Por Alexandre Matias - Jornalismo arte desde 1995.

Link – 27 de agosto a 2 de setembro de 2007

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GB 90

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Não, não é a nonagésima edição da festa Gente Bonita Clima de Paquera – tamos chegando ao primeiro ano, mas a contagem ainda tá na casa das trinta aparições. Mas o estrago já foi feito – vide a tenda Tim Mashup do Tim Festival, que, pode-se dizer, existe basicamente porque um dia resolvemos hypar algo que a maioria dos muderneiros de plantão dava como um mero modismo de começo de século (é bom lembrar que, sem os Beatles, o rock seria apenas um modismo de meio de século). Anfan: o motivo do 90 no título é que amanhã tem Gente Bonita invadindo uma festa de terça-feira que pouco a pouco vai tomando corpo, forma e conteúdo. I Love 90s é tocada pela Miss Má, que nos intimou pro desafio de só tocar coisas dos anos 90. Mas ao contrário do que roga o flyer oficial da festa, esqueçam indiesmos shoegazer ou britpopices de ocasião. Nem o Gilberto Custódio, que em outros tempos já foi tachado de ser o sujeito mais indie-90 do Brasil, vai por essa praia – é que ele também discoteca nesta terça. Mas nada tema: com Gente Bonita, a noite é sempre garantida. E se você botar seu nominho na lista de presença, em vez de pagar vinte reales, morre só em dez. Preço justo por uma noitada de peso – e improvável, no meio da semana. A festa começa às 21h, mas a gente começa a tocar à meia-noite.

Gente Bonita @ I Love 90s
Terça-feira, 28 de agosto de 2007
Discotecagem: Miss Má (residente), Gilberto Custódio e Luciano Kalatalo & Alexandre Matias (Gente Bonita Clima de Paquera)
Local: Studio SP – Rua Inácio Pereira da Rocha, 170. Vila Madalena
Horário: A partir das 21h
Preço(s): R$ 20,00 e R$ 10,00 (com nome na lista)
Para incluir seu nome na lista, www.gentebonita.org

Daioné

Pra começar bem a semana.

Clandestino – Manu Chao

Tirando o finde pra resgatar txts…

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***

Existe um país que não está no mapa. Debaixo de marcas, nações, dinheiro, leis e qualquer espécie de censo, o povo deste país vive cada dia como uma nova luta, divertindo-se à medida que trabalha. Em botecos e barracas de camelô, carregando produtos nas costas e sentando-se no chão, esta população não conhece luxo, riqueza ou a possibilidade de crescer. Vive numa corda bamba, de costas para o capitalismo, que vêem como um câncer que tirou a energia vital da maioria das pessoas. O dinheiro fez com que as pessoas se distanciassem do cotidiano, sem conhecer seus vizinhos, presas em apartamento e tendo falsas experiências de vida através da televisão e dos computadores.

As pessoas deste país tenta driblar o destino como com um passo de dança, buscando a arte nas pequenas coisas da vida, a beleza no menor toque. Para estes de pele morena mais vale um amigo que um apresentador de talk show, uma tarde de conversas que um livro lido, o contato humano que a informação. Todos os povos que foram massacrados pelos brancos euro-americanos têm estes valores no centro de sua sociedade, como uma forma de resistência cultural. Índios americanos, latinos, africanos, hindus, árabes – povos que sobrevivem com seus rituais e danças, privilegiando o convívio e a comunidade ao isolamento amedrontado imposto pelo capitalismo europeu. O terceiro mundo é um grande país que vive uma era de medo e exploração que ameaça sua própria existência. Uma longa noite.

A metáfora é de Manu Chao, líder do falecido Manu Negra, em seu excelente primeiro disco solo. Clandestino – Esperando La Ultima Ola…. “Uma longa noite de 500 anos”, ele lamenta no disco. “Quando sairá o sol?”, espera ansiosamente. Transitando entre as culturas, os ritmos e os idiomas das diferentes faces deste país intercontinental, Manu é o traficante da liberdade. Atravessando fronteiras com o idealismo romântico de Che Guevara, ele prega aos quatro ventos sua versão dos fatos, como um Fox Mulder solitário dos trópicos, querendo expor a verdade a todo custo.

