Conforme prometido, eis o texto que escrevi sobre o clássico disco duplo do Sonic Youth para a seção Discoteca Básica da falecida revista Bizz. Esse texto foi publicado na edição 178, em maio do ano 2000.
Felizmente, os anos 90 serviram para rachar os muros preconceituosos que a década de 80 carinhosamente erigiu. E foi entre julho e agosto de 1988 que uma banda nova-iorquina iniciou ó terremoto, capaz de chacoalhar os alicerces da música pop, convergindo rap, pop inglês e rock underground americano para um mesmo objetivo (em 1991, Nevermind, do Nirvana, selaria o fenômeno). Depois que o Sonic Youth derrubou todas as barreiras entre as diversas vertentes do rock, usando a microfonia como aríete, ele nunca mais foi o mesmo.
Antes, o Sonic Youth era apenas um dos principais representantes da cena pós¬punk nova-iorquina, uma geração com mais de um rótulo – pigfuck, noise, no wave – que primava pelo barulho fora de controle como principal idioma. Ao lado do Big Black, Minutemen, Pussy Galore e Butthole Surfers, o Sonic Youth tinha uma grande reputação entre os seguidores daquela geração. Mas foi a partir da entrada do baterista Steve Shelley, que completou para sempre o trio formado pelo casal Thurston Moore e Kim Gordon, mais o guitarrista Lee Ranaldo, que o grupo começou a desequilibrar. Discos como EVOL e Sister antecipavam um grande abalo sísmico, capaz de destruir todas as noções atuais dos limites da guitarra – sempre um tabu na história do rock.
Com o duplo Daydream Nation, o quarteto nova-iorquino atingiu o rock como uma bomba atômica subterrânea sob os pilares do que conhecíamos por rock. Os três vocalistas cuspiam letras como palavras de ordem, misturando literatura marginal e rock’n’roll primitivo, preocupados mais em atingir seu alvo do que com a sujeira que o tiro poderia causar. Mas o centro do álbum são as gui¬tarras: um enxame de microfonia que consegue soar caótico, melódico, bucólico, aterrador e brutal- muitas vezes em poucos minutos, como na introdução de “Cross the Breeze” e o meio de “The Wonder”.
Propulsionado por um dos mais subestimados bateristas do pós-punk, o trio central do grupo (que se identificava com símbolos no rótulo do disco, à Led Zeppelin) atravessava terrenos tão diferentes quanto hardcore, vanguarda, heavy metal, folk, pós-punk inglês, progressivo, psicodelia e punk rock, com suas guitarras e baixo citando referências sonoras como se contassem a sua versão da história do rock, abrangendo todos os gêneros como frutos do mesmo som. Um ruído incômodo, que incomoda ao mesmo tempo que provoca, que está no centro do melhor rock, seja de que tipo for.
E por falar em Andy Gill, ressuscito aqui a entrevista que fiz com ele quando o Gang of Four veio para o Brasil, em 2006, que transformei em depoimento em primeira pessoa para uma edição da Bizz safra Ricardo Alexandre em que eu cuidei da capa – que era sobre o ativismo político de John Lennon logo que ele saiu dos Beatles. Para combinar com o tema, pedi para o Gill falar da influência da política em sua vida e arte.
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“Eu comecei a ouvir música pop quando era garoto, ainda no rádio, mas não tinha consciência nenhuma sobre política, algo que só fui me dar conta à medida em que fui crescendo, como acho que é com todo mundo. E aconteceu à medida em que eu fui conhecendo outros artistas, como Jimi Hendrix – acho que Hendrix foi a primeira coisa que realmente me interessou no rádio –, os Rolling Stones, The Band, Dylan e, depois, mais tarde, dub e Velvet Underground.
Não sei se houve uma revelação política propriamente dita, algo que ficasse marcado na minha memória. Fui deixando de ser adolescente e percebendo meu lugar no mundo, questionando as coisas, acho que isso é bem natural para qualquer um. Mas havia algo nestas bandas que não era muito político, propriamente dito.
Eles pareciam usar a política como uma pose. Eu via os Rolling Stones cantando ‘Street Fighting Man’ e não parecia que eles estavam querendo fazer o que diziam na música. Era mais para acrescentar outro elemento de perigo à banda, coisa que eles já vinham fazendo desde o começo dos anos 60. Não era pra valer.
Outro aspecto era o de bandas como o MC5, que mandava tudo à merda, e parecia que estava apenas sendo panfletário contra ‘o sistema’, mais interessado em ir contra a sociedade careta do que em discutir política, de um jeito ou de outro. Esse era um problema muito específico em relação a várias bandas, que pareciam ter vagamente uma tendência de esquerda, anarco-alguma coisa, mas que não tinham vocação política e eram mais rock do que qualquer outra coisa.
E você tem artistas de esquerda mais tradicional, que cantam músicas de antes de terem nascido. Ou mesmo que componham estas músicas, como o Billy Bragg faz até hoje, não parecem atingir o coração das pessoas. Não me parecem relevantes hoje, nem me pareciam nos anos 80. Mesmo John Lennon, que queria se comunicar com as pessoas, estava preso no fato de ser uma superestrela.
Assim, foi fácil saber o que queríamos quando montamos o Gang of Four. Já tínhamos base para saber o que não queríamos. Não queríamos soar panfletários, nem partidários. Não queríamos soar de esquerda ou de direita. Queríamos que as pessoas pensassem em política de uma forma menos maniqueísta. Quando falamos de política, parece que estamos falando apenas dos políticos, mas quem vota neles somos nós e podemos fazer política o tempo todo, em qualquer lugar ou hora.
O fato de termos surgido durante o punk nos deixou ainda mais vacinado em relação a isso. Logo as pessoas estavam tachando o punk de político, Malcolm McLaren lançou esse conceito na primeira hora. Mas era exatamente a mesma coisa de antes. Não era política, era um assessório chamado política. Não queríamos isso.
Quando eu e o Jon (King, vocalista da banda) começamos, nos perguntávamos: ‘O que motiva as pessoas? O que as faz fazerem o que fazem?’. É claro que você pode resumir isso em apenas ‘economia’, mas não é só isso. As pessoas ainda estão fazendo as mesmas coisas que faziam no século passado, o marido ainda trazia o dinheiro para casa enquanto a mulher cuidava da comida e dos filhos. O mundo havia mudado, mas essas relações ainda não. Pelo contrário, elas haviam se tornado prisões: família, emprego, propriedade. As pessoas se prenderam nisso de uma forma que acham que isso é a vida delas.
Temos uma música chamada ‘Natural’s Not In It’ que fala exatamente sobre isso. Tudo aquilo que chamamos de “natural”, na verdade, é artificial, é criado pelo homem. Seja a sociedade, o conceito de justiça, de bom senso… Tudo isso é invenção humana, nada disso é natural. As idéias não são naturais. Qualquer uma delas, todas elas – são inventadas.
E não queríamos ser os portavozes da nova esquerda. Para isso, tiramos todas as referências de política de nossas letras e títulos – você vê os nomes das músicas e não diz que o conteúdo delas é política –, tudo que pudesse lembrar a política dos jornais tava fora. Não queríamos dizer ‘você está certo’, ‘você está errado’, ‘você é de esquerda’, ‘você é de direita’. Não queríamos nos separar das outras pessoas. Queríamos, sim, lembrar pra elas que, esquerda ou direita, estamos nesse barco juntos.
Mas a forma que você colocou é bem razoável. É isso: o Gang of Four não era uma banda de protesto, mas uma banda de crítica. Uma crítica à sociedade, à forma que vivemos, à música, ao rock, ao punk rock, às outras bandas, a nós mesmos. Era mais ou menos como o Situacionismo dos anos 60, não queríamos nos levar a sério, mas não queríamos só isso.
E aí tem o outro elemento que, pra nós é crucial, que foi o ritmo. Não queríamos soar como rock, não queríamos ser mais uma banda de rock. E tanto eu quanto Jon já vínhamos pensando em experimentar com ritmo, somos fãs de dub até hoje, de krautrock, do James Brown. Mas seria ridículo tentar recriar a atmosfera de qualquer um desses artistas na Inglaterra dos anos 70.
Por isso partimos do zero, da tela em branco, e fomos acrescentando as coisas à medida em que começamos a tocar. E as coisas foram se encaixando. O legal é que não pensamos nessas coisas, elas simplesmente foram entrando em seu lugar. Põe um prato aqui, um bumbo ali, um riff mais à frente. Começava com um baixo solto, entrava a bateria reta, a guitarra fazendo ruídos e o vocal – mesmo que a letra importasse – funcionava como um instrumento. As coisas iam entrando em sintonia sem que pensássemos nisso. Em vez de fazer canções de amor, fazíamos canções de antiamor – o que é diferente de uma canção de ódio, veja bem.
Foi quando começamos a por elementos de disco music na mistura. Primeiro porque adorávamos disco. A cena começou a ficar ruim devido à forma que a mídia explorou o tema, com filmes como ‘Os Embalos de Sábado à Noite’ e todo o tipo de banda gravando disco music. Mas antes de ficar massificado, era uma cena bem interessante e – como você colocou – política, por libertar a canção de um formato estagnado e deixar as pessoas mais soltas, em vários sentidos.
Eu entendo perfeitamente a raiva que as pessoas que gostam de rock tem com a dance music. Eles vêem um DJ tocando e acham que ele não é um músico. Eles vêem as pessoas se entregando à dança e acham que elas estão se alienando. Mas eles não percebem que a disco music – que depois se subdividiu nas diversas formas de música pop que hoje dominam o mercado, do novo rock ao hip hop – é tão ou mais rock’n’roll do que o próprio rock. Porque liberta as pessoas de diversas amarras e, se na época do punk, o rock já dava sinais de conservadorismo, hoje ele é o próprio sistema. Por isso, apesar de entender a raiva do rock, eu a acho ridícula.
Tanto que fomos vítimas dessa raiva quando, no nosso terceiro disco (Hard), fomos acusados de sermos traidores, só porque queríamos mexer com música pop e com sintetizadores. Na verdade, o disco não saiu legal, porque quem ia nos produzir era o Nile Rodgers, mas ele foi substituído em cima da hora devido a uma confusão da gravadora. E o produtor que entrou no lugar, não sabia nada da gente, então o Hard é um disco que eu não gosto tanto, embora algumas faixas – como ‘A Man with a Good Car’ ou ‘Woman Town’ são faixas que eu gosto. Mas os fãs odiaram! Embora hoje muita gente goste deste disco, o que eu acho ao mesmo tempo estranho e interessante, esse poder do tempo”.
Não custa voltar no Zappa, que já pensava nessas questões no começo dos anos 80. O texto abaixo é um trecho de uma matéria que escrevi pra capa da Bizz, quando ela ainda existia em 2006, sobre música digital. A íntegra da matéria tá aqui.
* Texto publicado originalmente no dia 20 de agosto de 2009
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“CONSUMIDORES DE MÚSICA GOSTAM DE CONSUMIR MÚSICA, NÃO DISCOS DE VINIL EMBALADOS CAPAS EM PAPELÃO”. O negrito e o caps lock são tirados direto do original, que não é de nenhum consultor trend-setter descolado fazedor de cabeça de executivos da indústria da tecnologia e do entretenimento, e sim de ninguém menos que Frank Zappa. Logo que a música se despregou de seu suporte tradicional – na época, o disco de vinil – transformando-se em pedacinhos de zeros e uns transferíveis por redes de computadores, o principal iconoclasta musical do século vinte fez uma pergunta que até muita gente boa não fez: por que, se a música podia ser digitalizada – ou seja, livre de um suporte físico palpável (como o disco de vinil, a fita cassete, o cilindro do fonógrafo…) – por que raios a indústria fonográfica lançou um novo suporte?
Aí entramos no terreno da especulação, mas alguns fatos falam por si. O compact disc, apresentado ao público em 1982, é quase tão barato para fabricar quanto um disco de vinil, mas é mais prático para ser estocado e transportado – mais leve, menor, menos suscetível a atritos. Para tocá-lo, no entanto, os consumidores deveriam ter que comprar um novo equipamento, o CD-player – mais caro que qualquer outro player médio da época. E devido à sua suposta melhoria na qualidade do áudio (subjetiva, o tempo mostrou – vide os audiófilos de hoje em dia que ainda veneram o velho vinil), o disco passou a custar, em média, ao menos o dobro do antigo LP.
Alie a isso uma enorme campanha de marketing de todas as grandes empresas de tecnologia, que pegavam carona na novidade “CD” para lançar aparelhos que, além de alardear o compact disc como o futuro do áudio, rebaixava o vinil como suporte datado, mídia morta. Aos poucos, vitrolas e coleções inteiras de discos eram vendidas ou jogadas fora para abrir espaço para os pequenos discos prateados embalados em plástico. Sem querer – porque, por mais maquiavélicas que fossem as multinacionais na época, elas não teriam capacidade para pensar nisso (basta ver o zelo administrativo que fez com que o negócio praticamente falisse durante os anos 90) -, as pessoas estavam comprando um mesmo disco que já tinham pela segunda vez.
