Meio século de hip hop
Há exatamente 50 anos, no dia 11 de agosto de 1973, o jovem jamaicano Kool Herc (visto na foto acima cercado por Grandmaster Flash, Afrika Bambaataa e Chuck D) testava técnicas que vinha experimentando na vitrola em seu quarto numa festa num bairro de periferia em Nova York. Naquele baile do Bronx, que viu Herc experimentar o back to back e o scratch pela primeira vez, também havia MCs, grafiteiros e dançarinos de break no que convencionou-se chamar de ponto de partida da história do hip hop, que completa meio século nesta sexta-feira. Escrevi para o site da CNN sobre a importância deste momento, que deu origem a uma cultura que mudaria o mundo.
Leia abaixo:
Há 50 anos, a cultura hip hop nascia numa festa de periferia para mudar o planeta
Evento, produzido pelo DJ Kool Herc, que só tinha 18 anos à época, reuniu, pela primeira vez, rap, DJ, break e graffiti
Há 50 anos, uma festa de rua num bairro de periferia mudaria todo o curso da história. É sempre difícil cravar uma data precisa no nascimento de um movimento, de um gênero musical ou de uma cena cultural pois estes fenômenos tendem a ser frutos de processos que se desenvolvem em paralelo e só ganham relevância e importância com o passar do tempo. Mas quando falamos do surgimento da cultura hip hop há quase um consenso de que no dia 11 de agosto de 1973 algo específico aconteceu.
Quando o jovem DJ Kool Herc, com apenas 18 anos à época, organizou uma festa no número 1.520 da avenida Sedgewick no bairro periférico nova-iorquino do Bronx, ele pode colocar em prática algumas técnicas que vinha desenvolvendo ao colocar músicas nos bailes em que era convidado para tocar, ao mesmo tempo em que outras manifestações artísticas estavam presentes.
Se estivéssemos falando só de rap, a mera referência ao canto falado abriria discussões que se espalham por todo o planeta – quase toda cultura tem sua versão ancestral da voz que acompanha a música sem ter uma linha melódica, usando a cadência e a métrica das palavras como ritmo. Mas no baile que Herc deu de graça naquela esquina esquecida pela história viu não só rimadores tomarem os microfones para agitar o público cantando de forma falada, como também havia a pintura radical que era escancarada com letras gigantescas e coloridas pintadas com latas de spray e dançarinos que se contorciam em acrobacias de tirar o fôlego, girando o corpo no chão ao ritmo das batidas enfileiradas pelo DJ.
Este era o centro da festa e naquele momento Herc (nascido em Kingston, na Jamaica, e de nome de batismo Clive Campbell) conseguiu executar em público ideias com as quais vinha brincando na vitrola em seu quarto.
Uma delas consistia em enfileirar pedaços de uma mesma música repetidas vezes a partir de dois discos de vinil. Escolhia um trecho instrumental em duas cópias do mesmo LP, deixando primeiro tocar um disco em uma vitrola para, quando o trecho estivesse chegando ao fim, soltava aquela mesma parte sem perder o ritmo em outro toca-discos, enquanto no primeiro disco ele retornava ao início daquele trecho. Assim, poderia esticar períodos curtos de um determinado disco em uma longa sessão instrumental, valorizando o ritmo, que dava o tom da festa e servia de incentivo para os bailarinos vestidos com moletons jogarem-se naquela nova dança chamada break.
A outra técnica surgiu por acidente, quando a mãe de Herc bateu na porta de seu quarto pedindo para ele abaixar o volume e ele segurou o disco com a mão, percebendo o ruído que o vinil fazia quando era manipulado.
A execução daquelas novas técnicas – o back to back e o scratch – levaram aquele baile de periferia a um novo patamar. Festas de rua não eram novidade naquele período decadente de Nova York. Os índices de violência e pobreza da maior cidade dos EUA a tornavam um ambiente cada vez mais hostil e aquele clima pesado inevitavelmente traduziu-se em novas manifestações culturais – e não apenas musicais.
Era o cenário para filmes de novos cineastas que mostravam a ascensão do crime organizado (Martin Scorsese e Francis Ford Coppola), a barra pesada dos bairros de periferia da cidade (Melvin Van Peebles e Gordon Parks) e as gangues de rua (Walter Hill e John Carpenter).
A cidade também deu origem à disco music (que começou como um movimento negro gay e latino antes de ser cooptado pelo mercado de entretenimento no filme “Os Embalos de Sábado à Noite”) e ao punk rock, mas nenhum movimento cultural teve um impacto tão grande quando o hip hop.