“Tudo é mentira neste mundo/ Tudo é mentira, é verdade”, segue cantando. Sim, é verdade. Escutamos a versão dos fatos e adotamos todos os padrões do povo que nos explora. Ele abre o disco comentando a sua situação perante olhos oficiais: “Correr é meu destino/ Para burlar a lei/ Perdido no coração da grande Babilônia/ Me chamam de clandestino porque não levo papéis”. Fugindo do braço da lei, ele explica outra reputação na segunda faixa, “Desaparecido”: “Me chamam de desaparecido/ Quando chegam, já fui/ Voando venho, voando vou/ (…) Quando me procuram não estou/ Quando me encontram não sou eu/ O que está a sua frente, porque saí correndo”. A constante fuga é seu destino de nômade andarilho: “Levo no corpo uma dor/ Que não me deixa respirar/ Levo no corpo uma culpa/ Que me faz sempre caminhar/ (…) Levo no corpo um motor/ Que está sempre a funcionar/ Levo na alma um caminho/ Que nunca vai chegar”. “Perdido no século vinte”, se pergunta, “quando chegarei?”.

Correndo de um lado pelo outro, ele canta em inglês, espanhol, português e francês, repetindo trechos de música no decorrer do próprio disco, misturando e convergendo ritmos e dando o mesmo recado – não há diferença entre os povos, todos são iguais. É o mesmo lamento, é a mesma canção, o mesmo pulso, o mesmo pesar, alegria e dor. A opressão apenas é mais um fator que nos une e Manu lamenta os “dias de lua” que vivemos, nessa noite que parece que não tem fim. “Acima a lua, vê!”, aponta em “Luna y Sol”, ao mesmo tempo em que espera o nascer de um sol que não vem.

Diferentes gêneros se encontram na música de Manu, sem distinção. House, rock, mariacchi, reggae, samba, funk, rumba, ju-ju, dub, calipso, rap, guarânia, mambo, salsa… Toda música de rua descende da mesma origem, é o que canta a alegre voz de Chao. Usando instrumentos convencionais (o violão é seu fiel companheiro de viagens), a música em Clandestino sai de todos os sons. Desde um insuportável chaveirinho made in Paraguai (aquele que faz ruídos de videogame) até o som do vento, a música ambiente é parte fundamental do disco. Transmissões de rádio (a internet deste país) e barulho de gente completam os espaços das músicas, nos colocando no meio de um grande e lotado mercado livre. A forma que ele utiliza as vozes das pessoas ganha especial destaque em faixas como “Por El Suelo (Esperando La Ultima Ola)” e “Lagrimas de Oro”, quando um insuportável locutor de FM em inglês e um narrador de jogo de futebol em rádio AM em português explodem suas vozes no lugar de um solo, transformando a voz humana num estranho mas eficaz instrumento. Todos obedecem a apenas uma regra: o ritmo. Ele faz as pessoas caminharem e a música fluir, faz a vida seguir seu rumo.

“Eu sou um rei sem coroa, passeando na grande cidade/ Porque eu sou o rei do bongô”, diverte-se no toast repente “Bongo Bong”, que metamorfoseia-se rapidamente na francesa “Je Ne T’Aime Plus”. Sua fluência rítmica é suficiente para comprovar sua vida de cigano moderno. Mas chegamos até “Minha Galera” e ouvimos passear pelo português brasileiro gingando gringo: “Minha maconha/ Minha torcida/ Minha querida/ Minha galera/ Minha cachoeira/ Minha menina/ Minha flamenga/ Minha capoeira/ Minha Valéria/ Minha maloca/ Minha larica/ Minha cachaça/ Minha cadeia/ Minha vagabunda/ Minha vida/ Minha mambembe/ Minha ladeira”. O cara passou uma bela temporada no Brasil e saiu daqui apaixonado. Como sai de qualquer país.

