Poizé, deixei pra ver O Jardineiro Fiel depois da hora e não o inclui entre os melhores de 2005 enquanto o ano ainda vigorava – mas faço isso djá. O terceiro filme de Fernando Meirelles é mais um salto quântico na carreira do diretor brasileiro, em diversos aspectos: cinematografia, densidade dramática, complexidade do argumento e, principalmente, a escolha do tema. A equação “indústria farmacêutica + África” pode parecer a princípio insípida como uma nota de agência de notícia gringa numa página burocrática de noticiário internacional, mas pode ganhar cores mais densas aos destrincharmos cada um dos elementos, onde que chegamos em “empresas multinacionais que faturam cada vez mais dinheiro + continente mais miserável do planeta em que centenas morrem por dia”. É nessa tecla que bate Meirelles. E bate. E bate. Para que não fingimos que não sabemos o que está acontecendo.
Amparado pelo ágil thriller hiperrealista do escritor John Le Carré e por ótimas e discretas atuações (Ralph Fiennes e Rachel Weisz dissolvem seus sentimentos lentamente, deixando a dor e a raiva transparecer sutis, dentro do espectador – e não na tela), Meirelles humilha. Cutuca feridas abertas em diferentes níveis, lembrando que a hipocrisia humanitária de governos fechados com empresas arrogantes sem medo de exibir o poder do dinheiro é a mesma que nos faz fechar o vidro do carro quando alguém mais pobre (e, via de regra, pardo, pelo menos) se aproxima. O filme não é um apelo às armas ONG, e sim a voz da consciência virando nosso olhar para onde fingimos não ver.
Os temas abordados pelo diretor de Cidade de Deus vão da epidemia de Aids da África, matadores de aluguel e política corrupta à especulações no mercado financeiro, fraudes em escala global e o sorriso falso do benfeitor. “É tudo parte de um mesmo jogo”, sublinha o diretor. Ao mostrar campos de refugiados sendo dizimados por piratas do deserto, pacientes morrendo por negligência médica, o exercício dos pequenos poderes e a descrição de torturas bárbaras, Meirelles o tempo todo faz e refaz a rede de contatos, dados e troca de informações – ativistas online, mensagens em secretárias eletrônicas, conversas em campos de golfe, ameaças de morte, cartas comprometedoras e relatórios encobertos. É tudo parte de um mesmo jogo.
Enquanto a trama se desenrola e se revela, a direção contrasta a miséria humana com a riqueza africana, seja nas paisagens, nos cantos ou nos olhares das crianças brincando na rua, ao mesmo tempo em que a burocracia européia revela-se mais cruel do que a tomada sangrenta do continente, séculos atrás, o tempo todo representadas por estátuas heróicas e altos palácios – a invasão e destruição continuam, mas há mais business que o mero aprisionamento de escravos. A câmera treme como a de um cinegrafista amador tentando filmar um vulcão em plena erupção, a lava parece que desce devagar, mas já queima o solo longe dos olhos, por baixo.
Meirelles começou bem debaixo dos nossos narizes, tratando o apartheid social brasileiro velado (a empregada doméstica) como uma crônica bem-humorada sobre nosso preconceito em seu segundo filme, Domésticas, de 2001 (O Menino Maluquinho 2 foi o primeiro). Depois foi conhecer o lugar de onde elas vêm, num filme de ação que tornou-se o melhor filme brasileiro de todos os tempos (e ponto), com Cidade de Deus. Agora volta-se para o continente de onde as cidades de deus do mundo vieram para nos pegar sem fôlego, como um soco na boca do estômago, e enfiar a nossa cara em uma África mais intensa do que o grande continente favelado que a nossa culpa branca exotique finge não ver para esfregar o problema: é o maior campo de concentração da história, o verdadeiro Holocausto.
