Por Alexandre Matias - Jornalismo arte desde 1995.

Ricardo Rosas partiu!

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Dia desses fiquei sabendo por umas duas listas de discussão que assino que o Ricardo Rosas partiu pro outro lado. Uma bomba! Não só pela morte de um camarada, mas pelo fato do Rosas nem ter começado a trilhar o rumo dele por aqui. Não que não tivesse feito nada – mas quem conhecia o sujeito, sabia que aquilo era só o começo de uma biografia brilhante. Rosas era o editor do www.rizoma.net, um dos melhores repositórios em português de idéias, teses e artigos sobre tudo que quebra o padrão monotônico da cultura atual. O falava de software livre e afrofuturismo, incluía drogas, copyleft, xamanismo e manifestos século 21 num balaio que ainda contava com doses cavalares de hackerismo e libertinagens mil, entre outros assuntos que fogem do trivial/convencional que (ainda) nos assola diariamente.

Conheci o Ricardo através da comadre Giseli, que, ao mesmo tempo que carregava o piano da internet da Conrad nas costas com o Mateus, ainda tinha tempo pra organizar eventos e pensar em matar a sede de conhecimento deste nosso Brasil varonil. Gi, Rosas e a Tati (Tatiana Wells, que vez por outra encontro pelos corredores copyleft da vida) ainda estavam esquemando o que seria um acontecimento-chave pra cultura brasileira no novo século – o festival Mídia Tática Brasil. Inspirado no holandês Next5Minutes . o evento reuniu boa parte da produção artística que sabia, há cinco anos, que internet não era apenas email, bookmarks e jpgs engraçadinhos (puxando pela memória, parece a pré-história: não existia Orkut nem MySpace, blog era uma história ainda começando, um MP3 levava mais tempo para ser baixado do que para ser ouvido, YouTube era uma utopia distante, o Creative Commons não tinha sido inventado). Política, cultura, protesto, coletivismo, inclusão digital, manifestações espontâneas, performances, artivismo eram apenas alguns temas que circularam nos quatro (cinco? Não lembro) dias do festival, que aconteceu em março de 2003 e reuniu nomes como Geert Lovink, Al Giordano, Richard Barbrook e John Perry Barlow, além de diferentes manifestações nacionais como o Bicicletada, o Centro de Mídia Independente, a revista Ocas, a rádio Muda da Unicamp (que instalou uma rádio pirata na Casa das Rosas), o Projeto:Metáfora, os Telecentros da prefeitura de São Paulo, os coletivos Sid Moreira, Bijari, LSDiscos e A Revolução Não Será Televisionada, a festa TEMP, o cartunista Latuff, o Metareciclagem, entre outros, nos arredores da Paulista – e nos quatro dias os quarteirões entre o Sesc, o Itaú Cultural e a Casa das Rosas foram povoados por soundsystems, música ao vivo, panfletagens, nuvens de bicicletas, ativistas anônimos, exposições não convencionais, desfiles irônicos e protestos mascarados. Quem passava ou se assustava e saía correndo pro Shopping Paulista pra se refugiar ou entrava no clima e se divertia junto com quem tava fazendo o povo se divertir. Eu mesmo participei de três destas ocasiões: discotecando na oficina de fanzines que o Dr. Ailton instalou no porão da Casa das Rosas (quando uma ativista mais empolgada veio me chamar de sexista porque eu tava tocando “Baba Baby” da Kelly Key – detalhe, a versão instrumental), quando toquei na segunda TEMP (que aconteceu num prédio perto do Largo do Anhangabaú) e participando de uma palestra – e depois de uma mesa – sobre o que aconteceu com a música com a chegada da internet. É, desde aquela época, heheheeh…

E desde que o conheci já dava pra sacar que Ricardo não era um paraquedista ou um entusiasta de primeira hora. Além dos temas sérios e cabeça (e do lado palhaço destes mesmos temas), ele era fissurado por ficção científica, literatura beat, quadrinhos europeus e teorias de conspiração em geral. Não era só um intelectual ou um teórico que botava a mão na massa – era um broder gente finíssima, que falava o mesmo tanto que escutava, sempre tinha uma visão diferente de um assunto batido ou uma questão inesperada sobre a notícia do dia. Bom papo, boa cabeça, boas idéias – o mínimo que você espera de uma pessoa legal.

A gente só se liga dessas coisas quando é tarde demais. Enfim, Ricardo foi chamado antes da hora no dia 11 de abril passado, depois de passar um tempo meio mal, em Fortaleza, onde nasceu. Fica aqui a frustração de não ter conversado mais com o sujeito, de não saber que ele estava mal há pouco tempo, de não ter me despedido. Mas ao mesmo tempo, mais do que chorar mortes, vamos celebrar o legado do Ricardo, que pode não estar mais entre nós, mas começou uma brincadeira que nem tão cedo vai terminar. Pensando nisso, o Marcelo compilou alguns textos do cara que estão espalhados aí pela rede. E apesar do Rizoma está fora do ar, a Grazi disse que irá recuperá-lo em breve.

Taí a compilação:

» Táticas de Aglomeração – Publicação do Reverberações 2006
» Gambiarra: alguns pontos para se pensar uma tecnologia recombinante (PDF) – Caderno VideoBrasil
» Nome: coletivos | Senha: colaboração – FILE / Sabotagem
» Notas sobre o coletivismo artístico no Brasi – Trópico/UOL
» Hibridismo Coletivo no Brasil: Transversalidade ou Cooptação? – Fórum Permanente/Fapesp
» Alguns comentários sobre Arte e Política – Canal Contemporâneo
» Hacklabs, do digital ao analógico (tradução) – Suburbia
» The Revenge of Lowtech : Autolabs, Telecentros and Tactical Media in Sao Paulo (PDF) – Sarai.net

É isso aí, compadre: valeu pelo tempo gasto e pela paciência didática com todo mundo. Qualquer dia neguinho se esbarra de novo.

