Durante 2015 sou um dos curadores da área de música do Circuito Cultural Paulista, programa que realiza uma série de apresentações gratuitas em cidades de pequeno e médio porte no interior de São Paulo. As atividades começam a partir deste fim de semana e entre março e abril sete atrações de diferentes gêneros musicais e regiões do país se apresentam por 42 cidades paulistas. A programação deste bimestre inclui Bárbara Eugênia (que toca em março por Miguelópolis dia 6, Barretos dia 7, Guaíra dia 8, Itapetininga dia 20, Piraju dia 21 e Botucatu dia 22), o Bixiga 70 (que se apresenta durante o mês de março por Monte Aprazível dia 6, Buritama dia 7, Lençóis Paulista dia 8, Avaré dia 20, Ourinhos dia 21 e Bariri dia 22), o Jardim das Horas (que leva o show Cidadela durante março a Matão dia 13, Pirassununga dia 14, Catanduva dia 15, Promissão dia 24, Pompéia dia 25 e Itaí dia 26), o grupo The Beetles One (que toca em março em Ibitinga dia 6, São Joaquim da Barra dia 7 e Brodowski dia 8 e em abril em Lins dia 17, Penápolis dia 18 e Araçatuba dia 19), a cantora Marcia Castro (passa por Miracatu dia 20, Iguape dia 21 e Registro dia 22 de março e Guariba dia 16, Orlândia dia 17 e Serrana dia 18 de abril), Rafael Castro (passa por Batatais dia 27, São José do Rio Pardo dia 28 e Espírito Santo do Pinhal dia 29 de março e Martinópolis dia 10, Tupã dia 11 e Mirandópolis dia 12 de abril) e o grupo Originais do Samba (homenageando o ex-integrante Mussum em março em shows em Bertioga dia 6, Ilhabela dia 7, José Bonifácio dia 13 e Jales dia 14 e durante abril nos dias 10 em Diadema e 11 em Vargem Grande do Sul). Abaixo, o texto que escrevi sobre a curadoria deste ano. Mais informações podem no site do Circuito Cultural Paulista:
As transformações que vêm chacoalhando a indústria fonográfica e o mercado da música, desde a popularização da internet no final do século passado, pegaram todo mundo de surpresa. Discografias baixadas às torrentes, um mundo de artistas que se lança através de vídeos online ou redes sociais, encontros digitais improváveis que materializam colaborações e parcerias de artistas de toda espécie. O ecossistema da música, que antes era enraizado no palco, na rádio, na loja e nas gravadoras, espalhou-se por plataformas, marcas e desdobramentos
inimagináveis antes da ascensão do digital.
Para nós, brasileiros, isso não chegou a ser um susto. Passada a fase do download irrefreado, aos poucos entendemos que o mundo digital vem provocando mais do que mudanças econômicas, sobre hábitos de consumo e métricas de sucesso. Estamos assistindo a uma musicalização do planeta, e o mundo está se acostumando a viver um pressuposto que é típico da fusão musical de nosso país.
Habituados a conviver com todos os tipos de música e gêneros musicais, temos apresentações ao vivo em nosso DNA. Gostamos de nos reunir em pequenas e grandes multidões para cantar e dançar junto, e também ficamos em silêncio para ouvir o artista cantar baixinho suas paixões e suas dores. A relação brasileira com a música é mais intensa do que aquilo que é vendido em prateleiras de lojas de discos ou em pastas de armazenamento de arquivos digitais. Por isso a ênfase do Circuito Cultural Paulista de 2015 será a reunião de nomes de diferentes estilos musicais, faixas etárias, cidades e abordagens musicais para contemplar a vastidão musical do Brasil – que agora começa a se espalhar pelo mundo.
Escrevi sobre a morte do ator que encarnava a essência de Jornada nas Estrelas e ajudou a popularizar a ficção científica pro UOL.
Sem Nimoy, reencontro de Kirk e Spock em novo filme não acontecerá
É inegável a importância de Leonard Nimoy para a cultura ocidental da virada do milênio. A representação magistral do alienígena mestiço Senhor Spock de “Jornada nas Estrelas” não só trouxe uma profundidade complexa, e às vezes ambígua, para a ficção para as massas como criou um ícone pop da estatura dos arcos do McDonald’s, das orelhas de Mickey Mouse ou o bigode do Super Mario.
Toda uma discussão que já existia nas páginas dos livros de ficção científica foi para a televisão e a presença pensativa e distante do vulcano de orelhas pontudas dava uma abordagem mais séria e filosófica para temas que estavam explodindo nas ruas no final dos anos 60, em protestos pela igualdade de direitos e contra a guerra.
Mas infelizmente ele não vai poder reencontrar sua dupla William Shatner no que poderia ser a grande celebração da história de “Jornada nas Estrelas”: o reencontro de Kirk e Spock revividos por seus atores originais em mais um filme bem sucedido da série reanimada por J.J. Abrams.
Nimoy já havia participado da franquia desde o primeiro filme, de 2009, quando o criador de Lost zerou a cronologia da série original. Mas uma série de mal entendidos com William Shatner o deixou de fora dos dois novos filmes, que são os únicos em toda a cronologia da série no cinema sem o Kirk original. No segundo filme, Além da Escuridão, de 2013, Nimoy ainda marca presença, mas apenas com sua voz.
As filmagens do terceiro “Jornada nas Estrelas” desta vez estão com Justin Lin, de quatro “Velozes e Furiosos” e dois episódios da próxima temporada de “True Detective”, deixando J.J. apenas na produção. Elas começariam no meio do ano e William Shatner já estava dando entrevistas e comentando em aparições em público que havia sido convidado para participar do novo filme. A volta de Shatner poderia marcar o reencontro de uma dupla central para a história da cultura pop.
Pois o equlíbrio da série era dado pelo antagonismo entre Spock e Kirk. Instinto e racionalidade, coragem e cálculo, intensidade e frieza. A dualidade elemental entre os dois personagens era enfatizada pela figura estranha criada por Nimoy, um híbrido de ser humano e alienígena que causava estranhamento e fascínio. O escritor de ficção científica Isaac Asimov detectou isso assim que a série estreou em 1967, ao escrever um artigo sobre o personagem inspirado por uma frase de sua filha adolescente: “Senhor Spock é um sonho!”, em que dizia que sua filha gostava do personagem porque ele era inteligente, não importa que ele tenha orelhas pontudas.
Spock é um de nós mas ao mesmo tempo não é, o que causa um curto circuito no conceito de “nós” que nos obriga a expandir nossa noção de humanidade para outras raças alienígenas. A metáfora clara é a própria condição humana, fragmentada entre biotipos, arquétipos e estereótipos que dividem mas que deveriam unir. Spock é um dilema que nos desafia a transpor conceitos de países, raças, religiões, gêneros ao sentar-se ao nosso lado, na mesma nave, não como antagonista, opositor, vilão.
O personagem é a encarnação do momento antropológico em que se percebe que o outro sou eu, e isso está mais na atuação e performance de Nimoy do que propriamente no texto do criador da série, Gene Roddenberry. Detalhes marcante do personagem – como a saudação judaica ancestral que o judeu Leonard trouxe para a contemporaneidade como cumprimento vulcano e a forma ambígua que pronunciava o adjetivo “fascinante” – foram criados pelo ator.
Spock era a essência da série. A tripulação da Enterprise era mais do que multirracial – era multiespécie e incluía até robôs, o que levava detratores a comparar episódios das diferentes encarnações da série com tediosas reuniões da ONU. Essa lentidão cheia de frases de efeito e lições de moral ganhou uma dinâmica completamente nova ao ser posta nas mãos de J.J. Abrams, a partir da década passada.
O diretor deu movimento e juventude à franquia, contando a história da tripulação clássica desde os primeiros dias. Isso apresentou a série para milhões de novos fãs e o trekker, antes a caricatura mais radical e extrema do conceito de nerd, tornou-se mais sociável e “humanizado”, num irônico encontro entre as personalidades do próprio Spock e do personagem Sheldon de “Big Bang Theory”, ele mesmo um trekker que encontra o ídolo Nimoy em um dos episódios do seriado.
(Parêntese rápido: Abrams ainda teve tempo de celebrar a persona de Nimoy ao criar um outro personagem icônico para seu ídolo: o doutor William Bell, da saudosa série “Fringe”, que também era dupla de um dos protagonistas da série, o excêntrico e adorável Walter Bishop vivido por John Noble, o melhor cientista louco da história da TV. Bell, como Spock, era frio e calculista, mas Abrams resolveu explorar os limites ambíguos do ator e criou um personagem que lentamente torna-se um grande vilão.)
