Videodrome – A Síndrome do Vídeo (Videodrome, 1983, EUA). Dir: David Cronenberg. Elenco: James Woods, Deborah Harry. 89 min. Por que ver: Cronenberg não está para brincadeiras – e seu Mágico de Oz (adulto, gore e pessoal) inverte os papéis entre o Mágico e Dorothy. Max Renn (Woods, eficaz como qualquer alter-ego do diretor), player no novo nicho de mídia americano, a TV a cabo, teoricamente está no controle da situação, até que ele começa a captar intervenções de um programa pirata que aos poucos vão mexendo com sua mente. Videodrome é um programa de TV idealizado por um personagem chamado professor Brian O’Blivion, que só comparece a eventos através de sua imagem filmada. Envolvendo sexo, morte e violência, o programa começa a absorver Max de uma forma que ele perde a noção entre realidade e transmissão numa metáfora perfeita para a mídia de massa – e ainda mais eficaz nesta época de comunicação em tempo-real e vida virtual. Assim, Renn passa de manipulador de marionetes a manipulado – e é difícil saber quem está no comando. Fique atento: “Longa Vida à Nova Carne” é o slogan de um movimento de resistência midiático que surge à medida em que os grandes espetáculos visuais do filme começa – sexo oral via TV, o homem-videocassete… Surrealismo e tripas, sexo e máquinas – Cronenberg sempre pega na veia.
Waking Life – O Despertar da Vida (Waking Life, 2001, EUA). Dir: Richard Linklater. Elenco: Wiley Wiggins. 99 min. Por que ver: Linklater resume sua filmografia em um filme cabeça sobre o sentido da vida e a relação entre sonhos e a vida desperta – tradução apropriada para seu título. O jovem diretor trabalha entre filmes sérios sobre a sensação de estar vivo (a dobradinha Antes do Amanhecer/Antes do Por-do-Sol, sua obra-prima até então) e comédias adolescentes sobre a mesma sensação (Escola do Rock, Jovens Loucos e Rebeldes) e já havia encontrado um equilíbrio entre as duas metades em seu primeiro filme, o cult Slacker (1991). Mas em Waking Life ele vai além e encontra um jovem preso em um sonho em que todas as pessoas conversam entre si ou com ele sobre o sentido da vida, as relações entre as pessoas e a natureza da realidade. Cada diálogo ou monólogo tem o traço de animadores diferentes, uma vez em que foi usada a técnica da rotoscopia – desenhar sobre imagens pré-existentes – como estética do filme. Os atores estiveram lá e foram filmados em mini-DV por Linklater, mas ganham cores, traços e deformações típicas de desenhos animados feitos em um software caseiro, o propositalmente tosco Rotoshop. Fique atento: Além da sensação alucinógena causada pelo movimento e pelas cores do desenho, todo o texto do filme contribui para sua conclusão final – não é o que está acontecendo que importa, mas como. Não é o destino, mas a viagem.
A Conversação (The Conversation, 1974, EUA). Diretor: Francis Ford Coppola. Elenco: Gene Hackman, John Cazale, Allen Garfield, Cindy Williams, Teri Garr. 113 min. Por que ver: Basta dizer que é o filme que Coppola fez entre os dois Poderoso Chefão e Apocalipse Now, mas A Conversação é muito mais do que o produto de uma boa fase de um gênio – na verdade, é uma obra-prima muito particular. Acompanhamos o trabalho do detetive Harry Caul (Hackman, em seu melhor papel e filme favorito), um especialista em grampos telefônicos e escutas clandestinas – o melhor, sublinham durante o filme, capaz de registrar uma conversa de duas pessoas em um barco no meio de um lago. Incumbido de gravar um aparente casual papo de um casal que passeia por uma praça movimentada, Caul mobiliza sua equipe, que capta trechos aleatórios da tal conversação do título, que requer diferentes técnicas e aparelhos para ser decifrada. O filme equilibra-se entre o charme vazio registrado por Antonioni em Blow Up e o sonho americano estilhaçado de vez com as fitas de Watergate, que obrigaram Nixon a renunciar. Enquanto Caul trabalha, conhecemos um agente fora-da-lei sem vida pessoal, um detetive noir às claras, sem penumbra para disfarçar o amargo de uma existência vazia e sem sentido. O filme mais europeu de Coppola. Fique atento: À forma com que a conversa entre Mark e Ann vai mudando à medida em que trechos vão se tornando claros, uma dupla homenagem de Coppola à importância da edição em um filme e ao seu editor de som e de imagem, Walter Murch, que foi indicado ao Oscar de melhor som. E à atuação de Hackman, que compõe magistralmente um personagem sem personalidade, escorado na Igreja Católica e no jazz (aprendeu a tocar sax apenas para o filme) como fundações de sua vida. A cena final é free jazz puro, traduzido em imagens.
Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950. EUA). Diretor: Billy Wilder. Elenco: Gloria Swanson, William Holden. 110 min. Por que ver: Se Orson Welles filmasse Cantando na Chuva, o musical de Gene Kelly perderia as canções e a cor para ganhar as sombras e o pesar de Crepúsculo dos Deuses. Talvez o grande filme noir da história de Hollywood, ele confronta todos os elementos do gênero dark e urbano (inveja, cinismo, crimes, falsidade, interesse, negociações paralelas, falta de escrúpulos) com o glamour do star-system da indústria cinematográfica. Crespúsculo começa com um cadáver boiando na piscina de uma mansão em Los Angeles e conta a história de como aquele corpo apareceu ali – para isso, nos apresenta ao trambiqueiro Joe Gills (Holden) e à atriz decadente Norma Desmond (Swanson, a alma do filme, num papel que havia sido cogitado para Greta Garbo e Mae West), que desenvolvem uma relação de interesse mútuo que, à medida em que a conhecemos melhor, se revela falsa e doentia. Gills promete um roteiro para o filme que trará Desmond, estrela do cinema mudo, em decadência comercial, de volta para a frente das câmeras. No decorrer da história, Gills se envolve com a jovem escritora Betty e a partir daí as coisas fogem de controle. Mas nunca de Wilder, que conduz o filme com mão de ferro e cinismo azedo, amparado em atuações precisas e uma ambientação assustadora. Fique atento: Mesmo com pontas de nomes famosos de Hollywood, como o diretor Cecil B. DeMille, o comediante Buster Keaton e a colunista Hedda Hopper, a atuação principal é de Gloria Swanson, que usa das expressões exageradas do cinema mudo para compor uma Norma Desmond caricata, sinistra e perigosa, que revela-se, lentamente, uma psicopata ególatra disposta a fazer tudo pela fama.
Entrevista revisitada, atachada com a resenha acima…
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Com quem Dave Berman resolver fazer música, ele é o Silver Jews. O rock desleixado e descompromissado coberto de letras francas e simples – a tal filosofia Nova Abertura – é tudo culpa de Dave, cujo vocal grave lidera os livros de contos que são seus discos. O problema é que entre os colaboradores de Dave estão Stephen Malkmus e Bob Nastanovitch, ambos do Pavement, o que faz muita gente pensar que o grupo é um projeto paralelo dos autores de Crooked Rain Crooked Rain. Segue um papo sobre isso e outras coisas com o cético Berman.
O que é a Nova Abertura?
É um nome de mentira para uma iniciativa real: a rejeição da ironia como uma estratégia artística. No Estados Unidos, a ironia se tornou um gás sufocante que sai da boca de qualquer figura público. A idéia é simples: diga o que você quer, queira o que você diz.
E isso não te torna bastante público? Não é como se despir em público?
É justamente o contrário. Expressar seus sentimentos é uma necessidade que todos têm. Nossa cultura definharia e morreria sem isso. Todos viveriam melhor se pudessem andar sem as roupas na rua.
Você tem algo contra a ficção ou a fantasia?
Precisamos de música e de arte que cubra toda uma área. Fantasia é tão valiosa quanto a dura realidade. O conflito entre as duas é o impulso que nos faz progredir.
E como esta idéia lírica se encaixa com a música? Como você encara a música dos Silver Jews?
Eu gosto de acordes leves e machucados. Sons orgânicos feridos. Resoluções pacíficas. Paz que parece morte, mas que não é morte.
E sua relação com o Pavement? Você sente-se mal ao ficar na sombra do grupo?
Eu gosto, porque as pessoas descobrem a música. Não importa como eles cheguem, pra mim está bom. Se a associação com o Pavement persiste depois que as pessoas me conhecem é um tanto desolador, mas é minha culpa se a música não se destingue como própria o suficiente para ser percebida como própria.
O nome Silver Jews vem de onde?