Kid A – Radiohead

Senão me engano, essa resenha saiu no Correio Popular em pleno ano 2000, mas a Ana do Whiplash pediu pra republicar e graças a isso, consegui resgatá-la…

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kida

Como as décadas finais de pelo menos dois séculos anteriores, os anos 1990 foram marcados por uma retrospectiva dos 90 anos anteriores, aglutinando em células compactas de conhecimento tudo aquilo que a centena de anos completa ao final da década quis dizer pausadamente. Mas a década que encerrou-se no final do ano passado foi caracterizada por outros sabores: a ironia e o excesso de informação. Associadas, estas duas qualidades despem a grande verdade sobre a sociedade capitalista às vésperas do novo milênio, um paradoxo em escala planetária que nos emburrece à medida que mais aprendemos. O saber está no ar, mas ninguém está interessado em mostrar como usá-lo.

Na música pop, estas características foram detectadas pela primeira vez pelo U2. Embora ecos destas qualidades já viessem cantando os 1990 por caminhos alternativos na década anterior (como os discos Paul’s Boutique, dos Beastie Boys; Pills’n’Thrills and Bellyaches, dos Happy Mondays; e Into the Dragon, do Bomb the Bass), foi apenas com Achtung Baby que elas se encontraram com o teor que filtrou a década. Ali estão a paixão pelo virtual frente à realidade (“Even Better than the Real Thing”), referências à história do rock (“Who’s Gonna Ride Your Wild Horses?”, “One”), paranóia (“The Fly”) e um misto de expectativa com esperança (“Zoo Station”). “Você? Você estava falando do fim do mundo”, debochava Bono enquanto mudava radicalmente o visual de sua banda, abandonando a pose de sacerdotes do rock e entrando num terreno estranho à sua antiga religião: a música eletrônica, um carnaval de ritmos e cores fundido com o preto e branco ríspido do fotógrafo Anton Corbijn. O disco de 1991, no entanto, não funcionava sozinho. Vinha acompanhado de uma extensa turnê dividida em três fases (Zoo TV, Zooropa – que acabou virando disco – e Zoomerang), que assistia a banda entre dezenas de monitores de TV e automóveis pendurados no palco, numa clara alusão à deselegância burra pré-colapso do capitalismo. Numa fantasia de caubói prateada, Bono rasgava notas de dólar enquanto, como pastor evangélico, anunciava que teve “uma visão”: “TELEVISÃO!”, berrava frente ao câmera que, do palco, registrava tudo pelas telas espalhadas no show. Juntos, a Zoo Tour e Achtung Baby deram o tom “rir pra não chorar” que acentuou-se nos anos 90.

A ironia virava fórmula e todas as mídias passaram a usá-la, primeiro o cinema, depois a TV, caindo no gosto popular e reverberando, assim, por todas as formas de comunicação. Falar a verdade era constrangedor demais – ou melhor, falso demais -, por isso era melhor fingir querer dizer justamente o oposto, finalmente, desta forma, atingindo seu objetivo. Passamos a ler textos que nos fingiam contar o contrário do que realmente queriam dizer, ouvir músicas que ridicularizavam o hábito de ser humano, ver filmes cujo verdadeiro tema só é desvendado da metade para o fim, contradizendo tudo que havia sido visto desde o começo. A propaganda passa a se ridicularizar na tentativa de ganhar crédito com o consumidor. Tudo é muito falso, todo mundo sabe; então porque não assumimos falsamente esta falsidade? Era isso que a ironia nos anos 90 significou: uma espécie de afirmação de identidade cultural às avessas, corrompendo nosso entendimento da realidade numa mão dupla, que ao mesmo tempo que acende uma vela pro sim (afirmando algo), acende outra pro não (ridicularizando aquilo que está sendo afirmado, simultaneamente). Sem um, nem outro, caímos na década do “tanto faz”, em que as pessoas passaram a fazer exatamente o que o capitalismo queria, plugando-se às necessidades consumistas como se estas fossem responsáveis pelo bem estar espiritual – não material. Até Alanis Morrissette, em seu maior hit, perguntou: “Não é irônico?”.

É neste cenário que o Radiohead surge como força disposta ao desequilíbrio. O grupo surgiu na Inglaterra no começo dos anos 90, mas só conseguiu fazer sucesso nos Estados Unidos, graças ao hit “Creep” (do LP Pablo Honey, de 93), ganhando primeiro o público, depois a crítica americana. “Você é tão fucking especial”, sussurrava o vocalista Thom Yorke, “mas eu sou uma coisa, sou um esquisito”. Só ganhou algum reconhecimento em seu país ao se levar mais a sério em The Bends, de 94, onde deixavam de falar de relações cotidianas para contemplar a sociedade moderna como um todo, num dos primeiros discos conceituais da década (tantos viriam depois). O grau de importância do grupo foi crescendo tão logo eles ganhavam intimidade como músicos, contemplando possibilidades diversas a partir do formato três guitarras (Yorke, Jonny Greenwood e Ed O’Brien), baixo (Colin Greenwood) e bateria (Phil Selway). Reinventando o rock clássico como fazia o indie rock americano na metade da década passada (com uma certa dose de ironia, claro), o Radiohead chamava cada vez mais atenção.

Até que atingiu seu auge com o clássico inato OK Computer, ácida descrição da sociedade capitalista sem ironia nenhuma. Ao reproduzir as normas do novo dia-a-dia sem se preocupar com sentido lírico (quase todas as composições do disco de 97 empilhavam referências e situações sem o comprometimento com o sentido), ia nos vestindo com a roupa do andróide paranóico que a vida consumista de hoje nos transformou. O disco também antecipava a invasão techno ao mercado que aconteceria naquele mesmo ano (com os discos Dig Your Own Hole, dos Chemical Brothers; e The Fat of the Land, do Prodigy), mas apenas nas entrelinhas – a produção sci-fi de Nigel Godrich deixava apenas um ar eletrônico no álbum. Sem contar a música em si, as progressões guitarreiras que mudavam a atmosfera das canções, dando uma dinâmica inédita ao som do grupo. Incensado pela crítica, OK Computer tornou-se padrão de excelência do rock dos anos 90.

E o que fazer depois disto? Depois que toca-se o céu, resta outro rumo senão a queda? O grupo passou a dedicar-se a uma turnê em que viu-se condicionado ao máximo do capitalismo que criticavam. Laureados como a mais importante banda de rock do mundo, o Radiohead tentou lançou um EP (Airbag / How Am I Driving?) e dois vídeos (a coletânea de clipes 7 Television Commercials e o homevídeo Meeting People is Easy) na tentativa de esgotar a responsabilidade em torno do próximo álbum. Em vão: cada produto lançado era recebido como prova que o sucessor de OK Computer vinha aí.