Afinal, esta é sua sina. Carregar a música e a cultura de um lado para o outro, trocar experiências e manter o mundo em contato com ele mesmo. “Passe este manifesto adiante”, diz o subcomandante Marcos, do Exército Zapatista, sampleado. Notícias são bobagens, o que importa é saber se o coração ainda está batendo. Manu Chao corre o planeta no ritmo deste pulso, avisando-nos que ainda estamos vivos. E ajuda a manter a pulsação.

Zen Arcade – Hüsker Dü

“Estou sempre fascinado com o fato da música mostrar idéias para as pessoas. Você pode formar imagens, contar uma história, ser realmente didático sobre o assunto e contar as pessoas o que elas devem fazer. Mas acho que o verdadeiro poder da música é que o ouvinte pode ouvir o que quiser ali”, disse Bob Mould em uma velha entrevista à revista Grafitti. Um cara tão normal quanto você e eu, Mould conhecia este poder de perto e usou-o para explicar algumas coisas para seu público alvo, o jovem adulto, que não sabe se é adolescente ou maduro e vaga por indecisões morais, éticas e políticas que interferem diretamente em sua vida pessoal.

A psicologia usada por Mould e Grant Hart, o outro compositor e vocalista (além de baterista) do Hüsker Dü não usava metáforas nem floreava sentimentos. Os dois contavam suas próprias experiências e frustrações como narradores de histórias alheias. Olhavam para dentro de si e confessavam seus pecados e medos – os mesmos de todo mundo. Juntos com o baixista Greg Norton, cuspiam essas histórias casando canções perfeitas com o mais ousado punk rock sem perder suas referências básicas. Pesado, elétrico, energético e vigoroso, o Hüsker Dü é uma das bandas mais importantes dos anos 80 e da história do rock.

E há quase vinte e cinco anos escreviam o capítulo definitivo de suas vidas, a obra definitiva sobre o medo de crescer, a dor da responsabilidade, a transição da puberdade à maturidade. Zen Arcade era exatamente o que seu título propunha: um fliperama que leva o vencedor à paz de espírito. Em dois discos completos com canções mágicas e riffs matadores, o trio de Minneapolis conforta a insegurança do ouvinte como um desabafo de amigo e nos conta verdades que não sabíamos se podíamos admitir, para nosso alívio. Conflitos que todo mundo já viveu, mas nunca tem coragem para pedir ajuda. Quando se corre ao banheiro para chorar escondido e pensar se é possível que a vida valha a pena. Isso não é uma questão de classe(s), pois todo mundo passa por essa fase, por mais seguro que seja.

E Zen Arcade nos explica suas verdades e apresenta-nos seus medos sem romantismo ou intelectualidade. Há sim, poesia e ciência no Hüsker Dü, mas ela é palpável, humana e real. O trio não nos impõe regras ou dogmas, apenas nos conta uma história, dividida em várias partes, em que podemos observar nossas mais diferentes reações na pele de outra pessoa.

A história é simples. O personagem principal é um moleque que aos poucos aprende as dificuldades da vida (“Something I Learned Today”) – uma delas são seus pais que brigar toda noite (“Broken Home Broken Heart”), trazendo-lhe raiva (“Never Talking to You Again”) e fazendo com que ele pense em fugir de casa (‘Chartered Trip”). Sozinho no escuro do quarto, ele embebeda-se de sono (“Dreams Reoccurring”) enquanto certifica-se que a fuga é a melhor saída. Foge para a cidade grande (“Beyond the Threshold”) e vê-se sem dinheiro (“Hare Krsna”). É o suficiente para que passe a culpar-se pelo próprio erro, reconhecendo o orgulho idiota (“Pride”), a ausência dos pais (“I’ll Never Forget You”), um possível retorno (“The Biggest Lie”) e entrando num estado de confusão que o faz pensar na própria sanidade mental (“What’s Going On”) e no sentido da vida (“Masochism World”). Assume o próprio erro (“Somewhere”) e encontra a razão de viver olhando para o mar (“Standing by the Sea”) para depois admitir que não sabe lidar com responsabilidades (“Pink Turns to Blue”). Olha o mundo em sua volta (“Newest Industry”) e depois para si mesmo (“Whatever”), enquanto volta a se indispor durante o sono (“The Tooth Fairy and the Princess”). Até que percebe que o problema do mundo é a falta de amor (“Turn on the News”), acordando subitamente (“Reoccurring Dreams”). Foi tudo um sonho.