Entra Frank Zappa, crítico insistente de tudo que pode ser criticado – inclusive dele mesmo. De ascendência ítalo-americana, o compositor começou sua carreira com um pequeno estúdio em Cucamonga, gravando grupos de doo-wop, surf music e até se envolvendo com filmes pornô, até que entrou no imaginário mundial com discos que ridicularizavam o movimento hippie quando este era mais popular do que o YouTube em 2006. Desde os anos 60, mirou sua metralhadora musical em qualquer coisa que pudesse se mover, mas tinha como alvos favoritos o establishment norte-americano (inteiro, do governo às divas da indústria do entretenimento) e a estupidez humana. Engajado em causas espinhosas e delicadas, ele se pronunciou prontamente ao advento da música digital e em 1983, no mesmo ano em que o CD chegava ao mercado americano, escreveu sua “Proposta para a Substituição da Mercadoria Disco”, de onde saiu a citação em negrito do início. E finalizava a primeira parte de seu texto com mais negrito e letras maiúsculas: “As pessoas hoje em dia gostam mais de música do que nunca e eles gostam de levá-la onde quer que elas vão. ELAS PODEM OUVIR A DIFERENÇA ENTRE ÁUDIO DE BOA QUALIDADE E ÁUDIO DE MÁ QUALIDADE… ELAS SE IMPORTAM COM ESSA DIFERENÇA E ESTÃO DISPOSTAS A PAGAR PARA TER ‘ÁUDIO PORTÁTIL’ DE ALTA QUALIDADE PARA USAR COMO ‘PAPEL DE PAREDE PARA SEU ESTILO DE VIDA’”. Isso, lembrando, DEZ anos antes de a web atingir o grande público, DEZESSEIS anos antes do Napster e DEZOITO anos antes do iPod.
Zappa tinha até a resposta para problemas que ainda nem haviam começado a existir e aí que seu texto fica mais incisivo. Na segunda parte (chamada apropriadamente de “Respostas para Perguntas Intrigantes”), ele nos apresenta ao “Q.C.I.”. “Propomos adquirir o direito de duplicar digitalmente e estocar O MELHOR de cada um dos difíceis de transportar Q.C.I. (Quality Catalog Itens, Itens de Catálogo de Qualidade) de todas as gravadoras, reuni-los em um lugar de processamento central e torná-los disponíveis via fone ou cabo de TV paga, diretamente acessível através dos dispositivos caseiros de áudio do consumidor, com a opção de transferência de um ambiente digital para outro através da F-1 (o gravador de áudio digital da Sony, disponível para o público), Beta Hi-Fi ou cassete análogo simples (que precisa apenas da instalação de um conversor no próprio fone, cujo chip principal custa US$ 12)”.
“Todas as contas de pagamentos de royalties, cobranças do consumidor, etc., seriam automáticas e estariam no próprio programa básico do sistema”, Zappa continua. “O consumidor tem a opção de se inscrever em uma ou mais categorias de interesse, cobradas mensalmente, sem se preocupar com a quantidade de música que ele ou ela decidam gravar. Prover material em tal quantidade a um custo reduzido realmente diminuiria o desejo de duplicação e armazenamento, já que este estaria disponível a qualquer hora do dia ou da noite”.
Zappa simplesmente bolou um sistema de pagamentos, acesso e distribuição de música que parece atender às necessidades de todos (com a exceção daqueles que cita no início do texto – “Muitas pessoas estão empregadas no campo de promoção de discos. Estes salários são, na maior parte, desperdício de dinheiro”). Sem a internet. Sem o MP3. Sem P2P.
E conclui: “Queremos uma quantidade GRANDE de dinheiro e os serviços de uma equipe de mega-hackers para escrever o software deste sistema. A maior parte dos equipamentos, mesmo quando você ler isto, já estão disponíveis como itens existentes no mercado, apenas esperando para serem plugados uns nos outros de forma que eles possam por fim na “INDÚSTRIA DO DISCO” como a conhecemos.
Isso, repito, em 1983.
Mais um da série “textos ressuscitados” – desta vez é a entrevista que fiz com o Odair José para a Bizz da gestão Ricardo Alexandre, em 2006. Na foto abaixo, tirada pelo Cosko, que acompanhou o papo, ainda estou usando a tala na mão direita, que não estava se mexendo depois de um acidente… Que época.
Bizz entrevista Odair José
Unindo folk music com a moral do cais do porto, ele partiu de uma fazenda para a fama “cult” no terceiro milênio. No meio do percurso, foi um herói da música realmente popular brasileira
Música de baixa qualidade. Superstar. Artista de mau gosto. Sexo, drogas e rock’n’roll. Idolatria juvenil. Canções de amor. Sucesso popular. Hormônios em ebulição. Decifrar um artista pop é como lapidar uma pedra preciosa em que cada polimento revela uma nova superfície. Nelas, é possível ver tudo, céu e inferno numa mesma camada, refletindo as ansiedades de quem vê. Como Elvis, Beatles, Roberto Carlos, James Brown, Ramones, RPM, Madonna, Metallica, Mamonas Assassinas e Eminem, Odair José também atraiu amor e ódio em sua longa caminhada – cravando sucessos no imaginário popular que até hoje nos ajudam a refletir sobre a natureza de nossos preconceitos.
Mesmo que longe do dia-a-dia dos milhões de brasileiros que até hoje lembram de suas canções, Odair nunca parou de lançar discos e fazer shows. Seu recém-lançado 31º álbum, Só Pode Ser Amor (Deckdisc), no entanto, sai num momento mais do que propício para sua carreira, quando novas bandas o reverenciam nominalmente – seja nos shows em que os Los Hermanos tocam “Vou Tirar Você Deste Lugar”, na alma das composições dos cearenses Fernando Catatau (do Cidadão Instigado) e Karine Alexandrino ou no disco-tributo lançado no final de 2005.
À sombra de Roberto Carlos como os Rolling Stones acompanhavam os Beatles, Odair sempre optou pelo incerto musical, ao questionar, no imperativo, hábitos e costumes (sexuais, religiosos, conjugais) que eram endossados pelo Rei. Assim, liderou a lenta transformação do pudor brasileiro nos anos 70 (acompanhado pelas pornochanchadas, pelo Pasquim e por Leila Diniz), ao mesmo tempo em que dominava as ondas do rádio e lhe emputavam o título de cantor das empregadas domésticas como se isso fosse um demérito.
Encontrá-lo para uma conversa na varanda de sua casa em Cotia, interior de São Paulo, no entanto, não o encaixa em quaisquer um dos rótulos que forem sugeridos. Sem mágoa nem arrogância, com aquela feição anos 70 que lhe aproxima fisicamente de Zico e Oreste Quércia, e os mesmos olhar distante, sorriso apagado, rosto sofrido e tristeza constante que cantou em “Assim Sou Eu”, eis (mais) um brasileiro médio do interior do fim do mundo que acreditou no próprio sonho e – ao contrário de seus conterrâneos – pode realizá-lo.
Qual é a sua primeira memória musical?
Meu pai mexia com terra, na região de Morrinhos (interior de Goiás), perto de Caldas Novas e chegava a época da colheita, ele fazia uma confraternização. Foi quando eu vi um trio de dois violeiros e um sanfoneiro. Achei legal e pedi um violão Natal à minha mãe de. Mas meu pai me deu um cavaquinho, porque pelo meu tamanho, era mais adequado (ri).
Tinha um cidadão que tocava violão de sete cordas na banda da cidade, aquelas bandas de coreto, e descia todo dia de bicicleta pra trabalhar na frente da minha casa. E eu ficava esperando ele passar, porque ele me ensinava todo dia um acorde, E assim, eu comecei, até que me pai me deu um violão.
Naquela época, eu tocava boleros, modas de viola, música italiana, americana. Depois mudei pra capital, Goiânia, quando tinha doze anos, quando apareceram os Beatles. Eu cantava todas as músicas dos Beatles, em serenatas, no colégio. Eu tinha uma bandinha chamada Monft.
Como?
Monft, era as iniciais da gente: Marcelo, Odair, Nadir, Fayed e Tuca… Depois fui convidado pra ser crooner de banda de baile, os Apaches, que era uma banda famosa, em Goiânia. Cantava Beatles, Animals… Mandava qualquer inglês, mas cantava (ri). Foi quando eu comecei a compor. Depois fui tocar no conjunto do maestro Marquinhos, que era bem mais profissional. Ele tinha um programa na televisão e eu fazia a parte considerada jovem, que era o que os cantores dele não gostavam de cantar. Foi quando eu conheci o Roberto Carlos, num show que ele foi fazer em Goiânia, em 65, com o RC-3. O conjunto do Marquinhos abriu o show. Fui conversar com o Roberto, falei que tinha umas músicas e o ele falou, “ah, vai pro Rio, aqui não tem condições…”. E nesse “ah vai pro Rio”, eu fui pro Rio.
Com quantos anos?
Nem 18. Saí fugido, na calada da noite, não falei pra ninguém. E eu fui na ilusão de encontrar o Roberto. Eu fiquei um ano sem dar notícias, você imagina a cabeça da minha mãe…
Fugiu de casa para ser músico?
E com pouco dinheiro. Fiquei num hotel na Praça Tiradentes, e o dinheiro deu pra ficar dez dias, depois eu fui pra rua, dormi na escadaria do Teatro Municipal, em praia, no último toalete do banheiro do Aeroporto Santos Dumont, era espaçoso. Mas eu não acredito na sorte nem em milagre, eu acredito no trabalho – por isso, eu achava que fosse conseguir rápido e consegui, porque o meu primeiro disco eu gravei em 1970, e eu cheguei no Rio em 67, 68.
Como você começou?
Eu ficava no pé dos caras. Ia pras gravadoras e ficava na porta, esperando o cara sair. E igual a mim, tinha umas cem pessoas querendo falar com o mesmo cara ao mesmo tempo. Por isso eu digo que consegui fácil, porqur em dois anos eu gravei um disco, e já fiz sucesso com esse disco.
Antes do sucesso, o que você fazia?
Eu tocava à noite naqueles, com todo respeito, puteirinhos da Praça Mauá, toquei em todos eles. E nesses lugares você tem que tocar de tudo, pra agradar quem tá lá dentro. Tocava Ataulfo Alves, Lupiscínio Rodrigues, o próprio Roberto, alguma coisa de música italiana – era bom porque a dicção era fácil, dava pra enganar melhor. Mas eu nunca me achei um cantor, eu me ajeitava dentro das notas. E de dia eu corria atrás dos caras. E eu fiquei assim um ano no pé do Rossini Pinto, que era um cara que em tudo quanto era disco que saía tinha música dele, do bolero ao rock. Ele fazia versões, compunha coisas próprias, compunha pro Roberto. No que ele prestou atenção nas minhas músicas, ele, que também era produtor de discos, me levou pra gravar, na CBS em 1970, uma música chamada “Minhas Coisas”.
Que fez sucesso.
Ela teve a felicidade de entrar num LP chamado As 14 Mais, que era um LP com um monte de gente famosa, que já saía vendendo horrores, porque tinha Roberto Carlos, Jerry Adriani, Renato Barros, Wanderléia… Aquele pessoal da CBS, que se chamam de Jovem Guarda – eu não gosto deste rótulo porque era um programa do Roberto Carlos – estavam todos naquele disco. E a gravadora de vez em quando incluía um cantor novo – e me meteram lá. E eu já saí com um sucesso, porque o cara comprava um Roberto Carlos e me ganhava de presente.
E sua situação melhorou?
Na medida em que eu comecei a tocar, comecei a conhecer as pessoas. Tinha época que eu tocava em três inferninhos daqueles por noite, e assim fui criando um círculo de amizades. Foi quando eu conheci o senhor Ataulfo Alves, que falou que eu podia morar no apartamento dele – que era um apartamento que ele usava para o lazer. “Só não dorme na minha cama”, ele dizia.
Foi quando você gravou seu primeiro LP.
Isso, que teve uma vendagem boa, 10 mil discos. E lancei um segundo LP, fiz uma outra As 14 Mais e o seu Evandro (Ribeiro), que era o presidente da CBS, não gostou. Porque a CBS era esse segmento do Roberto Carlos, com a guitarra, arranjos do Lafayette, o Renato. Aquilo era uma coisa vitoriosa, tanto que era líder de mercado. Eu gravei uma faixa chamada “Vou Morar Com Ela” e usei um pianista negão, o Dom Salvador, e ficou com um quê de jazz. O Rossini, que era o produtor, deixava, ele não tava nem aí. Era uma música ótima, fez sucesso, mas seu Evandro achou que eu tinha suingado muito e não me botou na terceira 14 Mais.
Meu contrato tinha acabado e eles me deram uma oportunidade de fazer um compacto simples, sem LP, sem As 14 Mais e sem aquele apoio da gravadora.
Um vai-ou-racha.
Um “se vira”. Aí eu gravei “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, que vendeu 800 mil compactos de cara.
Conta a história da música.
O Rossini era um cara engraçado, porque ele dava esporro em todo mundo, falava palavrão e era extremamente temperamental. “Porra, eu te dou uma chance e você só fez merda, vem gravar aquelas porras. Vou gravar mais um compacto com você, mas se não acontecer nada, você se fudeu, hein!”. Eu não me preocupava porque eu já era um cara conhecido, já fazia shows, se não fosse ali, seria em outro lugar.
Aí eu saí da CBS, que ficava na Visconde do Rio Branco no Rio, e fui pra casa, na Rua do Riachuelo. E nesse trecho, que dá uns quatro quilômetros, andando pela calçada, eu compus essa música. Eu sempre fiz música assim. Não tem aquelas coisas que o pessoal fala que a música “veio”, isso é maluquice. É que como você é compositor, tá sempre compondo. Eu era jovem, tinha 21 anos, e nessa idade você tá sempre querendo fazer alguma coisa. Cheguei em casa e gravei a música e depois mostrei pro Rossini.
E ele: “Nem pensar! Essa música de puta, não! Tou te dando a última oportunidade e você me vem com essa porra de música de prostituta! Você vê o que o Roberto Carlos faz? Beijo no cinema, deixa a garota no portão, eu te darei o céu! Isso é que é o negócio”. E eu falava: “Bicho, eu quero falar de um amor de um cara por uma prostituta”. E ele: “Não existe isso!”. Resultado: ele me deixou gravar a música e a música aconteceu praticamente sozinha, mesmo sem promoção.
Qual sua expectativa sobre a música?