A solução seria eliminar os parâmetros conhecidos e assim o grupo começou a trabalhar: Thom Yorke desencantou-se com a melodia e passou a procurar alternativas rítmicas. Ed O’Brien queria um disco curto, enxuto, com canções simples e diretas. Colin preferia um álbum mais aprofundado na eletrônica, mas sem soar “techno”. Kid A (EMI) é o produto das cinco (seis, contando o produtor Nigel) perspectivas de como o grupo fugiria do formato OK Computer.

O resultado é um disco árido, tenso, pós-rock, ermo – adequado para o ano 2000. Enquanto a quantidade de informações contida no álbum anterior dava um aspecto de poluição visual ao disco, o novo álbum elimina recursos visuais em favor de uma música sem rosto, sintética, ciborgue, futurista. Mas enquanto o futuro de OK Computer era hi-tech e bucólico, o de Kid A é vago e ameaçador, como se o espírito de máquinas mortas sobrevoasse por cima de desértica paisagem pós-apocalíptica.

O disco abre com teclados lunares que reverberam ondas eletromagnéticas que funcionam como uma canção de ninar por onde Thom Yorke pode improvisar apaixonadamente a letra. “Tudo está no lugar certo”, ele canta ao começo do disco, repetindo os versos à medida que a canção se robotiza, cada vez mais. Entra a faixa-título, novos teclados (e caixa de música marcando o andamento, ao lado de uma bateria de bebop) descortinam o caminho para a entrada do vocal, um zumbido metálico que com certeza canta algo, mas em idioma indistinguível. A voz de Yorke é distorcida por um aparelho pré-histórico chamado Ondes Martenot (usado na trilha de Star Trek) e remete ao Menino A, o primeiro clone humano, como reza a mitologia radioheadiana.

Esta forma carinhosa que o grupo se refere à pioneira cópia de DNA humano posta em prática num laboratório (que poderia se chamar qualquer coisa mas é reconhecido com uma intimidade familiar) torna possível outro paralelo com Stanley Kubrick, o maestro cineasta cuja pompa e pulso firme à direção, já que OK Computer remetia instintivamente a 2001 (quando a máquina contra-ataca). No novo disco, o Radiohead contempla A.I., a ode não-filmada do cineasta à robótica, em que ele assume que as máquinas são herdeiras do legado humano, nossos descendentes. O grupo vai além e pensa no clone como descendente, a máquina perfeita projetada pela natureza e reprogramada de acordo com nossa vontade. Mas que vontade? Racional ou instintiva? O grupo deixa a resposta em aberto, por enquanto.

“The Nation Anthem” nos apresenta ao baixista da banda, Colin Greenwood, que puxa um groove funk pesado que escurece mais ainda à entrada de um time de metais reverenciando os graves pesos-pesados de John Coltrane. Em falsete, Yorke canta a vontade e a disposição de mudar, que aos poucos impregna o inconsciente coletivo: “Todo mundo por aqui / Todo mundo vai parar aqui / O que está acontecendo? / (…) / Todo mundo vai parar aqui / Todo mundo vai parar o medo / O que está acontecendo?”. Ao citar literalmente o nome do mítico disco político de Marvin Gaye (What’s Going On? – O que está acontecendo?), o grupo nos lembra que os tempos atuais são tão (ou mais) interessante que os anos 60 que inspiraram Gaye a se perguntar sobre a ordem mundial. O grupo prega decisões coletivas como a melhor forma de ir contra o individualismo robótico e passivo de OK Computer. Não é nenhum pouco diferente do que a simbólica luta anti-FMI / OMC / Banco Mundial que já nos deu notórias batalhas como em Seattle (no ano passado) e Praga (semana passada).

“How to Disappear Completely and Not Be Found” finalmente apresenta os violões, enquanto o vocalista nos lembra que o filme Matrix é na verdade uma metáfora da nossa situação atual: “Eu não estou aqui / Isso não está acontecendo”, balbucia Yorke, enquanto o disco vai ficando cada vez mais lento, atingindo seu ponto máximo de estática na instrumental “Treefingers”, entrando vagarosamente no terreno gelado das brancas vibrações eletrônicas de Brian Eno. “Optimistic” poderia ser irônica caso se referisse à sociedade (ainda mais com este título – “otimista”). Mas a paisagem que o grupo vê é pós-civilização e o otimismo a que se referem é um abandono das tecnologias, uma volta à natureza, onde a lei da selva – perfeita – reina soberana: “Os peixes grandes comem os pequenos”, canta a letra sobre guitarras psico-metálicas que poderiam ter saído de Led Zeppelin III, “tente o melhor que você pode / O melhor que você pode é o suficiente”. “In Limbo” parece apenas descritiva, ecos e guitarras dissipando conforme a paisagem é mostrada: “Estou do seu lado / Não há onde me esconder / Estou perdido no mar / Você está vivendo uma fantasia / Não se importe comigo”, num novo ataque ao individualismo.

O ritmo marcial technopop que soa através de “Idioteque”, marcando um compasso eletrônico por onde a sociedade do desperdício é cruelmente descrita, em vocais familiares (mas entrelaçados de uma nova forma) de Thom Yorke: “Deixa eu te dizer que você é o primeiro / Eu vou rir até minha cabeça sair / Eu vou engolir até explodir / Já vi muito / Já vi tudo / A era glacial está vindo”. Descreve os seres humanos como dinossauros às vésperas da extinção, porque já ultrapassaram o limite de consumo de recursos naturais. O sotaque techno (proveniente da atual obsessão do grupo: a gravadora Warp) só ajuda a entender a crítica do grupo, que vai de encontro à letargia e o subsequente estado de automação que o ser humano aos poucos vai se submetendo – o ponto central de OK Computer. Em “Morning Bell”, o grupo volta ao campo da melodia do último álbum (até certo ponto ignorado no novo disco) e como um aparelho de TV ligado durante um bocejo matinal despeja informações de forma vaga e desencontrada – “Eu não conheço o assassino”, “Onde você estacionou o carro?”, “E todo mundo mente para mim”, “Todo mundo mente nas pesquisas” e o golpe final “Todo mundo quer estar lá / Todo mundo quer ser o mesmo / Andando, andando, andando, andando”. A vida moderna é um tédio.

