Nação Zumbi S/A

, por Alexandre Matias

Materinha com a Nação que saiu na Rolling Stone de dezembro.

***

nacao-rs.jpg

Nações Unidas

A Nação Zumbi lança o oitavo disco, Fome de Tudo, criado a partir da troca de arquivos pela rede, e segue no posto de melhor banda do Brasil

O combinado era estar numa padaria no começo da Avenida Sumaré, em São Paulo, às 10 da noite. De lá iríamos, de van, para o que, até então, seria o show de encerramento da turnê do disco Futura, o sexto da carreira da Nação Zumbi, em Bragança Paulista, no interior do estado. Chego improvavelmente no horário e apenas a produtora Alessandra e o motorista me esperam. Posiciono-me em uma mesa de madeira na calçada e peço um café, quando chega Valter, mais conhecido como o percussionista Toca Ogan. Baixinho e simpático, tão quieto quanto desconfiado, esconde-se sob o boné e se enfia em outra mesa, do meu lado. Nina Cavalcanti chega com suas câmeras, ela que filmou o grupo durante as gravações do novo disco em abril deste ano, e que registraria a apresentação a seguir. Ela me entrega o CD do grupo Do Amor e sorri quando digo que sei que é a mesma banda que acompanhou Caetano Veloso no vergonhoso Cê. Sem Caetano, funcionam bem melhor, corrijo, enquanto sugiro lugares com o Milo Garage ou o Studio SP para a banda se apresentar em São Paulo.

O baterista Pupilo é o próximo a chegar e, com seu característico jeito de moleque, começa a soltar as primeiras piadas da noite. “Romário!”, cumprimento-o com seu nome de batismo para quebrar o gelo e ele me recebe com a saudação de sempre: “Fala, monstro”. Com o cabelo desarrumado enfiado num gorro, Pupilo é o integrante mais carismático do grupo, embora a postura tensa e séria na bateria dê outra idéia. Chega o guitarrista Lúcio Maia, com seu indefectível chapeuzinho, que cumprimenta a todos enquanto entra na padaria. Surge Caio Mariano, advogado e compadre da banda, que também aparece para juntar-se à viagem. O vocalista Jorge du Peixe, o mais quieto do grupo, desembarca quando Alessandra começa a fazer as contas entre horários e quilômetros e o baixista Alexandre Dengue aparece por último, depois que os percussionistas Gustavo Da Lua, Gilmar Bola Oito e Marcos Mathias já haviam subido e tomado conta da fileira de trás da lotação – Da Lua rindo mais do que todos, puxando piadas bestas e aleatórias após palavras ditas pelos outros. Chegam quase quietos, se cumprimentam discretamente, uns entram direto no carro, outros fazem compras rápidas na padoca.

Pessoalmente, não chamam atenção. São pessoas normais até demais, que seguem alguns preceitos da estética contemporânea. Apesar de serem uma geração mais velha do que a de bandas como Hurtmold, Los Hermanos, + 2 e Instituto, eles também freqüentam sebos de discos, importadoras de CDs e brechós, botecos na Vila Madalena e na Lapa e no Baixo Gávea, no Rio; shows no Sesc e festas em casas de gente da moda, da TV e do cinema. Curtem hip hop moderno, dub e reggae roots, MPB dos anos 70, eletrônica cabeçuda e microvariações de black music do passado. Prezam pelo vestuário bom-moço (cabelos curtos, boinas, camisas de gola, calças de pano) com algum tempero velha-guarda, calçam invariavelmente tênis.

Em menos de dez minutos, Alessandra está chamando o povo para entrar no carro, sentando-se ao lado do motorista. Na parte de trás do carro, Jorge e Lucio assumem as primeiras poltronas, Caio, Dengue e Nina ficam logo atrás deles e eu me sento ao lado de Pupilo, na penúltima fileira. Conheço esses caras há tempos – rimos da cara um do outro sempre que nos encontramos nestas situações, conversamos sobre música e das novidades que cada um tem feito. Mas o clima de camaradagem dissipa-se à medida em que começo a falar sobre o disco novo. Em 2006, o grupo já havia lançado a versão em CD para o DVD lançado dois anos antes, o show Propagando (gravado no dia 12 de dezembro de 2003, no antigo Palace que tanto troca de patrocinador), e não havia planos para um novo disco no ano passado.