O terceiro filme do novo “Jornada nas Estrelas”, portanto, poderia reunir Spock e Kirk mas entra para a série de reencontros que nunca veremos na história da cultura pop, como a volta dos Beatles (“Free as Bird” com o recado da secretária eletrônica no papel do John Lennon não rola, vai), do Clash, do Pink Floyd, dos Trapalhões ou do Monty Python (sem Graham Chapman não é Monty Python).
Mas não era uma volta de uma banda ou de um grupo, mas um reencontro de dois amigos que encarnavam como o estranhamento inicial de um encontro pode ser superado para se tornar uma sólida amizade.
Escrevi sobre a tradução do calhamaço Graça Infinita, a grande obra de David Foster Wallace, para a revista Brasileiros do mês passado.
Entretenimento Fatal
Com mais de mil páginas, sendo 100 delas de notas de rodapé, o desafio Graça Infinita, de David Foster Wallace é o último candidato a Grande Romance Americano do século passado e finalmente é lançado no Brasil
A busca pelo Grande Romance Americano atravessou todo o século passado motivando autores hoje consagrados e assombrando outros que tentavam fugir desse Santo Graal. O posto foi criado como uma forma de distinguir a literatura da antiga colônia inglesa da produção britânica e logo clássicos como Moby Dick e As Aventuras de Huckleberry Finn se configuraram como os primeiros candidatos ao posto. Mas à medida em que o século 20 foi passando e os Estados Unidos foram se confirmando como o país mais influente do mesmo período, o título passou a pesar sobre ombros de diferentes autores e obras: F. Scott Fitzgerald, William Faulkner, Vinhas da Ira, John dos Passos, O Apanhador no Campo de Centeio, Saul Bellow, Lolita, O Arco-Íris da Gravidade, John Updike, William Gaddis, Don DeLillo. Todos confrontados com o desafio de traduzir a essência deste país autodenominado América em páginas de papel.
Mas um nome candidatou-se a esse trono como se aceitasse um desafio. Um metadesafio, afinal. O século americano chegava ao fim e um autor considerado prodígio dedicou três anos de sua vida a uma obra que não apenas sintetizasse a importância cultural dos Estados Unidos para o resto do mundo nos últimos cem anos como também funcionasse como uma radiografia para uma sociedade que passou a primeira metade do século cultivando uma nova altivez e nobreza, ao alcance de todos, e a segunda metade remexendo nas próprias entranhas enquanto perguntava-se o que havia acontecido de errado. David Foster Wallace completava 34 anos no mesmo fevereiro de 1996 que via o lançamento de sua obra-prima precoce, o exaustivo e enciclopédico romance Infinite Jest, que finalmente é lançado no Brasil, como Graça Infinita. O título não é retirado apenas de uma frase qualquer de Shakespeare, mas do momento em que Hamlet encara o crânio sem vida de Yoruck que comumente associamos ao monólogo em que nos encontramos com o “ser ou não ser”. Em vez disso, o príncipe dinamarquês confronta a ossada do bobo-da-corte e contempla-a. “Ah, pobre Yorick!”, suspirava o personagem, “uma pessoa de infinita graça, da mais fina fantasia, carregou-me às costas umas mil vezes, e agora, quão abominável me parece.” A caveira na capa da edição brasileira escancara a sutil constatação hamletiana sobre os EUA.
No livro homônimo, Graça Infinita é um filme experimental realizado pelo senhor James Orin Incandenza Jr., que antes de dedicar-se ao cinema, era especialista em óptica, fundou a Academia de Tênis Enfield e cometeu suicídio enfiando a própria cabeça num microondas. Mas ao contrário de outros filmes que produziu, Graça Infinita – que também é conhecido apenas como Entretenimento ou “samizdat” – era considerado perigoso por induzir seus espectadores a um estado de desinteresse por tudo que não fosse o próprio filme – uma degradação psicológica que inevitavelmente levava à morte.
Eis o objetivo de uma caçada estática conduzida pelas mais de mil páginas de um único romance, em que notas de rodapé ao final do livro tomam conta de nada menos que cem outras páginas. É um calhamaço de dimensões atordoantes que não deixa barato ao ser desbravado: David Foster Wallace nos conduz por montanha russa de estilos, habitada por personagens verborrágicos em monólogos de frases gigantescas. Quase não há parágrafos e a sensação de estar à deriva em um mar de palavras é constante. É um livro mais extenso do que os longos romances russos – e que a própria Bíblia.
Graça Infinita nos apresenta aos Estados Unidos de um século 21 em que não houve um 11 de setembro, em que o consumismo, a publicidade e o mercado de entretenimento deformaram de vez a América do Norte. Não há nem mais os Estados Unidos como o conhecemos e sim uma mutação entre a Alca e a Otan chamada Organização das Nações da América do Norte (referida apenas como Onan – isso mesmo). Neste novo país, não existem preocupações ecológicas e todo o lixo tóxico é catapultado na antiga região da Nova Inglaterra, no nordeste dos antigos EUA. Os anos não são mais referidos com a numeração tradicional e são vendidos às marcas que pagarem mais – e assim os primeiros anos do século em que vivemos são referidos como “o ano do Whopper”, “o ano do Frango Maravilha Perdue” ou “o ano da fralda geriátrica Depend”.
Neste mundo habitam dois personagens que acompanharemos pelas centenas de páginas: o prodígio no tênis Hal Incandenza, filho caçula do autor do filme, e o ex-viciado Don Gately, que habitam dois universos diferentes – a já citada Academia de Tênis Enfield e a Casa Ennet de Recuperação de Drogas e Álcool. Através dos dois visitamos duas dos principais prazeres da escrita de David Foster, o tênis e reuniões de Alcóolatras Anônimos, situações que viveu pessoalmente. A primeira por ter sido, ele mesmo, um jovem tenista, o que garante páginas e páginas do esporte por escrito, por vezes exaustivas como uma partida no saibro. E Wallace começou a frequentar reuniões do AA não por causa da bebida, mas por seu vício passivo em assistir televisão. A partir das reuniões ele pode perceber as transformações em diferentes personagens, além da relação da América do século 20 com qualquer tipo de dependência – sendo o consumismo e o entretenimento de massas duas de suas principais manifestações. Os dois personagens, paralelamente, ainda fazem o leitor passear por descrições sobre todo o tipo de drogas e efeitos diretos ou colaterais, como se parte do autor fosse habitada por William Burroughs e Hunter Thompson.
Mas não se engane: não são os únicos temas de Graça Infinita. Seu número assustador de páginas funciona como uma passarela para Wallace desfilar seus extensos conhecimentos em áreas completamente diferentes, além de costurá-los com observações inusitadas e frases deliciosamente escritas. E aqui é possível perceber seu parentesco com Thomas Pynchon, Kurt Vonnegut, Don DeLillo, William Gaddis e John Barth. Por mais que atravesse sagas maçantes ou procedimentos burocráticos, ele sempre o faz de forma elegante e exagerada, eloquente e exaustiva – às vezes de todas estas formas. Em seu segundo romance, David Foster Wallace exibe uma maestria típica dos grandes nomes da literatura pós-moderna norte-americana, encarnando, no papel, a “literatura da exaustão” do manifesto de Barth.
E entre relatos intermináveis e narradores implacáveis, acompanhamos Hal e Don em busca do tal filme mortal, cada um com suas próprias motivações, enquanto seguimos o grupo terrorista separatista de Quebec Les Assassins des Fauteuils Rollents, cujos integrantes sem pernas querem usar Graça Infinita como arma. Entre estes personagens há centenas de outros, desde a família Incandenza aos alunos da Academia de Tênis, passando pelos pacientes da Casa Ennet – todos falando sem parar sobre todo tipo de assunto.
O sentimento de desamparo e solidão da leitura interminável ao ser contraposto à avalanche de descrições detalhadas, teses fundamentadas e muito material técnico transforma o próprio livro numa provocação em si mesmo e fica evidente o metadesafio encarado pelo autor. Ao contrário do filme que o batiza, Graça Infinita não induz o leitor à catatonia passiva – é uma missão a ser cumprida, uma aventura racional (até demais) num bizarro mundo de letras. “Queria fazer um livro triste”, disse o autor em entrevistas dadas à época do lançamento, frisando que era a tristeza que afluía quando não se há mais motivo para buscar-se a felicidade, a principal motivação dos cidadãos norte-americanos.