Sonho que também é uma boa alusão ao título do disco. Imerso nos sentimentos enquanto dorme, você exercita suas idéias e opiniões durante o sonho, filosofando durante uma concentração irracional, como um fliperama zen. Mas por que um fliperama?

Porque Zen Arcade é um desafio e é divertido. Florescendo junto com a primeira onda de hardcore, o grupo encontrou no punk rock um vasto terreno para crescer e dar frutos. E fizeram com o gênero o mesmo que os Beatles fizeram com o rock, que os Beastie Boys fizeram com o rap, que o Funkadelic fez com o funk, que o Kraftwerk fez com a música eletrônica: transformaram um gênero primal em um vasto leque de possibilidades inexploradas, reunindo dois pontos básicos e opostos. Ao mesmo tempo que empurravam os limites à distância possível, faziam-no com canções perfeitas, tiros certeiros, músicas nota 10. Fazer pensar e fazer cantar (ou dançar), colocar as duas inteligências para interagirem de forma harmônica, nos transpondo para aquela região da psiquê humana que só quem já se deixou influenciar completamente (mental, espiritual, físico e racionalmente) pela música conhece.

A comparação com os Beatles é a mais eficaz porque era o espelho que o trio se refletia. O fato de terem as canções distribuídas entre dois grandes compositores e intérpretes que se equilibravam (um mais visceral, outro mais emocional) e por escrever músicas em que tudo – absolutamente tudo – funciona, nos leva às docas de Liverpool que abre as portas da Inglaterra beatlesca. Mas o cenário é diferente: a psicodelia não é um artigo de luxo, mas um mal necessário para agüentarem a estruturação dos primeiros alicerces da cena indie americana. Enquanto os Beatles faziam incessantes turnês pelo mundo, o Hüsker Dü fazia o triplo de shows pelos Estados Unidos.

Então é compreensível o tipo de atmosfera que floresça o talento de uma geração de bandas que, descontado o fato que saem do barulho e da velocidade, pode ser considerada tão importante quanto a chamada British Invasion – ou ao rock clássico. Enquanto o Hüsker Dü eram os Beatles, os Replacements eram os Rolling Stones, os Minutemen eram o The Who, o Sonic Youth era o Velvet Underground, os Meat Puppets eram o Led Zeppelin, o Black Flag era o Black Sabbath, o R.E.M. eram os Byrds. Todos cruzando os Estados Unidos de perua e tocando onde dava pra tocar. Garagens transformadas em casas de shows em minúsculas cidades de estados distantes, criando toda uma geração de roqueiros que basta listar apenas algumas de suas crias num fôlego só (Nirvana, Sebadoh, Mudhoney, Pixies, Fugazi, Superchunk, Sleater-Kinney, Beastie Boys, Beck, Bikini Kill, Smashing Pumpkins, Tortoise e Pearl Jam) para se ter a noção da importância na história do rock.

Afinal foi esta geração que, durante os anos 80, construíram o rock independente americano. Nomes como Steve Albini, Jon Spencer, Ian McKaye, Henry Rollins, Jello Biaphra, HR, Glenn Branca, Mike Watt, Exene Cervenka, Stiv Bators, Lydia Lunch, Darby Crash e muitos outros hoje são celebridades de importância justamente porque ajudaram a construir esta cena. Mas foram as bandas que a tornaram possível. E todas elas atravessavam os EUA várias vezes em excursões intermináveis. E, como todas elas, o Hüsker Dü gravava seus discos nos intervalos, enquanto testava o repertório do próximo disco em plena turnê, testando versões diferentes de várias músicas durante os shows, fazendo com que cada apresentação da banda fosse única.