Kid A termina com a melancólica “Motion Picture Soundtrack”: “Pare de mandar cartas / Cartas sempre queimam / Não são como os filmes / Que nos enchem de mentiras brandas”, divaga o vocal triste e tímido do final, que enuncia um clima de felicidade mágica à Walt Disney (orquestras cheias de harpas dedilhadas) por baixo do tremor original do álbum. Estamos no meio de uma cratera, depois da bomba explodir. Esta bomba é o século 20, que se engole cada vez mais à medida que chega ao fim. Quando 2000 passar, zera tudo. É contemplando este futuro que Kid A sorri. É um sorriso estranho, não-humano, pensativo. Mas feliz e esperançoso, como há muito não víamos.

O Papa do Pancadão

Duas com o Marlboro.

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22 de janeiro de 2003

Electro é funk de butique, diz DJ Marlboro

“É muita hipocrisia”, desabafa o lendário DJ Marlboro. Pai do funk carioca, Fernando Luís Mattos da Matta, 39, se refere ao sucesso da passagem da DJ e cantora francesa Miss Kittin pelo Brasil. “Aconteceu o mesmo com a lambada, que teve de ser sucesso lá fora para ser reconhecida por aqui. Quem sabe o funk não tem a mesma trajetória?”
Passado, o gênero já tem. Criado em 1989, começou como os muitos filhotes da disco (hip hop, dancehall, house, tecno), em torno do quatro por quatro eletrônico e gritalhão executado pela dupla MC e DJ, que, no Rio de Janeiro, ganharam ares manhosos e gaiatos, típicos do comportamento da metrópole praiana.

Desde então o funk carioca não pára de se espalhar e ganhar território. Dos populares bailões ao “Planeta Xuxa”, passando pelos gráficos e viscerais Proibidões até o estouro de Kelly Key, suas dimensões apenas aumentam. Miss Kittin, sob esta lógica, é apenas mais um passo do gênero: “Esse funk disfarçado, de butique -com as mesmas batidas quebradas e os mesmos BPM do funk- é apenas uma maneira que alguns DJs encontram para dizer que não tocam funk”.

Aproveitando vácuos artísticos para mostrar sua cara, o funk carioca nasceu do fascínio de Marlboro por um brinquedo novo: a bateria eletrônica. E a história desta descoberta entra para os autos da psicologia popular ao lado de “Yesterday”, dos Beatles, e “Satisfaction”, dos Rolling Stones, como músicas compostas durante o sono. O DJ conta que a primeira vez que viu o instrumento foi nas mãos do antropólogo Hermano Vianna. “Mas ninguém sabia mexer”, conta, lembrando do entusiasmo que mal o deixou dormir naquele dia.

“No sonho, aprendi a mexer e programei”, diz. “No dia seguinte, liguei para ele logo de manhã e pedi para apertar os botões do jeito que eu havia sonhado e deu certo. Aí ele me deu a bateria. Foi um dos melhores presentes que eu ganhei na minha vida, pois como disseram, “é como se fosse dado um rifle a um chefe indígena”.”

Lançando a coletânea “As Melhores do DJ Marlboro”, o DJ se coloca como papa da eletrônica: “O funk é eletrônico antes de existir essa denominação. Quem define o que é eletrônico e o que não é?”, briga, enfatizando o papel do DJ no mercado. “É ele quem descobre, produz e executa, todo o esquema da indústria fonográfica completo numa só pessoa.”

Montado em seu próprio império (a produtora Big Mix), Marlboro é orgulhoso de seus números: “Entre CDs próprios, artistas que lancei, coletâneas internacionais e remixes produzidos, pode colocar que eu lancei mais de 200 CDs. Isso em vendas ultrapassa a marca de 4 milhões de discos, certamente”. Toca em três festas, além de passar por outras 12 (“dou uma passadinha e sorteio uns brindes”), agitando o que estima ser uma pequena multidão de 12 mil pessoas por fim de semana. Fora uma coluna semanal no jornal “O Dia”, um portal na internet (www.bigmix.com.br), os 350 mil ouvintes por minuto em seu programa de rádio e a segunda audiência da TV Bandeirantes carioca.

Mesmo assim, Marlboro acha que o funk carioca ainda não se estabeleceu.
“Acho que só seremos realmente reconhecidos quando resolverem fazer um funkódromo, quando as escolas fizerem concursos de funk para incentivar a garotada a escrever e expor suas idéias. Quando o funk for visto como instrumento de pesquisa para a sociedade descobrir o que essa galera pensa e a partir daí criar oportunidade e perspectiva de vida aos jovens, que sempre manifestaram essas reivindicações por meio da música -como um dia foi a MPB, a bossa nova, a jovem guarda e a tropicália. Hoje é o funk.”

AS MELHORES DO DJ MARLBORO
Artista: DJ Marlboro
Gravadora: BMG
Quanto: R$ 18, em média

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5 de junho de 2004

DJ Marlboro conduz o funk carioca à Europa

DJ Marlboro entra em seu escritório no bairro Lins de Vasconcelos, nas redondezas do Méier, zona norte do Rio, e a primeira coisa que faz é correr em direção à sala onde está seu computador para baixar mais de 800 e-mails –em 15 contas de correio eletrônico diferentes. “É que ontem não deu tempo para baixar”, desculpa-se, sem tirar os olhos do monitor, alternando do programa de e-mail para o de navegação da internet, no qual responde mensagens em um de seus quatro fotologs que atualiza pessoalmente.

Patrono do gênero popularmente conhecido como funk carioca, Marlboro é um dos principais DJs do Brasil e seu talento finalmente ganha reconhecimento internacional, mesmo ainda sendo tratado com o desprezo típico que o brasileiro médio dedica a artistas que se comunicam com classes sociais mais baixas. O DJ carioca é uma das atrações do festival SónarClub, que aconteceria ontem no clube Ocean, em Londres. O evento é uma versão de bolso do festival espanhol Sónar, cuja edição 2004 começa no próximo dia 17, em Barcelona, onde DJ carioca também bate cartão.

Ele ainda volta ao Brasil antes de retornar à Europa para a apresentação no Sónar, quando, ao lado do coletivo Instituto e do DJ Nego Moçambique, compõe o painel Eletronika Brazil, no espaço SónarPub. Após os brasileiros, o mesmo palco recebe nomes como a dupla belga 2 Many DJ’s e o coletivo garage So Solid Crew.

