Odair José e eu

, por Alexandre Matias

Mais um da série “textos ressuscitados” – desta vez é a entrevista que fiz com o Odair José para a Bizz da gestão Ricardo Alexandre, em 2006. Na foto abaixo, tirada pelo Cosko, que acompanhou o papo, ainda estou usando a tala na mão direita, que não estava se mexendo depois de um acidente… Que época.

Bizz entrevista Odair José

Unindo folk music com a moral do cais do porto, ele partiu de uma fazenda para a fama “cult” no terceiro milênio. No meio do percurso, foi um herói da música realmente popular brasileira

Música de baixa qualidade. Superstar. Artista de mau gosto. Sexo, drogas e rock’n’roll. Idolatria juvenil. Canções de amor. Sucesso popular. Hormônios em ebulição. Decifrar um artista pop é como lapidar uma pedra preciosa em que cada polimento revela uma nova superfície. Nelas, é possível ver tudo, céu e inferno numa mesma camada, refletindo as ansiedades de quem vê. Como Elvis, Beatles, Roberto Carlos, James Brown, Ramones, RPM, Madonna, Metallica, Mamonas Assassinas e Eminem, Odair José também atraiu amor e ódio em sua longa caminhada – cravando sucessos no imaginário popular que até hoje nos ajudam a refletir sobre a natureza de nossos preconceitos.

Mesmo que longe do dia-a-dia dos milhões de brasileiros que até hoje lembram de suas canções, Odair nunca parou de lançar discos e fazer shows. Seu recém-lançado 31º álbum, Só Pode Ser Amor (Deckdisc), no entanto, sai num momento mais do que propício para sua carreira, quando novas bandas o reverenciam nominalmente – seja nos shows em que os Los Hermanos tocam “Vou Tirar Você Deste Lugar”, na alma das composições dos cearenses Fernando Catatau (do Cidadão Instigado) e Karine Alexandrino ou no disco-tributo lançado no final de 2005.

À sombra de Roberto Carlos como os Rolling Stones acompanhavam os Beatles, Odair sempre optou pelo incerto musical, ao questionar, no imperativo, hábitos e costumes (sexuais, religiosos, conjugais) que eram endossados pelo Rei. Assim, liderou a lenta transformação do pudor brasileiro nos anos 70 (acompanhado pelas pornochanchadas, pelo Pasquim e por Leila Diniz), ao mesmo tempo em que dominava as ondas do rádio e lhe emputavam o título de cantor das empregadas domésticas como se isso fosse um demérito.

Encontrá-lo para uma conversa na varanda de sua casa em Cotia, interior de São Paulo, no entanto, não o encaixa em quaisquer um dos rótulos que forem sugeridos. Sem mágoa nem arrogância, com aquela feição anos 70 que lhe aproxima fisicamente de Zico e Oreste Quércia, e os mesmos olhar distante, sorriso apagado, rosto sofrido e tristeza constante que cantou em “Assim Sou Eu”, eis (mais) um brasileiro médio do interior do fim do mundo que acreditou no próprio sonho e – ao contrário de seus conterrâneos – pode realizá-lo.

Qual é a sua primeira memória musical?
Meu pai mexia com terra, na região de Morrinhos (interior de Goiás), perto de Caldas Novas e chegava a época da colheita, ele fazia uma confraternização. Foi quando eu vi um trio de dois violeiros e um sanfoneiro. Achei legal e pedi um violão Natal à minha mãe de. Mas meu pai me deu um cavaquinho, porque pelo meu tamanho, era mais adequado (ri).
Tinha um cidadão que tocava violão de sete cordas na banda da cidade, aquelas bandas de coreto, e descia todo dia de bicicleta pra trabalhar na frente da minha casa. E eu ficava esperando ele passar, porque ele me ensinava todo dia um acorde, E assim, eu comecei, até que me pai me deu um violão.
Naquela época, eu tocava boleros, modas de viola, música italiana, americana. Depois mudei pra capital, Goiânia, quando tinha doze anos, quando apareceram os Beatles. Eu cantava todas as músicas dos Beatles, em serenatas, no colégio. Eu tinha uma bandinha chamada Monft.