Zen Arcade é o ponto de mutação do grupo. A bateria martela a entrada marcial seguido de um baixo pós-punk tocado com palheta, num andamento que acelera à entrada da guitarra, tão desesperada quanto o vocal de Bob Mould: “Algo que aprendi hoje/ Preto e branco é sempre cinza”. “Something I Learned Today” abre o disco com violência e reflexão após verdades ditas de forma curta e grossa. O tema do lado A (a revolta) deste disco duplo em vinil é descrito a partir de seu primeiro sintoma: a raiva ante à imposição de regras. “Broken Home Broken Heart” desacelera mas continua com a urgência e dinâmica hardcore característica da primeira fase do grupo e descreve a aflição de um personagem atormentado pelas brigas dos pais (“Você não sabe quem está certo ou errado/ Tendo que se acabar chorar para conseguir dormir”). Ao violão, Grant Hart dá sua primeira contribuição ao disco. Seguido ao violão e voz por Bob, os dois abraçam o folk em I “Never Talking to You Again”, o definitivo racha do “personagem principal” com seus pais (entre aspas, porque o tema por trás do disco só pode ser entendido se ouvido na ordem em que ele foi concebido – sós, as canções não contam histórias, mas expressam determinados sentimentos).

A partir daí, uma mudança sutil passa a permear todas as canções. Mais do que explosões hardcore sobre músicas perfeitas, as próximas músicas soam mais complexas, sem perder nem espontaneidade nem o senso pop. Interessante destacar que esta mudança acontece logo após o rompimento com as figuras materna e paterna, no momento da vida em que todas as pessoas percebem que terão que decidir por si só tudo que diz respeito à vida delas. É o início da maturidade – musical, no caso do Hüsker Dü.

“Peguei minhas coisas numa mochila de nylon/ Ouvi o cobrador chamar/ Disse “o céu é o limite nesta viagem fretada/ Melhor ficar (longe daqui)”. A decisão de fugir de “Chartered Trips” parece tão convicta e ideal quanto seu instrumental. Abrindo com um dos riffs que mudaram a vida de Doug Martsch (do Built to Spill), dedilhado e veloz ao mesmo tempo, distorcido e melódico. Como o vocal de Bob, berrado como outras vezes, mas contido, sério, decidido, valorizando a melodia da canção. “O horizonte é abstrato”, canta, querendo apenas ir, sem destino, “Viagem fretada à diante”.

De repente, um disco de trás pra frente. “Dreams Reoccurring” traz solos de guitarra, uma violenta bateria, um baixo pesado, um riff conduzindo um ataque a três agressivo – tudo de trás pra frente, tudo fazendo perfeito sentido. Mas tudo soando lúdico e psicodélico devido à inversão sonora, dando o ar de sonho que a canção pede. Você só percebe que o som está invertido pelo timbre alienígena dos três instrumentos, mas todos os passos dela fazem sentido, um palíndromo gigantesco e perfeito, escrito através do rock.

Ela entra em “Indecision Time”, que faz o protagonista ter seu último escândalo adolescente. Brigando consigo mesmo, Bob Mould volta ao hardcore básico para mostrar o aspecto infantil e primitivo desta última revolta. Começa a fase da indecisão, o princípio da maturidade. “Questões como uma vela que queima nas duas pontas/ Nunca encontra uma resposta que se encaixe em seus planos/ Pra frente e pra trás entre o bem e o mal: Era da Indecisão/ Você é tão natural, tão livre/ Por que não decide o que é melhor pra mim?”, berra o último rock’n’roll abrutalhado do disco, “Vá pra esquerda, vá pra direita/ Sua mente fica acesa a noite toda/ Gira no sono, agarra-se às cobertas, sua à morte”. Sim, estamos entrando em alfa, o sonho vai começar.

Começa o lado B com Grant Hart fazendo tudo em “Hare Krsna”. O baterista usa uma bobagem qualquer sobre Hare Krishnas para aventurar-se pela música hindu sem culpa. Apenas com seus conhecimentos musicais da cultura da Índia (tirados dos Byrds, de John Coltrane, de George Harrison e Ravi Shankar, certamente), Hart balbucia mantras e berra o título da música enquanto experimenta guitarras sobre um andamento estranhamente oriental. A referência a um elemento místico na cultura pop e o momento solo de um dos compositores são características também de “The Tooth Fairy and the Princess”, de Bob Mould, que é tocada pouco antes do sonho (e do disco) acabar.