O grande rei pálido
Como o criador de Graça Infinita, o filme, o autor de Graça Infinita, o livro, também deu fim à sua própria vida. David Foster Wallace havia parado de tomar as medicações para depressão e já havia tentado o suicídio no início de 2008, mas no dia 12 de setembro daquele ano, foi para a garagem de sua casa, em Claremont, na Califórnia, escreveu uma carta de duas páginas, deixou arrumado o manuscrito de seu livro mais recente, o inacabado The Pale King, amarrou seus braços e se enforcou. Tinha 46 anos e sua morte consagrava de vez um dos principais novos nomes da literatura norte-americana da virada do século.
Graça Infinita foi seu maior feito artístico, mas estava longe de ser o único. Além do livro com mais de mil páginas, ele escreveu apenas outros dois romances, The Broom in the System (que o lançou em 1987) e o póstumo The Pale King, que concorreu ao Pulitzer do ano em que foi lançado, 2011. Além destes três livros, ainda lançou três coletâneas de contos: Girl with Curious Hair (1989), Brief Interviews with Hideous Men (1999) e Oblivion: Stories (2004).
Sua figura caricata e sempre usando uma enorme bandana na cabeça contrastava com a personalidade tímida e quieta que mal sabia se comportar em entrevistas. Rato de biblioteca, Wallace foi criado por pais acadêmicos, além de ter sua vida na universidade, inclusive como professor.
Contratado como escritor freelance, David Foster Wallace publicou nos principais veículos dos EUA textos sobre todo tipo de assunto: a indústria de efeitos especiais para o cinema, o atentado do 11 de setembro, um festival de lagostas no Maine e muito tênis. Seu artigo sobre o tenista Roger Federer para o New York Times em 2006 (“Roger Federer as a Religious Experience”) é um dos grandes textos deste século.
Conversei com a Tiê no ano passado sobre seu disco mais pop, Esmeraldas, lançado no fim de 2014, e o papo rendeu assunto pra minha coluna Tudo Tanto na revista Caros Amigos de janeiro.
Nada é por acaso
Tiê lança seu disco mais pop com uma ajuda de Adriano Cintra, Jesse Harris e David Byrne
Levou um tempo para o terceiro disco de Tiê sair. “Três anos e meio, não parece muito, mas é sim muita coisa!”, desabafa. Ela está sentada de cabelo preso à minha frente, na antessala da edícula de seu escritório, na Vila Romana, em São Paulo, e fala sem parar sobre o disco que acaba de lançar. De vez em quando uma cachorra preta vem nos visitar, mostrando a bolinha com a qual quer brincar, e a cantora aproveita esses momentos para pausar a enxurrada de sentimentos que transforma em palavras ao contar como que seu Esmeraldas, lançado no fim de 2014, finalmente veio existir.
“O meu primeiro disco (Sweet Jardim, de 2009) é muita cara de pau: eu não canto direito, não falo direito, não falo nada de importante, é muito preto e branco”, ela deságua o próprio processo criativo como se estivesse se descarregando de forma terapêutica. “Eu paguei esse disco cantando em evento, em feira têxtil”, brinca. “E ele praticamente se juntou com o segundo (A Coruja e o Coração, de 2011), que eu gravei quando tinha acabado de parir, estava em turnê e não vi muito acontecer. Talvez ele seja um disco despretensioso demais, eu fiz achando tudo lindo, sem pressão nenhuma.”
A clássica crise do segundo álbum, portanto, só veio acontecer com ela neste terceiro. Ela travou criativamente ao começar a pensar num terceiro disco e, quando foi cobrada pela gravadora por um novo lançamento, cogitou um álbum de versões de músicas alheias. “Mas por contrato eu deveria fazer um disco de inéditas”, explica, lembrando como sua vida começou a se tornar agitada a partir de 2012. Foi a partir dessa época em que ela abriu sua produtora Rosa Flamingo, que começou a fazer shows na própria casa (batizados de Na Cozinha ou no Jardim) e a produzir noites de microfone aberto para quem quisesse declamar poesia ou cantar suas canções num evento promovido por ela – “muitos fãs me mandam suas músicas, resolvi chamá-los pra cantar”.
“Mil ideias, mil coisas rolando, eu já tava com outra filha e eu tava em crise e sem saber do que falar”, Tiê prossegue contando sobre o turbilhão emocional que misturava trabalho, família e amigos que precedeu o novo disco. “Eu não aguentava falar de amor – eu amo minhas filhas, amo meu marido, mas não queria mais falar de amor. Eu vou falar de cocô e fralda? É o que eu vivo: eu troco oito fraldas por dia.” Foi preciso sair de São Paulo para se encontrar. “Aí eu fui pra Minas no fim do ano do ano passado e o disco veio: ‘blam’, como um escorregão. Eu tava lá, cansada, tomando calmante natural e fiz ‘Mínimo Maravilhoso’, que é a mais rockinha do disco e é uma música autobiográfica, que representava exatamente o que eu tava passando. E de repente, tudo fez sentido.”
Esmeraldas foi assim batizado em homenagem à cidade mineira onde ficava o sítio que trouxe a revelação para a cantora – “depois eu fui descobrir que foi onde o goleiro Bruno enterrou a ex-namorada dele, mas até aí, já era”, desconversa. E foi um disco que nasceu pop. No entender da gravadora Warner, aquilo queria dizer gravar em Nova York com o músico e produtor Jesse Harris, o mesmo que deu o hit “Don’t Know Why” para Norah Jones. Mas Tiê tinha outra ideia quando pensou em pop: “Vocês querem pop? Então vou te dar o cara pop”, brincou.
E chamou o produtor Adriano Cintra para ajudá-la no disco. Adriano é velho conhecido no underground paulistano e, além de passar por bandas como Ultrasom, Caxabaxa e Thee Butchers’ Orchestra, foi o mentor do hype indie brasileiro Cansei de Ser Sexy, que conseguiu sucesso nos Estados Unidos e Europa, lançando discos pela Sub Pop e tocando nos principais festivais do mundo. Adriano deixou a banda em novembro de 2011 e passou a investir na carreira de produtor, trabalhando com nomes tão diferentes quanto Marina Lima, Jota Quest e Marcelo Jeneci, além de produzir seus próprios trabalhos (como o primeiro disco solo, lançado em 2014 pela gravadora Deck).
A intenção não era fazer um disco para o mercado internacional ou para atingir milhões de pessoas, mas Tiê sabe da importância de crescer em tamanho. “Não quero fazer 25 shows por mês, mas sei como é bom ter uma música na novela”, explica, reforçando que faz música para falar com muita gente. “Não quero ser indie!”, renega.
Adriano e Tiê fizeram a pré-produção do disco no Brasil, com Adriano gravando quase todos os instrumentos. “Fomos com tudo mais ou menos pré-definido e gravado: baixo, guitarra, teclados, algumas coisas de programação e bateria! É um disco que tem bateria! No meu primeiro disco não tem, no segundo tem umas vassourinhas e só e agora sim tem bateria no terceiro!” Chegando em Nova York foi a vez de Jesse Harris passar seu verniz no material. “E o Adriano deixou o Jesse brilhar e ele deu várias sugestões incríveis, mais rebuscadas, porque ele é mais chique, mais jazz. Foi uma coprodução que deu supercerto.”
Esmeraldas é realmente o disco mais pop de Tiê – e talvez seja o salto mais ousado para longe da MPB que a safra Tulipa, Marcelo Jeneci e Céu tenha dado, e sendo justamente dado por uma cantora que começou quase convencional, gravando canções intuitivas sem nenhuma técnica e apenas feeling. O resultado final é um disco que poderia ser lançado no início dos anos 80 e não faria feio ao lado de discos da Gang 90, do Metrô e de Ritchie – mas sem perder uma aura suntuosa que acompanha a presença vocal de Tiê.
A cereja do disco é a participação de David Byrne na bilíngue “All Around You”, uma marcha-reggae paranoica sobre vigilância digital. “Eu consegui marcar um almoço com ele e quando você fala ‘marquei um almoço com o David Byrne’, não importa pra quem você fale isso, a reação é sempre uma risada”, lembra brincando, “mas eu lembro que quando ele veio para o Brasil lançar um disco, não lembro qual, eu vi ele no Studio SP (antiga casa de shows de São Paulo), sozinho, de chapeuzinho, assistindo uma banda ‘xis’, mas super interessado, meia-noite, na Augusta, perdido.”