É inventado. Ninguém se lembra direito. Apareceu num dia e parecia ser o ideal. São apenas duas palavras legais de serem ditas em voz alta.
E o nome do disco, American Water, como surgiu?
Tem uma raça de cachorros que se chama American Water Spaniel. Eu estava levando meu cachorro ao veterinário quando eu vi este nome num pôster sobre raças de cães. Aquela noite eu sonhei com este nome e ele ficou.
E qual sua relação com a crítica? Você lê suas resenhas?
Eu leio as resenhas. Eu não acho que a imprensa musical aqui consegue fazer seu trabalho. Aqui nos Estados unidos não existem críticos com suas próprias vozes. Eles são apenas cafetões do status quo. A escrita é muito semelhante à da publicidade. Eles são uma droga e é uma situação chata.
Por que você não faz shows?
São muitos motivos para serem listados. Não é digno, pra mim. Eu acho que os discos bastam. Turnês interromperiam o ritmo da minha vida. É como uma infância suspensa. Estou tentando viver como um adulto. Não nasci para estar sob os holofotes, num palco. Eu sou o observador, não o observado. É que parece errado para a minha natureza.
O que você está ouvindo hoje em dia?
Blue Öyster Cult, Jerry Jeff Walker, Jackson C. Frank, U.S. Maple e O Clube da Esquina, do Milton Nascimento.
Entrevista feita em abril de 1999
Apocalypse Now (Apocalypse Now, 1979, EUA). Diretor: Francis Ford Coppola. Elenco: Martin Sheen, Marlon Brando, Robert Duvall, Dennis Hopper. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes e dos Globos de Ouro de melhor diretor, melhor ator coadjuvante (Duvall) e trilha sonora. 153 min. (versão original)/ 202 min (Redux). Por que ver: Antes de ouvirmos as primeiras palavras ditas em voz alta pelo protagonista, assistimos à mistura de imagens, sons e idéias que, em pouco mais de um minuto, sintoniza nossa consciência ao trauma da guerra dos Estados Unidos no Vietnã: uma floresta de palmeiras, rasantes de helicópteros, uma névoa amarela que cresce junto com o instrumental dos Doors – Jim Morrison saúda as bombas sobre as árvores com seu “This is the end” clássico, enquanto vemos o enorme rosto de Martin Sheen de cabeça para baixo. “Saigon. Merda…”, diz o Capitão Willard, ao olhar a cidade pela veneziana, “ainda estou em Saigon”. Coppola adapta o Coração das Trevas de Joseph Conrad para o cinema transpondo a África e seus entrepostos comerciais do século dezenove para um contemporâneo Sudeste Asiático em guerra, mas preserva sua essência: a viagem a um inferno verde que também é uma viagem ao centro da sanidade mental. A missão de Willard é encontrar um certo Coronel Kurtz, um dos melhores militares do exército americano, que, após ser transferido para o meio da selva do Vietnã, aparentemente pirou e criou sua própria base militar autônoma. Na jornada, Willard é acompanhado de um time de jovens soldados que são uma boa amostra do tipo de jovens americanos que morreram nesta guerra (um moleque do Bronx nova-iorquino – Laurence Fishburne, então com 17 anos – , um ex-campeão de surfe, um chef de cozinha…) e passam por situações tão surreais quanto tétricas. O horror da guerra é transformado em uma ópera de cenas inacreditáveis, com toda a teatralidade do sangue italiano do diretor surgindo em imagens grotescas e hilárias, às vezes, ao mesmo tempo. E com um elenco impecável – a melhor atuação de Sheen, Hopper interpretando a si mesmo, Brando improvisando, Duvall épico –, Coppola supera a saga da família Corleone em um único filme, fazendo sua obra-prima. Mas Apocalypse Now é um filme maior do que sua duração: foi bancado todo com a grana que Coppola faturou com os dois primeiros filmes da série O Poderoso Chefão, levou três anos para ser concluído, teve o set destruído por um furacão, mudou de protagonista duas vezes (Roy Scheider e Harvey Keitel abandonaram o papel), teve problemas com Brando (que se negava a seguir o roteiro), enfartou o ator principal (durante as filmagens da primeira cena) e levou sexo, drogas e rock’n’roll para as Filipinas, onde foi filmado, em escala hollywoodiana. Tanto foi filmado que o diretor lançou sua versão autoral, chamada “Redux”, em 2001, acrescentando 49 minutos de cenas inéditas. Fique atento: Outro show de cenas fantásticas e texto preciso, é difícil sublinhar um só momento ou aspecto: da respiração tensa de Willard ao batalhão de caubóis em helicópteros liderados pelo personagem de Duvall, passando pelo tribalismo psicótico das cenas finais e a atuação plena de Brando – que só aparece no finzinho, mas com menos de vinte minutos de filme já toma o inconsciente de assalto, apenas com a voz, tudo é uma aula de cinema.