E Barcelona é só o ponto de partida de sua primeira turnê européia, que ainda conta com datas em Paris (dias 22 e 23), Londres (dia 24), Liubliana (capital da Eslovênia, dia 25) e Zagreb (capital da Croácia, dia 26). A moral de Marlboro, principal porta-voz do funk carioca, ainda cresce com o lançamento de quatro coletâneas de suas produções na Europa.

Mas ele ainda é o mesmo sujeito que, há 24 anos, atravessava todo o Rio de Janeiro a pé ou de bicicleta, carregando os vinis na mochila, para discotecar. A humildade do DJ é estranhamente proporcional ao nível de controle que ele exerce em todo o império de entretenimento que criou, o Big Mix, cujo slogan (“É Big Mix, ô mané!”) é reverberado por milhares de cariocas diariamente, seja em intervenções de ouvintes em seu programa de rádio diário ou em adesivos espalhados por todos os lados da cidade maravilhosa.

É ele mesmo quem tira as fotos em todos os bailes que toca (mais de 20 por fim de semana) e descarrega em seus fotologs (como o www.fotolog.net/bailefunk). Ele ainda supervisiona todos os mixes feitos por sua equipe, responde pessoalmente aos e-mails e às mensagens que são enviadas via ICQ, discute com detratores do funk e dirige o próprio carro todo o dia rumo à rádio, no centro.

Viciado em trabalho, ele não pára um minuto e está constantemente ao celular, alternando papos com velhos amigos e conversas sobre promoção de eventos. Vê-lo revezar entre a locução ao vivo do programa “Big Mix” e o papo com o MC Serginho (o da “Égüinha Pocotó”) ao telefone é desesperador e inspirador –ao mesmo tempo em que parece que vai se atrapalhar e pôr tudo a perder, pode-se perceber o senso de ritmo e a presença de espírito que o tornam um grande DJ.

“O negócio é fazer o povo dançar. Não tem dessas de Billboard, de ver na revista de moda a música que tá tocando lá fora…”, explica. “Se o pessoal dançou, deixa; se não, joga fora. Não importa se é sucesso no exterior.”

Sentado em seu estúdio, teoriza sobre a fagocitagem do funk carioca em relação aos outros gêneros de música, comparando com a mestiçagem e mistura de culturas característica do Brasil: “O funk absorve tudo, seja folclore brasileiro ou música gringa. É o gênero com menos preconceito em relação aos outros gêneros e, talvez por isso mesmo, seja o que mais preconceito sofre”, explica. “E, se você for ver bem, é a mesma coisa do Brasil, que também absorve tudo e sofre preconceitos por não ter preconceito.”

“Mas eu queria mesmo era ouvir o funk com os ouvidos do gringo”, lamenta, lembrando das excursões recentes que fez aos EUA –desde que se apresentou pela primeira vez em Nova York, em junho do ano passado, ele já voltou outras duas vezes ao país.

“Não sei inglês até hoje e gosto de música em inglês independentemente do que ela diz, sem saber do que ela está falando. Não sei se o estrangeiro também ouve assim, então vou tentando, devagar, colocando alguma coisa instrumental, outras músicas mais silábicas, umas com uns baixões…”

Assistindo lentamente ao crescimento do gênero no exterior (ele interrompe a entrevista várias vezes para falar de reportagem do “Fantástico” sobre o estouro do funk na Grécia ou de um amigo que avisou que ouviu funks em um clube em Portugal), Marlboro orgulha-se de colher em vida os frutos que semeou: “Eu achava que só iam me reconhecer quando eu estivesse velhinho, quando você não pode fazer mais nada, e aí vem o pessoal e homenageia, como aconteceu com o Cartola”.

8 Bit

Vou despejar uma seqüência de matérias velhas que publiquei na Folha, quando colaborava lá.

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10 de março de 2004

Documentário lançado nos EUA relata ascensão e declínio da Atari

“TUM! TUM! TUM!” Vez ou outra, um ruído bate-estaca tomava conta do escritório da Atari, no vale do Silício, na Califórnia. Os visitantes estranhavam o barulho, mas os funcionários da empresa não ligavam: era apenas o programador Tod Frye, um dos pais de “PacMan”, andando pelas paredes (!!). Essa é apenas uma das histórias bizarras que um dos protagonistas da era de ouro da companhia, o programador Howard Scott Warshaw, reuniu no DVD “Once Upon Atari”, que acaba de ser lançado nos EUA e pode ser comprado através do site www.onceuponatari.com.

“Depois de ter passado por aquilo, eu sabia que algum dia essa história tinha de ser contada”, lembra o designer de jogos vertido em documentarista. Warshaw reuniu amigos programadores numa sessão de memória para resgatar os dias de glória da empresa, que fez os jogos eletrônicos se tornarem populares e viáveis no mercado –além de entrar para a história como fenômeno cultural. “Eu esperei até quando pensei ser tarde demais para ser processado”, brinca o diretor, que deu início às gravações em 1999.

Até hoje um número considerável de pessoas ainda são fascinadas por jogos antigos. Para o diretor, “o foco [das pessoas] está apenas no jogo! Hoje passam tanto tempo fazendo clipes cinematográficos e desenvolvendo técnicas de gráfico que o jogo em si se torna uma segunda preocupação”.

Nas entrevistas, mais do que histórias engraçadas e inacreditáveis, todos os ex-funcionários da empresa se referem com nostalgia ao período em que trabalharam lá. “Eu tinha 23 anos e tinha completa autonomia criativa para o que eu fazia”, recorda Simon Fulop, o criador de “Missile Command”. “Era minha versão da América corporativa”, lembra Carla Meninsky. “Todos os outros empregos que eu tive depois foram incrivelmente chatos.”

Também pudera: a divisão de games tinha pouco do que nos referimos como “local de trabalho”. A rotina da Atari era o que menos lembrava uma rotina.
Em um dia, todos estavam debruçados em números e códigos tentando fazer vários personagens de um jogo se moverem de forma independente, no outro, Steven Spielberg visitava os escritórios. O cheiro de maconha começava às 9h, atrapalhando as reuniões de negócios.

“Eu sou realmente um dos pais dos jogos eletrônicos e o único programador da Atari cujos jogos venderam mais de milhões de cópias –até o ‘E.T.’!”, orgulha-se o diretor, brincando, em referência ao jogo que é considerado o pior da história. “O sentimento de ser um fundador e agente fundamental em algo que se tornou um fenômeno cultural é simplesmente incrível.”