Eu gostava da música, mas a minha viagem era que o que o Roberto Carlos fazia era dele. Ele já havia conquistado isso. Era muito bom, mas era dele. Eu tinha que achar meu próprio caminho. Conversava sobre isso muito com o Raul, o Raulzito, que na época era produtor e ele concordava. “Você não pode ficar na cola de ninguém, senão você não tem uma identidade”. O Raul inclusive, os fãs dele não sabem, tem uma música dele no meu primeiro LP, chamada “Tudo Acabado”, com ele tocando violão e guitarra. Mas voltando, então eucomecei a pensar na música como uma reportagem, me via como um repórter musical. Pegava o que acontece na vida das pessoas e metia na música.
Aí quando o disco saiu, me disseram: “Olha, você se vira, porque você não vai ser trabalhado”. Foi quando apareceu o Paulo César, que vendia shows na época e depois foi empresário do Evaldo Braga e inclusive morreu no mesmo acidente que matou o Evaldo. Ele me disse: “Bicho, já que ninguém trabalha seu disco, vamos fazer uns shows aí. Eu tenho uma Kombi, a gente bota umas cornetas pra divulgar, ninguém tá ganhando dinheiro mesmo…”.
Aí nós saímos pelo estado do Rio, Espírito Santo, sul da Bahia… Isso durou uns três meses e conforme a gente ia andando, percebia que a música ia acontecendo. Você ligava o rádio e fatalmente achava a música tocando. Os shows eram marcados em cima da hora e no começo a gente saía falando: “Hoje, não percam! Evitem filas de última hora!”, tudo cascata, mas depois de um mês a gente foi percebendo que aquela porra tava enchendo mesmo… E a CBS foi me achar em Ilhéus! Me botaram no avião pra ir correndo pro Rio porque o disco já era o mais vendido e o mais tocado no Brasil. E aí eu saí da CBS.
Eles nem fizeram uma proposta?
No dia seguinte que eu voltei, o seu Evandro já tinha um disco montado pra mim: “Olha, tem duas músicas do Reginaldo Rossi, três do Renato Barros, não-sei-quantas do Ed Wilson”, mas eu já tinha um disco montado na cabeça, um disco chamado Assim Sou Eu, que foi o primeiro disco que eu fiz na Polydor. Eu falei: “Olha seu Evandro, eu já tenho um disco pronto na cabeça, tenho a idéia da capa. Eu quero gravar com o Zé Roberto Bertrami, o tecladista da Elis Regina. Eu não quero tocar com o Lafayette nem com a banda do Renato. Não é nada contra eles, eles são ótimos, mas eles já fazem uma coisa que já é deles, eu quero fazer uma coisa que é minha. Eu já tenho as minhas músicas. Eu quero o Waltel Branco fazendo guitarra e arranjos. Queria o Luís Cláudio Ramos, que era irmão daquele cantor Carlos José e depois foi tocar com o Chico Buarque, tocando os violões. Queria tocar com o Mamão na bateria, o Bertrami nos teclados e o Alexandre (Malheiros) no baixo – foi a primeira vez que esses três caras, que depois viraram o Azymuth, tocaram juntos foi num disco meu; eles já se conheciam, mas nunca tinham tocado juntos”. Quem fazia os violões era o Dundum, o Hyldon, da “Casinha de Sapê”, que era muito meu amigo.
Aí o seu Evandro esqueceu que meu contrato tinha acabado e me ameaçou: “Eu vou fazer com você como eu fiz com o Sérgio Murilo, vou botar seu contrato na gaveta e você tá fudido”. Aí eu falei: “meu contrato acabou, seu Evandro (rindo). Eu já estou negociando com o André Midani e o Jairo Pires da Polydor…”.
E fui pra lá. Falei: “Eu venho, mas quero fazer esse disco. A capa assim, preta, com essas músicas e esses músicos”. Quando eu falei dos músicos eu fui até questionado: “Vem cá, esse cara toca com a Elis Regina, o outro com o Chico Buarque, você não acha que não-sei-o-quê?”. Eu falei que eles vão tocar o meu trabalho dormindo, porque o meu trabalho é simplérrimo.
Mas que concepção de artista que você buscava nessa época?
Era um Neil Diamond, Crosby Stills & Nash, Cat Stevens, Neil Young… Queria que as minhas canções tivessem aquela sonoridade. Até mesmo porque eu não tinha aquela formação musical deles. Claro que eu não virei o Cat Stevens, mas pelo menos saiu daquilo de sempre. Porque na CBS, eles usavam muita guitarra, aquela coisa do Renato Barros, de imitar os Beatles. Eu queria violões. Eu vi o Ritchie Havens no Festival da Canção, aquele negão batendo no violão, com o dedo por cima, eu queria aquilo pro meu disco.
E falando das letras, você pensou em colocar sexo no disco de cara?
Não, não foi proposital. O Rossini me falava que o Roberto Carlos era o que era porque ele não ficava falando de puta, era mais poético. “E você vem com esse negócio de cama. Tem que pensar na família”, ele tinha dessas. Eu comentava com o Raul e ele torcia a cara: “Sei não, hein…”.
Mas eu já estava vendo que os namoros não paravam no portão. As pessoas já estavam fazendo sexo mesmo, dentro do carro, atrás do muro, na praia. O sexo estava rolando. Não vou dizer que todos os casais estavam transando antes do casamento, mas 50% estavam. As pessoas tavam indo além dos beijos e do pegar na mão.
E eu comecei a falar disso nas minhas músicas. Esse era o amor que eu via, não sei se por eu ter vivido tocando nas boates, mas a coisa era mais na cama, do tesão, do desejo, do transar. E das separações que deixavam a dor mesmo. Não era aquele negócio de brigar e rasgar a fotografia e depois passar sem olhar na cara, não. Era aquela coisa do cara encher a cara três dias, da dor-de-cotovelo, a namorada ir dormir com outro… O Lupiscínio Rodrigues e o Danilo Moreira já falavam disso, mas para as pessoas, eles falavam de uma forma madura. Eu era um cantor jovem, então aquilo era um absurdo – mas também era novo.
Até que chegou a incomodar a censura.
É, mas não era essa coisa de música de protesto, de resistência, não… O negócio é que eu sempre falei o que penso, não sou estudado. Eu nunca deixei de falar o que eu penso, você pode ser o Papa que eu vou dizer, tou cagando e andando.
Agora, quando a censura começou a vetar o meu trabalho, eu ia fazer um disco e quem decidia meu repertório eram eles. Era como se a censura fosse um co-produtor (ri). Eu tive várias músicas que não foram lançadas.
Em 74, eu tinha uma canção chamada “A Primeira Noite de um Homem”, que era sobre a primeira vez que o cara vai lá comer uma mulher – ele nunca teve aquilo, já imaginou, mas lá mesmo ele nunca foi. Eu conto isso de uma forma poética, esse nervosismo, a emoção, a preocupação em agradar, o encontro dos corpos. A censura brecou a música, que era a faixa 1 do disco. Meus discos eram aguardados pelo mercado, até o próprio André Midani falou que a Philips passou a CBS e se tornou líder de mercado quando eu, o Tim Maia e o Evaldo Braga fomos pra lá, porque na época anterior, com os nossos amigos Chico, Gil, Caetano, eles estavam em décimo lugar. E o diretor pedindo pra eu desistir da música, pra lançar o disco logo, mas eu queria saber o que podia ser mudado. Até que um senhor chamado Aderbal Guimarães, que vivia dentro dos estúdios, me falou: “Se você quiser, eu conheço alguém que pode ajudar a liberar”. Então vamos, não custava nada…
Fomos a Brasília e quando fui chegando, percebi quem era e falei: “Pra onde você tá me levando?”, e o Guimarães falando “cala a boca”. Era o Golbery Couto e Silva. Numa sala grande, meio escura, uma mesa acesa, lâmpadas que só iluminam em cima da mesa e parece que o Aderbal já tinha conversado antes com ele. O cara não me olhava, não. Só que o Guimarães ficava só naquelas “e a dona Regina, como vai?”, aí eu perguntei: “o que eu queria saber, general, era o que pode ser mudado nessa letra porque eu estou com um disco parado”. Já não devia ir com a minha cara por causa da música da pílula e por causa de algumas coisas que eu tinha dito pra censura no Rio. Aí ele falou, sem olhar na minha cara: “Aqui não tem o que ser mudado, porque o que está probido é a idéia”.
O disco saiu sem a música.
O Assim Sou Eu já teve algum problema desta natureza?
Não com a censura, mas o grande sucesso deste disco era “Esta Noite Você Vai Ter Que Ser Minha”, e achavam um absurdo. A minha sogra mesmo, antes de ser minha sogra, dizia que quando eu tocava no rádio, ela desligava, porque achava que eu era pornográfico, pra você ver.
É o seu disco favorito?
Não, mas é um dos bons. Eu tava num momento muito bom. O disco que eu fiz em seguida, chamado só Odair José, talvez não tenha sido o melhor, mas foi meu disco que mais fez sucesso. Você pega as faixas e parece uma coletânea: tem a “Pílula”, tem a música da empregada, tem “Cadê Você?”, “Que Saudade”. De doze faixas, dez fizeram sucesso. Foi meu disco que mais vendeu, quase um milhão em um ano.
Como foi a sua reação ao sucesso?
Eu sou sempre do mesmo jeito. Se eu vender um milhão de cópias, eu vou estar falando com você desse jeito; se eu não vender nada, vou continuar falando do mesmo jeito. É apenas um trabalho que deu certo e outro que não deu. Não fico frustrado, nem me deslumbro. Mas sempre procuro saber o que deu certo e o que não deu. Isso aqui é só um trabalho…
Isso é fácil falar hoje, depois de vários altos e baixos, mas como foi na época?
Entre 73 e 74, não dava. Eu fiz vários shows que ficava mais gente de fora do que de dentro, porque não cabia. Teve uma época em que fizeram um quadro no Fantástico que perguntava o que valia mais, prestígio ou popularidade? E me colocaram do lado do Milton Nascimento – eu ganhei disparado, porque as pessoas comiam e dormiam Odair José. Foi bom? Foi pra caralho. Incomodava? Não. Nunca mandei fazer filas de segurança, a não ser quando eu raspei a cabeça.
Isso aconteceu quando o Wagner Montes, que era muito meu amigo, me disse que eu andava muito agitado e que era pra eu procurar um tal guru meio zen, que estava no Rio. E eu fui lá e ele me aconselhou que eu raspasse a cabeça por uma questão de limpeza de aura. E na época eu tinha uma cabeleira. Aí eu disse: “Bicho, eu não tenho como raspar a cabeça, não, eu faço show todo dia, o Brasil inteiro me conhece. Tenho um contrato com a televisão, se eu aparecer careca, o Boni manda me matar”. Aí o Wagner, cheio de idéias, me levou num lugar em que eles fizeram umas perucas iguais ao meu cabelo, cinco perucas.
E o Pinga, Zé Carlos Mendonça que era um empresário de shows, tinha me contratado pra fazer vinte shows e eu ia com a peruca. E no primeiro show já tinha um monte de gente, e eu disse: “Pinga, isso não vai dar certo, os caras vão arrancar a peruca”. E ele: “Não, a gente faz um corredor com a polícia”. Mas não adiantou nada, arrancaram a peruca. Foi a única vez que eu usei segurança.
E a parte do deslumbre com o sucesso, dinheiro, drogas, mulheres, como você lidou com isso?
Eu ganhei muito dinheiro e gastei muito dinheiro à toa. Se eu tivesse guardado a metade do meu dinheiro, hoje eu estaria quaquilinário. Mas não me arrependo. Às vezes faz falta, mas eu não virei músico pra ganhar dinheiro. Se eu tivesse trabalhado a vida inteira no barzinho da Praça Mauá, seria feliz do mesmo jeito.
Sobre mulheres, eu sempre curti minhas namoradas, mas eu sempre fui homem de uma mulher só. “Vamos comer todas” nunca fez o meu gênero. Eu não sei viver sem mulher. Até me questiono: “Será que quando eu morrer vai ter mulher pra onde eu vou?” Porque se não tiver, vai ser uma merda. Porque tem umas partes da Bíblia que Jesus diz que lá em cima, ou lá embaixo, pra onde a gente vai, não tem disso. Porque chega uma hora que um cara questiona na Bíblia e Jesus diz: “Não, não é assim”. Então, tá mal.
Drogas: experimentei maconha e cocaína, mas não fazia a minha cabeça. O baseado me deixava muito zen, até demais. Eu já sou meio marcha lenta, aquilo me deixava mais lento. A cocaína me deixava três dias com o olho arregalado, também não funciona. A minha droga sempre foi a cachaça. Não a cachaça mesmo, mas um uísque, sempre gostei de uísque, e ultimamente tenho gostado de um bom vinho. Até tenho tomado cerveja, porque de vez em quando faz um calor danado e uma cervejinha cai bem.
Você sempre foi rotulado como um artista cafona Como você lidava com a questão do mau gosto?
Eu não tinha essa preocupação. Eu fazia o que eu sabia fazer e e estava dando certo. Em 73, eu era o cara que mais vendia discos no país – e fazendo isto. Eu tinha um contrato com a Globo, em que durou dois anos, que eu tinha que aparecer na televisão quatro vezes por mês. E eu fazia sucesso com aquilo, por isso não existia – como até hoje não existe –, essa preocupação se aquilo é de mau gosto ou não. Eu sempre procuro fazer o melhor, dentro daquilo que eu sei fazer.
Eu compus umas 400 músicas, só as gravadas por mim são umas 350. Dessas, 150 são muito ruins. Mas entre as que sobraram, tem umas muito boas. Até umas que não fizeram sucesso.
Mas essa pecha de cafona te incomodava?
