Uma sensação de paz intensa tomou conta do pequeno teatro do Sesc Belenzinho, quando poucos puderam submeter-se ao volume sonoro do sexteto instrumental Ruído/mm, em mais uma apresentação de lançamento de seu ótimo Rasura, um dos grandes discos brasileiros do ano passado. Impassíveis no palco, os seis músicos curitibanos conduzem o público a um transe coletivo a partir de camadas de microfonia que vão superpondo-se e retraindo-se à medida em que oscilam entre o silêncio e o volume ensurdecedor, transitando entre estes em solos dedilhados, acordes expansivos, melodias ao teclado, gritos, galopes de baixo e bateria.
É o jardim elétrico cultivado pelo My Bloody Valentine e pelo Sonic Youth nos anos 80 que ergueu-se sem voz com o codinome de pós-rock na década seguinte, aglomerando influências vindas do free jazz, da música eletrônica, de trilhas sonoras de filmes, do pós-punk e da música erudita contemporânea. A massa viva de som habitada pelo Ruído/mm é uma densa floresta de improvisos musicais em que o grupo extrai recortes específicos de uma musicalidade que quase sempre recaem naquele universo instrumental de ruído branco do que preguiçosamente convencionamos chamar de indie rock: a psicodelia estática branca que une os devaneios instrumentais do Cure, o lado contemplativo do Low de David Bowie, as extensas incursões instrumentais do Yo La Tengo, os espasmos de guitarra do Radiohead e do Built to Spill, os longos caminhos percorridos pelo Spiritualized e pelo Galaxie 500.
No palco, o grupo encarna essas diferentes personalidades. Os três guitarristas quase que de forma didática dividem suas influências no vestuário casual, cada um levemente pendendo para um lado. À esquerda, André Ramiro de camisa xadrez e boné equilibra-se entre espasmos de eletricidade e solos cortantes que entregam influências do shoegaze, hardcore e do noise; ao centro, Ricardo Oliveira, de camisa e cabelos compridos, burila seu instrumento conduzindo-o para planetas musicais tão diferentes quanto National, Radiohead e Sigur Rós; à direita, o recém-regresso Felipe Aires, vestindo uma camiseta do Lost, vai da psicodelia tradicional dos solos de David Gilmour no Pink Floyd a climas de filmes de velho oeste. Os três na linha de frente quase sempre sentam-se no palco entre as canções para ajustar pedais e brincar com a microfonia. Na linha de trás, o tecladista Alexandre Liblik conversa com o baixista Rafael Panke e o baterista Giva Farina criando camas de timbres ou ritmos intensos propícios para cada diferente incursão. A formação mudou poucas vezes, apenas com Felipe assumindo um theremin digital para contrapor ao canto em falsete de Ricardo em “Penhascos, Desfiladeiros e Outros Sonhos de Fuga”, ou André e Alexandre tocando chocalhos ao final de “Bandon”.
Arquitetos conscientes de pequenas catedrais de som, eles poderiam esticar cada uma de suas músicas por mais de dez minutos, mas quando muito elas ultrapassavam os cinco (uma ou outra quase chegou nos dez). O grupo explora bem silêncios e estica temas instrumentais o suficiente para serem memorizados pelo público sem repeti-los à exaustão, como se enfatizassem a eficácia matemática explícita no “por mílimetro” de seu nome. Tocando a íntegra do novo disco e apenas uma canção de seus discos anteriores, o sexteto de Curitiba fez uma apresentação impecável que apenas reforça sua reputação, que já tem mais de uma década.
Filmei o show inteiro abaixo – ponha os fones e aperte o play.
David Duchovny e Chris Carter começaram a esboçar como vai ser a curta décima temporada de Arquivo X, que começa a ser filmada no meio do ano. Comentei sobre entrevistas dadas pelos dois lá no meu blog do UOL: http://matias.blogosfera.uol.com.br/2015/03/29/o-que-podemos-esperar-do-novo-arquivo-x/
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David Duchovny e Gillian Anderson na encarnação mais recente da dupla Mulder e Scully, no filme de 2008
Nem bem foi confirmada pela emissora norte-americana Fox na semana passada e a nova temporada de Arquivo X já começa a ser desenhada em nossa frente. Duas entrevistas recentes, com o criador da série Chris Carter e seu protagonista David Duchovny anteciparam algumas expectativas em relação ao que podemos esperar desta décima safra de episódios – seis, numa curta temporada, que começa a ser produzida no meio do ano.
E em Vancouver, no Canadá, onde foram filmadas – por questões de orçamento – as cinco primeiras temporadas da série. Foi uma das revelações que David Duchovny fez a Jeremy Egner, do blog ArtsBeat do jornal New York Times. Ele ainda contou que os seis episódios terão tanto histórias que serão iniciadas e terminadas num mesmo programa quanto terão relação com o extenso imaginário da série. “Vamos fazer ambos, mas eu tenho certeza que começará e terminará com a mitologia”, contou o ator, que atualmente está envolvido na produção do seriado Aquarius.
Duchovny também está ansioso para voltar ao personagem depois de evoluir como ator: “Se eu voltasse ao primeiro ou segundo ano do programa, eu não atuaria como aquele cara. Eu sou capaz de fazer melhor. Ela (Gillian Anderson, sua parceira de investigação na série no papel de Dana Scully) é capaz de fazer melhor. Será interessante ver os mesmos personagens com atores melhorados.” Duchovny também riu sobre a possibilidade da volta do clássico personagem Fumante (também conhecido por Canceroso), vivido por William B. Davis. “Ele será o Mascador de Chiclete”, disse brincando.