“Beyond the Threshold” é outro momento mágico. Uma frase musical é repetida com força e ritmo pelo trio, enquanto os dois vocalistas dividem vocais soturnos como os de “Murder Mystery”, do Velvet Underground, e berros que rasgariam para sempre a garganta de qualquer um. “Uma cidade cavala/ Um grande deserto/ Deserto de asfalto/ Selva de asfalto”. Chegamos à cidade grande, “além do limiar”, como diz o título da música.

“Pride” assiste Mould em outra sessão de gritos que fazer a garganta doer quando se ouve. Sobre um rhythm’n’blues aceleradíssimo (que orgulharia Pete Townshend, do Who), Bob amaldiçoa o orgulho por ele ser a razão da frieza na cidade. E por ele estar tomando conta de si mesmo em relação à separação dos pais: “Seus pais mandam dinheiro/ Mas ele não volta/ Sem reação, sem resposta/ Esqueça-o, apenas esqueça-o”.

Um polígono desenhado no baixo do jeito mais anos 80 possível abre “I’ll Never Forget You” e o coração do protagonista. Este xinga e chora as razões de ter saído de casa: “Disse tudo que eu sabia sobre mim para você/ Você não ouviu uma palavra do que eu disse/ Cuspi minhas intimidades, joguei tudo fora/ Nunca se importou comigo/ Só queria ser seu amigo/ Agora sei, tem que acabar/ Eu nunca vou te esquecer, eu nunca vou te perdoar”.

O riff sabbáthico começa a parábola do filho pródigo. “Você acha que você chegou ao topo porque todos conhecem seu nome/ Você ainda é o mesmo/ Seus sonhos não são pra sempre, melhor catar as coisas/ Pra um novo jogo”. O refrão é docemente pop e impossível de se imaginar numa banda punk. “De volta ao emprego/ De volta à namorada/ De volta à cidade natal/ A maior mentira”, se arrepende em cima da hora. Até que questiona a sua própria sanidade em “What’s Going On (Inside My Head)”, que conta com um piano inesperado. “Eu estava falando quando deveria estar ouvindo/ Não ouvi nada do que me foi dito/ Não devia ser importante/ Porque eu estava preocupado com o que estava acontecendo dentro da minha cabeça”. “Masochism World” vê um Grant Hart testando os limites físicos da dor, enquanto conduz o ritmo que termina em convulsão instrumental.

O lado C é o mais poético do disco. “Standing by the Sea”, outra de Hart, nos mostra o narrador contemplando a beleza do mar e entendendo a resposta da vida nas coisas mais simples, no caso, as ondas do mar. A canção é de uma beleza impressionante e não deixa o punk perder a força. “Procurando a verdade só encontrei mentiras/ Tentando achar uma identidade só achei um disfarce/ Vi o pesadelo quando tentei ver o sonho/ Encontrei a realidade tão perfeita como é”, arrepende-se em “Somewhere”, que também entra vigorosa para descambar num refrão essencialmente pop, com Mould sussurrando os vocais sob os berros de Hart. “Em algum lugar a poeira vai embora com a chuva/ Em algum lugar há felicidade em vez de tristeza/ Em algum lugar satisfação não tem nome/ Em algum lugar onde eu possa ser o mesmo”. Somente ao piano, o interlúdio “One Step at a Time” (Um passo de cada vez), nos mostra o ritmo que precisamos ter para tomarmos decisões.

E “Pink Turns to Blue” – de Hart – entra lenta, macia e perfeita, com vocais em falsete e uma doce melodia. Conta a historinha de um casal que não sabe direito o que é amor para concluir, com medo, no refrão que “eu não sei o que fazer quando o rosa torna-se azul (ou triste, dependendo da tradução)”. Ela nos lembra da dureza que é quando a vida fecha a porta na cara da gente pela primeira vez, a sensação de impotência cantada com doçura e perfeição pop. “Newest Industry” é a desculpa que Mould precisava para falar de política, ainda que com a sensibilidade melódica aguçadíssima, criando um painel em que os Estados Unidos atravessam uma guerra em seu país. “Bombardearam o leste, bombardearam o norte, não há mais para onde ir/ (…) Vamos anexar o México/ O peso vale só dez centavos, mas eles têm toda aquela terra/ Nem precisa guerra civil, eles irão entender, né?”, ironiza. Ao final, Bob volta ao piano para mostrar – como um velho professor – que o riff de guitarra que estava tocando era, na verdade, uma frase musical.