Como?
Monft, era as iniciais da gente: Marcelo, Odair, Nadir, Fayed e Tuca… Depois fui convidado pra ser crooner de banda de baile, os Apaches, que era uma banda famosa, em Goiânia. Cantava Beatles, Animals… Mandava qualquer inglês, mas cantava (ri). Foi quando eu comecei a compor. Depois fui tocar no conjunto do maestro Marquinhos, que era bem mais profissional. Ele tinha um programa na televisão e eu fazia a parte considerada jovem, que era o que os cantores dele não gostavam de cantar. Foi quando eu conheci o Roberto Carlos, num show que ele foi fazer em Goiânia, em 65, com o RC-3. O conjunto do Marquinhos abriu o show. Fui conversar com o Roberto, falei que tinha umas músicas e o ele falou, “ah, vai pro Rio, aqui não tem condições…”. E nesse “ah vai pro Rio”, eu fui pro Rio.

Com quantos anos?
Nem 18. Saí fugido, na calada da noite, não falei pra ninguém. E eu fui na ilusão de encontrar o Roberto. Eu fiquei um ano sem dar notícias, você imagina a cabeça da minha mãe…

Fugiu de casa para ser músico?
E com pouco dinheiro. Fiquei num hotel na Praça Tiradentes, e o dinheiro deu pra ficar dez dias, depois eu fui pra rua, dormi na escadaria do Teatro Municipal, em praia, no último toalete do banheiro do Aeroporto Santos Dumont, era espaçoso. Mas eu não acredito na sorte nem em milagre, eu acredito no trabalho – por isso, eu achava que fosse conseguir rápido e consegui, porque o meu primeiro disco eu gravei em 1970, e eu cheguei no Rio em 67, 68.

Como você começou?
Eu ficava no pé dos caras. Ia pras gravadoras e ficava na porta, esperando o cara sair. E igual a mim, tinha umas cem pessoas querendo falar com o mesmo cara ao mesmo tempo. Por isso eu digo que consegui fácil, porqur em dois anos eu gravei um disco, e já fiz sucesso com esse disco.

Antes do sucesso, o que você fazia?
Eu tocava à noite naqueles, com todo respeito, puteirinhos da Praça Mauá, toquei em todos eles. E nesses lugares você tem que tocar de tudo, pra agradar quem tá lá dentro. Tocava Ataulfo Alves, Lupiscínio Rodrigues, o próprio Roberto, alguma coisa de música italiana – era bom porque a dicção era fácil, dava pra enganar melhor. Mas eu nunca me achei um cantor, eu me ajeitava dentro das notas. E de dia eu corria atrás dos caras. E eu fiquei assim um ano no pé do Rossini Pinto, que era um cara que em tudo quanto era disco que saía tinha música dele, do bolero ao rock. Ele fazia versões, compunha coisas próprias, compunha pro Roberto. No que ele prestou atenção nas minhas músicas, ele, que também era produtor de discos, me levou pra gravar, na CBS em 1970, uma música chamada “Minhas Coisas”.

Que fez sucesso.
Ela teve a felicidade de entrar num LP chamado As 14 Mais, que era um LP com um monte de gente famosa, que já saía vendendo horrores, porque tinha Roberto Carlos, Jerry Adriani, Renato Barros, Wanderléia… Aquele pessoal da CBS, que se chamam de Jovem Guarda – eu não gosto deste rótulo porque era um programa do Roberto Carlos – estavam todos naquele disco. E a gravadora de vez em quando incluía um cantor novo – e me meteram lá. E eu já saí com um sucesso, porque o cara comprava um Roberto Carlos e me ganhava de presente.

E sua situação melhorou?
Na medida em que eu comecei a tocar, comecei a conhecer as pessoas. Tinha época que eu tocava em três inferninhos daqueles por noite, e assim fui criando um círculo de amizades. Foi quando eu conheci o senhor Ataulfo Alves, que falou que eu podia morar no apartamento dele – que era um apartamento que ele usava para o lazer. “Só não dorme na minha cama”, ele dizia.