“Então eu marquei um almoço com ele, num diner do Brooklyn, bem na época em que eu estava na crise criativa e, depois de quebrado o gelo, eu falei isso pra ele: eu estou numa crise, preciso me inspirar, preciso que você me diga alguma coisa, me mande ver um filme, ler um livro, qualquer coisa”, lembra a cantora, desabafando. “Só o almoço já foi inspirador, ver ele indo embora de bike também, mas depois de uns dias ele me mandou duas músicas, uma chamada ‘Afoxé’ – que só de eu ler o nome ‘afoxé’ eu não sabia se abria ou não, de tão nervosa – e essa outra que já vinha no título “The Government is All Around You”, gravada só ao violão, no celular, sem letra, só umas frases soltas…”
A música passou por alguns ajustes (tanto em São Paulo quanto em Nova York), ganhou uma nova parte e não contaria com a participação do próprio Byrne, mas ao gravar em Nova York, Tiê aproveitou a oportunidade pra ver se o ex-Talking Heads não topava cantar no disco. Byrne assistiu à gravação e, dias depois, quando o disco já estava sendo finalizado em São Paulo, ele enviou os vocais e Tiê pode ter David Byrne participando de seu disco mais pop. Nada é por acaso.
Neste dia 14 de fevereiro o YouTube completou sua primeira década de existência e eu escrevi uma linha do tempo ressaltando os grandes momentos na história do site e seu impacto em nosso dia a dia pra Ilustrada deste sábado.
Aperte o play
Maior arquivo de vídeos do mundo completa dez anos hoje; lembramos de alguns feitos do YouTube que mudaram nossa relação com a cultura
No começo era só um site em que qualquer um podia subir seu vídeo. Três ex-funcionários do serviço de transferência digital de dinheiro PayPal apostaram no formato que permitia ao usuário divulgar conteúdo sem intermediários, num tempo em que o vídeo on-line era uma lentidão cheia de engasgos.
Quando, no dia 14 de fevereiro de 2005, Chad Hurley, Steve Chen e Jawed Karim ativaram o domínio YouTube.com, eles não podiam imaginar que no final do ano seguinte estariam sendo comprados pelo Google por US$ 1,65 bilhão e teriam sua criação na capa da revista “Time”.
O fato é que o YouTube mudou completamente a nossa relação com a internet graças à popularização da comunicação em vídeo. Se antes ela era oligopólio de poucos grupos de comunicação, emissoras de TV, produtoras de conteúdo e estúdios de cinema, a partir da explosão do site o mundo redefiniu o modo como consome e produz vídeos.
Virais intencionais ou não, trailers e músicas que estreiam longe dos cinemas, das TVs ou das lojas de disco, anúncios políticos, diferentes formas de se contar uma história, protestos, esquetes de humor: o YouTube tornou-se um dos canais mais assistidos do mundo todo, nos acostumou a consumir conteúdo via streaming em vez de download e mudou completamente o planeta nos últimos dez anos.
Diga adeus ao Rapidshare. O site que acompanhou boa parte de seus downloads nos últimos dez anos vai fechar suas portas ao final do mês que vem. Vi na BBC a nota que eles mandaram para seus usuários, anunciando a falência do serviço e avisando para quem tiver arquivos lá online para retirá-los antes do dia 31 de março.
Não sei se foi o primeiro, mas certamente o Rapidshare foi o primeiro host remoto gratuito a se popularizar quando as batalhas do P2P ainda eram travadas na década passada. Com processos legais fechando os clones e filhotes do Napster, uma das alternativas encontradas pelos ouvintes para disponibilizar músicas de graça uns pros outros foi esse tipo de site, que permitia o upload de pastas inteiras na web (anos antes de se referirem a esse tipo de serviço como “hospedagem na nuvem”) e só cobrava cliques e tempo de espera para os clientes que não quisessem pagar pela versão premium, que eliminava etapas, banners e minutos de download. Graças a sites dessa natureza que nasceram os blogs de MP3 – não apenas os que traziam as últimas músicas, remixes ou vazamentos de artistas que ainda não tinham lançado suas obras mas também aqueles dedicados a resgatar pérolas do passado, discos de acetato ou vinil e fitas cassete que ganhavam poeira na coleção de seus donos e não eram ouvidos por outras pessoas há eras.
Depois do Rapidshare, hospedado na Suíça, vieram o Megaupload (que depois virou Mega e deu origem a uma saga policial narrada na Nova Zelândia que ainda em andamento) e muitos outros clones (muitos deles ainda na ativa), que aos poucos foram caindo em desuso devido à ascensão dos torrents (e do PirateBay) e de um novo tipo de armazenamento online (impulsionado primeiramente pelo Dropbox e depois assimilado por todas as grandes empresas de tecnologia em sites como Google Drive e iCloud).
E pode ir se acostumando a esse tipo de notícia: fechamento de serviços que armazenavam conteúdo digital de toda espécie vão se tornar uma rotina cada vez mais constante (e, depois disso, veremos o fim de aplicativos que hoje reinam – é claro que outros sobreviverão). Porque, aos poucos, o cenário digital exige mudanças.
Escrevi a matéria de capa da Ilustrada dessa quinta-feira, comparando as versões norte-americana e brasileira da biografia sobre Mick Jagger escrita por Christopher Andersen – e os detalhes que separam as duas edições têm a ver com o envolvimento do vocalista dos Stones com a brasileira Luciana Gimenez.
“Você nem sempre consegue o que quer, mas, se tentar, às vezes, consegue o que precisa”
Biografia não autorizada de Mick Jagger é adulterada na edição brasileira para minimizar problemas com Luciana Gimenez
Uma das pessoas mais conhecidas do planeta, dono de centenas de milhões de dólares, autor de uma obra que reúne álbuns clássicos, dezenas de hinos para diferentes gerações e um dos líderes das transformações sociais da segunda metade do século 20.
A biografia de Mick Jagger é naturalmente carregada de superlativos, intercalando a obsessão pela própria imagem com um número inacreditável de conquistas sexuais, entre celebridades e anônimos.
Mas a edição brasileira de “Mick – A Vida Louca e Selvagem de Jagger” (Objetiva), escrito pelo norte-americano Christopher Andersen, traz uma quase bucólica “nota do editor” ao final de suas páginas que altera alguns detalhes da versão original.
As mudanças, no entanto, pouco têm a ver com surubas, viagens alucinógenas ou rituais satânicos que surgem pelas páginas do livro. Todas estão especificamente relacionadas ao relacionamento do vocalista dos Rolling Stones com a apresentadora brasileira Luciana Gimenez, com quem o vocalista tem um filho, Lucas, hoje com 15 anos.
São detalhes. Em alguns trechos da edição original o autor insistia na dúvida que Luciana teria engravidado de propósito, parando de tomar anticoncepcionais sem avisar Mick Jagger –trechos omitidos na edição brasileira. A passagem que diz que Luciana conheceu Mick em uma festa numa mansão omite na versão brasileira que os dois teriam feito sexo no canil da casa.
E a mãe de Luciana, Vera Gimenez, que atuou em filmes como “Nós, os Canalhas” (1975), “Já Não se Faz Amor Como Antigamente” (1976), “As Safadas” (1982) e “Oh! Rebuceteio” (1984), é descrita como atriz, sem o adjetivo “soft porn” (pornochanchadas) que aparece na edição original.
CLAREZA
“Nenhuma mudança foi exigida por terceiros”, diz, agora, o autor da biografia à Folha. “Três das mudanças foram feitas por mim e três, a pedido da editora”.
A editora Objetiva, em nota através de sua assessoria de imprensa, reforça que “todas as alterações foram aprovadas previamente por Christopher Andersen –e só por ele”, comunicou.”Estas alterações não resultaram na retirada de informações, mas na clareza e rigor jornalístico.”
Entretanto, em entrevista ao jornal “O Globo”, em novembro de 2014, o biógrafo se mostrava indignado:
“Fiquei chocado ao saber que o Brasil proíbe biografias não autorizadas. Como o país pode ser uma sociedade livre sem saber a verdade sobre suas figuras públicas? Depois de 45 anos de carreira e 33 livros, aprendi que a maioria das celebridades mentiu por tanto tempo sobre a própria vida que esqueceu o que é real. Em nenhuma edição estrangeira de meus livros tive trechos suprimidos. A verdade é a verdade. Censura é censura. Qual é o próximo passo, fogueiras de livros? Essas celebridades que defendem causas liberais e depois tentam controlar tudo o que é escrito sobre elas são hipócritas. Cada sílaba da biografia é real.”
Procurada pela reportagem, Luciana Gimenez negou envolvimento na edição. Disse não ser “a favor de censura, mas tampouco sou conivente com a publicação de mentiras”, informou, por meio de sua assessoria de imprensa.
“Que Mick e eu tivemos uma relação; que essa relação foi e continua sendo a melhor possível; que o fruto dela foi nosso filho Lucas, hoje com 15 anos; isso tudo é verdade. Qualquer mentira, difamação ou distorção da verdade, seremos sempre contra”, finalizou.
