Homem-música

, por Alexandre Matias

A notícia da morte de Hermeto Pascoal veio no meio da realização do Chama Festival que fizemos neste fim de semana e não teve como dissociar a tristeza pela notícia da alegria de estar imerso em sons, realizando um evento em que todos estavam ali mais pela música propriamente dita. Vivíamos o universo que Hermeto cantava. A vida é boa demais. Obrigado, mestre! Escrevi sobre sua importância lá pro Toca UOL:

Tudo de bom, sempre”: Hermeto Pascoal, um gênio único da música brasileira

A opinião de Luiz Fernando Veríssimo, outro cátedro da cultura brasileira de quem nos recém-despedimos, sobre a morte (“sou contra”) conversa, ainda que de forma antiética, com a obra de Hermeto Pascoal, que partiu desse plano deste sábado. O mestre reforçava, em conversas, entrevistas, textos e, principalmente, na música, uma longa e interminável dança com a vida. Hermeto não era apenas contra a morte, mas encarnava a plenitude de estar vivo de forma generosa e inescapável a ponto de parecer contraditório afirmar que ele morreu. Hermeto não morre nunca.

Sua contribuição à nossa cultura – e não apenas à música – está longe de ser medida. Seu impacto é ao mesmo tempo fulminante, contínuo e perene e mesmo quem não entende nada de música compreende sua grandeza.

Ora, entender. O decano alagoano transpunha para muito além a necessidade de explicar ou explicar-se sobre o que estava tocando. Qualquer um de seus discos – dos mais comezinhos (se é que isso era possível em seu caso) aos mais venerados -, qualquer apresentação ao vivo ou momento de reflexão em voz alta afirmava sua paixão incondicional pela música e, consequentemente, pela vida.

Generoso, sempre esteve ao lado de vários músicos ao mesmo tempo, ciente da condição gregária e coletiva da faculdade que propunha a todos que o ouvissem e aprendessem com ele. Prolífico, compunha, tocava e gravava compulsivamente, quase sempre voltando a temas que havia tornado clássicos ao mesmo tempo que os reinventava em improvisos quase sempre catárticos.

Hermeto sintetizava a profundidade da música brasileira ao ignorar divisões conceituais e genéricas. Sua formação vinha da música do agreste nordestino, ecoando a profusão de gêneros e subgêneros característica da região, e de seu contato com a natureza, sua eterna mestra.

Albino e estrábico, não podia expor-se ao sol quando criança, o que o tornou observador e ouvinte da rotina dos arredores da minúscula Lagoa da Canoa, que à época nem sequer era um município, ao mesmo tempo em que descobria – com reverência e respeito – a pequena sanfona de oito baixos de seu pai.

Sua relação com a música começa ainda na infância e, além de começar a aprender a tocar o instrumento, fazia outros tantos, seja com materiais deixados por seu avô, que era ferreiro, ou com materiais que encontrava na própria natureza, fazendo flautas, pífanos ou tocando a água (descobrindo sua musicalidade) da lagoa que batizava sua cidade, experimentação natural que sempre o acompanhou.

A música aos poucos tornou-se sua principal atividade e ainda adolescente mudou-se para o Recife, no Pernambuco, quando começou a tocar na Rádio Tamandaré. Lá foi descoberto por Sivuca, que o levou para a principal rádio da cidade, a Rádio Jornal do Commercio, da qual tornou-se parte do time de músicas.

No novo emprego conheceu o piano e, por intermédio do guitarrista e futuro parceiro Heraldo do Monte, começou a tocar na noite. Nesta época conheceu Ilza da Silva, que tornou-se sua esposa (por quase 50 anos) e mãe de seus seis filhos. Depois mudou-se para João Pessoa, na Paraíba, quando tornou-se integrante da Orquestra Tabajara, antes de essa mudar-se de vez para o Rio de Janeiro.

No Rio de Janeiro, Hermeto passou a dedicar-se a instrumentos de sopro quando formou primeiro o grupo Som Quatro para depois fundar seu primeiro trabalho autoral de relevância, quando, ao lado do baixista Humberto Clayber e do baterista Airto Moreira, fundou o Sambrasa Trio, em 1965, ano que também marcou o lançamento de seu primeiro registro fonográfico, o inacreditável álbum Em Som Maior.