Foi quando você gravou seu primeiro LP.
Isso, que teve uma vendagem boa, 10 mil discos. E lancei um segundo LP, fiz uma outra As 14 Mais e o seu Evandro (Ribeiro), que era o presidente da CBS, não gostou. Porque a CBS era esse segmento do Roberto Carlos, com a guitarra, arranjos do Lafayette, o Renato. Aquilo era uma coisa vitoriosa, tanto que era líder de mercado. Eu gravei uma faixa chamada “Vou Morar Com Ela” e usei um pianista negão, o Dom Salvador, e ficou com um quê de jazz. O Rossini, que era o produtor, deixava, ele não tava nem aí. Era uma música ótima, fez sucesso, mas seu Evandro achou que eu tinha suingado muito e não me botou na terceira 14 Mais.
Meu contrato tinha acabado e eles me deram uma oportunidade de fazer um compacto simples, sem LP, sem As 14 Mais e sem aquele apoio da gravadora.

Um vai-ou-racha.
Um “se vira”. Aí eu gravei “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, que vendeu 800 mil compactos de cara.

Conta a história da música.
O Rossini era um cara engraçado, porque ele dava esporro em todo mundo, falava palavrão e era extremamente temperamental. “Porra, eu te dou uma chance e você só fez merda, vem gravar aquelas porras. Vou gravar mais um compacto com você, mas se não acontecer nada, você se fudeu, hein!”. Eu não me preocupava porque eu já era um cara conhecido, já fazia shows, se não fosse ali, seria em outro lugar.
Aí eu saí da CBS, que ficava na Visconde do Rio Branco no Rio, e fui pra casa, na Rua do Riachuelo. E nesse trecho, que dá uns quatro quilômetros, andando pela calçada, eu compus essa música. Eu sempre fiz música assim. Não tem aquelas coisas que o pessoal fala que a música “veio”, isso é maluquice. É que como você é compositor, tá sempre compondo. Eu era jovem, tinha 21 anos, e nessa idade você tá sempre querendo fazer alguma coisa. Cheguei em casa e gravei a música e depois mostrei pro Rossini.
E ele: “Nem pensar! Essa música de puta, não! Tou te dando a última oportunidade e você me vem com essa porra de música de prostituta! Você vê o que o Roberto Carlos faz? Beijo no cinema, deixa a garota no portão, eu te darei o céu! Isso é que é o negócio”. E eu falava: “Bicho, eu quero falar de um amor de um cara por uma prostituta”. E ele: “Não existe isso!”. Resultado: ele me deixou gravar a música e a música aconteceu praticamente sozinha, mesmo sem promoção.

Qual sua expectativa sobre a música?
Eu gostava da música, mas a minha viagem era que o que o Roberto Carlos fazia era dele. Ele já havia conquistado isso. Era muito bom, mas era dele. Eu tinha que achar meu próprio caminho. Conversava sobre isso muito com o Raul, o Raulzito, que na época era produtor e ele concordava. “Você não pode ficar na cola de ninguém, senão você não tem uma identidade”. O Raul inclusive, os fãs dele não sabem, tem uma música dele no meu primeiro LP, chamada “Tudo Acabado”, com ele tocando violão e guitarra. Mas voltando, então eucomecei a pensar na música como uma reportagem, me via como um repórter musical. Pegava o que acontece na vida das pessoas e metia na música.
Aí quando o disco saiu, me disseram: “Olha, você se vira, porque você não vai ser trabalhado”. Foi quando apareceu o Paulo César, que vendia shows na época e depois foi empresário do Evaldo Braga e inclusive morreu no mesmo acidente que matou o Evaldo. Ele me disse: “Bicho, já que ninguém trabalha seu disco, vamos fazer uns shows aí. Eu tenho uma Kombi, a gente bota umas cornetas pra divulgar, ninguém tá ganhando dinheiro mesmo…”.
Aí nós saímos pelo estado do Rio, Espírito Santo, sul da Bahia… Isso durou uns três meses e conforme a gente ia andando, percebia que a música ia acontecendo. Você ligava o rádio e fatalmente achava a música tocando. Os shows eram marcados em cima da hora e no começo a gente saía falando: “Hoje, não percam! Evitem filas de última hora!”, tudo cascata, mas depois de um mês a gente foi percebendo que aquela porra tava enchendo mesmo… E a CBS foi me achar em Ilhéus! Me botaram no avião pra ir correndo pro Rio porque o disco já era o mais vendido e o mais tocado no Brasil. E aí eu saí da CBS.