Gosto é uma coisa de cada um. Mas eu nunca tive, meu irmão, nunca tive mágoa, nem só na minha carreira, nem na minha vida. Eu sempre li todos os comentários ao meu trabalho, nunca me magoei. Eu nunca li por esse lado. O cara pode até meter o pau no meu trabalho, é um direito dele.
Agora mesmo, na Folha de S. Paulo, o Evangelista compara o tributo que fizeram pra mim com o meu disco novo, dizendo que meu disco novo não teria novidade, que é aquilo que as pessoas esperam do Odair José. A gravadora não gostou, achou que eu fiz mal de mostrar o disco e que ele se colocou contra o disco. Mas o que ele falou é a mais pura verdade, o disco é o Odair José. E não era isso que eles queriam?
Eu tenho uma música chamada “Cadê Você?”, que ela tem três acordes, que parece o “Parabéns a Você”, de tão simples, ela não tem nada. Mas só ela, cantada por mim ou por outros artistas, já vendeu mais de sete milhões de discos. Agora, vai fazer uma música dessas? Se fosse fácil, eu fazia mil. Fazer uma música cheia de acordes, de coisinhas pra lá e pra cá, é muito mais fácil de fazer. Mas faz um “Mamãe Eu Quero” por dia. Não faz…
Outro dia eu tava assistindo TV e passou uma entrevista com o Carlos Lyra e ele falou uma coisa tão fraca: “Você sabe que nós, o pessoal da bossa nova, éramos rapazes de classe média alta, pessoas bem informadas, nós fazíamos música pra gente mesmo. Não íamos tocar na Rádio Nacional, onde tinha o Francisco Alves, a Ângela Maria. O nosso negócio era mais intelectual, era pra Ipanema”. O cara é um babaca! Porque todos eles eram cópias do João Gilberto, que veio lá de Juazeiro da Bahia, nunca foi intelectual e não morava em Ipanema…
E queria tocar no rádio.
Esse cara é tão idiota e eu não sabia. O Chico Buarque não fala desse jeito, o Caetano Veloso também não pensa dessa maneira. Quer dizer, gente babaca tem em qualquer segmento musical.
Você chegou a ter outras controvérsias, depois do sucesso?
Tem um disco meu, depois do Lembranças, que chama só Odair. Esse disco tem uma música que se chama “Na Minha Opinião”, que fez muito sucesso na época, que fala que pra você estar com uma pessoa você não precisa ser casado no papel. Eu fui até excomungado pela Igreja Católica, o João Gordo que me lembrou no programa dele: “Pô, que legal, esse cara foi excomungado! Que que tu fez? Eu faço um monte de merda e nunca fui”. Esse disco também tem uma música chamada “Viagem” que fala de um baseado.
Foi quando eu fiz o disco O Filho de José e Maria e todo mundo disse que eu tinha ficado doido. Eu escrevi 24 canções que, na ordem, cada uma fala de uma fase da pessoa: a primeira é quando a pessoa nasce e vai até a última que é quando o cara morre, ou se entendeu. Disseram que era uma ópra-rock, mas eu nem sei o que é isso. A igreja não gostou, porque achavam que eu tava falando Jesus Cristo – e tem uma música que o cara fica doidão, outra que ele não sabe se é bicha ou macho. Mas esse disco não ficou nem 50% do que eu queria.
Era um disco pra ser tocado em teatro, não era pra tocar num clube, pro cara ouvir enchendo a cara de cachaça, nem pra tocar numa praça, com uma mulher pendurada no pescoço. Fui trabalhar com o Guilherme Araújo, que era empresário de teatro. E vieram perguntar se eu não gostava do que eu fazia, se eu tinha vergonha de tocar a “Pílula”, que bobagem. Esse disco não foi vitorioso comercialmente, mas é um disco muito bem feito. E eu queria fazer um disco duplo, mas a Polygram não queria lançar, então fui procurar outra gravadora. Fui pra BMG mas quando cheguei lá disseram pra não fazer duplo.
De onde você tirou inspiração pra fazer um disco desses?
Duas coisas. Primeiro, o som: eu achava o máximo o som das guitarras daquela época, do pop do Joe Walsh, aquele disco ao vivo do Peter Frampton, aquela guitarra emborrachada, só ele e três caras de apoio e vendeu vinte milhões de álbuns. Então a idéia inicial era eu ter uma banda como se fosse de garagem. Eu montei essa banda, com uns amigos. Na época, eu tava muito bem de vida, tava solteiro, não tinha compromisso com nada, passava o dia na praia do Pepino sem fazer nada e pensei, “vou fazer uma banda” e fiz. A gente ensaiava lá no Vidigal. Quando eu fui gravar, o Durval Ferreira, aquele da bossa nova, começou a por defeito nos músicos: “Esses caras não tocam porra nenhuma!”. Mas a intenção era aquilo mesmo, tipo nos Rolling Stones, que aquele cara não é o melhor baterista, mas pra aquilo ali era ele mesmo!
Depois, é a idéia do tema. Eu tava no Rio e fiquei chateado com uma situação e esse senhor, o Aderbal, que me levou pra falar com o Golbery, veio me perguntar o que eu tinha. Eu expliquei e perguntei o que eu podia fazer? Eu perguntei e ele saiu da mesa. Pensei: “Qualé a desse velho? Eu pergunto uma coisa pra ele e ele sai? Deve estar ficando esclerosado”. Deu uma meia hora e ele aparece com um livro na mão. “Você me perguntou uma coisa que eu não posso responder, mas esse cara pode”. E me deu O Profeta, do Kalil Gibran. Eu comprei e li tudo dele, achava o Kalil Gibran o máximo. E foi dali que eu resolvi escrever as letras do Filho de José e Maria, eu passava o dia inteiro trancado no quarto sem fazer mais nada, só tomando vinho e lendo aquilo. E aquilo virou uma bola de neve.
E a partir desse disco, as pessoas começaram a fazer questionamentos sobre a minha competência pra vender discos, mas foi até legal, porque você ter a obrigação de todo disco ter de vender é uma bosta. Até porque você não consegue isso a vida inteira. E se você analisar, essa coisa de fazer sucesso, fazendo músicas direto, é um ciclo de sete anos. Pode ver, todo mundo, tem raras exceções, só aguentaram sete anos, pode reparar, Beatles mesmo: sete anos.
E os seus sete anos foram com O Filho de Maria e José?
Sim. Depois eu tive um sucesso ou outro. Eu fiz a música-tema do casal Fábio Júnior e Glória Pires na primeira versão da novela Cabocla, chamada “Até Parece Um Sonho”. Aí começou: faz um que vende, faz outro que não vende tanto… Mas esse negócio de fazer disco todo ano é coisa de mercado brasileiro, mas é um compromisso meio babaca. Pode ser bom pra gravadora, porque se o artista tá vendendo, eles têm o que vender. Mas o músico corre o risco de ir pro estúdio e fazer um disco que não tem nada. Eu tenho 31 discos, desses, dez eu não devia ter lançado. Por que é mal gravado? Não, é porque eles não têm nada, nem são em cima do muro porque nem muro tem. Às vezes, é melhor nem fazer. E depois de 36 anos, eu não posso querer lançar um disco todo ano…
Mas eu nunca parei de fazer shows, mesmo porque eu preciso, primeiro por causa do meu sustento, e depois porque se eu fico um mês sem ir pro palco é como se tivesse faltando um pedaço. É uma necessidade orgânica de trabalhar. Todo mês eu faço show, não consigo ficar sem tocar.
Você se vê mais como um trabalhador do que como um artista.
Eu sou um operário da música, sempre fui. Tem gente que grava dois discos, fica rico e compra posto de gasolina, prédio e sai dessa vida de artista. Tem gente que quer ser reconhecido na rua, comer as mulheres, ser famoso. Não tem nada de errado com isso, mas eu não sou assim. Sempre quis essa vida que eu levo, com erros e acertos. Fiz um disco não tão bom há dois anos, errei. Agora tem um trabalho novo, fizeram um tributo, o disco novo tá bom. Eu sempre fui assim, sempre fui feliz assim e sou feliz por ser assim, um homem simples.
“Assim Sou Eu”
Odair José de Araújo, nascido em 16 de agosto de 1948 em uma fazenda no município de Morrinhos (GO), foi um dos cantores mais populares da música brasileira. Capitão de um time de intérpretes que, devido à dramaticidade na interpretação e o apelo visceral às profundas emoções humanas, fez com que se distanciasse da historiografia oficial da MPB, sagrada nos cadernos de cultura dos jornais – resumindo: eram cafonas e populares. Sem o vozeirão de seus pares Agnaldo Timóteo, Nelson Ned e Waldick Soriano, Odair compensava ao abordar temas inusitados e tidos como impróprios à época, e assim emplacou hits nos anos 70 que estão até hoje no imaginário nacional, como “Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)”, “Revista Proibida”, “Eu Chorei (O Parto)”, “Esta Noite Você Vai Ter Que Ser Minha” e “Vou Tirar Você Desse Lugar”.
“Cadê Você?”
Odair José – Odair José (Phonogram/Polydor, 1973)
Como o próprio assinala, “quase uma coletânea”, devido à quantidade de sucessos. De “Deixe Essa Vergonha de Lado” à “Pílula”, passando por “Cadê Você” e “Eu, Você e a Praça”, o disco seguiu a mesma fórmula certeira do anterior, Assim Sou Eu (incluindo o Azymuth como banda de apoio), e Odair José entrou para o seleto time dos brasileiros com mais de um milhão de discos vendidos.
Vou Tirar Você Desse Lugar – Vários (Allegro, 2005)
Mais um tributo que, sem querer, cria um cânone e une gerações a partir de um rótulo suscinto do artista em questão. No caso, “rock romântico”, que une gerações (Paulo Miklos, Picassos Falsos, Zeca Baleiro e Mundo Livre S/A de um lado, Poléxia, Jumbo Elektro, Suíte Super Luxo e Los Pirata do outro), estilos e abordagens. As favoritas de Odair? Pato Fu, Leela (“se fala Líla ou Lilá?”, ele pergunta) e Mombojó.
Eu Não Sou Cachorro, Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar – Paulo César de Araújo (Record, 2002)
Numa obra tão importante para a música brasileira quanto o documentário A Negação do Brasil (de Joel Zito Araújo, sobre racismo) para a TV nacional, Paulo César arma-se de Paulo Sérgio, Benito de Paula e Lindomar Castilho para peitar, um a um, os preconceitos disfarçados de bom gosto da década de 70. Nela, Odair José é um Bob Dylan literalmente dos pobres, que troca a política social pela crônica de costumes pçara fazer sua própria revolução folk.
E já que a vaibe é a ressurreição de textos, eis o Discoteca Básica que fiz sobre o Revolver, dos Beatles, na penúltima encarnação da Bizz, em 2001.
A mudança de ares de uma era resumida em um disco
Antes de abandonar os palcos, os Beatles começaram a experimentar em estúdio, guiados por música erudita, pop norte-americano, aventuras técnicas e drogas psicodélicas, continuando à frente de seu tempo com o fundamental Revolver
Paul McCartney incentivando os Beatles a fazerem pequenos trechos de sons superpostos, inspirados em John Cage e Karlheinz Stockhausen. John Lennon querendo soar como o Dalai Lama no alto do Himalaia ao cantar letras inspiradas na versão do Dr. Timothy Leary para O Livro Tibetano dos Mortos. O dedo oriental de George Harrison em uma canção sem mudanças de acordes. A bateria frouxa e hipnótica de Ringo Starr, mais tarde ressuscitada por moderninhos como Beck (“New Pollution”) e Chemical Brothers (“Setting Sun”). O produtor George Martin obrigando funcionários dos estúdios Abbey Road a sincronizarem gravadores em colagens aleatórias de som. O técnico Ken Townshend inventando os vocais ADT (Artificial Double Tracking) e o engenheiro de som Geoff Emerick metendo a voz de Lennon numa caixa Leslie dentro de um órgão Hammond. E isso tudo no primeiro dia de gravação do sétimo disco dos Beatles, a quarta-feira dia 6 de abril de 1966, para uma única canção. A música se tornaria “Tomorrow Never Knows”, mas ali, no início do álbum, o grupo assinalava a faixa como o começo de uma nova fase, batizando-a sem modéstia de “Mark I”.
Fato – afinal, um ano antes estavam gravando a popzinha “You’re Going to Lose that Girl” e dois anos antes era a vez do rock “A Hard Day’s Night”. A distância era muito grande. “Tomorrow Never Knows” era o início de uma era de experimentação na música popular que iria explodir na renascença psicodélica do ano seguinte, transformando o horizontes da cultura pop no caleidoscópio de referência que conhecemos hoje. Com Revolver, os Beatles entravam numa escalada artística que iria dar em obras-primas como Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, o Álbum Branco e Abbey Road, finalmente atingindo o topo do mundo pop. Até então, com o jovem e moderno Rubber Soul, eram uma banda pop exercitando todo seu potencial. De 1966 em diante, passariam a explorar as novas fronteiras da arte contemporânea, mas sem perder o senso de perfeição que haviam mirado no álbum anterior.
De repente, descobriam as vantagens da manipulação sonora depois de gravada. “Revolver estava sendo conhecido como o disco em que os Beatles diziam: ‘OK, está ótimo, agora vamos inverter isto ou acelerar ou arrastar”, lembra Emerick no livro The Complete Beatles Recording Sessions, “eles tentaram tudo de trás pra frente, só pra ver como soava”. “Quando experimentamos o som de trás pra frente, eles passaram a inverter tudo”, concorda George Martin em seu Summer of Love – The Making of Sgt. Pepper. As inovações técnicas iam além da distorção, aproximando a microfonação o máximo possível: microfones dentro de instrumentos de sopro, grudados em violoncelos, colados na bateria. “Eles ouviam um monte de discos americanos e ficavam perguntando: ‘Como podemos ter este som?’”, recorda o produtor.