A outra entrevista da semana passada, que Chris Carter deu ao site X Files News, revelou ainda mais detalhes da produção. O criador da série contou que a nova versão se passará nos dias de hoje e explicará, entre outras coisas, porque a colonização alienígena, agendada para acontecer no final de 2012 segundo a série original, não foi realizada. Ele só não sabe o quanto esta explicação tomará conta dos novos episódios: “Não sei como irei abordar: se de uma forma grande, discreta ou moderna, se menciono ou se é um ponto no roteiro”, explicou.
Carter também conta que tem ideias para todos os personagens e que estão conversando com Mitch Pileggi (o diretor Walter Skinner), Annabeth Gish (a agente Monica Reyes) e Robert Patrick (o agente John Doggett) para que eles possam voltar aos velhos papéis, além da participação de Davis como o próprio Canceroso. A situação atrás das câmeras é semelhante e Carter já está falando com velhos produtores e roteiristas, como Glen Morgan (já confirmado), Darin Morgan, Jim Wong (quase confirmados) e Frank Spotnitz (em negociação).
A nova temporada também costurará os acontecimentos do filme de 2008 (Arquivo X: Eu Quero Acreditar) com a mitologia original da série e o novo material deste ano. “Estamos fazendo de tudo para que a espera tenha valido a pena”, comemorou Carter.
Conversei com o Tricky, um dos papas do trip hop, que finalmente põe os pés no Brasil durante o festival paulistano Nublu, que acontece neste fim de semana no Sesc Pompéia. Confira a entrevista lá no meu blog do UOL: http://matias.blogosfera.uol.com.br/2015/03/28/tricky-como-antidoto-ao-lollapalooza/
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Se você não tem pique nem paciência para encarar as dezenas de horas e artistas que desfilam pelo Lollapalooza Brasil neste fim de semana, uma alternativa de porte menos adolescente é o Nublu Jazz Festival, que chega a sua quinta edição neste fim de semana, com apresentações em unidades do Sesc em São Paulo (no Sesc Pompeia) e em São José dos Campos.
O Nublu é um pequeno clube de jazz em Nova York que realiza festivais itinerantes na cidade, em São Paulo e em Istambul na Turquia, cidade-natal de seu seu dono, o saxofonista Ilhan Ersahin. Ele é o idealizador do evento que reúne titãs do groove do passado e novos talentos da música brasileira. Em edições anteriores desfilaram, lado a lado, nomes como Headhunters, o DJ Nuts, a Sun Ra Arkestra, Tulipa Ruiz, o trio Marginals, o baterista Karriem Higgins, Kassin, Guizado, Roy Ayers e o Marcos Paiva Sexteto, além dos projetos de Ersahin, como Love Trio e Wax Poetics.
A grande atração deste ano, no entanto, não vem propriamente do jazz. Desconhecido pelo seu próprio nome, Adrian Thaws é um dos pioneiros da cena de música urbana negra que começou a despontar em Bristol, na Inglaterra, no final dos anos 80. Entre o início do jungle e um hip hop cada vez mais desacelerado, com acento no jazz e funk dos anos 70 e larga reverência à toda a música jamaicana, esta cena deu origem ao soundsystem Wild Bunch que, influenciado pela nova cena dance do segundo verão do amor londrino, virou o Massive Attack. Adrian começou a rimar e participou do primeiro disco do Massive Attack, o clássico Blue Lines, de 1991. À época ele já assinava seus trabalhos como Tricky.
No ano seguinte deixou o Massive Attack e em 1995 lançou seu primeiro disco, Maxinquaye, batizado a partir do nome de sua mãe, e atingiu o nível dos mestres, fechando, ao lado do Massive Attack e do Portishead, a santíssima trindade do trip hop. O gênero, que evolui da desaceleração da acid house dos anos 90 e da absorção de referências mais orgânicas serviu como contraponto à cada vez mais veloz música eletrônica daquela década.
Vinte anos depois de Maxinquaye, Tricky finalmente chega ao Brasil, um ano após lançar um disco batizado com seu próprio nome, o festejado Adrian Thaws. “Sempre quis ir para o Brasil e algumas vezes quase fui”, me conta em entrevista por email. “Eu tenho muitos amigos que estiveram aí e me dizem que é um lugar incrível, por isso estou realmente animado de conhecer e descobrir. Não tenho nenhuma expectativa, série, só quero eu mesmo ver, sabe.” Uma ponte já foi feita, pois o rapper regravou a canção “Something in the Way”, que havia gravado com Francesca Belmonte no ano passado, com a brasileira Mallu Magalhães. Ele comentou sobre a parceria e seu último disco, entre outros assuntos, na entrevista abaixo.
Seu último disco tem seu próprio nome.
Sabe, eu venho usando o nome Tricky por anos e meu primeiro disco foi lançado com o nome da minha mãe, então é como se eu fechasse um ciclo, voltasse ao começo. Tirei cinco anos de folga quando fui morar em Los Angeles, então estou de volta agora. É como se fosse o próximo capítulo. Maxinquaye me pariu e também pariu a minha carreira, porque foi a base de toda a minha carreira. Minha mãe me deu, Adrian Thaws, a luz, e com isso eu fecho o ciclo e começo o segundo capítulo.