TABLOIDE
O livro segue o tom de tabloide e a tradição de biografias não autorizadas que nunca seriam publicadas no Brasil, como o de outras obras de seu autor: Michael Jackson, Madonna, casais presidenciais e reais, além da princesa Diana, quase todos presentes na lista de best-sellers do jornal “The New York Times”.
A imagem que o livro passa do vocalista dos Stones não abala sua reputação, apenas a reforça. Mostra o quanto ele é obcecado por controle, destratando todos ao seu redor –apenas para criar um vínculo doentio com seu eterno parceiro Keith Richards.
E, claro, há um desfile de conquistas sexuais para todos os gostos: de David Bowie a Angelina Jolie, passando por Carla Bruni e os próprios stones Brian Jones e Keith Richards. “Acho que ele é como um vampiro sexual”, explica, em dado momento, a sexoterapeuta que Jagger procurou para tratar sua compulsão por sexo.
“Estar com todas essas pessoas faz com que se sinta jovem e fornece toda essa energia”. Mas, como ninguém é de ferro, a própria terapeuta confessou ter ido pra cama com Jagger.
Ainda dentro do especial que fiz pro UOL sobre os 30 anos de axé music, entrevistei Daniela Mercury por mais de uma hora, uma verdadeira aula sobre música baiana, em vídeo e texto.
“Achavam que era arrogante”, lembra Daniela Mercury sobre “Canto da Cidade”
“Rapaz, eu sou uma enciclopédia!”, adianta Daniela Mercury ao receber o UOL em sua casa, em um condomínio de luxo no bairro do Piatã, em Salvador, para falar sobre os 30 anos do axé music. E, pelo decorrer da entrevista, a constatação se confirma – e em velocidade frenética.
Em pouco mais de uma hora de conversa, a cantora-símbolo do gênero trintão revive os carnavais do início de sua carreira, conta como foi que assistiu ao surgimento da axé music nos anos 80 e como assumiu o trono de rainha do axé na década seguinte, sempre despejando causos, situações e impressões com o mesmo vigor e disposição que se movimenta nos palcos. “São mais de 30 anos, mais de 2.500 apresentações ao longo desses anos no palco, não é pouca coisa. 30 e poucos anos de carnaval”, gaba-se.
Confira a seguir os principais trechos da conversa:
Antes do axé
“Na época só existia o trio elétrico, ainda sem corda, não existia essa estrutura. O axé nasce junto com todos esses blocos. Antes era uma coisa de ir pra rua com os amigos. Eu inclusive saí no primeiro ano no [bloco] Eva como foliã. Todos meus amigos eram do Eva. Outros saíam com [o bloco] Internacionais, que eu também puxei em alguns anos. Outros saíam com o Pinel. O Ricardo Chaves e o Durval [Lélys, do Asa de Águia] eram da banda Pinel. Era todo mundo menino, de escola, começando a fazer música e os amigos chamavam pra gente cantar em cima dos trios. Eu cantei no primeiro trio em 81, quando Toni Duarte, irmão caçula de Gerônimo [compositor do hit do axé “Eu Sou Negão”], me viu cantando no bar e estava precisando de uma cantora. Eu nem sabia quem era Gerônimo… Nem profissional era, e lá fui pra cima do trio, entendeu? Pintava assim. Aí depois, aos pouquinhos, foi crescendo…”
O primeiro trio elétrico
“Na época quem cantava era a guitarra: “Vassourinha”, “Pombo Correio”, os galopes de São João de Amelinha e uns frevos que já eram mais conhecidos nacionalmente, como “Festa no Interior”, “O Balancê”. Basicamente, isso era meu primeiro repertório com 12 músicas, em 1982, num trio pequenininho. A tecnologia era muito ruim. O trio não tinha retorno, não tinha som, era uma coisa bem armengada, como a gente diz aqui na Bahia. Não existia teclado. O trio era basicamente uma guitarra baiana, uma guitarra elétrica, um baixo, uma bateria e às vezes um surdo. Até hoje não sei pra que tinha aquele surdo, porque naquela época não tinha samba-reggae e a música dos blocos afros não era muito tocada. E tudo foi começando a melhorar, a gente foi construindo o gênero, a música. Nos trios grandes só cantavam homens. Eu sou a primeira artista a puxar um trio elétrico de bloco importante da cidade.”
A miscelânea
“Somos muito urbanos. Salvador é a cidade do Cinema Novo, a cidade tropicalista, da bossa nova, de Raul Seixas. Então é óbvio que estava tudo ali, na cabeça, todas as influências ao mesmo tempo. O próprio rock crescia junto com o axé. Luiz Caldas fez sucesso ao mesmo tempo em que Lulu Santos, Legião Urbana, Paralamas… Essas misturas, fusões, estavam acontecendo e a gente trazia pra cima do trio, porque não tinha ainda um repertório grande. Foi essa miscelânea que virou o axé, que tem influência do galope de São João, que o Chiclete com Banana toma pra si como a base do seu trabalho. O Asa de Águia é um pouco de Supertramp, com aquelas coisas dos anos 80 junto com um rock mais de surfista. O Luiz Caldas, um super músico que veio do interior com a bagagem de frevo, de música internacional… Tudo que aparecia de interessante a gente ia misturando no caldo.”
“O reggae apareceu nos anos 80, foi pro caldo. O rock – eu canto tudo de rock. Armandinho é cantor de heavy metal, cara! Ele com a guitarra baiana já é heavy metal. O frevo pernambucano vem pra cá como era, com orquestra, com banda, sopro, como a rumba, o merengue, como a salsa, com várias influências daquela época e até antes, como o maxixe dos anos 20, como as marchinhas de Chiquinha Gonzaga, como o samba de Carmem Miranda, Assis Valente, Dorival Caymmi, Batatinha e Novos Baianos e Caetano e Gil e todo mundo. Vai ficando essa salada musical, cada um vai trazendo influências.”
O começo da axé music
“Aí nasce “Axé pra Lua”, do Luiz Caldas, acho que em 84, porque em 85 ele já estourava com o “Fricote”, e ele faz a síntese dele de um novo tipo de música que estava surgindo, que a gente chamava de ti-ti-ti, deboche, fricote. Eu estava preparando meu primeiro disco com uma banda, fiz minha própria banda pra começar uma pesquisa musical que me levasse a algum lugar novo da MPB. Nessa época eu fui convidada pra ser solista de uma gravadora da cidade chamada Novo Som, da WR, de Wesley Rangel, que até hoje é o estúdio mais importante da cidade. Resolvi fazer um grupo banda depois de assinar o primeiro contrato solo com ele. Disse: ‘Quero fazer um grupo’. E ele ‘Mas a gente não quer um grupo’. E eu ‘Então rasgue o contrato’.
Depois de “Fricote”
“As gravadoras começaram a vir à Bahia pra procurar novos intérpretes e a CBS, que depois virou Sony Music, veio tentar conversar comigo, porque eu já era da Banda Eva e tinha um destaque. Eles queriam que eu fizesse solo e eu disse que eles iam dizer o que eu tinha que cantar, não ia dar certo. Disse não pra CBS. Disse não pra Warner. Só a Eldorado topou meu plano, então lancei meu primeiro disco de banda [“Companhia Clic”] por uma gravadora de jazz de São Paulo, junto com Zelia Duncan e Sepultura. Então começa minha vida de gravações. Mas esse período na Banda Eva, fazendo barzinho, cantando, dançando, fazendo universidade de dança, dando aulas de dança, tendo filhos – que eu tive filhos em 85 e 86, muito novinha – tudo isso me fez tomar uma responsabilidade muito rapidamente, trabalhar muito desde menina e me ver muito seriamente no palco.”
Olodum, “Faraó” e samba-reggae
“Aí chega 87 e acontece um fenômeno extraordinário. A gente estava descendo pelo [Largo do] São Bento, eu vinha com a Banda Eva, no Carnaval de 87, quando um amigo cantor chamado Marcio Muller me perguntou, na hora em que a gente chegou na praça Castro Alves: ‘Daniela, você já ouviu ‘Faraó’?’ E eu disse ‘Não, meu filho’. ‘Pois é, o povo só está cantando na rua, espera aí que você vai ver’. E cantou: ‘E eu falei Faraó-ó-ó’, só com a voz. E o o povo todo, solenemente, respondeu ‘Êêêêê, Faraó’. Eu falei ‘O que é isso?’. E ele explicou que era um tal Bloco Olodum, um bloco novo, afro, da turma lá do Pelourinho. Me arrepio só de lembrar.”