Não sei qual é o próximo filme do sujeito, mas esse eu não vejo tão depois. Inda não viu? Vai ver. Divide o posto como melhor filme do ano com A History of Violence, do Cronenberg, mas este (do meu cineasta favorito) é mais um exercício de estilo. O filme de Meirelles também, mas há tantas nuances e camadas de preocupação que não dá pra classificá-lo apenas como um filme, como eram os dois filmes anteriores. Há um trabalho de explicação e conscientização que vai além da mera arte, embaralhando cinema com jornalismo, comunicação e política. Algo que já vem sendo feito pela nova safra de documentários da virada do século (todo mundo, do Eduardo Coutinho ao Michael Moore), pelos primeiros feitos da geração DV e por diferentes produções de TV para o cinema (das maxisséries da HBO aos filmes do Guel Arraes). Só que Meirelles está a quilômetros de distância, abrindo caminho – fora que internacionalizou o gestual de Renato Aragão (o V de vitória intercalado rapidamente com o polegar de positivo) na transmissão da festa do Oscar. O Jardineiro Fiel já é o que o cinema vai ser.
E, a propósito, não vi Manderlay ainda. Vou corrigir essa falha também.
“Bob George”, do Prince. A música que deu origem ao gangsta rap.
“Was it Phil’s fault God talked to him or was it God’s?”
Vai ser engraçado, esse ano…
…essa matéria da Carta Capital sobre os “injustiçados” pelo MinC.
Resenhinha do Pornô, do Irvine Welsh, na capa da Ilustrada de hoje. Aí embaixo, a íntegra, pré-edição:
Do mesmo jeito que era inevitável que Simon D. Williamson arrumasse um emprego que o mantivesse próximo do sexo, das drogas, dos jogos e da farra de seus anos dourados, também era inevitável que não durasse muito no cargo. E até durou demais, mesmo que mais apresentável e mais experiente que quando deixou sua cidade-natal rumo a Londres, ele ainda era o mesmo Sick Boy que funcionava como o próprio RP de seu bando na pós-adolescência.
Ao lado de Mark Renton, Frank Begbie e Daniel “Spud” Murphy, ele fazia parte do pequeno grupo de junkies sem esperanças que protagonizava “Trainspotting”, série de monólogos psicótico-autistas sobre o underground de Edimburgo, Escócia, no final dos anos 80. O livro, lançado originalmente em 1993, colocou o escritor escocês Irvine Welsh no mapa do mundo pop, especialmente após as adaptações para o teatro (encenada em Londres por Harry Gibson em 1995) e para o cinema (dirigida na Inglaterra por Danny Boyle em 1996).
Dez anos depois do golpe que parecia ter desfeito de vez aquela já esfacelada quadrilha, o acaso reúne os quatro novamente no decadente distrito de Leith que antes se referiam como lar. E eles não estão felizes com o reencontro. Apenas o tímido e inofensivo Spud permaneceu nas ruas de sua cidade, e ainda luta para deixar o vício de heroína no passado, como já aconteceu com os outros três.
Depois de anos na prisão, o psicopata Begbie reza para encontrar o filho da puta que lhe enviava revistas gay anonimamente quando estava na cadeia e para não encontrar Renton, a quem culpa sua estada atrás das grades. Sick Boy tem de engolir o orgulho de ser demitido de mais uma casa noturna em Londres agarrando-se no pub de uma tia para retornar à Escócia, que abomina. Renton é praticamente extraditado de volta para a Grã-Bretanha por Sick Boy, que o encontra dono de uma boate em Amsterdã e o ameaça a entrar em seu novo esquema: pornografia.
Assim começa “Pornô”, último livro lançado por Welsh, em 2002, que agora ganha edição brasileira. Depois da traição final de “Trainspotting” seus protagonistas (se é que podemos chamá-los assim) voltam a habitar a mesma sociosfera, seus reencontros sendo antecipados no mesmo tipo de monólogos atordoados do livro inicial.
Três deles têm filhos, todos estão sempre se ajeitando no espelho, fingindo não aceitar a velhice que começa a despontar no horizonte. Estão mais reflexivos, mas isso não quer dizer que a quantidade de sexo, drogas e violência diminuiu – pelo contrário, ela continua presa às suas personalidades como particularidades físicas.
Sexo casual, baseados, lugares imundos, garrafas de vinho, muito sangue, linhas de cocaína, estupros, muita cerveja, ameaças de morte e trambiques – o underground continua o mesmo. Mas a lenta realização de que os quarenta anos estão na próxima esquina e um balanço sobre a primeira metade da vida os torna menos impulsivos e sem tanta sede de vida.