Como serão seus shows no Brasil?
Todo tipo de música, velha, nova, um pouco de tudo. Sou eu, minha vocalista Kamila Bleax, um baterista e um guitarrista.
Você gravou uma música com a Mallu Magalhães. Vai gravar mais algo com ela?
Sim, eu adoraria. Ela tem uma voz incrível. É tão… delicada. Uma voz linda. Desta vez ela me mandou os vocais, mas eu adoraria ir para o estúdio com ela. Seria ótimo.
O que você gosta na música pop atual?
Sabe, tudo é muito comercial. Mas tem um cara, Sam Smith. Eu não curto essa música muito comercializada, mas Sam Smith está trazendo a música pop de volta, dando um nome ao pop. Ele não é um Sam Cooke, não me entenda mal, não é um Bob Marley, nada desse tipo, mas ele tem canções lindas. Ele é bom para o pop, acho. Prefiro ele que o Justin Timberlake.
Eu escuto muito hip hop velho, quase nada novo. Muito do hip hop atual é música pop e eu não curto isso. Sabe, quando escuto hip hop eu não quero ouvir pop. Eu não quero ouvir o 50 Cent. Eu ouço hip hop underground, ou mais hardcore. Nunca gostei de música pop.
E como você escuta música atualmente?
Eu escuto CDs ou ouço no YouTube, com fones de ouvido. Quando escuto música, tenho que ouvir muito alto – ou com fones. Não tem meio-termo. Música pra mim é como uma conversa, é uma coisa muito pessoal.
E o que você tem achado deste novo cenário da música digital?
É bom, mas também é ruim. Por exemplo, se as pessoas baixam música de graça. Sabe, tem gente que não entende, mas é assim que você tira seu sustento, como você consegue fazer sua música. As pessoas deviam ao menos apoiar isso. Sabe, podem até baixar músicas de graça, mas então apoia de alguma outra forma, compra algumas músicas no iTunes ou coisa do tipo, sei lá…
As pessoas deviam apoiar mais os artistas. Eles têm a ilusão que os artistas estão ganhando dinheiro o tempo todo. Quer dizer, se você é enorme, você ganha sim. Mas aí, pra começar, você tem que que tocar no rádio. Eu não toco no rádio, não sou milionário nem nada. Se quiser baixar de graça, baixa a Madonna. Não é um grande problema pra ela, ela tem tanto dinheiro que não precisa. Mas artistad como eu, que colocam tudo em seu próprio trabalho, acho que deveriam ser apoiados.
Os Smashing Pumpkins já foram a banda de rock mais importante do mundo durante alguns meses dos anos 90, mas algo aconteceu entre o Siamese Dream de 1993 e o Adore de 1998 que fez a banda desabar e se tornar só um exercício de megalomania de seu líder, Billy Corgan. Escrevi um glossário sobre o grupo para o UOL para tentar entender, de forma não-linear, onde é que tudo deu errado…
Ainda bem que a TV em preto e branco já não existia mais quando os Teletubbies apareceram…
Falei do projeto do site Radiola Urbana de recriar ao vivo discos clássicos com bandas novas – que ano passado rendeu noites incríveis como o Emicida celebrando Cartola e O Terno reverenciando Arnaldo Baptista – na minha coluna Tudo Tanto na revista Caros Amigos do mês passado.
Clássicos revisitados
A iniciativa do site Radiola Urbana de reunir novos artistas para tocar discos históricos chega ao terceiro ano rendendo ótimos frutos
Há três anos um site paulistano vem desenhando um panorama de discos clássicos reinterpretados por nomes da nova música brasileira que já pode ser considerado histórico. Um programa sem nome definido, pois o mesmo vai mudando de acordo com o ano celebrado. Desde 2012 o site Radiola Urbana, tocado pelos amigos Ramiro Zwetsch e Filipe Luna, volta 40 anos no tempo para homenagear álbuns históricos de artistas célebres, negociando repertório e arranjos com alguns dos maiores nomes da música brasileira deste século.
A ideia do Radiola Urbana começou em 2012 como uma consagração de uma tendência recente que vinha valorizando o ano de 1972 como um dos grandes anos da história do disco, pareando com outros anos clássicos como 1967, 1969, 1977 e 1991. Assim, o site propôs celebrar discos daquele ano no projeto 72 Rotações, que aconteceu no segundo semestre daquele ano, em shows gratuitos no no Centro Cultural da Juventude, na Vila Nova Cachoerinha. Entre os primeiros artistas estavam Bruno Morais (para cantar o mágico Sonhos e Memórias, do Erasmo Carlos), Romulo Fróes (que revisitou Transa de Caetano Veloso), Rodrigo Campos (que se arriscou no clássico funk Superfly, de Curtis Mayfield) e Curumin ao lado da banda Rockers Control (para recriar a trilha sonora de The Harder They Come, de Jimmy Cliff).