A desculpa vem ao fim em “Whatever”. “Ele vive em sua imaginação, com aqueles amigos dele/ Ele não se dá com o mundo exterior, prefere ficar só/ Às vezes, tarde da noite, ele tenta entender o porquê/ Os planos que fez nunca acontecem, tudo que faz é chorar”, canta Bob Mould sobre o cavalgar do trio, “Seus pais não entendem onde seu filho deu errado/ Ele foge da dor, esquecendo deles quando fugiu/ Prefere ficar só, seus planos são melhores/ Ele finalmente encara a coragem e a vida torna-se um teste”. O refrão é berrado e tem gosto amargo, mas não de arrependimento: “Mãe e pai perdoem-me/ Mãe e pai não se preocupem/ Não sou o filho que vocês queriam, o que mais vocês podem esperar?/ Fiz meu mundo de felicidade para combater sua negligência”. Antes do fim do lado C, Mould tem seu momento solo com a sonolenta “The Tooth Fairy and the Princess”. Invertendo trechos de guitarra e uma discreta percussão, ele superpõe os efeitos sonoros sobre um dedilhado psicodélico e vozes fantasmagóricas e monótonas: “Não desista/ Não deixe ir/ Não ceda/ Não deixe/ Em sua cama/ À noite/ Tão quente/ Não acorde”.

O lado D abre com “Turn on the News” – outro momento político, outro punk clássico, desta vez de Hart – que cita os problemas de nossa sociedade (“Escuto todo dia no rádio/ Um cara matou outro que nem conhecia/ Aviões caindo do céu/ Um bebê nasce e outro morre/ Rodovias repletas de refugiados/ Médicos descobrindo sobre doenças”) e detecta a raiz destes (“Tudo isso nos deixa distantes daqueles que amamos”). A jam de “Reoccurring Dreams” volta agora certa, tocada da forma correta (e prolongando-se em 13 minutos até o fim do disco). E ao ouvirmos quase a mesma música com timbres certos, voltamos à realidade e acordamos do sonho. Um passeio pela mente de qualquer adolescente inconformado com sua situação. Revolta, vingança, arrependimento e maturidade – um ciclo obrigatório que o protagonista vive num sonho.

Isso tudo num disco duplo gravado em pouco mais de três dias, grande parte das músicas gravadas em apenas um take e mais de 80 horas só para a mixagem. Pro Hüsker Dü, tempo era energia. Não dava para perdê-lo, tinha de ser gasto. Zen Arcade é só uma metáfora de sua carreira. A melhor de todas.

3 Lugares Diferentes – Fellini

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Quem se dispôs a ouvir a edição em CD do disco Três Lugares Diferentes, do Fellini, até o fim encontrou Serginho Groisman, na época apresentando seu finado programa Matéria Prima, perguntando ao grupo sobre a relação do punk rock com o chamado – desde aquela época – “rock alternativo”.

A pergunta encerra o disco sem resposta, como se deixassem o ouvinte tirar suas próprias conclusões. O que teria a ver a bossa pós-moderna do grupo dos não-músicos Cadão Volpato e Thomas Pappon com o grito de “chega!” dado pelos ingleses e americanos no fim dos anos 70? Musicalmente, nada. Sozinhos ou acompanhados, o duo Fellini era uma aberração em português, cantada como uma história esquecida, à meia-luz, com o som bem baixinho. A única relação musical do grupo com o punk rock eram os ruídos pós-punk (Cure, Gang of Four, Echo, Smiths) emitidos pela guitarra de Thomas.

Mas historicamente o Fellini era fruto do punk. Não fosse o gênero, seria pouco provável que os dois protagonistas se reunissem para gravar músicas. Mesmo porque as músicas não eram o principal para o grupo. O importante é que eles podiam fazer música sem ser músicos, compor sem serem compositores, gravá-las sem noção nenhuma de gravação. Partindo do zero, a mensagem do Fellini não estava no conteúdo de seu trabalho e sim na forma que eles o encaravam.