Mas enquanto a técnica entusiasmava o lado juvenil de George, Geoff e Ken, o grupo estava sendo ousado mesmo nas novas composições. As drogas exerciam um papel fundamental na nova fase do grupo. “Dr. Robert” cantava sobre um médico pronto para levantar o astral de quem quisesse, uma versão musical para Max Jacobson, o farmacêutico-mor da marginália nova-iorquina; “Got to Get You Into My Life” é sobre o entusiasmo de Paul McCartney com fumo (“é o meu primeiro arroubo sobre maconha”, confessa Paul na autobiografia Many Years from Now); assim como a preguiçosa “I’m Only Sleeping”, de Lennon; e as duas faixas que fechavam cada um dos lados do vinil – “She Said She Said” e “Tomorrow Never Knows” – são sobre viagens de ácido: a primeira disfarça um tour lisérgico que Lennon teve com o ator Peter Fonda (vertido em “she” na faixa, para não dar na cara) e a segunda escancara a exploração de realidades induzidas em versos nada discretos (“Desligue sua mente”, “ouça as cores do seu sonho”).
Por outro lado, abriam continuavam entrando em portas musicais abertas nos discos anteriores. “Eleanor Rigby” é a evolução natural de “Yesterday”, com “cordas à Bernard Herrman”, como pediu Paul ao produtor Martin. “Taxman”, “Yellow Submarine” e “I’m Only Sleeping” brincavam com efeitos sonoros e arranjos superpostos. “Love You To” é George Harrison em sua primeira incursão de cabeça à cultura hindu que havia flertado em “Norwegian Wood”. “Here, There and Everywhere” e “For No One” – esta com solo barroco de trompa – transformavam Paul McCartney num jovem Schubert, compondo pequenas sinfonias em vez de baladas de amor. “Good Day Sunshine”, “Got to Get You Into My Life” e “I Want to Tell You” fazem a ponte com o pop norte-americana, enquanto “Dr. Robert” e “And Your Bird Can Sing” ajudavam a country music em sua própria evolução. Os assuntos abordados pelo disco iam da cobrança de impostos a contos infantis, passando por existencialismo, psicodelia, fossa amorosa, amor à vida, paixão latente, crítica social e metáforas diversas.
Poucos meses depois do lançamento do disco (no dia 5 de agosto de 1966), o grupo encerrou definitivamente a primeira fase de sua carreira, ao anunciar que não iria mais tocar ao vivo. A partir daí, o desafio do grupo seria sintetizar os anseios e dúvidas de uma geração – e assim fizeram ao serem os primeiros a darem o primeiro passo adiante, até seu fim, em 1970. Revolver encontra o grupo no exato momento da mudança, um sofisticado registro da melhor música pop de 1966 que flagra a mudança de parâmetros de toda uma era. “A mudança toda foi gradual”, conta John Lennon no livrão Anthology, “mas estávamos conscientes que, se havia uma fórmula ou algo do tipo, esta era mover-se para a frente”.
Revolver
1966
Produção: George Martin
A capa do disco já havia sido criada por Robert Freeman (uma colagem em espiral das metades de cima dos rostos dos quatro Beatles repetidas vezes) quando o grupo pediu ao velho amigo Klaus Voorman para recriá-la. Voorman, um dos ‘exis’ (grupo de jovens artistas existencialistas alemães no começo dos anos 60), conheceu o conjunto na época em que eles tocavam em Hamburgo, antes de gravarem o primeiro disco. A capa proposta por Klaus agradou em cheio: “Gostamos da forma que ele nos colocava como pequenas coisas saindo do ouvido das pessoas. E ele nos conhecia o suficiente para nos capturar de uma forma bonita em seus desenhos”, lembra Paul, “nos sentimos elogiados”. Na colagem da capa, Voorman usou duas fotos (uma de John e outra de George) que já haviam saído na contracapa do disco anterior, Rubber Soul. – As faixas “Paperback Writer” e “Rain” foram gravadas nas mesmas sessões de Revolver, mas serviram de aperitivo ao público para o novo álbum, sendo lançadas como um compacto no primeiro semestre de 1966 (em maio nos EUA e em junho na Inglaterra). “Rain” trazia a primeira gravação invertida da história da música gravada à luz do dia. “Fomos nós os primeiros”, resmungava John Lennon, “não foi nenhum Jimi Hendrix ou o fuckin’ The Who”.
Essa entrou na Tesouros Perdidos daquela Bizz com o Lennon na capa.
Eu Sou o Rio – Black Future
Entre a “Copacabana” de Dick Farney e a “L.A.P.A.” de Marcelo D2 há um imenso abismo. Afinal, o Rio de Janeiro mutou-se formidavelmente em pouco mais de 40 anos: de Acapulco do Sul à Favelópole pró-Garotinho, há mais do que um amadurecimento cultural ou uma decadência de estilo, como visões rasas poderiam supor. Quando o governo federal fez as malas para o cerrado prometido de JK, deixou a antiga maior cidade do país perdida, em busca de uma Ipanema que existiu mais no saudosismo de atuais sexagenários do que de verdade.
Mas, enquanto a bossa nova e o turismo procuravam novas opções, o Rio foi reinventado pela necessidade da juventude local – é preciso se divertir, afinal. Na década de 80, Zé Carioca reencarnou em Evandro Mesquita, Fausto Fawcett documentava tudo e Hermano Vianna ajudava o DJ Marlboro a inventar o funk carioca. Quando os 90 começaram, o mapa da cidade já havia sido redesenhado – cabia a bandas como Planet Hemp, Funk Fuckers, Second Come, Piu-Piu e Sua Banda, Soutien Xiita, Gangrena Gasosa, Dash, Acabou La Tequila e PELVs divulgá-lo, ainda que via underground, para o resto do Brasil.
Mas antes disso, apareceu um pequeno caroço no pop rock carioca. O rock dos anos 80 começava a se paulistanizar (roupas pretas, penteados pra cima, teclados soturnos, baixo slap, vocal falado) e a sombra desta nuvem negra veio parar do outro lado da Dutra: era o Black Future.
O grupo teve vários formações mas era reduzido à dupla Satanésio e Tantão que, como seus pares paulistas, tentavam entender – em alguns casos, imitar – o que estava acontecendo na Inglaterra depois do punk. Diferente de seus pares paulistas, no entanto, tinham o suingue do samba e o sotaque carioca.
O que não facilitava as coisas – pelo contrário. O som é quase sempre ruidoso, hermético, quadrado, kraut. Doses cavalares de pós-punk (Joy Division e Pere Ubu na veia) com eletrônica naïf, funk torto e baixo pronunciado, berros de pânico e desespero (Artaud no talo), guitarras que grunhem, gemem, guincham. “Não existe mais magia”, urra Satanésio, “os deuses acabaram”. Acompanhando a banda, músicos que ajudam a compor um cânone do experimentalismo pop brasileiro naquela década: o guitarrista Edgard Scandurra, Edu K e Biba do De Falla, o jornalista Alex Antunes, o poeta Chacal, o titã Paulo Miklos e a produção de Thomas Pappon, do Fellini.
Seu único disco lançado – Eu Sou o Rio, de 88 – é um ET na discografia brasileira lançada pelas multinacionais no Brasil. Figuraria mais nobre e plausível no catálogo da Wop Bop, por exemplo, entre o Harry e o Vzyadoq Moe. É quase incrível que uma gravadora que não tivesse apenas interesse estético no disco pudesse ter lançado isso por aqui. Um feito heróico – que só existe em vinil.
E também esqueci de colocar a íntegra da matéria da Bizz do mês passado… Depois eu posto o depoimento do Andy Gill.
***
Guerra de um Homem Só
Uma carta, datada de 30 de setembro de 1974, enviada por um certo “Dr. Winston O’Boogie”, chegou à redação do tablóide musical inglês “Melody Maker” e foi prontamente publicada nas páginas do jornal. Depois de uma breve apresentação, ela listava uma série de itens:
“1) Eu nunca disse que era um revolucionário. Mas eu tenho direito de cantar sobre o que eu quiser! Certo?
2) Eu nunca bati em uma garçonete no Troubador. Eu agi como um cuzão, estava muito bêbado. Tem problema?
3) Acho que todos nós todos queremos atenção Rodd, e você realmente acha que eu não sei como consegui-la, sem uma “revolução”? Eu podia pintar meu cabelo de verde e rosa, pra começar!
4) Eu não represento ninguém além de EU MESMO. Parece que eu represento algo para você, senão você não seria tão violento em relação a mim (seu pai, talvez)?
5) Sim, Dodd, a violência se expressa das maneiras misteriosas que ela quer se manifestar, incluindo verbal.
6) Então o Nazz fazia “tipo heavy metal” e agora DE REPENTE começa a tocar “baladas bem levinhas”. Que original!
7) O que leva aos Beatles, “que não tinham outro estilo além de ser os Beatles”!! Isso cobre muito estilo, cara, incluindo o seu, ATÉ HOJE…
Sim, Godd, o que os Beatles fizeram foi afetar as MENTES DAS PESSOAS. Talvez você queira mais uma dose?”
Cínico, ácido, grosso e arrogante, o ex-beatle John Lennon atravessava seu histórico Finde Perdido (o “Lost Weekend”, dezoito meses longe de Yoko Ono em Los Angeles, título tirado do original de “Farrapo Humano”, de Billy Wilder, o primeiro filme a falar sobre alcoolismo) quando mandou a carta para a Inglaterra. Todd Rundgren, da banda Nazz, havia comentado em uma entrevista para o jornal inglês, comentando o fato de Lennon ter dado em cima de uma garçonete de forma agressiva. Lennon estava destruído, saindo todos os dias e enchendo a cara com profissionais do álcool como Keith Moon, Harry Nilsson e Phil Spector. Quase na metade de seus trinta anos, atravessava sua via crúcis num lento processo de destruição de uma auto-imagem que o acompanhou até seu assassinato em Nova York no dia 8 de dezembro de 1980 e segue até hoje, perene. Ao ler Rundgren comentar sua vida particular em público, deu o troco no tom amargo daqueles dias. E pensar que há menos três anos, Lennon se entregava exatamente a esta imagem e lançava seu hino da paz no mesmo mês em que abandonava seu lar inglês definitivamente – atravessaria o Atlântico como seu pai havia cansado de fazer, mas, de uma vez só. Rumo à América.
***
Lançado no último dia do mês passado durante a 63ª edição do Festival de Cinema Internacional de Veneza, “The U.S. vs. John Lennon” é um documentário que mostra como Lennon se livrou dos Beatles ao criar uma imagem que o transformou no ícone que depois tentaria exorcizar. O Lennon humanista, pacifista, feminista, engajado num projeto de fazer as pessoas pararem para pensar no que acontece ao seu redor através da música. Produzido pela mesma Lions Gate de filmes como “Crash – No Limite” e “Farenheit 11 de Setembro”, o filme é dirigido pelo mesmo David Leaf que acompanhou o processo de reconstituição do Pet Sounds dos Beach Boys no imaginário coletivo (desde a primeira reedição à caixa com quatro CDs) ao lado de seu compadre John Schenfeld. Ambos dirigiram e produziram diferentes documentários para a TV, abordando temas caros mas não centrais na cultura americana, como Nat King Cole, Harry Nilsson, Ricky Nelson, Dean Martin e Jimmy Durante, e agora pulam pala a tela grande com um assunto digno da proporção do salto.
“The U.S. vs. John Lennon” trata da transformação da rebeldia rock’n’roll do fundador dos Beatles em ativismo político, e como suas declarações e manifestações em público passaram a incomodar gente graúda no governo americano – mais especificamente Richard M. Nixon, em sua campanha para reeleição em 1972. Fala de sua mudança de países e como, ao entrar pelos EUA com uma guia escaldada em Nova York (antes de conhecer Lennon, Yoko Ono era uma artista respeitada nos circuitos de vanguarda da cidade), percebeu que poderia se reinventar como ser humano, não como celebridade. Sua relação com a cidade mudou sua forma de ver o mundo e o tornou consciente de seus limites e missões. Estes batiam de frente com a administração Nixon que, além de colocar o FBI em seu encalço, acionou pessoalmente seu departamento de deportação para devolver aquele inglês de volta pra sua ilha. Já havia perdido uma eleição para um Kennedy, não ia perder para um beatle.
Trechos de programas para a TV na época e material inédito e raro, além de entrevistas com personalidades e contemporâneos desta época formam o grosso do filme, que ainda rendeu uma trilha sonora com duas músicas nunca lançadas – uma versão ao vivo para “Attica State”, durante o show pela libertação de John Sinclair em 1971 e uma versão instrumental para “How Do You Sleep?”, do disco Imagine, do mesmo ano. “The U.S. vs. John Lennon” estréia nos EUA no dia 15 de setembro e ainda não tem previsão de quando chega ao Brasil.
Mas não dá para furtar-se do fato das conotações políticas envolvidas no lançamento: desde os cartazes que iniciaram a divulgação do filme (reproduzindo a campanha de 1969, quando John e Yoko compraram outdoors em 11 cidades do mundo, com os dizeres: “War is Over/ If You Want It”, “A Guerra Termina/ Se Você Quiser”), até trechos de entrevistas no próprio documentário que aludem ao fato que o personagem Lennon, o político, o ativista, o agitador, fazer falta do cenário atual. “É triste o fato de o mundo estar em guerra”, disse Leaf à agência de notícias Reuters, “acho que um filme sobre Lennon, destemido em sua campanha pela paz, é particularmente relevante numa época em que o medo parece mandar”.
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Há exatos trinta e cinco anos, quando acabou de gravar o álbum Imagine, em que apresentaria o maior hit de sua carreira – dentro ou fora dos Beatles – ao mundo, Lennon decidiu mudar-se para os Estados Unidos. Frasista de efeito, repetia aos quatro ventos a frase que funciona como epígrafe do segundo disco de sua Anthology pessoal: “Se eu vivesse na época dos romanos, teria que viver em Roma. Onde mais? Hoje os Estados Unidos são o Império Romano e Nova York é a própria Roma”.