No ano seguinte o show foi transposto para o Sesc Santana e subiu um degrau no escalão dos artistas. Era a vez de Karina Buhr, Céu, Cidadão Instigado e Fred Zeroquatro (vocalista do grupo Mundo Livre S/A) homenagearem discos de 1973. Karina aventurou-se pelo primeiro disco do Secos & Molhados, o Cidadão Instigado se desafiou a tocar o Dark Side of the Moon do Pink Floyd, Céu foi convocada para homenagear o primeiro disco de sucesso de Bob Marley, Catch a Fire, e Fred celebrou o homônimo disco de estreia de Nelson Cavaquinho. A edição de 2013 teve um efeito colateral interessante na carreira de três dos artistas escolhidos: tanto Céu, quanto Cidadão Instigado e Karina Buhr passaram a oferecer os shows do evento como alternativa para tocar em lugares que nunca haviam tocado. Ao sair de uma semana na zona norte de São Paulo para várias apresentações espalhadas pelo Brasil, o projeto garantia seu principal intuito: fazer que o público dos novos artistas conhecessem os discos clássicos e os fãs dos álbuns homenageados descobrisse os novos nomes da cena brasileira deste século.
A edição do ano passado aconteceu no calar de dezembro, novamente no Sesc Santana, e mais uma vez surpreendeu. Os homenageados desta vez eram apenas discos brasileiros, todos clássicos absolutos de 1974: o primeiro disco solo do mutante Arnaldo Baptista (Lóki?), a estreia em disco de Cartola, o encontro de Elis Regina com Tom Jobim e o disco psicodélico de Jorge Ben, Tábua de Esmeralda. Para tomar conta de cada um desses discos, artistas de diferentes abordagens. Elis & Tom ficou a cargo do Marco Pereira Trio – um dos grandes conjuntos da nova cena de jazz de São Paulo – ao lado da cantora Luciana Alves e a Tábua de Jorge Ben ficou com o projeto paralelo da Nação Zumbi chamado Sebosos Postizos, que já há anos revisita diferentes músicas do repertório de Babulina nos anos 70.
Os dois shows que vi – dos melhores shows de 2014 – celebravam Cartola e Arnaldo Baptista. Foram shows que intimidaram seus intérpretes. O trio O Terno, liderado pelo filho de Maurício Pereira, Tim Bernardes, ficou responsável pelo mergulho emotivo na obra confessional do ex-Mutante e o rapper Emicida deixou de rimar pela primeira vez para cantar os versos imortais do sambista parnasiano.
O show de Emicida foi um atordoo. Não apenas por colocar o rapper num universo familiar ao seu (o samba) desafiando-o a cantar músicas que fazem parte do DNA do samba. Mas também pelo grupo musical que havia reunido. O desafio, na verdade, foi proposto pelo saxofonista Thiago França, uma das forças da natureza da nova cena musical paulistana. Ele tocou com Criolo e é um terço do Metá Metá, a melhor banda de São Paulo atualmente, além de ter inúmeros projetos paralelos, muitos deles com o compadre Kiko Dinucci, outra usina musical da nova São Paulo. França convocou pesos pesados pra compor o time: da banda de Emicida surrupiou o percussionista Carlos Café, o violonista Doni Jr. e o DJ Nyack. Depois convocou o ás baixista Fábio Sá, o grande Rodrigo Campos para o cavaquinho e guitarra e o próprio Thiago entre o sax, a flauta transversal e outras engenhocas e pedais de efeito.
O resultado foi um show que por vezes soava reverente, mas na maior parte do tempo era abertamente desafiador, levando a obra de Cartola para territórios completamente diferentes – o free jazz, o hip hop mais pesado, a gafieira, um samba mais quadrado e até para releitura quase literais. A curta duração do disco homenageado (pouco mais de meia hora) fez o conjunto estender a homenagem para Adoniran Barbosa (contrapondo “Saudosa Maloca” e “Despejo na Favela” com as desocupações feitas recentemente em São Paulo) e para Candeia (numa versão brutal para “Preciso Me Encontrar”), além do delicioso sambão “Hino Vira Lata”, do próprio Emicida. Um show daqueles de tirar o fôlego.
Dois dias depois era a vez do Terno, no mesmo palco do Sesc Santana, defender sua homenagem ao disco Lóki?, o tocante espasmo emocional traduzido através do piano rock de Arnaldo Baptista, logo que ele saiu dos Mutantes. Um disco de fossa devido ao fim de relacionamento com Rita Lee, mas também um disco de uma psicodelia introvertida, que às vezes sonha alto ou cogita possibilidades impensadas no meio de canções que cortam o coração ao mesmo tempo que provocam sorrisos.
A responsabilidade do Terno não era apenas etária – o guitarrista e vocalista Tim Bernardes deixou seu instrumento em segundo plano para assumir o teclado, mas manteve-se preciso e sem firulas, no mesmo nível de emoção que percorre pelos sulcos do vinil original. O desafio duplo foi vencido com alguma facilidade – mesmo nas músicas tocadas com guitarra, canções feitas originalmente para o piano ganhavam uma desenvoltura de parentesco psicodélico.
Agora é esperar 2015 para ver se (e quais) os artistas do ano passado levarão os shows de 2014 para novos palcos e o que o Radiola Urbana armará para a versão deste ano. “Pensamos em Fruto Proibido (Rita Lee & Tutti Frutti), Horses (Patti Smith), Expensive Shit (Fela Kuti & Afrika 70), Estudando o Samba (Tom Zé)…”, me disse Ramiro, que planeja uma novidade para este ano – voltar 50 anos no tempo em vez de 40. “Aí se virar 65, temos planos malignos e infalíveis para A Love Supreme (John Coltrane), Coisas (Moacir Santos), Highway 61 Revisted (Bob Dylan)…”. De qualquer forma, não tem erro.
Escrevi sobre a volta do Arquivo X lá no meu blog do UOL e explico porque eu acho que a série poderia ser reinventada se voltasse com outros atores: Reabrindo o Arquivo X.