Brazil – O Filme (Brazil, 1985. Inglaterra). Dir: Terry Gilliam. Elenco: Jonathan Pryce, Kim Greist, Michael Palin, Robert De Niro, Bob Hoskins, Ian Holm. 142 min. Por que ver: Também conhecido como 1984 1/2, numa referência tanto ao livro profético de George Orwell quanto ao work-in-progress 8 e 1/2 de Fellini, Brazil é uma fábula distópica sobre o espírito humano aprisionado em um sistema opressor. Gilliam, que desde o tempo em que fazia seus desenhos animados no Monty Python, já mostrava sua tendência para a alegoria, chocando uma caricatura da fleuma inglesa com cenas e situações nada sutis – mas incrivelmente belas. Aqui a burocracia é um organismo mecânico e vivo, que se comunica por telas e aparelhos dos anos 50. A direção de arte cria um futuro com cara de passado e é fácil se identificar com os delírios do personagem principal, à procura de uma musa que, mal sabe, é uma agente terrorista. Fique atento: Ao uso de “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, como a alma do filme. A canção é o motivo do filme levar este nome e foi a inspiração original para esta utopia às avessas de Gilliam.
Senão me engano, essa resenha saiu no Correio Popular em pleno ano 2000, mas a Ana do Whiplash pediu pra republicar e graças a isso, consegui resgatá-la…
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Como as décadas finais de pelo menos dois séculos anteriores, os anos 1990 foram marcados por uma retrospectiva dos 90 anos anteriores, aglutinando em células compactas de conhecimento tudo aquilo que a centena de anos completa ao final da década quis dizer pausadamente. Mas a década que encerrou-se no final do ano passado foi caracterizada por outros sabores: a ironia e o excesso de informação. Associadas, estas duas qualidades despem a grande verdade sobre a sociedade capitalista às vésperas do novo milênio, um paradoxo em escala planetária que nos emburrece à medida que mais aprendemos. O saber está no ar, mas ninguém está interessado em mostrar como usá-lo.
Na música pop, estas características foram detectadas pela primeira vez pelo U2. Embora ecos destas qualidades já viessem cantando os 1990 por caminhos alternativos na década anterior (como os discos Paul’s Boutique, dos Beastie Boys; Pills’n’Thrills and Bellyaches, dos Happy Mondays; e Into the Dragon, do Bomb the Bass), foi apenas com Achtung Baby que elas se encontraram com o teor que filtrou a década. Ali estão a paixão pelo virtual frente à realidade (“Even Better than the Real Thing”), referências à história do rock (“Who’s Gonna Ride Your Wild Horses?”, “One”), paranóia (“The Fly”) e um misto de expectativa com esperança (“Zoo Station”). “Você? Você estava falando do fim do mundo”, debochava Bono enquanto mudava radicalmente o visual de sua banda, abandonando a pose de sacerdotes do rock e entrando num terreno estranho à sua antiga religião: a música eletrônica, um carnaval de ritmos e cores fundido com o preto e branco ríspido do fotógrafo Anton Corbijn. O disco de 1991, no entanto, não funcionava sozinho. Vinha acompanhado de uma extensa turnê dividida em três fases (Zoo TV, Zooropa – que acabou virando disco – e Zoomerang), que assistia a banda entre dezenas de monitores de TV e automóveis pendurados no palco, numa clara alusão à deselegância burra pré-colapso do capitalismo. Numa fantasia de caubói prateada, Bono rasgava notas de dólar enquanto, como pastor evangélico, anunciava que teve “uma visão”: “TELEVISÃO!”, berrava frente ao câmera que, do palco, registrava tudo pelas telas espalhadas no show. Juntos, a Zoo Tour e Achtung Baby deram o tom “rir pra não chorar” que acentuou-se nos anos 90.