Este lado é compensado no personagem de Nicola Fuller-Smith, a estudante de cinema Nikki, dez anos mais nova que o grupo e, portanto, com a idade que seus pares tinham em “Trainspotting”. A ela cabe o tesão pela vida e a lenta e deliciosa autodestruição do livro anterior. Manipuladora de homens e pseudo-intelectual, tem uma empáfia sensual típica das meninas que se consideram no controle da situação, provocando combustão com a química ao lado de Sick Boy. Os dois – ególatras, sexcêntricos, arrogantes – formam um casal perfeito, cínico e mau caráter.
Mas toda barra pesada e desilusão é bem diluída no humor peculiar de Welsh, que vai da ultraviolência ao sadismo de desenho animado, de perversões intelectuais a egotrips mirabolantes – se perde em relação a “Trainspotting” em ritmo e energia, “Pornô” ganha em acidez e meticulosa crítica comportamental. Os delírios de Sick Boy sobre empreendedorismo, tanto no mercado de “entretenimento adulto” quanto na “revitalização do centro de Leith” aludem tanto à megalomania neoliberal quanto ao novo-riquismo – e são hilários. A tradução de Daniel Galera e “Mojo” Pellizzari abranda felizmente o inglês tosco de alguns dos personagens – tornando os livros de Welsh difíceis até para quem lê em inglês – em prol do ritmo da leitura.
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“Pornô”
Editora: Rocco
Páginas:568
Preço : R$ 62,50
Taí o cadáver do meu fiel comparsa, rocinante mecânico dos cerrados de minh’alma. Você com certeza lembra dele, cheirando à cinza, cheio de jornal, quase sempre na reserva, antes de ele passar dessa pra melhor, no último primeiro de dezembro, menos de uma semana depois do Trabalho Sujo ter feito dez anos. Valeu, bróder, tou te esperando reencarnado no meu próximo coche.
Na Folha de hoje, o SLATFATF:
“Eu amo prazos”, disse certa vez o escritor inglês Douglas Adams (1952-2001), “adoro o som apressado que eles fazem quando voam”. O barulho deve ter ficado insuportável quando ele escrevia o material do quarto volume da série “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, “Até Mais, e Obrigado Pelos Peixes”, que chega pela segunda vez às prateleiras do Brasil. Afinal, foi preciso que o editor original de Adams, Sonny Mehta, se trancasse em uma suíte de hotel com o autor para garantir que o livro saísse dentro de seu cronograma em 1984.
“Até Mais…” já havia sido publicado no Brasil com o título de “Até Mais, Valeu o Peixe” em 1988 pela editora Brasiliense, na primeira vez que o clássico de Adams foi vertido para cá – e foi justamente o livro em que a editora original parou de publicar a “trilogia em cinco volumes” idealizada inicialmente como uma série de rádio transmitida pela BBC 4, em Londres.
Com a nova edição, a atual detentora dos direitos da obra, a Sextante, equipara-se à primeira aparição do “Guia do Mochileiro” por aqui, além de prometer a publicação do ainda inédito volume de conclusão da saga de Harvey Dent e Ford Prefect pelos confins do espaço, “Mostly Harmless”, para maio de 2006. A editora trabalha com o título provisório de “Praticamente Inofensiva”, que é a sucinta descrição do planeta Terra no próprio “Guia do Mochileiro das Galáxias” que acompanha os dois protagonistas da série.
Com um ótimo equilíbrio entre comédia de costumes, surrealismo sci-fi, ácida crítica ao comportamento humano e a todos os níveis de burocracia, “O Guia do Mochileiro das Galáxias” não pode ser resumido em uma frase para ser colocada na contracapa de um livro. Com passagens pela equipe de redatores da série cult inglesa “Doctor Who” e do “Flying Circus” do grupo Monty Python (em que chegou a atuar, em pontas-relâmpago), Adams bolou uma viagem interplanetária em que um típico inglês, Arthur Dent, é salvo da destruição da Terra por um de seus melhores amigos, Ford Prefect, que se revela um alienígena pesquisando sobre o nosso planeta para a publicação mais popular do universo: o “Guia do Mochileiro das Galáxias”, um livro eletrônico interativo com a frase “Não Entre em Pânico” escrita em suas costas e que traz respostas para todas as perguntas sobre culturas, costumes e hábitos dos povos siderais.