Eles nem fizeram uma proposta?
No dia seguinte que eu voltei, o seu Evandro já tinha um disco montado pra mim: “Olha, tem duas músicas do Reginaldo Rossi, três do Renato Barros, não-sei-quantas do Ed Wilson”, mas eu já tinha um disco montado na cabeça, um disco chamado Assim Sou Eu, que foi o primeiro disco que eu fiz na Polydor. Eu falei: “Olha seu Evandro, eu já tenho um disco pronto na cabeça, tenho a idéia da capa. Eu quero gravar com o Zé Roberto Bertrami, o tecladista da Elis Regina. Eu não quero tocar com o Lafayette nem com a banda do Renato. Não é nada contra eles, eles são ótimos, mas eles já fazem uma coisa que já é deles, eu quero fazer uma coisa que é minha. Eu já tenho as minhas músicas. Eu quero o Waltel Branco fazendo guitarra e arranjos. Queria o Luís Cláudio Ramos, que era irmão daquele cantor Carlos José e depois foi tocar com o Chico Buarque, tocando os violões. Queria tocar com o Mamão na bateria, o Bertrami nos teclados e o Alexandre (Malheiros) no baixo – foi a primeira vez que esses três caras, que depois viraram o Azymuth, tocaram juntos foi num disco meu; eles já se conheciam, mas nunca tinham tocado juntos”. Quem fazia os violões era o Dundum, o Hyldon, da “Casinha de Sapê”, que era muito meu amigo.
Aí o seu Evandro esqueceu que meu contrato tinha acabado e me ameaçou: “Eu vou fazer com você como eu fiz com o Sérgio Murilo, vou botar seu contrato na gaveta e você tá fudido”. Aí eu falei: “meu contrato acabou, seu Evandro (rindo). Eu já estou negociando com o André Midani e o Jairo Pires da Polydor…”.
E fui pra lá. Falei: “Eu venho, mas quero fazer esse disco. A capa assim, preta, com essas músicas e esses músicos”. Quando eu falei dos músicos eu fui até questionado: “Vem cá, esse cara toca com a Elis Regina, o outro com o Chico Buarque, você não acha que não-sei-o-quê?”. Eu falei que eles vão tocar o meu trabalho dormindo, porque o meu trabalho é simplérrimo.

Mas que concepção de artista que você buscava nessa época?
Era um Neil Diamond, Crosby Stills & Nash, Cat Stevens, Neil Young… Queria que as minhas canções tivessem aquela sonoridade. Até mesmo porque eu não tinha aquela formação musical deles. Claro que eu não virei o Cat Stevens, mas pelo menos saiu daquilo de sempre. Porque na CBS, eles usavam muita guitarra, aquela coisa do Renato Barros, de imitar os Beatles. Eu queria violões. Eu vi o Ritchie Havens no Festival da Canção, aquele negão batendo no violão, com o dedo por cima, eu queria aquilo pro meu disco.

E falando das letras, você pensou em colocar sexo no disco de cara?
Não, não foi proposital. O Rossini me falava que o Roberto Carlos era o que era porque ele não ficava falando de puta, era mais poético. “E você vem com esse negócio de cama. Tem que pensar na família”, ele tinha dessas. Eu comentava com o Raul e ele torcia a cara: “Sei não, hein…”.
Mas eu já estava vendo que os namoros não paravam no portão. As pessoas já estavam fazendo sexo mesmo, dentro do carro, atrás do muro, na praia. O sexo estava rolando. Não vou dizer que todos os casais estavam transando antes do casamento, mas 50% estavam. As pessoas tavam indo além dos beijos e do pegar na mão.
E eu comecei a falar disso nas minhas músicas. Esse era o amor que eu via, não sei se por eu ter vivido tocando nas boates, mas a coisa era mais na cama, do tesão, do desejo, do transar. E das separações que deixavam a dor mesmo. Não era aquele negócio de brigar e rasgar a fotografia e depois passar sem olhar na cara, não. Era aquela coisa do cara encher a cara três dias, da dor-de-cotovelo, a namorada ir dormir com outro… O Lupiscínio Rodrigues e o Danilo Moreira já falavam disso, mas para as pessoas, eles falavam de uma forma madura. Eu era um cantor jovem, então aquilo era um absurdo – mas também era novo.