A ironia virava fórmula e todas as mídias passaram a usá-la, primeiro o cinema, depois a TV, caindo no gosto popular e reverberando, assim, por todas as formas de comunicação. Falar a verdade era constrangedor demais – ou melhor, falso demais -, por isso era melhor fingir querer dizer justamente o oposto, finalmente, desta forma, atingindo seu objetivo. Passamos a ler textos que nos fingiam contar o contrário do que realmente queriam dizer, ouvir músicas que ridicularizavam o hábito de ser humano, ver filmes cujo verdadeiro tema só é desvendado da metade para o fim, contradizendo tudo que havia sido visto desde o começo. A propaganda passa a se ridicularizar na tentativa de ganhar crédito com o consumidor. Tudo é muito falso, todo mundo sabe; então porque não assumimos falsamente esta falsidade? Era isso que a ironia nos anos 90 significou: uma espécie de afirmação de identidade cultural às avessas, corrompendo nosso entendimento da realidade numa mão dupla, que ao mesmo tempo que acende uma vela pro sim (afirmando algo), acende outra pro não (ridicularizando aquilo que está sendo afirmado, simultaneamente). Sem um, nem outro, caímos na década do “tanto faz”, em que as pessoas passaram a fazer exatamente o que o capitalismo queria, plugando-se às necessidades consumistas como se estas fossem responsáveis pelo bem estar espiritual – não material. Até Alanis Morrissette, em seu maior hit, perguntou: “Não é irônico?”.
É neste cenário que o Radiohead surge como força disposta ao desequilíbrio. O grupo surgiu na Inglaterra no começo dos anos 90, mas só conseguiu fazer sucesso nos Estados Unidos, graças ao hit “Creep” (do LP Pablo Honey, de 93), ganhando primeiro o público, depois a crítica americana. “Você é tão fucking especial”, sussurrava o vocalista Thom Yorke, “mas eu sou uma coisa, sou um esquisito”. Só ganhou algum reconhecimento em seu país ao se levar mais a sério em The Bends, de 94, onde deixavam de falar de relações cotidianas para contemplar a sociedade moderna como um todo, num dos primeiros discos conceituais da década (tantos viriam depois). O grau de importância do grupo foi crescendo tão logo eles ganhavam intimidade como músicos, contemplando possibilidades diversas a partir do formato três guitarras (Yorke, Jonny Greenwood e Ed O’Brien), baixo (Colin Greenwood) e bateria (Phil Selway). Reinventando o rock clássico como fazia o indie rock americano na metade da década passada (com uma certa dose de ironia, claro), o Radiohead chamava cada vez mais atenção.
Até que atingiu seu auge com o clássico inato OK Computer, ácida descrição da sociedade capitalista sem ironia nenhuma. Ao reproduzir as normas do novo dia-a-dia sem se preocupar com sentido lírico (quase todas as composições do disco de 97 empilhavam referências e situações sem o comprometimento com o sentido), ia nos vestindo com a roupa do andróide paranóico que a vida consumista de hoje nos transformou. O disco também antecipava a invasão techno ao mercado que aconteceria naquele mesmo ano (com os discos Dig Your Own Hole, dos Chemical Brothers; e The Fat of the Land, do Prodigy), mas apenas nas entrelinhas – a produção sci-fi de Nigel Godrich deixava apenas um ar eletrônico no álbum. Sem contar a música em si, as progressões guitarreiras que mudavam a atmosfera das canções, dando uma dinâmica inédita ao som do grupo. Incensado pela crítica, OK Computer tornou-se padrão de excelência do rock dos anos 90.
E o que fazer depois disto? Depois que toca-se o céu, resta outro rumo senão a queda? O grupo passou a dedicar-se a uma turnê em que viu-se condicionado ao máximo do capitalismo que criticavam. Laureados como a mais importante banda de rock do mundo, o Radiohead tentou lançou um EP (Airbag / How Am I Driving?) e dois vídeos (a coletânea de clipes 7 Television Commercials e o homevídeo Meeting People is Easy) na tentativa de esgotar a responsabilidade em torno do próximo álbum. Em vão: cada produto lançado era recebido como prova que o sucessor de OK Computer vinha aí.
A solução seria eliminar os parâmetros conhecidos e assim o grupo começou a trabalhar: Thom Yorke desencantou-se com a melodia e passou a procurar alternativas rítmicas. Ed O’Brien queria um disco curto, enxuto, com canções simples e diretas. Colin preferia um álbum mais aprofundado na eletrônica, mas sem soar “techno”. Kid A (EMI) é o produto das cinco (seis, contando o produtor Nigel) perspectivas de como o grupo fugiria do formato OK Computer.