“Foi uma época tumultuada pra ele”, lembra a biógrafa Elizabeth Patridge, autora do livro “All I Want is the Truth”, “E Nova York era o lugar certo para ele, pois havia tanta coisa acontecendo e, paradoxalmente, a cidade lhe oferecia privacidade”.
Dito assim, os contornos que levaram Lennon a pisar pela última vez como turista no Aeroporto Internacional John Fitzgerald Kennedy foram primordialmente políticos, mas haviam outros motivos: os altos impostos cobrados pela Coroa Britânica, assunto nunca comentado em voz alta, e mais uma tentativa de resgatar a filha de Yoko, Kyoko, que estava nos EUA com seu pai, Tony Cox.
Mas Lennon queria, mais que o palco, o palanque. É fácil dizer que John havia adotado o rock’n’roll nos anos 50 devido à sua natureza de bad boy, mas esta só realmente surgiu quando lhe foi confrontado com diferentes patamares de autoridade – a ausência dos pais e os mimos da Tia Mimi, que lhe criou, ajudaram a criar confusão com quem queria lhe dizer o que fazer.
Rebelde sem causa, Lennon era o menos proletário dos quatro Beatles e, entre eles, era quem tinha a consciência artística mais aguçada. Ao chocar estes três universos – o arruaceiro que sentava no fundo da classe, o menino estragado pelos confortos da tia e o existencialista crítico da própria produção artística – criava uma personalidade distinta, doce e ácida o suficiente para até hoje ser considerado uma espécie de santo moderno. Mas se nos primeiros dias da montanha-russa dos Beatles John era tido como o espertinho, sempre com uma resposta pronta para qualquer provocação, à medida em que as coisas começaram a fugir do controle, o que parecia apenas sarcasmo juvenil aos poucos foi dando lugar a outro tipo de manifestação.
Começou antes da Beatlemania atravessar o Atlântico, quando, ao agradecer ao público da principal apresentação dos Beatles até aquele 4 de novembro de 1963, que incluía ninguém menos que a Rainha Elizabeth, a Rainha Mãe e a Princesa Margaret, durante a Royal Variety Performance, na capital inglesa, Lennon soltou uma de suas muitas tiradas históricas: “As pessoas nos lugares mais baratos podem bater palmas”, dizia enquanto fazia Paul McCartney e Brian Epstein congelar de aflição com o possível uso do adjetivo “fuckin’”, como tinha prometido, “o resto de vocês, podem chacoalhar as jóias”.
Começava a se incomodar com as injustiças do mundo e a falar sobre elas, mesmo que Brian, o empresário que transformou o grupo de Liverpool em pop, pedisse para que ele por favor não mencionasse nada sobre a Guerra do Vietnã, que crescia no imaginário mundial com a mesma velocidade e agressividade dos Beatles. Ele e George logo dariam entrevistas condenando o conflito, mas não chegou sequer a arranhar a reputação do grupo. Foi outro assunto que deu pano para a manga e transformou Lennon em algo maior do que um mero popstar.
“O Cristianismo irá acabar. Irá diminuir e encolher. Não dá pra fazer nada, estou certo e provarei que estou certo”, disse numa entrevista à jornalista-tiete Maureen Cleave, numa entrevista publicada na edição de 4 de março de 1966 do jornal londrinho “Evening Standard”. E continuou: “Hoje, somos mais populares do que Jesus. Eu não sei o que irá embora antes, o rock’n’roll ou o o Cristianismo”.
Em menos de um semestre – tempos pré-satélite e internet – a frase atravessou o oceano e chegou nos rincões cristãos dos EUA como se Lennon tivesse dito que os Beatles eram maiores que Jesus Cristo. Discos queimados, rituais realizados pela Ku Klux Klan contra o grupo, planos em adiar mais a turnê, ameaças de morte. John realmente temia por sua vida e qualquer flash na platéia lhe lembrava que podia ter sido um tiro. Com aquela frase, ele atenuou as tensões das turnês e antecipou o fim da primeira fase dos Beatles, que os tirou dos palcos e os transformou em artistas de estúdio. Mas a mudança para Lennon havia sido maior: ele havia percebido o poder da sua voz.
E até o fim dos Beatles, passou a amplificá-la para diferentes lados, cada vez mais ciente do poder de comunicação das canções, mais do que o de entretenimento. Cada música de Lennon entre 1967 e 1970 tem conotações que vão além do mero pop. Queria mostrar para as pessoas o que pensava, o que sentia.
Chorou a perda da mãe, lembrou da infância, criticou os cínicos, festejou Yoko, clamou por revolução. Terminou seu ciclo no grupo com uma música criada para a campanha de Timothy Leary para governador da Califórnia (“Come Together”) e com a música composta em seus protestos pela paz ao lado de Yoko Ono em quartos de hotéis pelo mundo, em que convidava jornalistas e personalidades para discutir o estado das coisas e pedir paz, nos famosos bed-ins (“Give Peace a Chance”).
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Quando mudou-se para os Estados Unidos, veio pilhado de política, gastando o verbo em entrevistas memoráveis e compondo canções qualquer cada vez mais apertavam o dedo nas feridas que o incomodavam. Assim, foi natural que, ao chegarem em Nova York, no dia 3 de setembro de 1971, John e Yoko tenham sido recebido por duas das principais figuras do ativismo político americano: Jerry Rubin e Abbie Hoffman.
Os dois eram parte do grupo que ficou conhecido como “os sete de Chicago”, que, ao lado da banda MC5, tomaram de assalto a Convenção Nacional do Partido Democrata Americano em 1968, lançando a candidatura do porco Pigasus para concorrer com Eugene McCarthy e Hubert Humphrey, os nomes que surgiram após o candidato natural, Robert Kennedy, morrer assassinado no dia 6 de junho daquele ano. Mas a farra custou caro e o grupo foi indiciado por incitar protestos e atiçar conspirações. O julgamento os inocentou, no final das contas, e, com a fama, Rubin e Hoffman fundaram o partido de mentira Partido da Juventude Internacional, cuja sigla, “YIP”, dava origem ao nome de seus simpatizantes, os Yippies.
Com Hoffman e Rubin emocionados com o fato de um músico da grandeza de Lennon ter, mais do que simpatizado, abraçado sua causa, eles logo entraram no coração da contracultura política nova-iorquina e logo estavam organizando e participando de passeatas, protestos e shows com motivações políticas. O principal deles foi o concerto para a libertação de John Sinclair, ativista político, antigo empresário do MC5 e criador dos Panteras Brancas (outro partido de gozação), que havia sido condenado a dez anos de cadeia por ter sido apanhado com dois cigarros de maconha. O concerto aconteceu no dia 10 de dezembro de 1971 e dois dias depois Sinclair estava livre.
Mais do que prometer, Lennon cumpria.
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Quase dez anos mais tarde, o estagiário de direto Jon Wiener foi ao escritório do FBI e pediu os arquivos da polícia federal americana sobre John Lennon. O ex-beatle havia sido morto há menos de três meses e o estudante tinha um pressentimento sobre o que poderia haver nas fichas do Bureau. “O FBI me disse que eles tinham mais de 400 páginas sobre Lennon dos anos de 71 e 72, quando ele mudou-se para Nova York e se juntou ao movimento pacifista”, conta hoje Wiener, autor do livro “Gimme Some Truth – The John Lennon FBI Files”, “destes papéis, eles diziam que dois terços eram arquivos de segurança nacional e não poderiam ser liberados”.
No livro de Wiener, provas que a paranóia que começa a baixar sobre Lennon a partir de 72 era real: telefones grampeados, movimentos rastreados, transcrições de reuniões com amigos, tentativas de batidas para apreensão de drogas e até uma foto transmitida para todo o país para que os agentes federais pudessem identificá-lo (detalhe surreal: mesmo sendo um dos rostos mais conhecidos do mundo, o FBI anexou uma foto do cantor David Peel, cuja carreira fora lançada por John). “Só no final do ano passado que todos os arquivos foram liberados”, conta o autor, “mas há serviços secretos de outros países, como o MI5 inglês, que também têm documentos sobre vigilância de Lennon”.
O motivo da perseguição do governo americano era simples: Lennon era contra a guerra do Vietnã, o presidente Nixon era a favor e os dois estavam em rota de colisão. Ainda mais quando Lennon, Rubin e Hoffman resolveram fazer de tudo para atrapalhar a campanha para a reeleição de Nixon – de canções a protestos sistemáticos. O governo americano, além de lançar o FBI, ainda dispôs de dois recursos para desbaratinar o ex-beatle: “Ao serviço de imigrição foi passado a missão de deportá-lo, enquanto coube à CIA monitorar seu dia-a-dia doméstico”, continua Wiener, “é possível que outras agências tenham o mantido sob escuta – inteligência do exército, polícia de Nova York – mas não sabemos ao certo”.
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Perseguido pelo FBI e pelo serviço de imigração americano e completamente obcecado por causas políticas que ia descobrindo diariamente, Lennon deixou a música em segundo plano. Ele foi co-apresentador do talk show de Mike Douglas durante uma semana inteira de fevereiro, trazendo Hoffman e Rubin para os lares americanos, na mesma época em que, ao lado de Yoko e da banda Elephant’s Memory (rebatizada de Plastic Ono Elephant’s Memory Band) fez um de seus discos mais fracos, “Some Time in New York City”, lançado em junho. As faixas são todas panfletárias e quase todas estáveis, secas e com pouca emoção – salvo a brilhante exceção que é “Woman is the Nigger of the World”. Criou o conceito de “música jornal” que era levado até a capa do disco, que imitava o “New York Times” e que trazia canções como se estas fossem matérias – denunciando condições carcerárias, a guerra santa no Reino Unido, o sistema educacional, sexismo, racismo.
O disco foi recebido pela crítica com frieza e com desânimo pelo público, embora tenha dado origem a dois shows beneficentes no Madison Square Garden em agosto daquele ano, à frente da mesma banda com a qual gravou o disco, que seriam as últimas apresentações oficiais da vida de Lennon. Anos mais tarde, ele participaria de duas músicas em show de Elton John, mas foi o Lennon político – com a farda da força aérea britânica, longas e volumosas costeletas, sem barba e de óculos de lentes azuis – quem encerrou oficialmente a carreira de John nos palcos.
Alie isso a brigas judiciais sobre os direitos autorais de “Come Together” (que Chuck Berry dizia ser sua) e a tentativa de obter o visto definitivo para ficar nos EUA e aos poucos Lennon foi cansando. A pá de cal no Lennon político aconteceu no dia da vitória de Richard Nixon na eleição de 1972, quando, numa festa na casa de uns amigos, John, bêbado, pegou uma garota pela mão e levou-a para um quarto. Bateu a porta e alguém lembrou que aquele era o quarto onde estavam os casacos, mas era tarde: Lennon partiu pra cima da menina ruidosamente, constrangendo todos os presentes e principalmente Yoko Ono, que teve de, calada, ouvir os gemidos do outro cômodo. Começariam então os jogos mentais que desestabeleceriam de vez a relação do casal, que, em menos de um ano, estaria separado – inclusive em cidades diferentes.
Mas isso é outra história.
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Publicada no dia 21 de janeiro de 1971 no jornal inglês “Red Mole” (isso mesmo, a “Toupeira Vermelha”, uma publicação trotskista), a entrevista a seguir foi realizada pelo escritor, diretor e jornalista paquistanês Tariq Ali, ao lado de seu colega de ativismo Robin Blackburn, que hoje dá aula New School University em Nova York e é editor da New Left Review.
Ali, um dos principais críticos do capitalismo ocidental desde os anos 70 – quando protagonizou debates históricos com o homem que mandava nos EUA na época, Henry Kissinger – até hoje – foi vaiado na Feira de Livros Internacional de Parati deste ano, onde foi um dos convidados internacionais em terras brasileiras, por defender seus velhos princípios de que a política de Israel é nociva para o Oriente Médio. Ele é autor de vários livros sobre a contracultura e movimentos políticos da década de 60 e de diversos temas em voga nesta era de peso político nos ombros do inconsciente coletivo depois do 11 de setembro. Terrorismo, geopolítica, economia internacional, imperialismo e resistência são alguns dos temas recorrentes no imaginário relacionado ao autor, cujo livro mais recente chama-se “Pirates of the Caribbean: Axis of Hope” (“Piratas do Caribe: Eixo da Esperança”, publicado pela Verso), em que examina a revolução bolivariana de Hugo Chávez na Venezuela e traça paralelos com os governos de Evo Moralez na Bolívia e Fidel Castro em Cuba.
Mas há pouco mais de 35 anos, ele era apenas um ativista ferrenho que se encontrava com o maior rockstar de seu tempo. Lennon, recém-saído dos Beatles, começava a abraçar o ativismo político e usava sua influência pop para divagar sobre inúmeros assuntos relacionados à Guerra do Vietnã, o papel dos EUA e da Inglaterra no cenário internacional e sua função como intelectual orgânico, que prega e age ao mesmo tempo. Essas divagações começaram nos bed-ins como Yoko Ono e continuaram em séries de longas entrevistas que John daria para diversos veículos, como o representado por Ali e Blackburn, que você lê pela primeira vez em português a seguir.
Tariq Ali: Seu último disco e declarações sugerem que seu ponto de vista se tornou mais radical e político. Quando isso começou?
John Lennon: Eu sempre tive inclinações políticas, contra o status quo. É bem básico enquanto você cresce, como eu cresci, odiar e temer a polícia como um inimigo natural e desprezar o exército como algo que leva as pessoas embora para morrer em algum lugar.