Fome de Tudo é o oitavo disco da Nação Zumbi e surgiu no meio do ano passado, quando foram convidados pelo diretor mexicano Aaron Fernandez para compor músicas para seu novo filme, Partes Usadas. “Pintou de fazer a trilha numa época que a gente tava meio disperso. Mas quando começamos a compor, descobrimos outra forma de trabalhar”, conta Pupilo.

Algo diferente aconteceu quando começaram a compor as músicas para a trilha. Em vez de se reunir num estúdio e dar origem a sessões instrumentais improvisadas para criar novos temas e ambiências sonoras, o grupo começou a trabalhar de outra forma. “A gente começou a mandar os fragmentos de música uns pros outros”, continua o baterista. “Eu fazia um beat, mandava pra Jorge, que fazia uma coisa e mandava pra Dengue que mandava pra Lucio, que botava uma guitarra. Cada um ia mexendo, a gente mandava a seção aberta e cada um incluía o que queria”.

Claramente influenciadas pela rica fase de projetos paralelos dos integrantes do grupo, que, finalmente, começam a ganhar registros oficiais em disco, as novas músicas não foram compostas em conjunto – mas, ao mesmo tempo, o grupo não deixou de trabalhar junto. A troca de arquivos digitalizados via internet fez com que o grupo bolasse algumas bases sem precisar reunir-se num mesmo lugar. Quase todos contam com computadores equipados com o software ProTools, o que facilita a gravação caseira e a superposição de instrumentos pré-gravados na hora de criar uma faixa nova. Em vez de marcar um horário e local para se reunirem e terem idéias em conjunto, levam seu trabalho para casa e trabalham nele quando se sentem inspirados.

“Lucio pode gravar umas guitarras em casa, Pupilo também…”, explica Jorge “A gente troca os tracks online pra ver como as coisas tão indo, mostrando o que fez na música do outro. A gente grava em MP3, manda tudo por email e usa o ProTools mesmo”. “É um material bruto gigantesco, é um pé no saco ficar ouvindo”, brinca Dengue, “ainda que não sou eu quem pego!”. “Funciona como uma jam session”, conclui Pupilo. As duas músicas compostas para o filme – “Toda Surdez Será Castigada” e “Onde Tenho que Ir” – seriam reaproveitadas no disco que começou a ganhar vida após um ensaio em Recife, já em janeiro de 2007, quando passaram as novas idéias de música pela primeira vez numa reunião presencial.

Foram três ensaios, mas a gênese do novo disco já estava toda no primeiro encontro. “No jazz antigamente já era assim: raramente eles iam para o terceiro take”, conta Lucio. “Tudo era gravado no primeiro ou segundo take. Isso é muito importante pro músico. Porque no primeiro take tava tudo fresco. Nesse período, a gente vai sem nada, sem métrica, tema, formato. Sem nada na cabeça. Apenas a idéia de tocar”

“Nessa parte, Jorge toca com a gente, não canta. Usa o sampler ou instrumento de percussão”, conta Dengue. “Eu trabalho com a Doctor Sample… Jogo alguns efeitos, canto uma frase…”, continua o vocalista, explicando que estes ensaios são o principal nascedouro de novas canções do grupo, embora não o único: “Uma coisa ou outra até nasce na passagem de som; uma linha de baixo aparece e a gente se olha e pensa: ‘Pô, isso é bom…’. A gente grava com o celular também, senão acaba esquecendo”, ri.

Como de praxe, Jorge levou as gravações para a casa e começou a depurá-las, mais uma vez usando computador e internet para comunicar ao resto da banda o que poderia ser aproveitado. Foi nesta época que surgiu o nome do disco. “O título foi uma das primeiras coisas que apareceram. Bolamos, todo mundo gostou e ficou”, conta du Peixe, que explica que só depois de pensar no título que descobriu que este ano fazem 50 anos da primeira publicação do livro Geografia da Fome, de Josué de Castro, um dos pilares intelectuais do mangue beat. “A Fome de Tudo é um aglomerado, um monstro que vai puxando pelo caminho tudo que vai consumindo”, explica Jorge. Passado o carnaval, começaram a colocar na prática a papelada para colocar o disco na rua – o primeiro passo seria saber se a banda continuaria na mesma gravadora.