O resultado é um disco árido, tenso, pós-rock, ermo – adequado para o ano 2000. Enquanto a quantidade de informações contida no álbum anterior dava um aspecto de poluição visual ao disco, o novo álbum elimina recursos visuais em favor de uma música sem rosto, sintética, ciborgue, futurista. Mas enquanto o futuro de OK Computer era hi-tech e bucólico, o de Kid A é vago e ameaçador, como se o espírito de máquinas mortas sobrevoasse por cima de desértica paisagem pós-apocalíptica.
O disco abre com teclados lunares que reverberam ondas eletromagnéticas que funcionam como uma canção de ninar por onde Thom Yorke pode improvisar apaixonadamente a letra. “Tudo está no lugar certo”, ele canta ao começo do disco, repetindo os versos à medida que a canção se robotiza, cada vez mais. Entra a faixa-título, novos teclados (e caixa de música marcando o andamento, ao lado de uma bateria de bebop) descortinam o caminho para a entrada do vocal, um zumbido metálico que com certeza canta algo, mas em idioma indistinguível. A voz de Yorke é distorcida por um aparelho pré-histórico chamado Ondes Martenot (usado na trilha de Star Trek) e remete ao Menino A, o primeiro clone humano, como reza a mitologia radioheadiana.
Esta forma carinhosa que o grupo se refere à pioneira cópia de DNA humano posta em prática num laboratório (que poderia se chamar qualquer coisa mas é reconhecido com uma intimidade familiar) torna possível outro paralelo com Stanley Kubrick, o maestro cineasta cuja pompa e pulso firme à direção, já que OK Computer remetia instintivamente a 2001 (quando a máquina contra-ataca). No novo disco, o Radiohead contempla A.I., a ode não-filmada do cineasta à robótica, em que ele assume que as máquinas são herdeiras do legado humano, nossos descendentes. O grupo vai além e pensa no clone como descendente, a máquina perfeita projetada pela natureza e reprogramada de acordo com nossa vontade. Mas que vontade? Racional ou instintiva? O grupo deixa a resposta em aberto, por enquanto.
“The Nation Anthem” nos apresenta ao baixista da banda, Colin Greenwood, que puxa um groove funk pesado que escurece mais ainda à entrada de um time de metais reverenciando os graves pesos-pesados de John Coltrane. Em falsete, Yorke canta a vontade e a disposição de mudar, que aos poucos impregna o inconsciente coletivo: “Todo mundo por aqui / Todo mundo vai parar aqui / O que está acontecendo? / (…) / Todo mundo vai parar aqui / Todo mundo vai parar o medo / O que está acontecendo?”. Ao citar literalmente o nome do mítico disco político de Marvin Gaye (What’s Going On? – O que está acontecendo?), o grupo nos lembra que os tempos atuais são tão (ou mais) interessante que os anos 60 que inspiraram Gaye a se perguntar sobre a ordem mundial. O grupo prega decisões coletivas como a melhor forma de ir contra o individualismo robótico e passivo de OK Computer. Não é nenhum pouco diferente do que a simbólica luta anti-FMI / OMC / Banco Mundial que já nos deu notórias batalhas como em Seattle (no ano passado) e Praga (semana passada).
“How to Disappear Completely and Not Be Found” finalmente apresenta os violões, enquanto o vocalista nos lembra que o filme Matrix é na verdade uma metáfora da nossa situação atual: “Eu não estou aqui / Isso não está acontecendo”, balbucia Yorke, enquanto o disco vai ficando cada vez mais lento, atingindo seu ponto máximo de estática na instrumental “Treefingers”, entrando vagarosamente no terreno gelado das brancas vibrações eletrônicas de Brian Eno. “Optimistic” poderia ser irônica caso se referisse à sociedade (ainda mais com este título – “otimista”). Mas a paisagem que o grupo vê é pós-civilização e o otimismo a que se referem é um abandono das tecnologias, uma volta à natureza, onde a lei da selva – perfeita – reina soberana: “Os peixes grandes comem os pequenos”, canta a letra sobre guitarras psico-metálicas que poderiam ter saído de Led Zeppelin III, “tente o melhor que você pode / O melhor que você pode é o suficiente”. “In Limbo” parece apenas descritiva, ecos e guitarras dissipando conforme a paisagem é mostrada: “Estou do seu lado / Não há onde me esconder / Estou perdido no mar / Você está vivendo uma fantasia / Não se importe comigo”, num novo ataque ao individualismo.