É uma coisa básica da classe operária, que começa a desgastar quando você fica velho, arruma uma família e é engolido pelo sistema.
No meu caso, eu nunca não fui político, apesar de a religião ter obscurecido isto em meus dias mais ácidos, por volta de 65 ou 66. E que a religião era diretamente o resultado daquela merda de superestrela – a religião foi um canal de escape para a minha repressão. Eu pensei, “Bem, deve ter algo a mais na vida, não é? Não é só isso, com certeza?”.
Mas eu sempre fui político de uma certa forma, sabe. Nos dois livros que escrevi, mesmo que eles estejam escritos num nonsense joyceano, há muitos cutucões na religião e há uma peça sobre um trabalhador e um capitalista. Eu satirizava o sistema desde a minha infância. Eu fazia revistas na escola e as distribuía de mão em mão.
Eu sempre tive consciência de classe e sempre agi de forma agressiva, porque eu sabia o que acontecia comigo e sabia sobre a repressão de classe sobre nós – era a porra de um fato, mas no furacão do mundo dos Beatles isso acabou de fora, eu saí da realidade por um tempo.
Ali: Ao que você atribui a razão do sucesso do seu tipo de música?
Lennon: Na época eu imaginava que os operários haviam conseguido, mas eu percebi em retrospecto que é o mesmo acordo que eles fizeram com os negros, era exatamente como eles permitiam que os negros pudessem ser corredores, boxeadores ou artistas. Essa é a escolha que eles te dão – agora o veículo é ser um astro pop, o que é exatamente o que vou dizer no disco na música “Working Class Hero”. São as mesmas pessoas que ainda têm o poder, o sistema de classes não mudou nada.
Claro que agora há muito mais gente por aí com os cabelos compridos e uns garotos classe média descolados com roupas legais. Mas nada mudou, fora o fato que estamos melhores vestidos, deixamos os mesmos filhosdaputa mandar em tudo.
Ali: Quando você começou a romper com o papel lhe imposto por ser um Beatle?
Lennon: Mesmo no auge dos Beatles eu tentei ir contra aquilo, como George. Fomos aos EUA algumas vezes e Epstein sempre tentava nos desconversar para que não falássemos nada sobre o Vietnã. Até que chegou uma hora quando George e eu dissemos: “Escute, a próxima vez que eles perguntarem, vamos dizer que não gostamos daquela guerra e que eles devia sair dali agora!”. E foi isso que fizemos. Na época, foi uma coisa muito radical, principalmente para os “Fab Four”. Foi a primeira oportunidade que eu tive de agitar um pouco a bandeira.
Mas você tem de lembrar que eu sempre me senti reprimido. Estávamos tão pressurizados na época que mal tínhamos chance de nos expressar, ainda mais naquela correria, sempre em turnês e sempre mantido num casulo de mitos e sonhos. É bem difícil quando se é o César e todo mundo te diz como você é maravilhoso e te dão tudo de bom e as meninas, é bem difícil sair disso e dizer ‘Eu não quero ser um rei, eu quero ser real’. Então, desta forma, a segunda coisa política que fiz foi dizer que “os Beatles são maiores que Jesus”. Isso realmente arruinou tudo, eu quase fui morto nos Estados Unidos por causa disso. Foi um grande trauma para os moleques que nos seguia. Até então havia uma política velada sobre não responder questões delicadas, apesar de eu sempre ter lido jornal, a parte de política.
A consciência contínua do que acontecia me fazia sentir vergonha por não dizer nada. Eu explodi porque eu não conseguia mais jogar aquele jogo, era demais para mim. Claro que ir para os Estados Unidos fez crescer essa cobrança sobre mim, particularmente pela guerra acontecer com eles. De certa forma, nos tornamos um Cavalo de Tróia. Os “Fab Four” foram exatamente para o topo e então cantaram sobre drogas e sexo e se meteram em coisas cada vez mais pesadas e então eles resolveram nos deixar de lado.
Era uma opressão total. Quer dizer, tivemos que atravessar humilhação atrás de humilhação com a classe média e o mundo do entretenimento e os Lord Mayors e coisas assim. Eles eram tão condescendentes e idiotas. Todo mundo queria nos usar. Era uma humilhação em especial para mim, porque eu não conseguia ficar calado e sempre tinha que estar bêbado ou dopado para contrabalançar essa pressão. Era um inferno…
Yoko Ono: E acabava o privando de qualquer experiência real, sabe…
Lennon: Era muita mesquinharia. Quero dizer, além do primeiro rubor de conseguir – a emoção do primeiro disco no topo da parada, a primeira viagem aos EUA. Primeiro, tínhamos o objetivo de sermos tão grandes quanto Elvis – continuar em frente era o grande barato, mas na verdade ele veio junto com uma grande frustração. Eu percebi que tinha que agradar continuamente o tipo de pessoa que eu sempre havia odiado quando era criança. Isso começou a me trazer de volta à realidade.
Comecei a perceber que todos somos oprimidos por isso resolvi que eu devia fazer algo sobre isso, apesar de eu não saber qual é o meu lugar.
Robin Blackburn: Em todo caso, política e cultura estão interligadas, não? Quero dizer, os operários atualmente são reprimidos pela cultura e não por armas…
Lennon: Estão dopados…
Blackburn: E a cultura que está os dopando é aquela em que o artista precisa dar certo ou errado…
Lennon: É isso que eu quero com estes álbuns e entrevistas. Quero influenciar as pessoas que eu posso influenciar. Todas aquelas que ainda estão naquele sonho e deixar uma grande interrogação em suas mentes. O sonho de ácido terminou, é isso que estou querendo dizer.
Quando eu comecei, o próprio rock’n’roll era a revolução básica para as pessoas da minha idade e na minha situação. Precisávamos de algo alto e claro para atravessar toda a apatia e a repressão que caía sobre nós moleques. Éramos um tanto conscientes para começar como uma imitação dos americanos. Mas lidávamos com a música e descobrimos que era meio country branco e meio rhythm’n’blues negro. A maior parte das músicas vieram da Europa e da África e então estavam voltando pra gente. Muitas das melhores canções de Dylan vieram da Escócia, Irlanda ou Inglaterra. Era uma espécie de intercâmbio cultural.
Mas no geral música folk são pessoas com vozinhas doces tentando viver algo antigo e morto. É tudo meio chato, como balé: uma coisa de uma minoria que ainda sobrevive graças a um grupo que também é uma minoria. A música folk, popular, dos dias de hoje é o rock’n’roll. Apesar de ele ter acontecido de emanar dos EUA, no fim, isso não é importante, porque nós escrevemos nossa própria música e isso mudou tudo.
Ono: Existem basicamente dois tipos de pessoas no mundo, as pessoas que têm confiança porque sabem que têm a habilidade para criar e as pessoas que têm sido desmoralizadas, que não têm confiança em si mesmo porque lhes disseram que eles não tinham habilidade criativa, que eles deviam obedecer ordens. O sistema gosta de pessoas que não assumam a responsabilidade e que não se respeitem. As pessoas precisam acreditar em si mesmas.
Ali: Este é um ponto vital. A classe operária precisa ser incutida de um sentimento de confiança em si mesma. Isso não pode ser feito apenas com campanhas – os trabalhadores devem mover-se, assumir suas próprias fábricas e mandar os capitalistas pastarem. Foi isso que começou a acontecer em maio de 1968, na França. Os trabalhadores passaram a sentir sua própria força.
Lennon: Mas o partido comunista estava envolvido, não estava?
Blackburn: Não, não estava. Com 10 milhões de operários em greve eles poderiam ter transformado uma das maiores passeatas que aconteceram no centro de Paris em uma ocupação massiva de todos os prédios e instituições governamentais, substituindo DeGaulle com uma nova forma de poder popular como a Comuna ou os Sovietes originais – eles teriam começado uma revolução de verdade, mas o partido comunista francês teve medo. Eles preferiram lidar com o topo, em vez de encorajar os trabalhadores e a terem a iniciativa…
Lennon: Ótimo, mas há um problema aí, você sabe. Todas as revoluções aconteceram quando um Fidel, um Marx, um Lênin ou quem for, que eram intelectuais, conseguiram comunicar-se com os trabalhadores. Eles juntaram um punhado de pessoas e os trabalhadores pareciam entender que estavam em um estado repressor. Eles ainda não acordaram, eles ainda acham que carros e aparelhos de TV são a resposta. Você deveria fazer estes estudantes de esquerda saírem e conversarem com os trabalhadores, fazer com que os estudantes se envolvam com o Red Mole.
Devemos atingir jovens operários porque é quando eles são mais idealistas e têm menos medo.
Os revolucionários de alguma forma tem de atingir os trabalhadores, porque os trabalhadores não vão chegar neles. Mas é difícil saber onde começar, nós temos um dedo num buraco na represa. O problema para mim é que à medida em que eu me tornei mais real, eu deixei a classe trabalhadora para trás – você sabe, eles gostam de Engelbert Humperdinck. São os estudantes que nos compram hoje e isso não é problema. Agora os Beatles são quatro pessoas separadas, não temos mais o impacto que tínhamos quando estávamos juntos…
Blackburn: Você está nadando contra a corrente da sociedade burguesa, que é bem mais difícil.
Lennon: Sim, eles controlam todos os jornais, toda a distribuição e promoção. Quando aparecemos havia apenas a Decca, a Philips e a EMI através das quais você podia conseguir ter um disco produzido. Você tinha de atravessar toda uma burocracia para chegar ao estúdio de gravação. Você fica numa posição tão miserável, que você não tem nem dozes horas para gravar um disco, que era o que tínhamos no começo.
Mesmo agora é o mesma coisa. Se você é um artista desconhecido, você tem sorte se conseguir uma hora num estúdio – é uma hierarquia e se você não fizer sucesso, você não volta a gravar. E eles controlam a distribuição. Tentamos mudar isso com a Apple, mas no final fomos derrotados. Eles ainda controlam tudo. A EMI matou nosso disco Two Virgins porque eles não gostaram. No último disco, eles censuraram as letras das músicas que estavam na contracapa do disco. Merda ridícula e hipócrita – eles me deixam cantar, mas não deixam que você leia. Loucura.
Blackburn: Apesar de você atingir menos pessoas hoje, talvez o efeito seja mais concentrado.
Lennon: Sim, acho que isso é verdade. Para começar, as pessoas de classe média reagiram contra nossa abertura em relação ao sexo. Eles têm medo da nudez, eles estão tão reprimidos quanto os outros. Talvez eles pensaram, “Paul é um cara legal, ele não faz esse tipo de coisa”.
Mas os trabalhadores são mais amigáveis conosco, por isso acho que há uma mudança. Parece que os estudantes estão meio acordados o suficiente para tentar acordar seus irmãos operários. Se você não passar seu conhecimento, então ele se fecha novamente. Por isso acho que a necessidade básica é que os estudantes se dêem com os operários e os convençam de que não falamos bobagem. E claro que é difícil saber o que os trabalhadores pensam de verdade, porque a imprensa capitalista só usa aspas de falastrões como Vic Feather mesmo.
Por isso, resta apenas falar com eles diretamente, especialmente com os jovens. Temos que começar com eles porque eles sabem contra quem eles estão. É por isso que eu falo da escola no disco. Eu quero incitar as pessoas para quebrar a moldura, serem desobedientes na escola, mostrar a língua, insultar a autoridade.
O quanto mais nós encaramos a realidade, mais percebemos que a irrealidade é o prato principal do dia. O quanto mais reais nos tornamos, o quanto mais forçamos a barra, isto também nos radicaliza de uma forma, como se fôssemos colocados num canto. Mas seria melhor que existissem mais de nós.
Ono: Nós não devemos ser tradicionais na forma que nos comunicamos com as pessoas – especialmente com o sistema. Devemos surpreender as pessoas ao dizer coisas novas de formas inteiramente novas. Comunicação tem uma força fantástica desde que você não aja da forma que esperam que você aja.
Blackburn: A comunicação é vital para construer um movimento, mas no fim das contas ela é inofensiva se você não desenvolver uma força popular.
Ono: Eu fico muito triste quando penso no Vietnã, onde parece não haver escolha a não ser a violência. Esta violência tem atravessado séculos apenas se perpetuando. Nesta época em que vivemos, quando a comunicação é tão rápida, nós devíamos criar tradições diferentes, tradições são criadas todos os dias. Cinco anos hoje é como cem anos antes. Vivemos em uma sociedade sem história. Não há precedentes de um tipo de sociedade destes, por isso podemos romper velhos padrões.
Ali: Nenhuma classe dominante em toda a história desistiu de seu poder voluntariamente e eu não acho que isso tem mudado.
Blackburn: E vivemos em um país imperialista que explora o Terceiro Mundo e até nossa cultura está envolvida nisso. Houve um tempo em que a música dos Beatles tocava na “Voz da América”…
Lennon: Os russos diziam que éramos robôs capitalistas, o que acho que seja verdade…
Blackburn: Eles eram bem burros para não ver que era outra coisa.
Ono: Essa é a verdade, os Beatles eram a música popular do século vinte numa moldura capitalista, eles não podiam fazer nada diferente se eles quisessem se comunicar dentro desta moldura.
Blackburn: Eu estava em Cuba quando Sgt. Pepper’s saiu e foi quando eles começaram a tocar rock no rádio.
Lennon: Tomara que eles não vejam o rock’n’roll como a mesma coisa que a Coca-Cola. À medida que avançamos para além do sonho isso parece ser mais fácil: é por isso que estou dizendo declarações mais fortes e tentar tirar essa imagem de ídolo adolescente. Eu quero atingir as pessoas certas e eu quero que o que eu diga seja simples e direto.
Capa desta edição da Bizz é minha, falando sobre a fase ativista político de Lennon, logo que ele chega aos EUA, em setembro de 71: textinho sobre o The U.S. vs John Lennon, entrevista com o Jon Wienner, tradução da entrevista feita pelo Tariq Ali na época e papo sobre rock e política com o Andy Gill do Gang of Four. Tudo no meu nome.