Atualização às 15h, dia 24/03/2015: O Hollywood Reporter acaba de confirmar que a Fox produzirá mesmo mais uma temporada de Arquivo X, com seis episódios. “Penso nisso como se fosse um intervalo comercial de 13 anos”, disse o criador da série Chris Carter. “A boa notícia é que o mundo ficou muito mais estranho, uma época perfeita para contar essas seis histórias.”
Tudo indica que Arquivo X vai se rematerializar. A série, que foi para os anos 90 o que Lost foi para a década passada, morreu sem deixar vestígios ou saudades em algum momento da virada do milênio (na verdade, em maio de 2002) e agora volta como a solução mirabolante de algum executivo da Fox para recuperar audiência sempre em queda da televisão tradicional neste século. A volta começou a acontecer em janeiro, quando os principais executivos da emissora norte-americana – Dana Walden e Gary Newman – confirmaram que estavam negociando com o criador da série Chris Carter. E agora, diz o site inglês TV Wise, o criador da série Chris Carter deverá escrever a história da nova safra, David Duchovny e Gillian Anderson já foram convidados e, voltando, a série deve ter entre seis e dez episódios em sua, er, décima (!) temporada. Agora é uma questão de ajustar agendas para definir quando ela retornará à tela de TV.
Arquivo X foi uma série cult que ajudou a fundar o que conhecemos hoje como segunda era de ouro da TV, inaugurada com os Sopranos no ano 2000. Contava a história da dupla de agentes do FBI Fox Mulder (Duchovny) e Dana Scully (Anderson) que lidava com uma divisão do escritório de investigação chamada “Arquivo X”. Este departamento reunia casos extraordinários ou sem explicação que iam de abduções alienígenas a lendas urbanas vivas, que eram catalogados pelo fanático Mulder, um agente que ostentava em seu escritório um pôster com a imagem de um disco voador e a frase “Eu Quero Acreditar”. Scully, que havia sido designada para trabalhar com Mulder por ser cética e pragmática, quase sempre ironiza a crença apaixonada de seu parceiro em uma enorme conspiração que, além de ser a origem dos casos que têm de lidar, também explicam o funcionamento do mundo como um todo, principalmente do ponto de vista político e tecnológico. Aos poucos Scully começa a acreditar em Mulder e os dois desenvolvem uma atração mútua que se estica em tensão sexual não-consumada.
Arquivo X acertou na veia das conspirações e foi, lentamente, tornando-se cult. A série começou a crescer a partir da segunda temporada, em 1994, basicamente num boca a boca que aos poucos dava-se conta de que as estranhas aparições semanais da série não eram apenas monstros e aberrações isoladas. Havia um padrão e, mais do que isso, uma fonte comum para aquelas bizarrices. A grande sacada da série foi equilibrar-se entre histórias semanais e uma grande história de pano de fundo, retomando um formato conhecido dos quadrinhos para a narrativa da TV. Aos poucos os novos fãs reconheciam os episódios isolados (o “monstro da semana”) das histórias que ajudavam a contar a saga da grande conspiração, que envolvia um pacto entre os governos do mundo com uma raça alienígena que havia chegado à Terra há milhares de anos para escravizar a humanidade num futuro próximo. Dá pra entender perfeitamente porque achavam que Mulder fosse louco.
O escopo da conspiração – que começava aparentemente pequena e ia crescendo com o passar da série – ajudou a consolidar uma mudança que David Lynch havia retomado ao formato com sua série Twin Peaks. Arquivo X abandona lentamente a fórmula dos seriados de sucesso da década anterior, em que cada episódio conta uma história fechada e você pode assistir aos episódios em ordem aleatória que os personagens serão os mesmos nas mesmas situações. Aos poucos ele vai convencendo seu público de que é preciso acompanhar a série semanalmente e debruçar-se sobre as pistas deixadas em cada capítulo semana a semana. Era o início da popularização da world wide web e fãs em todo o planeta – não apenas nos Estados Unidos – podiam acompanhar as discussões a respeito da série. Ao mesmo tempo, o VHS começava a ser substituído pela mídia digital e logo temporadas inteiras de Arquivo X poderiam ser acompanhadas sem esperar que a série fosse reexibida na TV (ou comprada por uma emissora, no caso do resto do mundo).
Revivals, adaptações, continuações, reboots e remakes têm sido a regra de Hollywood há pelo menos duas décadas e o próprio Arquivo X passou por isso em dois momentos, quando a série chegou às telonas num longo season finale em 1998 (no filme Fight the Future) e, dez anos depois, quando tentou reaparecer a partir de um outro longa metragem (o filme I Want to Believe), que não resultou em nada. A falta de criatividade que impera nos cinemas agora parece arrastar-se para a TV e, como Arquivo X, vários outros seriados tentam novas oportunidades de voltar à ativa, uns (Dr. Who, Battlestar Gallactica) mais bem sucedidos que outros (24 Horas, Arrested Development). Executivos preocupados com números de audiência preferem apostar na memória e nostalgia do público do que em contar histórias novas, que precisam de tempo para crescer (como todos os recentes sucessos da tal nova era de ouro da TV: Sopranos, The Wire, Lost, Breaking Bad, Mad Men…).
Se tudo der certo, as filmagens do novo Arquivo X começam no meio deste ano. Falta acertar a agenda dos dois protagonistas, ambos envolvidos em duas outras séries (Duchovny em Aquarius, Anderson na ótima The Fall), mas acho que a série funcionaria muito melhor se os dois não estivessem fixos no elenco deste retorno.