A Trama, casa da banda desde 2002, passava por reformulações estruturais que inviabilizariam um disco para a banda em 2007. “João Marcello (Bôscoli, presidente da gravadora) deixou isso muito claro para nós, foi uma separação tranqüila, nos damos muito bem com a Trama”, conta Lucio, cujo projeto solo, Maquinado, lançou disco pela gravadora. “Já a história com a Deck é antiga, vez desde o tempo em que eles eram um selo da Universal. Desde a época do Rádio S.Amb.A. (disco da banda do ano 2000) eles já queriam assinar com a gente, mas aí optamos pela YB achando que poderíamos desbravar a selva do independente, Mas nos demos mal porque nossos facões ficaram cegos logo”, ri o guitarrista, desconversando. Nesta transição, outra gravadora entrou no páreo: “A EMI também ficou muito no encalço da gente”, lembra Lucio. “Isso acabou acelerando o contrato com a Deck. Em certo momento, fomos fazer um show no Rio e tinha gente tanto da Deck e da EMI em nosso camarim, nos assediando”.

A possibilidade de gravar com Mario Caldato também desequilibrou para o lado da Deck. Lembro de encontrar-me com Rafael Ramos no salão de embarque do aeroporto de Congonhas, cada um numa correria diferente, pouco antes da crise aérea ser atropelada pelo acidente com o vôo 1709. Com a barba malfeita, o filho de João Augusto e um dos timoneiros da gravadora ao lado do pai comemorava não apenas a contratação da banda quanto a chegada de Mario Caldato para produzir o novo disco do grupo. O produtor brasileiro que ajudou os Beastie Boys a moldar seu som nos anos 90 é conhecido da banda e do pop brasileiro da época. Além de amigo do próprio Chico Science, Mario C também remixou a banda em seus primeiros discos, nas faixas “Maracatu Atômico” (do emblemático Afrociberdelia, de 1995) e “Amor de Muito” (do duplo CSNZ, gravado após a morte de Chico, em 1998). Além da Nação, Caldato conhece bem seus companheiros de geração – produziu dois discos do Planet Hemp e faixas de Bebel Gilberto, além de ser apaixonado confesso pela música brasileira dos anos 60 e 70. Foi ele um dos motivos para a banda fechar com a Deck – era um produtor que o grupo queria trabalhar há tempos e a gravadora tinha interesse em contrata-lo para ter o passe da Nação.

Pela primeira vez numa carreira com quase vinte anos, o grupo quebrara o processo tradicional de composição automática, em que música e letra surgiam durante ensaios e passagens de som. Este processo acompanha a banda desde antes de seu batismo final, quando ainda era formada por Chico, Dengue, Lúcio e pelo baterista Vicente, e se chamava Loustal, em referência ao quadrinista homônimo francês. O grupo, fundado no final dos anos 80, tocava músicas de bandas estrangeiras (“Who, James Brown, Clash…”, lembra Dengue, “até cover do Mundo Livre a gente tocava!”) e aos poucos se aventurava por composições próprias, quando Chico conheceu Gilmar Bola Oito, em 1987 – estabelecendo a conexão que deu origem à banda, entre os bairros do Rio Doce (de onde vinha o Loustal) e de Peixinhos.

“O Lamento Negro é um bloco de cultura afro que existe até hoje, todo carnaval sai”, explica Dengue. “E naquela época, Chico conheceu os caras e tocava beats de funk com a percussão deles”. A aproximação entre Chico e Gilmar fez os dois grupos originais aos poucos colidirem. Gilmar era um dos integrantes do grupo de samba-reggae Lamento Negro, que, sediado no bairro de Peixinhos, ensaiava em um lugar chamado Daruê Malungo, e trabalhava com Chico na empresa de processamento de dados da prefeitura do Recife. O reconhecimento mútuo por interesses musicais fez com que Chico visitasse os ensaios do Lamento Negro e, pouco a pouco, começasse a ensaiar com o grupo. Chico Science & Lamento Negro era a banda paralela de Chico, que marcava shows para seus dois grupos simultaneamente. Logo, as diferenças entre o Loustal e Chico Science & Lamento Negro – que não consistia na banda original, e sim nos percussionistas Gilmar, Toca Ogan, Canhoto e Gira – tornavam-se mínimas. Chico, Lucio e Dengue continuavam no palco o tempo todo, enquanto Vicente deixava a bateria do Loustal para os percussionistas do Lamento Negro transformarem seu grupo em outra banda.

