Meio que um portal que os Boogarins abriram e que encheu o ar de novos sons, novas bandas, e renovou a esperança de jovens artistas em fazer sua música ser ouvida por mais que um punhado de gente.”

Bonifrate mesmo acaba de anunciar seu próximo projeto ao lado do vocalista dos Boogarins, Dinho Almeida, uma dupla chamada Guaxe. Inevitavelmente psicodélica.

“A gente vem da onda do pessoal que teve mais facilidade pra se gravar e, a partir disso, começou a experimentar”, explica Dinho, que é guitarrista do Boogarins. “Eu já tinha banda, mas nunca tinha gravado minha banda antiga, aí eu conheci o Benke (Ferraz, outro guitarrista dos Boogarins), que já estava se gravando, de um jeito muito maluco, cheio de efeitos, que me lembrava de umas coisas que eu gostava, que faziam experimentações, como Júpiter Maçã e Mutantes. Acho que essa possibilidade de produções mais malucas dentro da música brasileira está acontecendo. Vários discos que não são psicodélicos têm sons bacanas e gente tentando experimentar. Essa é a maior força disso que chamam de nova psicodelia, o ponto mais positivo é essa onda de inovação e experimentação, independente de ser psicodélico ou não.”

A renascença de um jornalismo sobre música

Na minha primeira colaboração para a revista da UBC – na edição número 41 – falo sobre como as transformações tecnológicas acabaram por virar o jornalismo que cobre música do avesso – pulverizando-a em centenas de novos autores que ainda não se conversam nem se organizam, por isso não são vistos como uma força importante, nem por si mesmos, muito menos pelo público.

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A crítica de música nunca esteve tão viva

O estado de confusão e a sensação de fim de ciclo são sintomas de uma nova fase da produção jornalística musical brasileira, que está prestes a renascer em outra escala

É comum ouvirmos dizer que a crítica musical ou jornalismo voltado para a música desapareceu e que estas atividades, que antes eram resumidas diariamente nos cadernos de cultura dos principais jornais do país, perderam espaço para a agenda cultural, pauta onipresente nestas mesmas publicações.

Isso é uma generalização. Há uma profusão gigantesca de textos jornalísticos ou de opinião sobre a igualmente extensa produção musical brasileira. Mas se antes só precisávamos acompanhar determinados veículos para saber o que estava acontecendo, agora precisamos fazer um verdadeiro trabalho de mineração para descobrir onde se discute a produção musical brasileira atual, quem a discute e em que formato acontece esta discussão.

No princípio eram as revistas independentes e fanzines, que aos poucos migraram para a internet e se transformaram em revistas eletrônicas (ou e-zines). No final do século passado veio a invenção do blog – inicialmente um diário online de cunho pessoal -, que permitia que neófitos da rede pudessem publicar seus conteúdos sem entender de tecnologia e das linguagens eletrônicas que transformavam um texto em um site. Blogs e sites começaram a conviver numa espécie de realidade paralela que se expandiu em razão exponencial com a chegada das redes sociais, que impulsionaram ainda mais a autopublicação. E logo esta discussão não era nem mesmo mais escrita – e mesmo quando era, tornava-se fragmentada.

Estou falando de listas de discussão por email, fóruns online, comunidades digitais, grupos de interesses específicos no Facebook e discussões encadeadas no Twitter, canais no YouTube, perfis no LinkedIn, podcasts, textos no Medium, grupos no WhatsApp. Além da produção que foi para outras mídias para além das digitais: jornalistas que viraram biógrafos ou autores de livros sobre música, que transformaram críticas em teses acadêmicas, que realizam entrevistas com artistas em frente a um público pagante, que foram para a frente das câmeras ou para os microfones das rádios. A vasta produção de jornalismo e crítica musicais no país expande-se para atividades que não eram consideradas jornalísticas, como discotecagens, cobertura em mídias sociais, curadorias e direção artística.

O jornalismo passa, nesta segunda década do século, por uma situação semelhante à da música no início dos anos 2000. Quando o MP3 e o compartilhamento P2P permitiu que as pessoas tivessem acesso gratuito a todo o tipo de música, a música digital saiu de sua infância e entrou em uma puberdade que, como tal, tinha tons dramáticos. Era o apocalipse: o fim do mercado fonográfico como o conhecíamos, o fim das grandes gravadoras, o fim do CD e até falou-se no fim da música.

A mesma coisa acontece com as notícias, só que em vez de um software, a ameaça são as redes sociais – especificamente o ecossistema do Facebook (principalmente o WhatsApp). Ali o público não paga por notícias e as consome regurgitadas por amigos, parentes e desconhecidos, que copiam e colam textos sem dar a origem da informação, que publicam informações falsas como se fossem verdadeiras e criam novos vínculos de confiança, abandonando os velhos títulos que balizavam o mercado das notícias.

Os jornais impressos são como as gravadoras no final do século passado: lidam principalmente com um produto (o jornal ou o CD) e entram em parafuso com a novidade que espalha notícias para além de seus domínios. A fragmentação da sociedade em milhares de nichos a partir da popularização da internet, fez que ela perdesse eixos centrais na sustentação de realidade que determinavam parâmetros seguidos de forma coletiva globalmente e o jornalismo talvez tenha sido uma de suas vítimas mais emblemáticas. Como aconteceu com a indústria, a arte, a política e o entretenimento, a indústria da comunicação foi frontalmente atingida pela internet e pelas redes sociais. Rádio e TV sobreviveram às duras penas, enquanto a mídia impressa parece fatalmente ferida.

Mas isso é uma fase. O que vem acontecendo é uma reestruturação de parâmetros que nos faz perceber que o jornalismo de outrora agia exatamente como as redes sociais fazem hoje: reduzindo as informações a um único bloco de agentes, desprezando todos os outros que não dançavam conforme sua música. As redes sociais têm a desculpa de que este padrão é robótico, seu algoritmo é dirigido pela inteligência artificial. Antes, o algoritmo do jornalismo era humano e restringia o acesso do público às novidades a partir do gosto e dos interesses de um crítico ou um editor, criando a falsa ilusão de que aquelas escolhas eram a realidade musical existente.

Isso acabou. Jornalistas encastelados em suas torres de marfim, recebendo discos e informações privilegiadas direto dos artistas e da indústria e decidindo o que o público deve ler ou ouvir é um passado quase caricato de tão distante. O jornalista corre atrás das notícias, estabelece novos vínculos com artistas e produtores e expande os horizontes de seu público. O grande desafio atual é fazer este jornalismo chegar ao público de forma sustentável – desafio semelhante que a indústria da música tinha antes desta nova era de aplicativos de streaming. E do mesmo jeito que o Spotify ainda não é a melhor solução (outras virão em breve), um Spotify de notícias também não resolverá este problema – mas pensar em caçar e distribuir esta produção jornalística em vez de simplesmente considerá-la inexistente por não vir à superfície em escala industrial é a chave para voltarmos a ter um jornalismo de música consistente – e, diferente de antes, plural, acessível, profundo e divertido. A consciência desta nova fase é o primeiro passo desta redescoberta.