Imagine voltar ao universo de Arquivo X com novos agentes descobrindo velhos mistérios, fuçando monstros do passado que foram investigados por Mulder e Scully. Com os velhos protagonistas em cena, todo o passado terá de ser reexplicado em diálogos ou monólogos inúteis à narrativa, que funcionam apenas para contextualizar os novos fãs e que não precisariam ocorrer, pois os envolvidos já conhecem o que estão explicando. Se fossem novos agentes, tudo seria naturalmente explicado e a série original seria motivo para os novos fãs voltarem aos episódios dos anos 90, ganhando uma dimensão inteira de profundidade para os casos investigados hoje em dia. Não que Mulder e Scully ficassem alheios à série. Mas eles funcionariam mais como pontos de referência e fontes de informação do que como protagonistas. Aparecendo em capítulos específicos, aparições surpresa.
Mas, ao que tudo indica, veremos Mulder e Scully mais uma vez, vinte anos mais velhos, correndo para cima e para baixo de sobretudos pretos, fugindo de alienígenas e mercenários com lanternas e armas na mão. Me dá uma sensação de que vamos ver uma versão filmada do Scooby Doo…
E lembre-se que Twin Peaks volta no ano que vem! Ou seja, essa brincadeira de revival de séries está só começando…
The Magic Whip, o novo disco do Blur, foi apresentado ao vivo para uma plateia de 300 fãs na sexta passada. E nesta quarta-feira este show será transmitido pelo YouTube, às cinco da tarde no horário de Brasília – e antes do disco vazar. Todo mundo vai conhecer o disco novo do Blur com a banda tocando-o ao vivo. Escrevi sobre essa sacada hoje no meu blog do UOL: http://matias.blogosfera.uol.com.br/2015/03/24/blur-pega-o-mundo-de-surpresa-e-lanca-online-disco-que-so-300-ouviram/
Há exatamente 50 anos Bob Dylan lançaria o disco que mudaria completamente sua carreira e inaguraria os anos 60 como nós os conhecemos hoje. Escrevi sobre o Bringing it All Back Home na Ilustrada deste domingo, mas o texto inteiro não coube no papel, por isso publico a íntegra abaixo:
Trazendo tudo de volta para casa
Há 50 anos Bob Dylan lançava o disco que mudou sua carreira e a história da música pop, além de inaugurar os anos 60
Bob Dylan entrou no estúdio da Columbia naquele dia 13 de janeiro de 1965 exatamente doze meses depois de mudar drasticamente sua carreira. Há um ano ele lançara o disco The Times They Are a-Changing e e seu encontro com os Beatles, seis meses depois, lhe obrigou a repensar seus próprios rumos. O resultado daqueles três dias de gravação seria um disco que mudaria completamente sua biografia e a história da música pop, além de inaugurar os anos 60 como o conhecemos hoje em dia – Bringing it All Back Home foi lançado há exatos 50 anos, no dia 22 de março de 1965.
No fim de 1963 Dylan começou a abandonar o personagem “gente humilde” com o qual conquistou a cena folk nova-iorquina, que lhe elegeu herdeiro de Woody Guthrie, o bardo folk americano que era o símbolo da música do povo oprimido dos EUA. Em vez de músicas contemplativas e resignadas, ele começara a apontar o dedo desafiadoramente para as autoridades, com músicas que começavam a capturar o inconsciente coletivo norte-americano após o assassinato de John Kennedy, como “Masters of War” e faixa que iria batizar seu terceiro disco, lançado no início do ano seguinte.
Aquele novo repertório mudara completamente a relação de Dylan com seus fãs, que passavam de admiradores a devotos. Em poucos meses ele era eleito voz de sua geração e aos poucos começou a ver que havia se metido em uma enrascada. Para fugir deste papel, deu mais uma guinada, desta vez para dentro, cantando canções de amor mais introspectivas e com uma banda, ainda acústica. A nova fase foi registrada no disco Another Side of Bob Dylan, lançado em agosto daquele ano, que foi suficiente para causar reclamações dos fãs. Eles mal sabiam o que viriam.
No final daquele agosto, no dia 28, Dylan encontrou John, Paul, George e Ringo num quarto do hotel Delmonico em Nova York, onde fumaram um baseado juntos, o primeiro dos Beatles. Os quatro de Liverpool haviam tomado os EUA de assalto, preenchendo o vácuo afetivo do assassinato de Kennedy com gritos, guitarras e muito ritmo. Aquela mudança de sonoridade afetou diretamente Dylan, que antes de tornar-se centro da cena folk nova-iorquina, havia sido filhote dos primeiros dias do rock’n’roll. “Quando ouvi Elvis pela primeira vez”, repetiu em várias entrevistas, “sabia que nunca iria trabalhar na vida e que ninnguém iria ser meu patrão.” Dylan foi líder de bandas de baile nos anos 50 – como Shadow Blasters e Elston Gunn & The Rock Boppers – e desistiu do rock quando Buddy Holly morreu. Mas o sucesso e a energia dos Beatles o reanimaram – sem contar que eles eram ingleses inspirados por música americana. Era hora de trazer aquela energia de volta pra casa.