Até firmar-se para além de uma novidade, fora quase dez anos para aquela cultura nova-iorquina conseguir se estabelecer como algo novo e transformador. Até sua entrada no mercado fonográfico levou tempo para acontecer: o single “Rapper’s Delight” foi lançado só em 1979 como um projeto de uma gravadora de periferia e tratado como uma curiosidade mais do que uma canção.
Mas o impacto daquela nova música em disco logo seria sentido no mundo todo e em pouco tempo vários jovens começaram a se inspirar em fazer música rimando sobre batidas. Até mesmo no Brasil o single teve um impacto imediato, quando foi lançado no Brasil por ninguém menos que o apresentador Miéle, que o traduziu como “Melô do Tagarela”, lançado no ano seguinte.
A coisa começou a ficar séria em pouco tempo. O sucesso de vendas e no rádio de “Rapper’s Delight” pavimentou o caminho para novos artistas e o single “The Message”, do grupo Grandmaster Flash & The Furious Five, pela primeira vez passou a descrever a vida na periferia de Nova York, algo que foi assimilado por novos artistas: Afrika Bambaataa, Warp 9, Cybotron e Kurtis Blow aos poucos ampliavam os horizontes do novo gênero, absorvendo referências musicais de fontes improváveis (rock, música eletrônica, disco music e cânticos tribais) e trazendo novos instrumentos, como a bateria eletrônica e o sampler, para aquele movimento que também deixava de ser local.
Ao mesmo tempo artistas de outros gêneros, com o grupo de new wave Blondie e a cantora soul Chaka Khan, assimilavam o rap em seus hits. O impacto global do rap seria catapultado pelo trio Run DMC, que puxou toda uma nova safra de artistas (LL Cool J, Beastie Boys, Boogie Down Productions, Public Enemy, Eric B & Rakim, Gang Starr) que quebrou barreiras sociais e culturais.
Uma manifestação que nem era considerada como sendo musical logo faria apresentações lotadas, ganharia veículos como a revista Rolling Stone e a emissora MTV, estaria entre os discos mais vendidos primeiro nos Estados Unidos e depois do resto do planeta, ainda nos anos 80.
É nesta época que esta cultura chega de vez ao Brasil, com manifestações que se materializaram em discos de artistas como Thaíde & DJ Hum, MC Jack, Código 13 e, claro, os Racionais MCs.
Estes foram influenciados diretamente por uma nova variante do rap que surgiu ainda nos anos 90, quando artistas de Los Angeles criaram o chamado gangsta rap, que funcionava como um contraponto para o rap feito em Nova York.
Mais pesado tanto musical quanto liricamente, o gangsta rap foi o ponto de partida do grupo NWA, que revelou artistas como Ice Cube, Eazy-E e Dr. Dre (produtor que, além de lançar-se em carreira solo, também revelou mais tardes outros rappers, como Snoop Dogg, Eminem e 50 Cent). Este novo gênero foi a base para o rap brasileiro durante os anos 90, década que consolidou os Racionais como principal nome da cultura hip hop brasileira, que atingia níveis nunca imaginados de popularidade.
De lá para cá a influência do hip hop é inescapável. Além da onipresença do rap tornou o gênero a principal referência musical do pop deste século – influenciando artistas brancos tão diferentes da cultura hip hop quanto as Spice Girls, Katy Perry, Taylor Swift, Britney Spears e os Backstreet Boys -, o gênero também conseguiu impor artistas negros ao topo do pop como não se via desde o auge de Michael Jackson, nos anos 80.
Artistas como Beyoncé, Drake, Jay-Z, Pharrell, Kendrick Lamar e Rihanna – só pra ficar nos maiores – são os frutos mais populares desta longa genealogia. O mesmo acontece no Brasil, quando vemos nomes como Emicida, Djonga, Rico Dalasam, Don L, Tasha & Tracy, Flora Matos, BK e Rincon Sapiência (além, claro, dos próprios Racionais, seja como grupo ou nas carreiras solo de Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e KL Jay) fazem parte da nossa paisagem pop. Essa experiência aconteceu em diversos países, sempre criando suas próprias hierarquias nacionais do rap – que em muitos casos se encontram.
Além do rap, a cultura do DJ – amplamente divulgada pelo hip hop – é mais popular do que ter uma banda de rock (ou grupo vocal ou carreira solo) e transcende essa própria cultura, ao misturar-se com outras variantes de música eletrônica para dançar.
O break foi completamente incorporado à dança contemporânea e tem campeonatos mundiais cada vez mais populares, além do graffiti ter ultrapassado as paredes da rua e invadido as galerias de arte e paredes públicas – com endosso de governos – em todo o mundo.
E imaginar que tudo isso começou numa festa de rua num bairro da periferia de Nova York há meio século…
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