Sei que tou devendo o entrevistão drogas e o memorial de Syd Barrett que eu fiz pra revista. Conserto isso dia desses…
Taí o trechinho que eles liberaram no site:
Há exatos 35 anos, quando gravou Imagine, em que apresentaria o maior hit de sua carreira, Lennon decidiu mudar-se para Nova York. Curiosamente, ele era o menos proletário dos quatro Beatles e, entre eles, quem tinha a consciência artística mais aguçada. Quando mudou-se para os EUA, veio pilhado de política, gastando o verbo em entrevistas memoráveis e compondo canções que cada vez mais apertavam o dedo nas feridas que o incomodavam. Assim, foi natural que, ao chegar em Nova York, no dia 3 de setembro de 1971, John e Yoko tenham sido recebidos por duas das principais figuras do ativismo político americano: Jerry Rubin e Abbie Hoffman, os dois eram parte dos “sete de Chicago”, grupo que, ao lado do MC5, tomou de assalto a Convenção Nacional do Partido Democrata Americano em 1968, lançando a candidatura do porco Pigasus.
Assim, Lennon e Yoko entraram no coração da contracultura política nova-iorquina e logo estavam organizando e participando de passeatas e shows com motivações políticas. O principal deles foi o concerto pela libertação de John Sinclair, ativista político, antigo empresário do MC5 e criador dos Panteras Brancas (um partido de gozação), condenado a dez anos de cadeia por porte de dois cigarros de maconha. Quase dez anos mais tarde, o estagiário de direito Jon Wiener foi ao escritório do FBI e pediu os arquivos da polícia federal americana sobre John Lennon. “O FBI me disse que eles tinham mais de 400 páginas sobre Lennon dos anos de 71 e 72”, conta hoje Wiener, autor do livro Gimme Some Truth – The John Lennon FBI Files. “Destes papéis, eles diziam que dois terços eram arquivos de segurança nacional e não poderiam ser liberados.”
Perseguido e obcecado por causas políticas que descobria diariamente, Lennon deixou a música em segundo plano. A pá de cal no Lennon político aconteceu no dia da vitória de Richard Nixon na eleição de 1972. Numa festa, completamente bêbado, John pegou uma garota pela mãoe levou-a para um quarto, constrangendo todos os presentes e principalmente Yoko, que teve de, calada, ouvir os gemidos do outro cômodo. Começariam então os jogos mentais que abalariam de vez a relação do casal… Mas essa é outra história.
Pense na quantidade de músicas que existiam no começo do século vinte e compare com o número atual. Mesmo que você não tenha a menor idéia sobre números, é óbvio deduzir que a curva de ascensão é quase um salto em noventa graus, que, a cada década, ganha um impulso ainda maior que na anterior. É uma outra forma de dizer que, além dos compositores existentes terem passado a produzir mais, o próprio número de autores de canções aumentou substancialmente.
Ou ainda: você está cada vez mais cercado por novos artistas de música. Mais: estamos, todos, lentamente, nos tornando isso. Todos nós. Praticamente a cada década passada, um novo avanço tecnológico facilita o processo de realização de artes em geral e de música em específico. Desde o advento do fonógrafo e da fotografia, cada período de dez, quinze anos, é uma machadada a mais na Torre de Marfim que antes isolava o Artista (antes, maiúsculo) de seu público, pouco a pouco mais artista (minúsculo, comum).
Se formos falar das artes em geral, os exemplos são inegáveis – não apenas mais pessoas começaram a produzir arte como mais tipos de artes nasceram. A fotografia e o cinema, evidente mas bom lembrar, têm pouco mais de um século de idade, e mesmo assim são dois de nossos principais pilares culturais. As seis artes gregas, clássicas, as Belas Artes (a saber, arquitetura, dança, escultura, declamação [literatura e teatro, num item só], música e pintura), foram destrinchadas em infinitas manifestações, de conceitos amplos e vagos o suficiente para incluir uma fauna massiva de novos artistas. Pense em “performance”, “vídeo”, “instalação”, “moda” e “projeto” e comece a imaginar os milhares de conhecidos seus que, séculos anteriores, seriam mortos, aprisionados ou postos no hospício por fazerem o que fazem e gostam tanto.
Mas seu sarcástico riso no canto da boca não pode deixar de excluir o nosso bom e velho rock’n’roll – e num âmbito bem genérico, pra incluir Britney Spears, Charlie Parker e Raul Seixas numa mesma sentença, sem crise nem culpa. “Rock’n’roll” ou, fora da música, “cultura pop” foi o que possibilitou que estes antigos foras-da-lei serem tratados com seriedade em nosso tempo. Num século dominado pelo fantasma do capitalismo, se deu melhor qm soube vender sua alma – não ao Diabo, mas a quem quisesse comprar. “Pop”, essa onomatopéia viral, é cultura popular enquanto produto – fazer o que se gosta e se sabe e ser remunerado por isso. É claro que há distorções desta alternativa ao “emprego” – esta moeda inventada pela Revolução Industrial. Mas –espectro ainda maior, pra falar de pop – pense em pessoas como Caetano Veloso, Woody Allen, Pedro Juan Gutiérrez e Millôr Fernandes (exemplos aleatórios, há, literalmente, milhares de pessoas que podem ser citadas) e veja se eles não vivem uma vida tranqüila e sossegada, com problemas ocasionais e desafios escolhidos (fora os aspirantes a tais postos, clones de Britney, sub-Birds e filhos cósmicos de Raul). Foi o pop, a forma como a cultura de massas dominou o século passado, que permitiu isso.
E que segue a permitir. De volta ao nosso rock’n’roll, então, mais ainda. Se cinema, literatura e artes plásticas pedem um mínimo de técnica para o leigo se tornar profissional, o rock’n’roll não pede nada. Qualquer troglodita, nerd, imbecil ou carola pode fazer rock – e cada geração pede menos técnica: primeiro o zunido das guitarras, depois o riscado dos toca-discos, agora beats de cliques de mouse. O rock (a música, a arte) torna-se cada vez mais acessível e perde o glamour, que é justamente o que emperra o progresso da cultura. Afinal de contas, já diz o adágio popular que, a variedade é o tempero da vida. E veja se não é isso que está acontecendo?
* Esse título horível não é meu. E esse texto saiu na Pense Conosco, aquela seção nova da Bizz, deste mês (Axl na capa)
Antes de abandonar os palcos, os Beatles começaram a experimentar em estúdio, guiados por música erudita, pop norte-americano, aventuras técnicas e drogas psicodélicas, continuando à frente de seu tempo com o fundamental Revolver
Paul McCartney incentivando os Beatles a fazerem pequenos trechos de sons superpostos, inspirados em John Cage e Karlheinz Stockhausen. John Lennon querendo soar como o Dalai Lama no alto do Himalaia ao cantar letras inspiradas na versão do Dr. Timothy Leary para O Livro Tibetano dos Mortos. O dedo oriental de George Harrison em uma canção sem mudanças de acordes. A bateria frouxa e hipnótica de Ringo Starr, mais tarde ressuscitada por moderninhos como Beck (“New Pollution”) e Chemical Brothers (“Setting Sun”). O produtor George Martin obrigando funcionários dos estúdios Abbey Road a sincronizarem gravadores em colagens aleatórias de som. O técnico Ken Townshend inventando os vocais ADT (Artificial Double Tracking) e o engenheiro de som Geoff Emerick metendo a voz de Lennon numa caixa Leslie dentro de um órgão Hammond. E isso tudo no primeiro dia de gravação do sétimo disco dos Beatles, a quarta-feira dia 6 de abril de 1966, para uma única canção. A música se tornaria “Tomorrow Never Knows”, mas ali, no início do álbum, o grupo assinalava a faixa como o começo de uma nova fase, batizando-a sem modéstia de “Mark I”.
Fato – afinal, um ano antes estavam gravando a popzinha “You’re Going to Lose that Girl” e dois anos antes era a vez do rock “A Hard Day’s Night”. A distância era muito grande. “Tomorrow Never Knows” era o início de uma era de experimentação na música popular que iria explodir na renascença psicodélica do ano seguinte, transformando o horizontes da cultura pop no caleidoscópio de referência que conhecemos hoje. Com Revolver, os Beatles entravam numa escalada artística que iria dar em obras-primas como Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, o Álbum Branco e Abbey Road, finalmente atingindo o topo do mundo pop. Até então, com o jovem e moderno Rubber Soul, eram uma banda pop exercitando todo seu potencial. De 1966 em diante, passariam a explorar as novas fronteiras da arte contemporânea, mas sem perder o senso de perfeição que haviam mirado no álbum anterior.
De repente, descobriam as vantagens da manipulação sonora depois de gravada. “Revolver estava sendo conhecido como o disco em que os Beatles diziam: ‘OK, está ótimo, agora vamos inverter isto ou acelerar ou arrastar”, lembra Emerick no livro The Complete Beatles Recording Sessions, “eles tentaram tudo de trás pra frente, só pra ver como soava”. “Quando experimentamos o som de trás pra frente, eles passaram a inverter tudo”, concorda George Martin em seu Summer of Love – The Making of Sgt. Pepper. As inovações técnicas iam além da distorção, aproximando a microfonação o máximo possível: microfones dentro de instrumentos de sopro, grudados em violoncelos, colados na bateria. “Eles ouviam um monte de discos americanos e ficavam perguntando: ‘Como podemos ter este som?’”, recorda o produtor.
Mas enquanto a técnica entusiasmava o lado juvenil de George, Geoff e Ken, o grupo estava sendo ousado mesmo nas novas composições. As drogas exerciam um papel fundamental na nova fase do grupo. “Dr. Robert” cantava sobre um médico pronto para levantar o astral de quem quisesse, uma versão musical para Max Jacobson, o farmacêutico-mor da marginália nova-iorquina; “Got to Get You Into My Life” é sobre o entusiasmo de Paul McCartney com fumo (“é o meu primeiro arroubo sobre maconha”, confessa Paul na autobiografia Many Years from Now); assim como a preguiçosa “I’m Only Sleeping”, de Lennon; e as duas faixas que fechavam cada um dos lados do vinil – “She Said She Said” e “Tomorrow Never Knows” – são sobre viagens de ácido: a primeira disfarça um tour lisérgico que Lennon teve com o ator Peter Fonda (vertido em “she” na faixa, para não dar na cara) e a segunda escancara a exploração de realidades induzidas em versos nada discretos (“Desligue sua mente”, “ouça as cores do seu sonho”).
Por outro lado, abriam continuavam entrando em portas musicais abertas nos discos anteriores. “Eleanor Rigby” é a evolução natural de “Yesterday”, com “cordas à Bernard Herrman”, como pediu Paul ao produtor Martin. “Taxman”, “Yellow Submarine” e “I’m Only Sleeping” brincavam com efeitos sonoros e arranjos superpostos. “Love You To” é George Harrison em sua primeira incursão de cabeça à cultura hindu que havia flertado em “Norwegian Wood”. “Here, There and Everywhere” e “For No One” – esta com solo barroco de trompa – transformavam Paul McCartney num jovem Schubert, compondo pequenas sinfonias em vez de baladas de amor. “Good Day Sunshine”, “Got to Get You Into My Life” e “I Want to Tell You” fazem a ponte com o pop norte-americano, enquanto “Dr. Robert” e “And Your Bird Can Sing” ajudavam a country music em sua própria evolução. Os assuntos abordados pelo disco iam da cobrança de impostos a contos infantis, passando por existencialismo, psicodelia, fossa amorosa, amor à vida, paixão latente, crítica social e metáforas diversas.
Poucos meses depois do lançamento do disco (no dia 5 de agosto de 1966), o grupo encerrou definitivamente a primeira fase de sua carreira, ao anunciar que não iria mais tocar ao vivo. A partir daí, o desafio do grupo seria sintetizar os anseios e dúvidas de uma geração – e assim fizeram ao serem os primeiros a darem o primeiro passo adiante, até seu fim, em 1970. Revolver encontra o grupo no exato momento da mudança, um sofisticado registro da melhor música pop de 1966 que flagra a mudança de parâmetros de toda uma era. “A mudança toda foi gradual”, conta John Lennon no livrão Anthology, “mas estávamos conscientes que, se havia uma fórmula ou algo do tipo, esta era mover-se para a frente”.
Revolver
1966
Produção: George Martin
A capa do disco já havia sido criada por Robert Freeman (uma colagem em espiral das metades de cima dos rostos dos quatro Beatles repetidas vezes) quando o grupo pediu ao velho amigo Klaus Voorman para recriá-la. Voorman, um dos ‘exis’ (grupo de jovens artistas existencialistas alemães no começo dos anos 60), conheceu o conjunto na época em que eles tocavam em Hamburgo, antes de gravarem o primeiro disco. A capa proposta por Klaus agradou em cheio: “Gostamos da forma que ele nos colocava como pequenas coisas saindo do ouvido das pessoas. E ele nos conhecia o suficiente para nos capturar de uma forma bonita em seus desenhos”, lembra Paul, “nos sentimos elogiados”. Na colagem da capa, Voorman usou duas fotos (uma de John e outra de George) que já haviam saído na contracapa do disco anterior, Rubber Soul. – As faixas “Paperback Writer” e “Rain” foram gravadas nas mesmas sessões de Revolver, mas serviram de aperitivo ao público para o novo álbum, sendo lançadas como um compacto no primeiro semestre de 1966 (em maio nos EUA e em junho na Inglaterra). “Rain” trazia a primeira gravação invertida da história da música gravada à luz do dia. “Fomos nós os primeiros”, resmungava John Lennon, “não foi nenhum Jimi Hendrix ou o fuckin’ The Who”.