“Gilmar era quem chamava todo mundo. A gente tocou com gente pra caralho, no meio de 50 caras, Gilmar descobria quem podia ensaiar”, lembra o baixista. “Mas foram ele, Toca, Gira e Canhoto quem mantiveram uma certa constância. Mostraram interesses, deixaram de fazer outras coisas pra ensaiar”. E aos poucos o repertório da nova banda incorporava músicas do Loustal: “‘Manguetown’, ‘Samba do Lado’, ‘A Cidade’ e ‘Etnia’, por exemplo, são dessa época”, continua o baixista.

Era questão de tempo para que as duas bandas se tornassem Chico Science & Nação Zumbi. Com a saída de Vicente e a efetivação dos percussionistas, a banda estava formada. Jorge du Peixe, amigo de adolescência e parceiro de Chico em outros projetos, entrou na banda poucos meses antes da assinatura do contrato para o primeiro disco da banda, Da Lama ao Caos, lançado pela Sony em 1994. “Quando Jorge entrou, já foi pra gravar o primeiro disco em 93, a gente já tinha demo feita, Hermano Vianna já tinha elogiado, já tinha um show marcado pra tocar no programa de Marcelo Rubens Paiva”, conta Dengue, “depois de um mês que ele entrou, Pena Schmidt mandou um contrato pra gente assinar com a Tinitus, mas depois a gente recebeu o da Sony e optou por eles”.

Pupilo entrou no ano seguinte – amigo da noite e baterista conhecido na cidade, agregou-se à banda e tornou-se um de seus principais integrantes a partir do segundo disco, Afrociberdelia. Desde então, o método de composição do grupo era sempre em improvisos durante os ensaios – método abandonado pela primeira vez durante as gravações do novo disco.

Antes da gravação, o grupo se reuniu no estúdio de Kalil Aiala, em São Paulo, para gravar as versões finais do que vinham bolando em casa. Quando entraram no estúdio Tambor com Caldato, no Rio de Janeiro, tudo foi muito rápido. “As músicas já estavam prontas, tudo”, conta Dengue. “Chegamos no estúdio com uma demo com 11 músicas. A única que não estava pronta antes de chegarmos era ‘Bossa Nostra’”. “Todas as bases foram gravadas em nove dias”, continua Lucio. “Depois levamos mais tempo para gravar as vozes, mais à vontade. Mario também ficou feliz pra caralho. Ele nos deixou despreocupado pra que a gente pensasse só em música”.

“Conhecemos o cara há muito tempo”, lembra Jorge. “Desde a época do primeiro disco do Soulfly – Lucio foi pros Estados Unidos antes pra fazer as guitarras, depois fui eu e Gilmar para gravar os tambores. Ele soube como gravar os tambores, foi uma coisa que a gente sacou na época. Foi o melhor som de tambores que já gravaram – e a gente ficou com isso”.

“Sempre coloquei muito overdub, superpondo guitarras na música”, Lucio segue explicando. “E quando começamos a gravar com Mario, eu gravei minha parte e pedi pra ele abrir o outro canal porque iríamos gravar a dobra. Aí ele olhou pra mim e perguntou: ‘Dobra?’. É, outra guitarra. E ele ‘mas no show não tem outra guitarra!’. Ele fez o mesmo com toda a banda. Ele gravou todos os tambores em um só dia”. A bateria foi gravada eem outro dia e baixo e guitarra num dia mais adiante. A velocidade de produção e gravação reflete-se claramente no ritmo do disco. “Ajudou muito o fato de Caldato falar português, né?”, explica Dengue, “assim tudo fluía mais fácil do que com Scott (Hardy, produtor dos dois discos anteriores da banda)”. “Depois que gravamos a primeira parte, Mario voltou lá pra fora e me deixou com as músicas no computer, mastigando as letras. Ele foi bem claro: ‘Não quero que você leia as letras, se você lê não tem uma maleabilidade que você tem ao vivo’”, lembra Jorge. As gravações terminaram em São Paulo, no estúdio YB.

“As participações vieram no caminho”, lembra Jorge, citando Money Mark e Céu, entre outros. “Junio Barreto (co-autor de “Toda Surdez Será Castigada”) é um cara que eu admiro há um tempo e a gente já tinha a idéia dessa música, um dia, cantarolado um trecho pra ele numa ocasião, ele falou ‘deixa eu fazer uma inteira nessa música, fazer uma emenda’. Aí quando eu o chamei, ele topou na hora, eu mandei a música por MP3 e ele trouxe a música depois. . É engraçado na música porque tem gente que não sabe se é a minha voz ou a dele”.