“Naquela época era a micareta de Feira de Santana, a mais antiga do Brasil, com 70 anos, que legitimava as músicas de sucesso do Carnaval: não tinha prêmio, não tinha nada disso. não era um Carnaval midiático, era o carnaval da cidade. E em Feira “Faraó” foi tocada por todas as bandas – eu nunca vi, 20 trios elétricos, todo mundo cantava a mesma música ao mesmo tempo. E ‘Faraó’ é um pergaminho, né? ‘Deus divindade infinita do universo…’,, ele abriu a enciclopédia e fez uma canção, uma coisa completamente pós-moderna, inusitada, mas todo mundo decorou.”
“E “Faraó” faz um fenômeno extraordinário: faz os pretos entrarem pela porta da frente dos clubes ricos da cidade, faz o Pelourinho se aproximar da Barra, e faz um outro fenômeno: a percussão subir para o trio elétrico. Antes havia música de branco e música de preto. Música de bloco afro e música de trio elétrico. E especialmente a partir de 87 essa divisão começa a deixar de existir.”
Que música é essa?
“Nisso tudo o gênero não tinha nome. Um jornalista daqui deu esse nome [axé music] pra Luiz (Caldas), tentando desmerecer o trabalho dele, que era era todo alternativo, a própria antropofagia, descalço, o próprio índio, maravilhoso, extraordinário, mas o povo metido a besta aqui não entendia e chamou de axé music.”
A deixa do samba-reggae
“Foi o que me interessou, porque eu sou do samba-jazz, sou cria de Elis, de João Bosco, Tom Jobim, Vinicius de Morais com Baden Powell, e eu não queria ser intérprete de Carnaval. Eu ainda não tinha me encontrado ali, não queria fazer uma carreira. Eu estava experimentando, aprendendo a cantar, a lidar com o público. Até que surgiu o samba-reggae, que no começo virou moda, todo mundo fazia. E eu resolvi esperar. Porque moda na Bahia passa em dois anos, todo mundo faz, depois todo mundo para de fazer. Dito e feito. Veio a primeira leva de samba-reggae, seguiu o sucesso de Luiz Caldas e Sarajane e foi um fenômeno enorme, uma explosão rápida no Brasil. Mas aí começou a lambada, outro fenômeno, internacional, e esqueceram o samba-reggae. Pensei ‘largaram pra mim’.”
“Saí da banda que eu mesma fiz [Companhia Clic], que tinha ficado muito machista, e fui procurar minha carreira solo com o samba-reggae, testando o repertório em shows. Chamei o Olodum ao estúdio pra gravar o grande sucesso do Muzenza, que já era famosa antes de eu gravar: “Swing da Cor”, (cantarola) ‘Não, não me abandone…”, que é a música que me coloca no mundo. Gravei o meu primeiro disco solo, “Swing da Cor”, com a gravadora Eldorado, que era para ser o meu terceiro disco com a banda. Mas eu saí da banda, em carreira solo e lá fui eu pra São Paulo…”
Trio elétrico anfiteatro
‘E o trio elétrico foi esse anfiteatro, esse espaço extraordinário e criativo e que já nos obrigou a ser profissionais Porque você não pode dominar a multidão sem muita coragem. Outra coisa que o trio elétrico me deu: uma enorme diversidade musical, porque eu tive que aprender a cantar muitas coisas, com banda, reggae, rock, xote, xaxado, baião, tudo que eu pudesse não ter feito em barzinho, que era mais voz e violão, eu acabei fazendo no trio. ”
O mais belo dos belos
“Eu, como bailarina, dançava afro desde pequenininha e conhecia todas as danças de santo, cantava em iorubá e me tornei a branquinha mais neguinha da Bahia, porque em 89 fui cantar no Ilê. O presidente da Eldorado disse ‘Venha cá ver o lançamento do disco do Ilê’, em 89. Lá fui eu pro Curuzu pela primeira vez. Não era fácil entrar lá sem ser convidada. Ele pediu pra que eu cantasse com o Ilê. E o Vovô do Ilê: ‘Será que ela faz? Nunca vi branca nenhuma fazer isso. Olhe, que você vai botar ela nessa confusão… Mas se você está pedindo eu deixo.’ E eu também não sabia se ia fazer aquilo direito. Cheguei lá, cantei com o Ilê. Aí Vovô, presidente do Ilê, chegou no dia seguinte no escritório que a gente tinha e disse ‘a negrada gostou da branquinha, a gente queria que ela cantasse na Festa da Beleza Negra’. Aí lá fui eu cantar na Festa da Beleza Negra e a negrada lá ficou me olhando: ‘Que é essa branca aí? Quem é essa mulher?’ Mas eu fui, cantei em iorubá, comecei a dançar afro e pedi ‘Sou bailarina, cantem comigo, por favor’. E eles abriram o coração. Sou a única branca que cantou com o Ilê nesses 40 anos. Eu sou da família.”
Parou a Paulista
“Lembro que chegava nas rádios em São Paulo pedindo: ‘Por favor, toque isso aqui’ e eles diziam ‘mas como é que eu vou botar essa batucada toda aqui? Que maluquice! Aqui só toca música estrangeira aqui, só toca balada, só música sertaneja, de amor, música romântica, Roberto Carlos… Não tem a menor condição tocar isso, ô menina’ . E continuava fazendo show pequeno. Aí a Secretaria de Cultura disse que tinha shows pra artista iniciante. Lá fui eu, né? Chego no outro dia, meio-dia, morrendo de sono, perguntando por que que eu resolvi fazer show aqui nesse lugar, debaixo do Museu de Arte de São Paulo.. Quando eu chego lá, já tinham umas 3.000 pessoas sentadas. E eu pensei ‘Puxa, o público daqui é muito educado, as pessoas vão ver artistas novos…’ E quando eu começo a cantar, as pessoas começam a cantar comigo. Eu não tô entendendo o que que tá acontecendo, aquele povo no meio-dia… Eu pensei que o povo ia passar com o sanduíche na boca, me dar um tchauzinho… Mas nada, o povo dançando, se acabando. Foi o máximo!”
“Quando eu vi a foto no outro dia… Tava assim, arrodeado, como diz o baiano, em volta do Masp. Uma multidão… . Tinha muito mais do que 20 mil pessoas. A gente parou a Paulista num segundo, o Masp já estava sacudindo, as pessoas desciam dos ônibus dançando, um pandemônio, todo mundo numa felicidade. Aí eu fiquei toda empolgada, mas alguém da Secretaria de Cultura me tirou pelo braço e me disse ‘Para, mocinha, você está sacudindo os Portinari. As Bailarinas de Degas estão todas dançando. Para, para tudo’. Esse boom me dá capas de jornal e eu viro ‘a baiana que parou São Paulo’.”
Autonomia
“Depois disso veio todo mundo – e foi ótimo. Porque depois desse poder, eu pude fazer contratos ótimos. Nunca fiquei refém de gravadora, sempre decidi o que fazer, sempre tive autonomia. Foi muito bom não ter assinado antes. Tive minha independência e minha liberdade mantidas. E isso foi muito importante pra eu ter conseguido fazer o que eu fiz. Como colocar o Olodum cantando e tocando pela primeira vez em estúdio pra gravar ‘Swing da Cor’ no estúdio. E consigo fincar bandeira na música popular brasileira e determinar que existia um gênero a partir dali. E aí o jornal ‘O Globo’ diz ‘a rainha do axé’. Porque perguntavam ‘O que é que você faz?’. Eu dizia “Eu faço música percussiva brasileira”, porque eu não queria me rotular de gênero algum. ‘Eu faço MPB percussiva.’ Até hoje estou repetindo isso. Mas fiquei muito honrada em ser a rainha do axé e ter sido precursora de um novo gênero.”
“O Canto da Cidade”
“Lembro que a gravadora não queria sair com ‘O Canto da Cidade’. A Sony odiou o disco. Achava que ‘O Canto da Cidade’ era uma música que era arrogante. E eu dizia que não era eu que estava dizendo aquilo, era o povo mesmo, que cantava ‘a cor dessa cidade sou eu, o canto dessa cidade é meu’. Eu era porta-voz desse discurso afirmativo da negritude. Eles não entendiam nada. Eu me lembro que Liminha, que é um super produtor maravilhoso, foi dos Mutantes, fez vários discos com Gil e Caetano etc., quando foi gravar ‘O Canto da Cidade’, ele disse: ‘Não tô entendendo isso aqui’. Eu me lembro de Herbert Vianna me perguntando ‘Que ritmo é esse?’ Aquele bumbo reto. Os jornalistas me perguntavam se eu sentia preconceito e eu respondia que a pessoa não sabe nem o conceito do que eu tô fazendo como é que vai ter preconceito?”