Viajando pelo espaço e pelas páginas de livros como “O Restaurante no Fim do Universo” e “Vida, Universo e Tudo Mais”, os protagonistas encontram máquinas deprimidas, naves inusitadas, raças bizarras e alienígenas egocêntricos que apenas servem de veículo para o humor cáustico e elegante de Adams. Como Philip K. Dick, o autor inglês não quer fazer previsões sobre o futuro ou elocubrar sobre universos alien; ele usa a ficção científica como um gancho para filosofar sobre a natureza humana e divagar sobre a existência. No caso de Douglas, saem a pressa e a paranóia para entrarem jogos de linguagem e sutis ironias, sempre temperados com a característica fleuma do humor inglês – ela mesma ridicularizada diversas vezes no decorrer da série.
Devido justamente à questão dos prazos (e por sua história central ser um romance entre Dent e a paranóica Fenchurch, única terráquea a lembrar-se da destruição original do planeta), “Até Mais…” é o livro mais fraco dos cinco – o que não deixa de lhe dar léguas de vantagens sobre grande parte da atual literatura de humor. A frase que batiza o livro é uma estranha mensagem recebida por algumas pessoas na Terra, para onde Arthur volta, mesmo achando que ela tivesse sido destruída – a pequena diferença diz respeito ao completo desaparecimento dos golfinhos do mar, ligado diretamente à frase do título. Ela também é o tema para a fantástica abertura do filme hollywoodiano baseado na série, lançado este ano, com Martin Freeman (da série “The Office”) e o rapper Mos Def nos papéis principais. O filme não foi absorvido pelo público de cinema atual e fracassou nas bilheterias, não havendo projetos para possíveis continuações.
Mas, ao ser publicado no ano que vem, “Mostly Harmless” não esgota o “Guia do Mochileiro das Galáxias” por aqui – ao menos na galáxia de Gutenberg. Ainda há o póstumo “The Salmon of Doubt” (“O Salmão da Dúvida”) com contos aleatórios e um começo de livro, inicialmente bolado para outra série de Adams, a do “detetive holístico” Dirk Gently, mas que foi redirecionado para os universos do “Mochileiro”. Além do ótimo guia sobre a saga (“Don’t Panic: The Official Hitchhikers Guide to the Galaxy Companion”), escrito por Neil Gaiman, autor da série de quadrinhos “Sandman”, que esmiuça a saga no mesmo tom ácido e elegante do texto de Adams.
“Até Mais, e Obrigado Pelos Peixes”
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Sextante
224 páginas
R$ 19,90
Mais um Crumb com meu nome na ficha técnica, mas dessa vez a tradução foi do Galera. Eu só revisei a tradução dele, ou seja, tive pouco trabalho. Minha Vida é um álbum inédito no mundo e reúne as egotrips do mister Robert. Coisa fina, como tem sido em geral a edição da Conrad pra quadrinho adulto.
Falei do filme sohre o Watchmen outro dia em cima de uma notícia velha, mas o negócio tá mais adiantado do que parece. O diretor deve ser o mesmo David Hayter que escreveu o roteiro em cima do original de Alan Moore. Pra quem não ligou o nome à pessoa: Hayter é o cara que escreveu os roteiros dos dois X-Men e do Hulk – ou seja, parece boa pessoa. O legal é o papo do cara do Ain’t it Cool News, que elogia pacas o roteiro de Hayter, que ele leu no ano passado:
I had my answer within the first ten pages of the script. Hayter has done the unthinkable. He’s written the first comic book screenplay to treat its source material as literature, and he’s crafted this with all the care and complexity of end-of-the-year Oscar bait. This is an epic story about responsibility and mankind’s worst nature and hope, and in the shadow of September 11th, it feels more important than it ever has before. There are very few scripts that I read each year that I feel must be made, but this is a case where the genre is literally incomplete unless this film is brought to the screen as soon as possible. This isn’t just great film writing; it’s the very model for how to adapt something and preserve it intact while still making the hard choices that anyone faces when translating something from one media to another.
E, pelo jeito, 1) nada dos textos extensos nos finais dos episódios e 2) nada do Cthuluh em Nova York