Se Junio se confunde com a banda, os arranjos do Maestro Ademir Araújo em “Nascedouro”, se sobressaem: “O Maestro Ademir é um cara que é conhecido do frevo, mas me chamou atenção quando ouvi os arranjos de metais dele pro disco de Erasto Vasconcellos, o irmão de Nana, produzido pelo Fábio, do Eddie”, lembra Jorge. “Os arranjos são muito bons, mais joviais, sem ser muito preso àquele negócio muito solene. Ficou muito bom, parece arranjo de gafieira”. A participação do maestro no disco aconteceu antes de ser anunciado que ele seria um dos homenageados do carnaval pernambucano de 2008.

“O Futura é mais denso, carregado, até pelo conceito de psicodelia em preto e branco, enquanto esse tem nosso lado mais leve e mais rápido”, explica Pupilo. “Rápido em tudo: no andamento das músicas, no processo de fazer, no acabamento. A afinidade com Mario e o fato de termos feito uma pré-produção antes de gravarmos ajudou muito”. “O estúdio é um parque de diversões”, continua Jorge. “E chegamos com o disco quase 70% pronto no estúdio. No Futura não rolou pré-produção, foi mais seco. Scott veio e gravou e até o final da mixagem eu ainda tava botando letra. Mas no Futura as letras eram maiores, mais rimadas. Nesse disco, as músicas são curtas”. “Não é que o Futura seja um disco pra baixo, mas acho que esse disco é um mais pra cima”, completa o baixista. “As músicas estão mais dançantes e o Mario acentuou o que a gente tava querendo fazer”.

Enquanto Futura era torpe e pesado em decorrência da forte influência dub sobre o disco, Fome de Tudo vem mais elétrico e incisivo, as guitarras de Lucio segurando bases afro-funk, o ribombo dos tambores equilibrando uma bateria repicada, acelerada no contratempo, enquanto as letras enfileiram mais informação do que abrem espaço para a introspecção, seja lírica ou instrumental. Mesmo que as músicas não tenham, gravadas, a força e o impacto sônico que o grupo provoca ao vivo (o Santo Graal dos discos do grupo), elas contam com uma velocidade pouco usual para os anos da banda como uma única usina de som – e não como a banda que acompanhava Chico Science.

O disco roda duas vezes antes de chegarmos ao Galpão Busca Vida, depois de passarmos do asfalto para a estrada de terra, onde chegamos a um tipo de recreação comum no interior de São Paulo. Não é uma “balada” como diriam os paulistanos, mas também não é apenas um show. O chão de terra batida não é falta de investimento dos proprietários, é estilo. Alguns dos jovens universitários que freqüentam a casa usam sandálias de couro, roupas de tecido cru e vestidos de alcinha, mas eles não são a maioria. Há gente de todo o tipo neste tipo de evento e só quem morou em uma cidade universitária sabe como um show de uma banda com um determinado corte musical move toda a comunidade para o mesmo lugar. Enquanto duplas sertanejas, grupos de samba e trios elétricos atraem a porção universitária que se preocupa mais com a aparência, bandas de reggae e de forró – seja a versão college, com teclados, ou a pé-de-serra, igualmente valorizadas – abrem espaços para alunos invariavelmente vindo das ciências humanas, espaços que prezam pela atmosfera rústica e de glamour artesanal, resumido no adjetivo em inglês “roots”. Não há espaço para o rock nesta geração – os indies são velhos demais, os emos ainda não chegaram à faculdade.

O tal Busca Vida em que a banda se apresentaria naquele sábado de feriadão (a sexta-feira anterior fora Dia da Independência) era um galpão como seu nome entregava. Chegamos com a van passando por uma cancela e estacionando próximo a um chalé de madeira que fazia vezes de camarim. Enquanto a banda chegava, um grupo de maracatu, em pleno interior paulista, animava o público que esperava a apresentação começar. Não era nem uma hora da manhã ainda, as pessoas não tinham pressa. O cardápio do lugar apresentava diferentes tipos de cachaças caseiras e o técnico de som da Nação, Buguinha, que havia chegado antes da banda, temperava a noite com reggae de primeiríssima linha.