E foi com essa disposição que entrou no estúdio nova-iorquino em 1965. Na mesa de comando, o produtor Tom Wilson, que havia trabalhado nos discos anteriores de Dylan, estava disposto a fotografar o que quer que Dylan trouxesse. E ele trouxe um calhamaço de canções completamente novas, que misturavam citações bíblicas, a história dos Estados Unidos e poesia francesa do final do século 19, empilhando citações de forma cínica, completamente distante do Dylan heróico do ano anterior.
O primeiro dia de gravação foi um aquecimento, em que Dylan testou formações e sonoridades. Colocou o guitarrista John Sebastian, que nunca havia tocado baixo, para assumir o instrumento, sentou-se ao piano na maior parte do dia, o novato Kenny Rankin para tocar guitarra elétrica, que também nunca havia feito. A torrente de palavras das canções era reflexo de uma viagem de carro pelos Estados Unidos de costa a costa, quando, no banco de trás do carro, Dylan ia datilografando poemas, letras de músicas e comentários aleatórios. As novas canções foram apresentadas por um Dylan sempre de terno preto e RayBan Wayfarer, rindo e sorrindo muito mais do que o normal.
Nos dois dias seguintes, gravou o disco, composto quase inteiro por clássicos, em pouquíssimos takes. Seu lado A, elétrico, começa com a avassaladora “Subterranean Homesick Blues” confundindo completamente os fãs ao misturar política, frases de efeito e a paranoia da guerra fria. Na mesma linha, a cáustica “Maggie’s Farm” e a épica “Bob Dylan’s 115th Dream” (que é interrompida logo no início por uma crise de riso pois a banda não conseguiu acompanhar Dylan) mostravam que a eletricidade e histórias criadas a partir do imaginário norte-americano eram um caminho sem volta.
No lado B, acústico, o disco trazia músicas que mostravam que Dylan, mesmo só ao violão, estava indo muito além do folk, graças a canções como a enigmática “Mr. Tambourine Man” e as cruas “Garden of Eden” e “It’s Alright Ma (I’m Only Bleeding)”. O disco terminava com uma de suas canções mais emblemáticas, “It’s All Over Now, Baby Blue”, que antes de repetir seu título pela última vez, desafia o ouvinte ao mostrar que as regras haviam mudado: “Strike another match, go start anew” – “risque outro fósforo (ou comece mais uma briga), vamos recomeçar tudo de novo.”
Mal sabiam – Dylan e fãs – como tudo iria mudar no decorrer de 1965. “Mr. Tambourine Man” iria parar no topo da parada dois meses depois graças a uma versão dos Byrds que inaugurava o folk rock. Os Rolling Stones gravariam “Satisfaction” inspirados pelo pedal fuzz que Dylan usara em “Subterranean Homesick Blues”. O próprio Dylan gravaria sua canção-símbolo – “Like a Rolling Stone” – em menos de um semestre, além de fechar a tríade de discos que o consagrou (Highway 61 Revisited e Blonde on Blonde) em pouco mais de um ano. O rock começava a deixar de ser visto como música de adolescente e os anos 60 começavam a mudar inesperadamente. E está tudo ali em Bringing it All Back Home.
Dentro da capa
- A criação da cena da capa do disco de 1965 é considerada transgressora no mercado fonográfico por tratar-se como parte da criação artística e não como rótulo de um produto à venda. Sem esta mudança, capas de clássicos como Sgt. Pepper’s e Dark Side of the Moon seriam bem diferentes.
- Foi o primeiro disco de Bob Dylan sem nomes de canções na capa. A gravadora Columbia não gostou da mudança, mas o empresário de Dylan, Albert Grossman, foi categórico e não quis negociar.
- É a primeira vez em que Dylan não posa como um personagem do povo, usando roupas de popstar.
- Também é o primeiro disco em que Dylan olha para a câmera na foto da capa, dando origem a um padrão reconhecido por seus fãs: que quando Dylan reconhece a grandiosidade de seus discos, ele revela isso olhando para o ouvinte em sua capa.
- A mulher que olha desafiadoramente para a capa é Sarah Grossman, esposa do empresário de Dylan. A foto foi tirada na sala de estar da casa de campo do casal, em Woodstock.
- Bem antes do Photoshop, o fotógrafo Daniel Kramer criou um aparato para girar lentamente a lente da câmera e embaçar os cantos da foto, para causar a sensação do “universo estar se movendo ao redor” de Bob Dylan.
- Espalhados entre Dylan e Sarah estão discos dos Impressions (Keep on Pushing), de Robert Johnson (King of the Delta Blues Singers), de Ravi Shankar (India’s Master Musician), de Lotte Lenya (Sings Berlin Theatre Songs by Kurt Weill) e de Eric Von Schmidt (The Folk Blues of Eric Von Schmidt).
- No fundo da cena, seu disco anterior, Another Side of Bob Dylan, está próximo a uma lareira que fica em uma parede cheia de referências do século 19. É como se Dylan dissesse que, alé de pertencer a um passado distante, sua carreira anterior poderia ser jogada no fogo.
- Dylan segura um gato cinzento chamado Rolling Stone. Sete meses depois ele gravaria sua maior canção, chamada “Like a Rolling Stone”.
A notícia de um documentário sobre Amy Winehouse pode ser só uma primeira mudança na tendência de olharmos para o passado. Falo mais sobre isso num post de hoje do meu blog no UOL: Documentários sobre o passado vão nos trazer de volta para o presente.