O trio evoluiu para outro momento brilhante do início de sua carreira, quando cria, ao lado de Airto, Théo de Barros (baixo) e Heraldo do Monte (guitarra), o excepcional Quarteto Novo, que acompanhou Edu Lobo em seu primeiro grande momento popular, quando defende seu primeiro sucesso, a imortal “Ponteio”, campeã da clássica terceira edição do Festival da Record de 1967 (a mesma que apresentava “Roda Viva” de Chico Buarque, “Alegria Alegria” de Caetano Veloso e “Domingo no Parque” de Gilberto Gil). Naquele mesmo ano, gravaria outro clássico de início de carreira, o único e homônimo disco do Quarteto Novo.

Seu baterista e sua esposa Flora Purim, que estavam aos poucos percorrendo o caminho rumo a Los Angeles, nos EUA, em que parte dos músicos da geração da bossa nova (Sérgio Mendes, Tom Jobim, João Donato, entre outros) começava a caminhar, o convidaram para ir para aquele país em 1969 e sua musicalidade intensa conquistou os connoisseurs do jazz local, inclusive Miles Davis, que o considerava o músico mais inventivo que conheceu.

Sua admiração era tanta que Miles chegou ao cúmulo de roubar duas de suas músicas (reparação histórica corrigida décadas depois graças à intervenção do saxofonista Wayne Shorter), além de ser nocauteado pelo próprio Hermeto em seu ringue de boxe particular, num dos melhores causos da história da música brasileira.

Voltou ao Brasil nos anos 70, quando gravou seus primeiros clássicos com seu próprio nome (o inenarrável Hermeto de 1972 e o autoexplicativo A Música Livre de Hermeto Pascoal, do ano seguinte), além de ter participado de um dos discos mais subestimados da nossa música, o censurado Imyra Tayra Ipy, de Taiguara, de 1976.

Mas a conexão estadunidense e o rótulo jazzístico já haviam aberto horizontes que Hermeto explorou intensamente. Tanto que é deste período seu disco considerado clássico internacionalmente, o soberbo Slave Masses (de 1976).

Ao fim daquela década fez duas apresentações históricas. Primeiro no I Festival Internacional de Jazz de São Paulo em 1978, quando outros músicos convidados do evento (como John McLaughlin, Stan Getz e Chick Corea) fizeram fila para subir ao seu palco para acompanhá-lo, e depois no ano seguinte, quando foi chamado para tocar no festival suíço de Montreux, e transformou seu show em disco ao vivo lançado no mesmo ano, além de participar de outro momento sublime de nossa música, ao dividir três músicas – “Corcovado”, “Garota de Ipanema” e “Asa Branca” – com outro titã de nossa cultura, Elis Regina, no bis que ela fez em sua apresentação no festival.

Sem fazer distinção entre gêneros musicais, sua música é impossível de ser rotulada e pode-se ouvir, numa mesma faixa, andamentos em tempos ímpares, improvisos coletivos espetaculares e instrumentos imitando o som de animais. Hermeto não fazia distinção entre som e música, entre erudito e popular, entre simples e complexo.

Apesar desta ser sua força, não era sua principal motivação. Esta era a comunhão coletiva, o contato com outros músicos e com o público, o prazer de dar e compartilhar tudo que sabia com quem quisesse. Chamava sua música de universal porque queria abraçar o universo e assim trazia ouvintes – ferrenhos e de ocasião – para orbitar ao seu redor.

Não reclamava nem lamentava, apenas fazia, compulsivamente. E seguiu assim até sua morte, gravando discos e fazendo shows o tempo todo, tanto no Brasil quanto no exterior. Hermeto é um raro caso na música brasileira em que a complexidade e sutileza musicais transcendem os públicos e sua disposição artística não só pagava suas contas como sempre o tornaram reconhecido, tanto aqui quanto lá fora.

Tanto que foi eleito Artista do Ano em 2024 pela Associação Paulista dos Críticos de Arte pelo trabalho recente, que incluía não apenas a incansável agenda de shows como o lançamento de seu disco mais recente, Pra você, Ilza, de 2024 (feito em homenagem à esposa, falecida no ano 2000).

Embora sua vida e obra sejam amplamente reconhecidas, a complexidade e intensidade de Hermeto Pascoal o tornam um artista que ainda vai ser muito estudado e compreendido em níveis que sequer temos compreensão. Desde a realização de música com qualquer tipo de utensílio às suas partituras desenhadas com lápis de cor, passando pela entrega contínua de sua obra e as inúmeras participações que fez em shows e discos alheios, a música de universal de Hermeto não diz respeito ao cosmos e sim ao universo que ele mesmo – e como ele dizia, qualquer um – era.

Era não, é. Mesmo depois de 13 de setembro de 2025, Hermeto Pascoal é. Ou como sempre dizia: “Tudo de bom, sempre”

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