Este é o público não apenas da Nação Zumbi mas de todo o filão de bandas que saiu de Pernambuco após o acontecimento do mangue beat, no começo dos anos 90. A presença das alfaias – os enormes tambores de maracatu que caracterizavam a banda tanto quanto seus colares, chapéus de palha e óculos escuros dos primeiros anos – logo deixava de ser um charme cênico pernambucano para aparecer em grupos de outros estados e regiões do Brasil. A morte de Chico em 1997 acelerou a influência desta cena no resto do país, ao mesmo tempo em que a tornava, para todos os efeitos, horizontalizada, sem um líder ou porta-voz.

Não que Chico Science fosse líder ou porta-voz de sua geração. Era um agente dinâmico, que preferia colocar as coisas em prática em vez de ficar teorizando sobre as possibilidades disponíveis. Sua morte consolidou sua figura icônica como uma mistura de Raul Seixas, Che Guevara e Bob Marley, protagonistas de uma utopia hippie politicamente incorreta, romântica e possível. Canonizado na prática, Chico tornara sagrada a Recife que cantava, ao mesmo tempo em que injetara o gás essencial de auto-estima em toda sua geração, que começou a produzir discos em série.

Se no começo a Nação Zumbi dividia o holofote com o Mundo Livre S/A, foi a partir da morte de Chico Science que o panteão de um novo nordeste que mostrava toda a complexidade típica do funcionamento em rede, que havia começado a funcionar a partir do manifesto-release que colocou o mangue beat no mapa do pop brasileiro. A cena do Pernambuco era complexa e hierárquica como uma Camelot de pele morena e olhos claros e inclui nomes como Otto, DJ Dolores, Devotos, Mestre Ambrósio, Eddie, Bonsucesso Samba Clube até artistas mais recentes, como Mombojó, Academia da Berlinda e China.

Mas Pernambuco era só o começo: da Paraíba sairiam Chico Correa & the Electronic Band e Cabruêra, de Alagoas vinham Wado, Sonic Junior e Mopho, do Piauí vinha a dupla Lado2Estéreo e do Ceará uma cena que inclui Cidadão Instigado, Karine Alexandrino e a banda Montage. Todo o nordeste sentiu, em diferentes níveis, o impacto da proposta pernambucana. E a resposta a este impacto é o que proporciona o sucesso de grupos tão diferentes – embora de alguma forma semelhantes – como o Cordel do Fogo Encantado, o Teatro Mágico e os Móveis Coloniais de Acaju.

São Paulo se tornou a segunda casa destas bandas de Pernambuco, que habitavam o mesmo cenário musical de bandas de hip hop alternativo, de rock instrumental e cantoras de MPB, entre os já citados palcos do Sesc e da Vila Madalena. E, naturalmente, a cena formada por bandas da cidade acabaram influenciando os artistas de fora e, naturalmente, a Nação.

“Estamos em São Paulo há quase dez anos e sempre morou junto, mesmo no começo, quando gravávamos no Rio”, lembra Pupilo. “Mas depois do Rádio S.Amb.A. a galera resolveu que tinha que se mudar e morar sozinhos. A gente morou em Perdizes, na Pompéia… Mas quando a gente assinou com a Trama (em 2001), a gente meio que definiu isso, de cada um ter que se virar. A indústria ta mudando, né? Não tinha como pagar adiantamento pra neguinho ficar um ano num apartamento e tal… E tem horas que cansa mesmo, você fica mais tempo com a galera do que com a família. Mesmo porque ta quase todo mundo casado e todo mundo na banda tem filho…”.

O principal reflexo de São Paulo na Nação Zumbi vai além da sonoridade atual, embora este seja facilmente perceptível nas participações especiais nos últimos discos da banda, como o músico Maurício Takara, o rapper Rodrigo Brandão, a cantora Céu ou nordestinos radicados em São Paulo, como Júnio Barreto e Fernando Catatau. Não são, contudo, as influências de fora para dentro que mexeram com a forma de pensar do grupo, e sim a mudança de pensamento de dentro para fora.

Morar numa cidade cheia de oportunidades com um conjunto que conta com quase dez músicos no palco, fez com que a banda inevitavelmente descobrisse novas formas para dar vazão à sua criatividade. Assim, surgiram novas parcerias e projetos paralelos. Quase todos estes grupos são idéias solo ou afinidades musicais levadas a sério demais, mas inevitavelmente contam com a participação dos outros integrantes da Nação. Não tem propriamente a ver com conseguir um espaço para sonoridades individuais. Eles acabam funcionando como puladas de cerca dentro de um relacionamento aberto, assim, cada integrante da banda pode desenvolver uma carreira paralela em estar preso à nave-mãe que é a Nação Zumbi.