Quase toda semana há um novo documentário sobre algum artista, já percebeu? Quando não é um documentário é um filme inspirado na vida de algum nome célebre ligado à cultura. Ou uma peça. Ou um musical. Ou um seriado. Não importa o formato: o fato é que a história da cultura popular do século 20 tem servido continuamente como fonte de inspiração para novas obras – que, por mais que tentem se reinventar, apenas vendem o velho.
A novidade desta semana foi o anúncio do documentário Amy, sobre Amy Winehouse, dirigido pelo mesmo Asif Kapadia que há cinco anos dirigiu o ótimo Senna, sobre o piloto brasileiro. É mais um filme que se debruça sobre milhares de horas de imagens disponíveis sobre seu personagem, inclusive várias que nunca vieram a público, para tentar traçar um perfil psicológico de uma pessoa que vive uma vida comum e em pouco tempo torna-se uma celebridade de primeira grandeza. O filme foi anunciado apenas com um pôster e sua data de estreia foi marcada para julho deste ano. Um trailer aparecerá em breve.
Mas Amy Winehouse, por maior que tenha sido, não chegou ao status de estrela graças apenas à sua personalidade artística. Metade de sua fama veio com os paparazzi, o excesso de exposição e a overdose midiática que acompanha qualquer popstar atualmente. A forma como Amy lidou com esta fama acabou custando-lhe a vida – e até outro dia líamos sobre ela nas páginas dos jornais, das revistas e da internet.
Eis uma mudança neste cenário cultural que revisita ícones do passado com uma frequência cada vez maior: Amy Winehouse morreu há quatro anos. Um documentário sobre sua vida talvez fizesse sentido como item jornalístico logo após sua morte, mas esta velocidade para transformar-se em obra cinematográfica é uma tendência cada vez maior. Afinal, não é um caso isolado – aqui mesmo no Brasil a vida do vocalista do Charlie Brown Jr., Chorão, que morreu há dois anos, já virou o musical Dias de Luta, Dias de Glória.
Há uma variação, portanto, de uma tendência detectada pelo escritor e crítico inglês Simon Reynolds em seu já clássico livro Retromania: Pop Culture’s Addiction to its Own Past (Retrômania: O vício da cultura pop em seu próprio passado, ainda inédito no Brasil), de 2011. Nele o autor flagra uma obsessão com o passado recente da cultura popular em caixas de CD, reedições de luxo, shows que reproduzem discos antigos na íntegra, DVDs cheios de extras. Ele usa o excesso de produções que revivem diferentes épocas de ouro para dizer que a produção cultural do século 21 é vazia e que necessita de referências do passado para validar-se.
Exagero. Há todo um espectro da cultura de nossos dias que, sim, cita, celebra e repete ícones do século passado, mas eles são quase sempre destinados a uma nova classe de consumidores adultos, que vive num mundo com uma produção cultural cada vez mais intensa e de oferta avassaladora de opções à venda – sem contar as gratuitas. Por isso usar de uma história já conhecida, falar de personagens que não precisam ser apresentados ao público ou recorrer a canções que todo mundo já conhece são recursos que facilitam a captura da atenção do consumidor.
Mas há uma classe de consumidores que nem percebe o que está nas capas de revista ou nas vitrines das megastores. Movimenta-se pela internet e consome conteúdo quase sempre de graça, trocando links, filmes, games, fotos e músicas com a mesma facilidade com que se trocam emails. O que essa nova juventude consome é irreconhecível a esse consumidor adulto que frequenta cinemas nos shoppings e lota shows de artistas que ganham mais dinheiro depois de terem saído da aposentadoria para fazer shows. São vídeos que ensinam a passar de fase em jogos eletrônicos, clipes caseiros que parecem superproduções graças a efeitos especiais, músicas de artistas cada vez mais jovens e desconhecidos, monólogos no YouTube. A “retrômania” detectada por Simon Reynolds diz respeito a uma geração nascida no século 20. Os que nasceram no século 21 – ou alguns anos antes – já estão em outra.
O que é perceptível dentro dessa onda de filmes, musicais, documentários é que por mais que a fonte de novidades a partir de clássicos ou raridades do passado pareça infindável, ela não é. E o fato de estarmos vendo este tipo de produção voltar-se para pessoas que até outro dia estavam nas manchetes dos jornais tentando vender sua própria originalidade mostra que em pouco tempo não precisaremos que estas celebridades morram para que possamos assistir às histórias de suas vidas contadas em grande escala.
Isso colide com uma tendência que tem misturado o jornalismo ao cinema documental, fazendo que profissionais que em outras épocas estavam em redações de jornais, revistas ou emissoras de TV se dediquem à produção de longas metragens de não-ficção. Como essa tendência também faz parte da reclamação sobre “retrômania” detectada por Simon Reynolds, muitos filmes estão sendo produzidos sobre o passado. Mas há uma parcela cada vez maior de documentários sobre o que acontece nos dias de hoje.
Isso pode responder a uma dúvida fundamental em qualquer indivíduo que tenha uma vida digital hoje em dia: o que fazer com tantos vídeos, fotos e gravações das nossas rotinas? Esse excesso de registros vai ajudar os jornalistas-cineastas de um futuro bem próximo a contar histórias de forma mais aprofundada, detectar perfis emocionais a partir de imagens caseiras, afundar-se em personalidades complexas a partir de milhões de registros sobre elas.
Talvez os documentários sejam as matérias de capa de revista no futuro próximo que extingue o consumo de informação através do papel.