O ritmo marcial technopop que soa através de “Idioteque”, marcando um compasso eletrônico por onde a sociedade do desperdício é cruelmente descrita, em vocais familiares (mas entrelaçados de uma nova forma) de Thom Yorke: “Deixa eu te dizer que você é o primeiro / Eu vou rir até minha cabeça sair / Eu vou engolir até explodir / Já vi muito / Já vi tudo / A era glacial está vindo”. Descreve os seres humanos como dinossauros às vésperas da extinção, porque já ultrapassaram o limite de consumo de recursos naturais. O sotaque techno (proveniente da atual obsessão do grupo: a gravadora Warp) só ajuda a entender a crítica do grupo, que vai de encontro à letargia e o subsequente estado de automação que o ser humano aos poucos vai se submetendo – o ponto central de OK Computer. Em “Morning Bell”, o grupo volta ao campo da melodia do último álbum (até certo ponto ignorado no novo disco) e como um aparelho de TV ligado durante um bocejo matinal despeja informações de forma vaga e desencontrada – “Eu não conheço o assassino”, “Onde você estacionou o carro?”, “E todo mundo mente para mim”, “Todo mundo mente nas pesquisas” e o golpe final “Todo mundo quer estar lá / Todo mundo quer ser o mesmo / Andando, andando, andando, andando”. A vida moderna é um tédio.
Kid A termina com a melancólica “Motion Picture Soundtrack”: “Pare de mandar cartas / Cartas sempre queimam / Não são como os filmes / Que nos enchem de mentiras brandas”, divaga o vocal triste e tímido do final, que enuncia um clima de felicidade mágica à Walt Disney (orquestras cheias de harpas dedilhadas) por baixo do tremor original do álbum. Estamos no meio de uma cratera, depois da bomba explodir. Esta bomba é o século 20, que se engole cada vez mais à medida que chega ao fim. Quando 2000 passar, zera tudo. É contemplando este futuro que Kid A sorri. É um sorriso estranho, não-humano, pensativo. Mas feliz e esperançoso, como há muito não víamos.
Mais uma utilidade para o YouTube, possibilitar listas terem uma louvável muleta audiovisual, linkada direto do site. Tem várias de clipes e de cinema por aí (linkem, eu sempre curto), mas essa sobre monólogos ou discursos históricos de grandes filmes é bem foda. Pessoalmente sou fã da crise de stress do âncora de Rede de Intrigas e do cheiro matinal de Napalm do Apocalypse Now (mas, porra, ainda tem a citação bíblica de Pulp Fiction e a contagem de tiros do velho Harry, só pra ficarmos em outros duas jóias). Mas a minha citação favorita não tava na lista, mas não demorei muito pra encontrar.
(Tiraram a íntegra do ar, só sobrou:
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Ferris Bueller, Curtindo a Vida Adoidado (1986): “How can I possibly be expected to handle school on a day like this? The key to faking out the parents is the clammy hands. It’s a good non-specific symptom. A lot of people will tell you that a phony fever is a dead lock, but if you get a nervous mother, you could land in the doctor’s office. That’s worse than school. What you do is, you fake a stomach cramp, and when you’re bent over, moaning and wailing, you lick your palms. It’s a little childish and stupid, but then, so is high school. Life moves pretty fast. You don’t stop and look around once in a while, you could miss it. I did have a test today. That wasn’t bullshit. It’s on European socialism. I mean, really, what’s the point? I’m not European, I don’t plan on being European, so who gives a crap if they’re socialist? They could be fascist anarchists – that still wouldn’t change the fact that I don’t own a car. Not that I condone fascism, or any ism for that matter. Isms in my opinion are not good. A person should not believe in an ism – he should believe in himself. I quote John Lennon: “I don’t believe in Beatles – I just believe in me”. A good point there. Of course, he was the Walrus. I could be the Walrus – I’d still have to bum rides off of people“.
Ieah, rait… Vida Fodona, indeed (Ah é, falando em filme, o Maron pediu pra avisar que o 300 Filmes tá vendendo no Submarino).