Os projetos paralelos foram crucial não apenas para que cada um pudesse fazer o que bem entendesse sem pedir o aval do grupo como para que a banda reinventasse uma nova forma de gravação e composição. “Porra, pra caralho! É fundamental!”, concorda Pupilo. “A gente tem um leque aberto com som e tem como descarregar isso em outros projetos. E a galera participa, não tem como – faço o 3 na Massa e ta lá Lucio e Jorge, olha o disco do Maquinado e ta todo mundo lá também. Esses projetos servem de laboratório pra quando chegarmos na hora da Nação, isso já ta filtrado. É bom tem um leque muito aberto, mas pode complicar quando você junta oito cabeças”.

E quando os oito sobem no palco, suas diferenças musicais desaparecem e dão origem a uma massa de som inacreditável, que tornam seus shows uma tempestade sonora em que ruído, harmonia e groove convergem a um patamar único e inatingível. Soam como uma escola de samba e o Led Zeppelin, o Massive Attack e o Sonic Youth, um maracatu e o Rage Against the Machine. Claro que a quantidade de músicos no palco acaba por influenciar diretamente no som – não há silêncios, entre as microfonias deixadas por Lucio, o zunido do baixo de Dengue, os ecos da percussão ou da voz de Jorge. Um magnetismo sonoro atravessa toda apresentação, colando as diferentes partes musicais umas às outras como se fossem a versão sonora da matéria escura que teoricamente existe em todo o universo. Ter oito pessoas num mesmo palco faz com que inexistam momentos de silêncio – e as partículas de som vibram sem parar.

É quando o ar é movimentado pelo peso do baixo de Dengue ou pelos guinchos da guitarra de Lucio. Instrumentistas irmãos, eles se acompanham como gêmeos inversos: Lucio exibicionista, faz caretas e estica seu instrumento como se pudesse alcançar o público, o baixista, mal sorri, acompanha o som com o pesar que o grave de se instrumento exige. Atrás dos dois, Pupilo segue mecânico, tão concentrado que parece nem piscar, embora interaja com todos os músicos da banda, com movimentos de cabeça, sorrisos e troca de olhares. À sua direita, Da Lua, Gilmar e Mathias amplificam o ritmo marcado pelo metrônomo humano que é o baterista, alternando, quase sempre, duas batidas com uma, como o ritmo do coração humano.

Na frente, Jorge du Peixe, amigo de adolescência de Chico Science e seu extremo oposto. Enquanto Chico era pura energia de palco mesmo quando não havia palco – o assisti mais de meia dúzia de vezes, além de ter trocado figurinhas com o sujeito em várias ocasiões, antes do fatídico acidente –, Jorge sai pela tangente. O olhar distante e atento o tornam o mais desconfiado de todos os integrantes da banda, o sorriso mais difícil de se arrancar e a fala dura da convicção irredutível. Ciente de suas limitações vocais, agarra o microfone como se estivesse numa transmissão clandestina, passando mensagens em código que irão ser conectadas de formas menos objetivas que o raciocínio linear. “Quem curte rhythm’n’blues, soul jamaicano e hip hop sabe que, por mais que tenham grandes MCs, tem um canto falado, um não-canto, que é a minha escola”, me contaria depois. Ele declama letras mais recentes enquanto a banda chapa ainda mais as músicas dos tempos de Chico, quase sempre saudadas com a irônica informação errada: “Essa é nova”.

Disparando samples e conduzindo o vocal, ele parece ser o capitão do barco, o timoneiro. Talvez seja. Mas que não se confunda com o líder da banda. No palco, a equação parece facilmente resolvida, mas estamos lidando com elementos de altíssima volatilidade, como harmonia, groove e barulho. A química entre os músicos é sutil e quase imperceptível. Tocam como se estivessem no automático, mas a quantidade de energia gerada e devolvida ao público é colossal – ainda mais levando em conta o mínimo esforço que o grupo faz para manter o contato com o público.