Mas o DVD explica que não foi a desorganização e a arruaça de seus programadores que levaram a Atari à falência. “As pessoas ficam muito esquisitas quando muito dinheiro começa a aparecer”, lembra um dos entrevistados. Gerentes comerciais davam sermões nos programadores que agiam como estrelas, por saber que era por causa deles que a empresa era lucrativa. Boa parte da zorra incitada pelos funcionários era uma reação à visão estreita dos departamentos de marketing.

Outra parte era pura loucura mesmo. Como quando Frye descobriu que podia andar nas paredes. Colocou um pé em uma parede de um corredor e o outro na outra. Quando percebeu, estava se equilibrando com mãos e pés, sem tocá-los no chão. O bate-estaca citado no início do texto não é nada senão o barulho que o programador fazia ao “caminhar” pelas paredes dos corredores da empresa –a quase dois metros do chão. Não foi por menos que, quando enfiou a testa no dispositivo antiincêndio instalado no teto e a equipe do pronto-socorro perguntou o que havia ocorrido, ninguém acreditou na história.

Decisões erradas e brigas selaram queda da Atari

Um dos extras do DVD “Once Upon Atari” traz Nolan Bushnell, fundador da Atari, em uma entrevista sobre o mercado de games. “Eu não sou o pai do videogame, [Steve] Russell e os caras que fizeram o ‘SpaceWar’ em 1962 é que são. O meu feito foi conseguir vendê-los. Eu os transformei em uma indústria”, diz, sem modéstia.

Mais do que fabricar jogos clássicos ou ser o ícone central da primeira era de ouro dos videogames, a Atari pode se vangloriar por ter colocado a lógica eletrônica dentro da vida das pessoas. Foi a primeira vez que um equipamento eletrônico se tornou um ícone cultural em larga escala.

“A Atari fez história na eletrônica ao colocar computadores nas casas das pessoas”, emenda o diretor Scott Warshaw. “Os computadores pessoais até estavam vendendo, mas não muito rapidamente, e ninguém sabia o que fazer com um deles. A Atari mostrou ao mundo como você pode se divertir com um computador em casa. Ela curou os medos com relação a isso e elevou o número de vendas de milhares para milhões! Eles mudaram o mundo como o conhecemos.”

Após tatear o mercado com o jogo de tiro “Computer Space”, que fracassou, Bushnell e seu sócio Ted Dabney deixaram uma versão rudimentar do tênis bidimensional “Pong”, que funcionava à base de moedas, em um bar de San Francisco. No dia seguinte, quando checaram a máquina e viram que ela estava lotada de moedas, concluíram que “Pong” havia sido jogado durante toda a noite. Foi quando os dois perceberam que, melhor do que vender a idéia para alguém, o ideal era abrir seu próprio negócio.

No início de 1973, “Pong” era uma febre em todos os EUA e inaugurava o conceito de arcade eletrônico, aos poucos invadindo as casas de fliperama.

Quase 10 mil máquinas foram fabricadas e vendidas. Mas o grande salto da empresa aconteceu com o “Pong” doméstico, que foi lançado em 1975 e rendeu números gigantes: 150 mil consoles vendidos, US$ 40 milhões em vendas, US$ 3 milhões de lucro no primeiro ano. No ano seguinte, Bushnell vendeu a empresa para o conglomerado Warner, que impôs um novo presidente, o executivo mão-de-ferro Ray Kassar.

A era eletrônica começa para valer nos anos 80, quando a IBM lança o computador pessoal, e os videogames se tornam massivos.

A Atari lança vários hits, como “PacMan”, “Defender” e “Asteroids”, ao mesmo tempo em que a rixa entre o setor de programação e o departamento comercial explode. A queda acontece em 83, quando a empresa faz diversas opções erradas de mercado, a mais célebre sendo o jogo “E.T.”, um dos maiores fracassos da história do videogame, que foi eleito pela imprensa especializada como o pior jogo da história.

O fiasco foi tamanho que a empresa enterrou mais de 5 milhões de cartuchos em um deserto no Novo México, pois as crianças não o queriam nem de graça.
A partir daí, a Atari desanda. Passa das mãos da Warner para vários empresários e, aos poucos, definha com diferentes tentativas de volta ao mercado (o portátil Lynx, o console Jaguar), sem nunca conseguir repetir o sucesso original.

Brazil – O Filme

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Brazil – O Filme (Brazil, 1985. Inglaterra). Dir: Terry Gilliam. Elenco: Jonathan Pryce, Kim Greist, Michael Palin, Robert De Niro, Bob Hoskins, Ian Holm. 142 min. Por que ver: Também conhecido como 1984 1/2, numa referência tanto ao livro profético de George Orwell quanto ao work-in-progress 8 e 1/2 de Fellini, Brazil é uma fábula distópica sobre o espírito humano aprisionado em um sistema opressor. Gilliam, que desde o tempo em que fazia seus desenhos animados no Monty Python, já mostrava sua tendência para a alegoria, chocando uma caricatura da fleuma inglesa com cenas e situações nada sutis – mas incrivelmente belas. Aqui a burocracia é um organismo mecânico e vivo, que se comunica por telas e aparelhos dos anos 50. A direção de arte cria um futuro com cara de passado e é fácil se identificar com os delírios do personagem principal, à procura de uma musa que, mal sabe, é uma agente terrorista. Fique atento: Ao uso de “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, como a alma do filme. A canção é o motivo do filme levar este nome e foi a inspiração original para esta utopia às avessas de Gilliam.

“A mulherada foge do controle no mashup”

Lucio e Massari começam a entender (clique com o botão direito, salve no seu HD e ouça a partir do sétimo minuto, depois dos primeiros vinte segundos, especificamente…).

Mupp Fiction

Meu Chappa

Os caras do Chappa Quentefizeram videozinhos compilando o que rolou nos debates do evento. O meu tá aí em cima, mas têm outros aqui. Abaixo, a resenhinha que saiu no site sobre a mesa que eu fiz parte.