Curadora de axé
“Depois do Masp eu fiz o Canecão, o Olympia e aquele especial na Globo que foi um presente de Roberto Talma, com o show na Apoteose. Eu pensei que quem ia fazer o show eram os Rolling Stones. Vi aquela multidão e perguntei quem é que ia fazer o show comigo. E no Rio foi a mesma coisa do Masp, só que no Rio as pessoas compraram ingressos. E eles cantavam todas as músicas, algumas minhas, outras músicas de outras bandas de Salvador. Eu acabei me tornando uma catalisadora do gênero… Uma curadora, né? Porque eu consegui trazer comigo o Ilê, o Olodum, Araketu, Cheiro de Amor, Banda Mel, Netinho, Asa, Chiclete. Não importava muito quem tinha chegado antes, quem chegado depois, somos a mesma geração.”
Pelo Brasil
“Sabe o que é chegar no Rio Grande do Sul com aquelas negras cantando “não me pegue não”, “vou atrás do Ilê”? E o povo, na Festa do Morango, olhando pra minha cara, parecia que eu estava dentro na Itália. Acho que nem na Itália a estranheza foi tão grande. O Brasil é espetacular. Como foi bonito quebrar essas fronteiras sem nem saber. Porque acho que a gente nem sabia que podia existir… Limites culturais, né? E aí o povo do Rio Grande do Sul, do Paraná, de Santa Catarina, encantados todos. Todas aquelas feiras, do Doce, a Feira do Morango, interior de São Paulo, feiras de gado e eu cantando o samba-reggae do Olodum.”
Pelo mundo
“Depois do Masp eu tive coragem de ir pro mundo todo com meu próprio dinheiro, Eu queria ter a mesma experiência de ver a carreira florescendo do jeito que floresceu no Masp. E assim aconteceu em Portugal, na França, na Espanha, na Argentina. Uma loucura no Uruguai, no Paraguai, México, Estados Unidos, turnês maravilhosas. E eu lá sabia que a gente podia fazer isso? Fazer três datas em Montreux, sold out. E as pessoas queriam me ver e saber quem era aquela menina do Olodum, do Ilê, aquela menina baiana.”
Axé Brasil
“O axé é uma bandeira da música brasileira pro Brasil. O axé chega quando o Brasil deseja a si mesmo. E já não cabia mais ‘caminhando e cantando e seguindo a canção’ porque ninguém aguentava mais. Era ‘Brasil nunca mais’ mesmo. E aí acontece essa fatalidade do primeiro presidente eleito a gente tem que ir pra rua tirar o cara! Quer dizer, era uma contradição da democracia que acabara de chegar no Brasil. Mas a força pela liberdade era tão grande que a gente tinha coragem também de tirar já o primeiro presidente. Coincidentemente – ou não, porque eu acho que o mundo conspira e as coisas acabam se juntando – era eu quem estava ali, uma música brasileiríssima.”
O axé, o samba e o pagode
“Beth Carvalho me abraçou e disse ‘Você devolveu o samba aos pés do Brasil’. As minhas lágrimas desciam dos olhos, sabe por quê? Porque minhas colegas já não sabiam sambar. Minhas amigas que eram bailarinas não sabiam sambar! E eu adorava sambar desde pequenininha. Porque eu amo o samba, mas essas coisas a gente não força, né? Depois de tantos anos, vários sambas diferentes, logo em seguida o É o Tchan ocupa tudo com volúpia, com aquela coisa de muita televisão que descontextualiza a origem do Gera Samba, que é o próprio samba de roda, né? É mais sem vergonha como é a música folclórica da gente aqui, que pede pra botar a mão na cabeça e depois botar a mão no lê-lê-lê… Quem mandou o povo da África trazer esse lado safado da gente? Me lembro que alguns jornalistas perguntavam: “Você gosta do Tchan?” e eu dizia ‘Lógico que gosto. Eu fui criada com isso. Não me choca’. Cheguei em Angola e vi uma menina na praia e disse assim “Ô, sambe aí, cante uma música da cidade, daqui de Luanda”. E ela começou a fazer um samba e quando eu vi era o samba do É o Tchan. Quem veio de lá, quem veio de cá, quem é que influencia quem?”
O axé music e a cultura brasileira
“Eu vou fazer 50 anos, estourei no Brasil com 27, e estou cheia de gás, de assunto, de disco novo pra fazer. Tudo é culpa desse povo africanizado, abrasileirado, aportuguesado, que mistura tantas coisas, porque é o povo da comunicação, da beira do mar, que é o povo globalizado, desde o começo. Afinal de contas, os portugueses chegaram aqui e já começaram a globalização. A chita vem pra cá, a gente se enfeita cheio de flor que veio da Índia!”
“Eu digo que o axé é o sonho antropofágico de Oswald de Andrade, é o Abaporu de Tarsila, é o sonho de Caetano, é a alegria que Caetano queria na ditadura e não tinha. Então, realmente, é alegria, uma alegria que a gente nem tem, é uma alegria que a gente inventa, isso é muito legal. Mas a gente precisa inventá-la porque somos povos urbanos, que temos consciência da morte, do mundo. É difícil viver pra todos. É uma cidade onde temos poder aquisitivo baixo, onde temos muitas lutas de direitos humanos, mas a música nos salva, nos reforça, nos reitera, nos representa, nos aproxima, nos liberta.”
“E o Brasil, mais do que nunca, precisa de esperança pra se reinventar, pra “reacreditar” em si – se é que existe essa palavra – essa nação tupi-guarani, esse povo tropical solar, que não é igual a lugar nenhum nem precisa ser. Os moçambicanos disseram que quando viram os jogadores negros brasileiros jogar diziam que eram seus redentores. E lá se vão 30 anos que nos redimem! O axé arrebentou, ele traz pro Brasil uma coisa que ele havia perdido mesmo e diz assim ‘Esse lugar é teu, não é Mama África, não, é Mama Brasil, com a África toda dentro, com tudo que tá dentro, todos sons africanos’. Que coisa mais linda a gente ser negro! Que coisa mais linda a gente ter nossa fisionomia! Que lindo o cabelo duro! A gente tem que parar de querer ser europeu, querer ser norte-americano. A gente querer fazer desse lugar um país. Pra brasileiros. Pra que todo mundo queira vir. Já somos uma nação rica, só precisamos nos tratar como tal.”
E a última etapa do especial de 30 anos da axé music que fiz pro UOL foi uma reportagem sobre uma crise – financeira? artística? – que o gênero atravessa há um bom tempo: confirmada por observadores da cena e rejeitada por seus protagonistas:
Axé chega aos 30 anos em crise, mas protagonistas rebatem: “Que crise?”
O axé music chega aos 30 anos encarando uma crise artística e econômica. Ainda que negada por seus principais protagonistas, a situação se manifesta no esvaziamento dos trios -as multidões não vão mais a Salvador como iam durante os anos 90- e na percepção dos próprios produtores musicais de que a cidade não tem emplacado artistas com o mesmo impacto que antes.
A crise nem é assunto desta década e já era discutida há 15 anos, quando o jornal baiano “A Tarde” dedicou uma série de reportagens e artigos à crise do gênero entre abril e outubro do ano 2000. “Desde que inventaram o rótulo axé music para a nova música afro-baiana, a imprensa do Sul anuncia o ‘início do fim’ desse estilo de cantar e tocar”, escreveu o maestro Fred Dantas no primeiro texto dessa série.
“Eu escuto [falar em crise no axé] desde 93, porque achavam que eu era cantora de um verão só”, ironiza Daniela Mercury, em entrevista ao UOL em sua casa, em Salvador. “Crise? Que crise?”, perguntou-se Ivete Sangalo a um programa de TV local durante o Festival de Verão de Salvador, que aconteceu em janeiro. “Eu nunca acreditei em crise no axé music”, continua Bell Marques, ex-Chiclete com Banana. “Eu posso não ser o parâmetro, mas, desde 1986 para cá, a minha média de é de 130 shows por ano. Então eu não sei onde está essa crise.”
Com ou sem crise, o fato é que o Carnaval de Salvador de 2015 registra queda de 15% nas vendas dos abadás em relação ao mesmo período do ano anterior, o que um dos fundadores da Central do Carnaval da cidade afirmou no fim de 2014 ser reflexo da Copa e das eleições de 2014. Além disso, há uma invasão de trios elétricos liderados por não-baianos, especificamente de artistas do novo sertanejo, o gênero musical mais bem-sucedido hoje no Brasil.