De volta ao chalé transformado em camarim, a banda se cumprimenta pelo show que acabara de encerrar e que seria o fechamento da turnê do disco Futura. Não seria: em pouco mais de um mês, a banda viajaria para o nordeste onde faria pelo menos três outras apresentações, mas a arte do disco (feita, como nos três discos anteriores, pela mulher de Jorge, Valentina) seria finalizada e a escolha da música de trabalho (“Bossa Nostra”) se daria neste processo. Na volta pela estrada, a banda aquieta-se e tenta cochilar. Após entrar em São Paulo, a van vai largando um a um pelas ruas da cidade – e eles somem na noite, despercebidos, um a um, quietos como apareceram.

Órbitas Mangue
Todos os projetos paralelos da maior banda do Brasil

Los Sebosos Postizos
Um dos primeiros projetos da Nação, consiste de Lucio, Jorge, Dengue, Pupilo e Bactéria, tecladista do Mundo Livre S/A, tocando clássicos de Jorge Ben nos anos 60 e 70 nas clássicas Noites do Ben. Sem gravações oficiais do projeto, existe um registro pirata em MP3 do grupo se apresentando no Sesc Pompéia em 2004 – e, no repertório, uma incrível versão para “Tomorrow Never Knows”, dos Beatles.

3 na Massa
Projeto de Dengue e Pupilo ao lado do produtor Rica Amabis, do Instituto, o trio começou como uma brincadeira quando os três moravam juntos em São Paulo e, depois de ouvir muito Chico Buarque e Serge Gainsbourg, convidaram compositores (Rodrigo Amarante, Xico Sá, Rodrigo Brandão, Lirinha) para escrever músicas que seriam gravadas por mulheres (Thalma de Freitas, Lurdez da Luz, Céu, Geanine Marques). O resultado já foi registrado e deve ser lançado em disco ainda este ano – e já está gerando ele mesmo uma nova banda paralela, com Céu como vocalista fixa do trio original.

Maquinado
Projeto solo de Lucio Maia, começou na época em que ele e Jorge compuseram a trilha sonora para o filme Amarelo Manga, de Cláudio Assis. Lucio tomou gosto e criou um ambiente musical para convidar amigos. O primeiro disco, lançado este ano pela gravadora Trama, conta com todos os integrantes da Nação em momentos diferentes do disco, além de outros músicos, que ainda tocam em seus shows, como Siba, M. Takara, Catatau, Rodrigo Brandão e Speed.

Autônomo
Projeto solo de Jorge du Peixe, com ênfase no hip hop instrumental, no dub e na música feita através do computador.

Coco de Mazuka
Criado a partir do núcleo do Lamento Negro original, é um grupo de percussão criado pela turma de Peixinhos e formado por Toca Ogan e Gustavo Da Lua, além de André Male e Marco Axé, que tocam com a banda de Otto.

Cool Crabs
Nome usado por Jorge, Lucio e pelo jornalista Renato Lins – também conhecido como “o Ministro da Informação do Mangue Beat Renato L” – quando discotecam juntos. Chico também participava da brincadeira.

Pra Mateus Dançar
Ou Pra Mateuz Poder Dançar é outro projeto de percussão formado por Toca Ogan e Marco Mathias, além da turma de Peixinhos e o tecladista do Mundo Livre, Bactéria, também na percussão.

Capenga Sangle
Mais uma vez Jorge du Peixe se aventura pelo terreno do instrumental chapado, desta vez ao lado do multiinstrumentista Berna Vieira, do Bonsucesso Samba Clube.
http://www.myspace.com/capengasample

Vitrola Adubada
Projeto do produtor Buguinha Dub ao lado do percussionista Toca Ogan e convidados. Buginha dispara bases de reggae e faz overdubs em tempo real, enquanto a percussão improvisa com ecos e cortes.

Orquestra Manguefônica
Fusão da Nação Zumbi com Mundo Livre S/A, a Orquestra era um projeto antigo das duas bandas mas só foi colocada em prática quando as duas bandas se reuniram para o projeto Disco de Ouro, do Sesc Pompéia, para tocar a íntegra do disco Da Lama ao Caos, em janeiro de 2004.

Os Malteses
Banda de funk instrumental composta por Lucio, Pupilo e pelo atual baixista do Mundo Livre, Junior Areia. Tocam quase sempre com músicos convidados, mas sempre sem vocal.

Os Cabulosos
Banda de surf music formada por Lucio Maia, Berna (Bonsucesso Samba Clube) e Chico (ex-Sheik Tosado), fez poucas apresentações.

Menina Sem Nome
Projeto de Gilmar Bola Oito, ainda em elaboração.