Mulheres na produção musical
Em mais uma matéria que fiz para a revista da UBC, conversei com Jadsa, Josyara e Anelis Assumpção sobre uma mudança no mercado de música e no processo criativo da música brasileira deste início de século que é a ascensão de mulheres ao cargo de produtora musical, território dominado pelas três a partir de diferentes experiências pessoais. Leia abaixo:
Produtoras fonográficas: novas cores num mundo ainda muito masculino
Mercado de música vem finalmente se abrindo a uma geração de criadoras que desbravam o estúdio e injetam outros olhares a discos e singles
Enquanto diferentes áreas do mercado da música abrem-se para outros gêneros, deixando a onipresença masculina no passado, uma delas ainda segue predominantemente formada por homens – a da produção fonográfica. A estagnação do percentual delas nas receitas de execução pública recebidas pelo conjunto desses profissionais, como mostram as últimas edições do relatório Por Elas Que Fazem a Música, da UBC (só 7% dos valores vão para as mulheres, enquanto 93% ficam com os homens) fala por si.
Mas, de alguns anos para cá, temos visto novas produtoras a direção das gravações em estúdio, seja dos seus próprios discos, seja dos de outros artistas. E o resultado disso é uma safra de novos álbuns e singles marcada por olhares verdadeiramente mais plurais.
“Vi meu pai produzindo seus discos a vida toda, o que me deu a ideia de que produção é algo mais vasto do que a gente entende a partir do mercado, que correlaciona produção a um conhecimento técnico sobre estúdio e equipamentos”, explica a cantora e compositora Anelis Assumpção, que deu um passo importante nesta área ano passado, ao coproduzir seu disco “Sal” ao lado de Larissa Luz, Ana Frango Elétrico, Luedji Luna, Céu, Jadsa, Thalma de Freitas, Iara Rennó e Maíra Freitas, entre outras.
“Faço isso desde meu primeiro disco, produzo em parceria com outras pessoas”, diz a cantora e compositora paulistana. Anelis, que havia se produzido mesmo antes de lançar-se em carreira solo, quando produziu coletivamente os discos de seu grupo Donazica (que contava com nomes importantes da atual cena paulistana, como Iara Rennó, Andréa Dias e Gustavo Ruiz, entre outros). “Os que me ajudaram muito a entender melhor esse trabalho foram o Zé Nigro e também o Beto Villares, de quem eu me aproximei quando ele estava produzindo um disco da Zélia Duncan com músicas do meu pai.”
O pai de Anelis, claro, é o sensacional Itamar Assumpção, que não tinha tanto conhecimento técnico de estúdio mas sabia a sonoridade que queria em seus trabalhos.
“Óbvio que ter conhecimentos técnicos é muito importante e otimiza o trabalho, mas muitas vezes não é suficiente. Muitos artistas encontram-se com produtores técnicos pra poder executar suas ideias”, lembra Anelis, citando o parceiro Paulo Lepetit, que coproduzia os discos de Itamar e que também foi uma inspiração para ela, ainda em seus anos de formação. “Meu pai produzia a partir de uma ideia, (sabendo) aonde queria chegar musicalmente, o que, para mim, é a parte mais importante da produção.”
Estímulo durante a pandemia
Se Anelis já está nessa vereda há anos, a baiana Josyara aproveitou o período de reclusão da pandemia para desenvolver a nova atividade.
“Fiz alguns cursos online pra entender os softwares e as ferramentas e, a partir daí, fiz minhas primeiras bases, compondo de outro jeito”, lembra a cantora. “Sempre tive o violão como condutor criativo e, de repente, tinha mil violões: gravava uma parte dele, somava com outra, e isso criava uma camada sonora. Eu estava experimentando. Começou muito a partir da vontade de criar diferente e ter outras possibilidades de sons.”
“Sempre tive o violão como condutor criativo e, de repente, tinha mil violões, criava uma camada sonora. Eu estava experimentando”, diz a produtora baiana.