Na tentativa de reanimar o gênero às vésperas de sua principal data, a própria Prefeitura de Salvador organizou um novo “We Are the World” de Carnaval para celebrar as três décadas do axé, por meio do clipe da música “Raiz de Todo Bem”, que reúne a nata do axé music, de Carlinhos Brown a Ivete Sangalo, passando por Cumpadi Washington, Daniela Mercury e Saulo Fernandes (mas sem Claudia Leitte e Bell Marques).
“A gente não sabe o que vai acontecer com essa manipulação comercial do Carnaval”, lamenta Armandinho, filho de Dodô, um dos criadores do primeiro trio elétrico. “O sucesso do Carnaval fica dependente do sucesso do momento, que hoje não é mais baiano. Os blocos afro ficam cada vez mais escondidos porque não são sucesso de mídia. Os verdadeiros artistas de Carnaval [ficam de] fora…”
Mercado predatório
Beto Barreto, guitarrista da banda BaianaSystem, uma das principais novidades da música baiana desta década, que resgata a guitarra baiana em novo contexto e que começou tocando na Timbalada, critica um comercial da Prefeitura de Salvador lançado nos últimos dias de 2014. “”Ele fala que ‘há 30 anos, a Bahia encontrou seu ritmo’, como se antes disso não tivesse nada, nem Caymmi, nem João Gilberto, nem Gil…”.
E continua: “Esse mercado criado ao redor da música baiana foi feito de forma muito predatória e não respeitava as nuances entre cada uma das diferentes tradições do Carnaval daqui. Ele tem méritos, claro: criou um mercado forte, que vende discos, mas, quando o mercado de discos quebra, isso cai em cascata, provando que não se sustenta artisticamente. Acho que tudo que tem essa conotação mais pop acaba entrando nessa máquina, que deixa tudo igual. Mas o próprio modelo do Carnaval contribuiu muito negativamente, e todo o mundo que produz música na Bahia que não é desse tipo sente esse preconceito que acabou se criando com qualquer música que é produzida aqui.”
A antropóloga Goli Guerreiro, autora do livro “A Trama dos Tambores – A Música Afro-Pop de Salvador” (Editora 34), acha que essa crise é sazonal, porque o axé music já se estabeleceu no mercado. “Quando eu lancei meu livro no ano 2000, eu já falava da crise violentíssima do axé music. É uma música, é uma marca da cidade e que passa por momentos bons e ruins, mas fico muito surpresa com o interesse que isso causa”, explica.
“Há tempos há uma crise no axé music”, crava o jornalista e radialista Luciano Mattos, produtor do programa Radioca, dedicado à música baiana. “Agora ela é sentida por uma questão econômica. Mas a crise artística e criativa existe faz muito tempo, pois não surge nada de relevante, e era inevitável ela bater com a crise econômica. Só que os artistas e produtores ou não percebiam ou não queriam perceber, achavam que daria pra continuar ganhando dinheiro como sempre se ganhou.”
Wesley Rangel, produtor que gravou todos os grandes nomes do axé music em seu estúdio WR em Salvador, concorda. “Os grandes produtores de shows da Bahia sempre frequentaram a noite para saber o que tinha de novidade. E apoiavam artistas que já tinham respaldo nos seus guetos. O verdadeiro artista, que não depende da mídia. Aconteceu que alguns produtores começaram a se arvorar de produtor musical, e os novos artistas que eles encontraram não tiveram a mesma força dos anteriores, porque artista é um diamante bruto e precisa ser lapidado. Isso está começando a ser repensado, não porque eles entenderam isso, mas porque sentiram isso economicamente”, conta Beto, do BaianaSystem.
“O problema é a repetição. Como você tem um repertório de 30 anos, é muito fácil pescar aquela música esquecida que foi um sucesso num determinado ano, mas isso é muito intuitivo. Essa profissionalização que o axé music conseguiu do ponto de vista do mercado não alcançou o processo da criação musical”, continua Goli. “E aí a gente fica nesse marasmo, nessa repetição, e é isso mesmo. O que mais me incomoda no axé music é essa repetição. O Carnaval da Barra virou um negócio chatíssimo: uma sequência de shows repetitivos com o mesmo repertório, as cantoras usando as mesmas roupas, às vezes dos mesmos estilistas…”
“O axé veio de uma coisa espontânea e popular e deixou de ser. Eles deixaram de tocar para o povão. Tinha show para 30 mil pessoas em Salvador há 15 anos. Há muito tempo não tem mais isso, tirando o Festival de Verão. E começaram a tocar, por exemplo, em Praia do Forte, cobrando ingresso a R$ 200 para 2.000 pessoas, numa coisa meio VIP. E abriu espaço para o pagode e o arrocha crescerem”, analisa Mattos.
O pagode, que deu a primeira sobrevida ao gênero no meio dos anos 90, com a geração surgida após o hit “Segura o Tchan”, seguiu sendo fonte dos hits do Carnaval baiano desde então (vide os sucessos “Vem Neném”, “Rebolation” e “Lepo Lepo”), mas, em paralelo, veio o arrocha, um gênero de música mais afetado e latinizado, de onde surge Pablo, agora contratado da gravadora Som Livre, que pode ser o grande sucesso do Carnaval baiano em 2015.
Encenação midiática
Mas enquanto se discute a crise no axé, Goli Guerreiro aponta para o Furdunço, uma iniciativa da prefeitura que, desde o Carnaval de 2014, reúne pequenos trios elétricos na região do Campo Grande e mistura gêneros musicais e diferentes tradições num mesmo espaço democrático, sem a corda que separa os foliões com abadás do público “pipoca”, que não paga para se divertir. “O Furdunço pode, sim, renovar o Carnaval. As pessoas se montam para acompanhar esse carnaval, com máscaras… Há um movimento paralelo à axé music que é muito mais potente e não está tendo a atenção necessária porque o axé music é uma encenação midiática.”
“Nenhum gênero musical vai mal. A crise pode ser de algum artista, de algum setor. O rock não está em crise porque Axl Rose vai mal. A música é sempre música”, pondera Luiz Caldas. E mesmo com essa crise, Armandinho é otimista: “A Bahia sempre dá um jeito.”
No final do ano passado, eu já vinha conversando com o Diego pra começar a colaborar com o UOL quando, na véspera da véspera do Natal, ele me ligou me convocando para uma missão: fazer uma matéria especial sobre os 30 anos da axé music. O desafio foi mais logístico do que propriamente conceitual – tinha que marcar entrevistas em vídeo em pouco tempo com grandes nomes da música baiana no mês que antecede o carnaval (com o agravante de ter as duas semanas entre o natal e o ano novo no meio). Pessoalmente, acompanhei a evolução do gênero bem de perto, pois Brasília – onde nasci – foi um dos primeiros lugares para onde Salvador exportava aquelas bandas e era inevitável saber todas as músicas e bandas dessa época. A parte logística foi resolvida com o auxílio da querida Carol Morena, que humilhou na produção, mais do que profissa.
A partir daí parti para uma imersão em um rótulo que descreve um gênero e um modus operandi e tenta se confundir com a magia do carnaval baiano, que mexeu com a indústria do entretenimento brasileiro e revelou a primeira safra de artistas que não eram do Rio ou de São Paulo e que não precisaram se mudar para estas cidades para manter seu sucesso nacional. Um gênero que cresceu junto com a world music e reinventou a identidade global brasileira. E rendeu uma hora de bate-papo no estúdio na casa de Luiz Caldas, outra hora e meia de conversa na varanda da casa de Daniela Mercury, uma visita ao WR Estúdio e uma hora de conversa com o dono do Abbey Road da axé music, Wesley Ranger, vinte minutos com Bell Marques antes de assistir a um show do ex-Chiclete com Banana e uma hora de conversa com Armandinho, filho de Osmar, um dos criadores do trio elétrico, além de discussões sobre política, estética e carnaval com o jornalista Luciano Mattos, a antropóloga Goli Guerreiro (autora do livro A Trama dos Tambores) e o guitarrista do BaianaSystem Beto Barreto – e incontáveis moquecas e passadas em pontos turísticos para fazer o cinegrafista Rodrigo Ferreira, fiel escudeiro desta trip, fazer imagens de cobertura.
O especial rendeu uma matéria sobre a gênese do gênero, uma longa conversa com Daniela, uma discussão sobre a atual crise na axé music (negada por seus protagonistas), uma linha do tempo, além de galerias de fotos, quiz e entrevistas mais curtas em vídeo. Dá pra ver tudo a partir daqui. E é a primeira de muitas outras colaborações com o portal, aguardem.