NOVAS PLATAFORMAS, NOVAS OPORTUNIDADES, NOVOS COMPORTAMENTOS
22 DE MARÇO DE 2007

MÚSICA CHAPPA QUENTE – YOUTUBE, MYSPACE, NAPSTER, iTUNES, etc: as novas plataformas on-line

A quarta discussão do MCQ veio selar uma impressão latente desde o primeiro debate: os temas discutidos sempre espalham seus tentáculos pelas mesas futuras, não se acomodando à compartimentação imposta pelo formato. Isso significa que muito se falou sobre as novas plataformas, mas que essas plataformas constantemente puxavam outras inquietações, deixando claro que a nova música pede, também nos debates, uma nova abordagem. Passava longe, porém, a idéia de crise: a professora Gisela Castro (ESPM) e os tecnólogos Jarbas Jácome (do grupo pernambucano de incentivo à tecnologia C.E.S.A.R.) e André Valle (FGV) compartilhavam otimismo com os jornalistas Alexandre Matias (do blog Trabalho Sujo) e Marcelo Ferla (Rádio Ipanema). Tudo por conta de uma revolução de costumes iniciada no quarto de um universitário norte-americano, que respondia por um hoje famoso apelido: Napster.

“Quando o Napster saiu, eu estava dando um curso para executivos da indústria fonográfica”, contou André Valle. “Tragam ele para o seu lado, eu disse, porque as pessoas vão se acostumar a não comprar mais música”. A indústria, porém, perdeu tempo tentando frear o avanço tecnológico. Resultado: provocou queda de credibilidade junto ao público jovem, e com isso, segundo André Valle, comprou a sua lápide. “Só falta colocar a data”, completou. A professora Gisela Castro conversou com jovens consumidores de música para sua pesquisa acadêmica sobre esses novos costumes. “Muitos disseram se sentir contentes por lesar a indústria, pois ela merece ser lesada mesmo”, afirmou. “Para eles, pirata é quem cobra por aquilo que não é dele. Trocar música na internet faz parte do espírito fundador da rede”. Jarbas Jácome estava em pleno acordo:

“A cultura é o que determina o que é certo e o que é errado. A troca de arquivos já se tornou cultura. É um processo sem volta”.

Esse tipo de relação, porém, é só a ponta de um gigantesco iceberg. As gravadoras processaram o Napster e conseguiram proibir suas atividades (ao menos da maneira que elas se davam). Mas não eliminou, com isso, a nova filosofia de interatividade e compartilhamento iniciada pelo programa, e que daria rosto àquilo que hoje conhecemos como internet 2.0. Google, YouTube, MySpace, iTunes, Last.fm, Pandora e até mesmo o sistema de dicas da Amazon tiraram, todos, proveito das principais características de compartilhamento pioneiras da criação de Shawn Fanning. Aquele ato de quase-vandalismo inicial tornou-se um mercado multimilionário. “O mundo todo busca informações no Google. Então o Google tem o registro das intenções do mundo. E informação é poder”, raciocinou André Valle. “A internet é um mostro da democracia da informação”, completou o representante do grupo recifense de incentivo a novas tecnologias C.E.S.A.R. “O Google é um fenômeno de pré-burguesia”, interpretou o jornalista Marcelo Ferla. “Aparentemente não tem dinheiro envolvido, mas há a troca de serviços. E todo mundo sai ganhando”.

Curioso, portanto, que as novas tendências tecnológicas tragam de volta, ao menos na aparência, práticas tão arcaicas como a troca, o compartilhamento, o escambo, e problematiza a noção de propriedade. O que não significa, porém, que o capitalismo está ameaçado. “Cada vez mais pessoas estão descobrindo como ganhar dinheiro em cima da rede”, disse Alexandre Matias. “A internet tem um cara subversiva muito grande”, completou Ferla. “É o momento de deixar de percebe-la como subversão, e aprender a trabalhar com ela”. E se a indústria fonográfica como hoje conhecemos estiver com os dias contados, o mesmo pode ser dito sobre a tecnologia vigente. Embora hoje o mp3 substitua os discos físicos, a prática de baixar arquivos está muito associada às condições de conexão atuais. Com os avanços das redes de internet wi-fi, e o surgimento de novidades como o Slacker, a tendência é que a rede se torne um disco rígido comunitário infinito, e as pessoas não precisem mais sequer armazenar dados e músicas em suas máquinas particulares. Uma vez que o mundo decida não mais pagar por música, os artistas precisarão aprender a ganhar dinheiro de outras formas.

“Se por um lado as vendas de cd diminuíram, por outro as pessoas pagam mais caro pelos shows, por exemplo”, explicou André Valle. “Tudo indica que novos hábitos de consumo estão se consolidando”, concordou Gisela Castro. “Parte desta prática que a indústria chama de pirataria, nós podemos chamar de novas práticas de consumo”, completou. “O importante é descobrir novas maneiras de se ganhar dinheiro em uma atividade que estava acostumada com um modelo consolidado há muito tempo”, disse Marcelo Ferla. “O que eu acho que é a grande diferença, é que agora existem várias possibilidades de trabalho”, completou. “Acho que com a internet, não vai haver mais uma tendência predominante”, disse Matias. “É o fim do mainstream. É a pulverização do underground”.

E se nessa nova configuração musical não houver espaço para a indústria fonográfica, ela também terá que migrar para outras atividades. “A Sony tem um dilema interessante”, diz Alexandre Matias, “porque ela é uma empresa que distribui conteúdo, mas que também produz tecnologia”. Para André Valle, o amante de música tem crédito suficiente com a indústria para não deixar os downloads ilegais pesarem em sua consciência:

“Quando compramos o vinil, por exemplo, pagamos não só pelo suporte físico, mas pelo direito de ouvir aquelas músicas. Quando saiu o CD, compramos o mesmo direito novamente. Já pagamos várias vezes por um mesmo produto”.

O que realmente está mudando é a maneira das pessoas se relacionarem. A democratização exaltada por Jarbas Jácome acontece não só com a informação, mas também dentro do próprio sujeito. Se por um lado criações como o Second Life oferecem, em tese, a oportunidade de se ter uma vida diferente, Alexandre Matias acredita que a rede também permite que essa segunda vida não seja mais necessária:

“A separação das vidas real e virtual vai acabar. O grande barato da internet é a possibilidade se expressar, e quanto mais transparente você for, maiores as chances de você ser bem sucedido na rede. Em vez de o cara ser advogado durante o dia, e gótico à noite, a internet nos ensina que você pode ser advogado e gótico ao mesmo tempo. Ela nos ensina sobre tolerância”.