Começava pelo fim sempre presente na história da banda. Desde seu primeiro disco, O Adeus de Fellini, o grupo estava disposto a debandar, a acabar com a própria existência. A vontade de registrar o trabalho em estúdios portáteis (os novíssimos portastúdios dos anos 80) dava às canções um ar de elo perdido, como se fossem músicas esquecidas pelo tempo em algum porão de gravadora. Mal-gravadas propositadamente para resgatar o aspecto sintético da canção, as composições do Fellini antecipavam o chamado lo-fi, que floresceu na década atual (partindo exatamente do rock alternativo).

Seu despojo musical também era herdeiro do punk. Poucos instrumentos eram tocados e eram colocados de maneira quase artesanal dentro de suas faixas. Uma bateria eletrônica sempre dava a base necessária para Thomas grunhir seu instrumento e Cadão cantarolar seus poemas de fundo de caderno. Algum teclado ou outros efeitos sonoros funcionavam como ar dentro das músicas, respiros frios e sintéticos como uma versão caseira da produção de Brian Eno nos discos de Bowie em Berlim.

Mas o maior vínculo entre o Fellini e o punk acontecia pelo grupo ser brasileiro e – algo quase impensável na época – independente. Seus discos não eram encontrados em lojas comuns e grande parte de seus ouvintes esperavam seus discos pelo correio. O reembolso postal era a versão pré-histórica da internet e fazia-nos ficar mais perto de Londres, de Nova York ou de São Paulo, estando em qualquer parte do Brasil.

Lembro quando recebi meu Três Lugares Diferentes. Era como se pudéssemos nos transportar para aquele universo imaginário do rock alternativo alardeado nas páginas mais paulistanas da extinta Bizz. Um lugar que não existia, mas que era idealizado e executado por pessoas que acreditavam na possibilidade de se fazer música sem conhecer música. Enquanto o rádio tocava Titãs, Kid Abelha e Legião Urbana, discos do Picassos Falsos, do Akira S, do Gueto, do DeFalla e de outras bandas nos alertava à possibilidade de existir algo além do mainstream badalado no Chacrinha. Era uma revolução que, se explodisse e fosse às massas, perderia seu charme.

Três Lugares Diferentes tinha todo o charme que esta cena precisava. Transformado em trio com a participação do tecladista Ricardo Salvagni (que tocava bateria no primeiro disco), o disco é o principal legado do Fellini às gerações posteriores e seu maior feito foi empatar com os Titãs de Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas na votação da crítica daquela revista antiga, no quesito disco do ano.

Pra quem acompanhava o grupo era o maior trunfo. Afinal, com não-canções como “Ambos Mundos”, “La Paz Song”, “Rio-Bahia” e “Onde o Sol se Esconde” conquistavam um lugar ao lado do grupo experimental oficial do país. Enquanto os Titãs colhiam os louros da dupla aceitação (crítica e público), o Fellini vinha caminhando pelo submundo do rock nacional como uma alternativa viável e real – cantando em português e sobre o Brasil. E não era um grupo antipop – canções como “Zum-Zum-Zazoeira”, “Teu Inglês” e “Pai” poderiam muito bem ter tocado no rádio.

Mas não tocaram. E o grupo ficou recluso ao sucesso cult. E entraram pra história assim. Como diz Osmar Santos em outro trecho do disco, “ninguém ganha nada, o disco não tá legal, mas a gente tá dando risada, tá uma curtição, vamos levar isso pra frente”. O Fellini era isso – uma curtição possível de ser levada em frente. Mesmo se não desse em nada…

“If there was a Holy Grail, Mr. Smith will be the only allowed to pick it up”

“Now that it’s raining more than ever “

Pitty pegou “Umbrella” da Rihanna e transformou num hit à Avril Lavigne. Curti.

Caveiras no túnel

“Ossário”, clipe novo do Instituto, consagrando a clássica intervenção do Alexandre Orion.

“Talkin’bout my generation”

Dahmer, Arnaldo e Allan: os Invisíveis (minidoc do Bruno).