A primeira produção de Josyara aconteceu quando ela foi convidada para produzir o EP de estreia da cantora potiguar Juliana Linhares. “Isso me deu coragem de produzir meu segundo álbum, ‘Adeusdará’, que foi lançado pela Deck. Tive junto comigo o Rafa Ramos, da gravadora, que me dava dicas, e a gente foi criando essa atmosfera que é o disco.”
Conterrânea dela, Jadsa descobriu a produção por outro meio. Mais especificamente o teatro.
“Lá, pude entender as funções de cada profissão e sua importância”, diz a cantora, que produziu seu disco de estreia, “Olho de Vidro”. “Vi que eu precisava de um profissional técnico para saber mexer nas máquinas e que soubesse das frequências. Assumi a coprodução acompanhada por João Milet Meirelles”, que depois tornou-se seu parceiro no projeto eletrônico Taxidermia.
Todas são categóricas ao dizer que não há diferença técnica de gênero na produção fonográfica. A barreira, entendem, se deve a preconceito do mercado.
“As capacidades criativas e artísticas estão intensamente livres, cada qual com seu olhar, seu coração pra criar”, define Josyara. “Obviamente, os espaços artísticos, apesar de muitas diferenças e muitas conquistas, ainda são bastante masculinos. E a produção ainda é majoritariamente repleta de homens que atuam e levam créditos e fama por isso, o que acaba fazendo com o que a gente não consiga ver as tantas produtoras incríveis que temos: Mahmundi, Iara Rennó, Anelis Assumpção, Céu, Larissa Luz…”, ela continua.
“Enquanto um cara faz a produção de um disco, a mana faz a produção, a direção, a produção executiva e ainda toca cantando. E recebe menos”, constata Jadsa.
Sensibilidade especial
Anelis concorda com ela, mas pontua: para ela, o olhar das mulheres é outro:
“Acredito que a gente tenha diferenças positivas nas pequenas nuances que englobam o trabalho de produzir: a escuta, a comunicação, a sensibilidade. Eu tive isso com os homens com quem eu trabalhei com produção e pretendo trabalhar, mas eles são pessoas com nível de sensibilidade altamente feminino. Para ouvir o trabalho de alguém, entender a letra da canção, a melodia e pensar em toda a roupagem musical que aquela música pode ter naquele momento, é necessário ter muita sensibilidade, muita calma. Acho que esse é um ponto muito importante nessa diferença de gênero.”
Para Jadsa, a maior polivalência das mulheres também é evidente:
“A grande diferença que sinto é que, de maneira generalizada, consigo ver as mulheres exercendo mais funções em um projeto do que os homens. Enquanto um cara faz a produção de um disco, a mana faz a produção, a direção, a produção executiva e ainda toca cantando. E recebe menos”, diz, rindo.
Dicas para produzir
Os conselhos de Anelis Assumpção, Jadsa e Josyara para outras mulheres que querem começar na área.
Josyara: “Obviamente a gente carrega no nosso corpo essas coisas todas, ancestrais, de tantas que foram silenciadas, apagadas e ficaram sem créditos. A gente tende a ser muito autocrítica por causa disso, e uma das dificuldades que eu tive a partir dos preconceitos da vida foi essa autocrítica muito forte, mas que bom que tive força para, apesar disso tudo, lançar, fazer, trocar e continuar. Isso é a coisa mais importante.”
Jadsa: “Faça! Meta as caras mesmo!”
Anelis: “O primeiro passo é ter a oportunidade do erro, isso é muito relevante. Porque já se espera das mulheres que inaugurem uma linguagem – seja a presidência de uma empresa, a dominação de um maquinário, a produção de um álbum, a direção de um disco ou o roteiro de um filme. Tudo o que é iniciado por uma mulher tem um julgamento mais vil, como se cobrassem: ‘você quis tanto fazer isso, quero ver se é boa.’ Mas que isso não faça ninguém desistir, que a gente batalhe juntas por esse tempo, o tempo do erro, do aprimoramento, que foi dado aos homens por séculos e séculos.”
Tags: anelis assumpcao, jadsa, josyara, ubc