(por Fábio Andrade)

Apocalypse Now

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Apocalypse Now (Apocalypse Now, 1979, EUA). Diretor: Francis Ford Coppola. Elenco: Martin Sheen, Marlon Brando, Robert Duvall, Dennis Hopper. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes e dos Globos de Ouro de melhor diretor, melhor ator coadjuvante (Duvall) e trilha sonora. 153 min. (versão original)/ 202 min (Redux). Por que ver: Antes de ouvirmos as primeiras palavras ditas em voz alta pelo protagonista, assistimos à mistura de imagens, sons e idéias que, em pouco mais de um minuto, sintoniza nossa consciência ao trauma da guerra dos Estados Unidos no Vietnã: uma floresta de palmeiras, rasantes de helicópteros, uma névoa amarela que cresce junto com o instrumental dos Doors – Jim Morrison saúda as bombas sobre as árvores com seu “This is the end” clássico, enquanto vemos o enorme rosto de Martin Sheen de cabeça para baixo. “Saigon. Merda…”, diz o Capitão Willard, ao olhar a cidade pela veneziana, “ainda estou em Saigon”. Coppola adapta o Coração das Trevas de Joseph Conrad para o cinema transpondo a África e seus entrepostos comerciais do século dezenove para um contemporâneo Sudeste Asiático em guerra, mas preserva sua essência: a viagem a um inferno verde que também é uma viagem ao centro da sanidade mental. A missão de Willard é encontrar um certo Coronel Kurtz, um dos melhores militares do exército americano, que, após ser transferido para o meio da selva do Vietnã, aparentemente pirou e criou sua própria base militar autônoma. Na jornada, Willard é acompanhado de um time de jovens soldados que são uma boa amostra do tipo de jovens americanos que morreram nesta guerra (um moleque do Bronx nova-iorquino – Laurence Fishburne, então com 17 anos – , um ex-campeão de surfe, um chef de cozinha…) e passam por situações tão surreais quanto tétricas. O horror da guerra é transformado em uma ópera de cenas inacreditáveis, com toda a teatralidade do sangue italiano do diretor surgindo em imagens grotescas e hilárias, às vezes, ao mesmo tempo. E com um elenco impecável – a melhor atuação de Sheen, Hopper interpretando a si mesmo, Brando improvisando, Duvall épico –, Coppola supera a saga da família Corleone em um único filme, fazendo sua obra-prima. Mas Apocalypse Now é um filme maior do que sua duração: foi bancado todo com a grana que Coppola faturou com os dois primeiros filmes da série O Poderoso Chefão, levou três anos para ser concluído, teve o set destruído por um furacão, mudou de protagonista duas vezes (Roy Scheider e Harvey Keitel abandonaram o papel), teve problemas com Brando (que se negava a seguir o roteiro), enfartou o ator principal (durante as filmagens da primeira cena) e levou sexo, drogas e rock’n’roll para as Filipinas, onde foi filmado, em escala hollywoodiana. Tanto foi filmado que o diretor lançou sua versão autoral, chamada “Redux”, em 2001, acrescentando 49 minutos de cenas inéditas. Fique atento: Outro show de cenas fantásticas e texto preciso, é difícil sublinhar um só momento ou aspecto: da respiração tensa de Willard ao batalhão de caubóis em helicópteros liderados pelo personagem de Duvall, passando pelo tribalismo psicótico das cenas finais e a atuação plena de Brando – que só aparece no finzinho, mas com menos de vinte minutos de filme já toma o inconsciente de assalto, apenas com a voz, tudo é uma aula de cinema.

2001 – Uma Odisséia no Espaço

Vou começar a desovar alguns textinhos meus presentes no livrinho 300 Filmes para Ver Antes de Morrer (que eu editei junto com o Maron, via Globo) aqui no Sujo, mas o volume impresso tem um monte de minibios, listinhas e outras curiosidades, além de outras tantas resenhas, com o crivo moral de Fred Leal (forçaê, compadre!), Arnaldo Branco, Vladimir Cunha, Dafne Sampaio e outros bambas. Dá uma sacada nele depois, quando tiver na banca, e veja se não vale a leitura. Aqui, um primeiro aperitivo.

E, claro, 2001.

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2001 – Uma Odisséia no Espaço (2001 – A Space Odissey, 1968. EUA). Diretor: Stanley Kubrick. Elenco: Keir Dullea, Gary Lockwood, Douglas Rain. 141 min. Por que ver: Se você ainda está procurando um sentido para entender 2001, você não entendeu a principal lição do cinema. Deixe-se levar, conduzir pela harmonia proposta pelo diretor à visão e audição do espectador, entregar-se à imaginação alheia, conduzida a uma outra dimensão, um mundo literalmente feito de luz e som – como o nosso. 2001 é a Mona Lisa em movimento, seu sorriso cético e cínico e olhar onipresente transformados em uma parábola sobre a existência humana, que, em uma fração de segundo, reduz a História com agá maiúsculo a uma simples troca de ferramentas, o osso pela espaçonave. 2001 é uma sucessão interminável de cenas perfeitas – com o círculo usado como régua de precisão (o olho-rosto de HAL 9000, o formato da nave, o alinhamento dos planetas) e toda a paleta da música erudita (o clichê instantâneo de Zarathustra, o manjado Danúbio Azul e o fantasmagórico Réquiem do húngaro Ligeti assumem novas formas quando projetados ao espaço) à disposição da megalomania de Kubrick. Baseado no conto O Sentinela, do escritor de ficção científica (e roteirista do filme) Arthur C. Clarke, o filme lida com níveis de inteligência sobre-humanos que incitam o macaco à evolução até o ser humano, para, daí, partir para uma nova etapa de consciência. O ritmo lento e a placidez estéril do computador HAL – ironicamente, o personagem mais carismatico do filme – contribuem para o crescendo de ópera do filme, que pode parecer sonolento para olhos mais distraídos, mas são cinema lapidado em plena perfeição. Fique atento: Não pisque. Mais de duas horas de puro espetáculo cinematográfico: a dança dos planetas, as aparições do monolito, a hipnose e o despertar da consciência de HAL (pense bem, um robô que diz “Espere um minuto…”?), o espetáculo de cores do final, a conclusão inconclusiva. Como o maior road movie de todos os tempos (e talvez o maior filme de todos os tempos), ele atesta que o que importa é a viagem, não o destino.