Até que chegou a incomodar a censura.
É, mas não era essa coisa de música de protesto, de resistência, não… O negócio é que eu sempre falei o que penso, não sou estudado. Eu nunca deixei de falar o que eu penso, você pode ser o Papa que eu vou dizer, tou cagando e andando.
Agora, quando a censura começou a vetar o meu trabalho, eu ia fazer um disco e quem decidia meu repertório eram eles. Era como se a censura fosse um co-produtor (ri). Eu tive várias músicas que não foram lançadas.
Em 74, eu tinha uma canção chamada “A Primeira Noite de um Homem”, que era sobre a primeira vez que o cara vai lá comer uma mulher – ele nunca teve aquilo, já imaginou, mas lá mesmo ele nunca foi. Eu conto isso de uma forma poética, esse nervosismo, a emoção, a preocupação em agradar, o encontro dos corpos. A censura brecou a música, que era a faixa 1 do disco. Meus discos eram aguardados pelo mercado, até o próprio André Midani falou que a Philips passou a CBS e se tornou líder de mercado quando eu, o Tim Maia e o Evaldo Braga fomos pra lá, porque na época anterior, com os nossos amigos Chico, Gil, Caetano, eles estavam em décimo lugar. E o diretor pedindo pra eu desistir da música, pra lançar o disco logo, mas eu queria saber o que podia ser mudado. Até que um senhor chamado Aderbal Guimarães, que vivia dentro dos estúdios, me falou: “Se você quiser, eu conheço alguém que pode ajudar a liberar”. Então vamos, não custava nada…
Fomos a Brasília e quando fui chegando, percebi quem era e falei: “Pra onde você tá me levando?”, e o Guimarães falando “cala a boca”. Era o Golbery Couto e Silva. Numa sala grande, meio escura, uma mesa acesa, lâmpadas que só iluminam em cima da mesa e parece que o Aderbal já tinha conversado antes com ele. O cara não me olhava, não. Só que o Guimarães ficava só naquelas “e a dona Regina, como vai?”, aí eu perguntei: “o que eu queria saber, general, era o que pode ser mudado nessa letra porque eu estou com um disco parado”. Já não devia ir com a minha cara por causa da música da pílula e por causa de algumas coisas que eu tinha dito pra censura no Rio. Aí ele falou, sem olhar na minha cara: “Aqui não tem o que ser mudado, porque o que está probido é a idéia”.
O disco saiu sem a música.

O Assim Sou Eu já teve algum problema desta natureza?
Não com a censura, mas o grande sucesso deste disco era “Esta Noite Você Vai Ter Que Ser Minha”, e achavam um absurdo. A minha sogra mesmo, antes de ser minha sogra, dizia que quando eu tocava no rádio, ela desligava, porque achava que eu era pornográfico, pra você ver.

É o seu disco favorito?
Não, mas é um dos bons. Eu tava num momento muito bom. O disco que eu fiz em seguida, chamado só Odair José, talvez não tenha sido o melhor, mas foi meu disco que mais fez sucesso. Você pega as faixas e parece uma coletânea: tem a “Pílula”, tem a música da empregada, tem “Cadê Você?”, “Que Saudade”. De doze faixas, dez fizeram sucesso. Foi meu disco que mais vendeu, quase um milhão em um ano.

Como foi a sua reação ao sucesso?
Eu sou sempre do mesmo jeito. Se eu vender um milhão de cópias, eu vou estar falando com você desse jeito; se eu não vender nada, vou continuar falando do mesmo jeito. É apenas um trabalho que deu certo e outro que não deu. Não fico frustrado, nem me deslumbro. Mas sempre procuro saber o que deu certo e o que não deu. Isso aqui é só um trabalho…

Isso é fácil falar hoje, depois de vários altos e baixos, mas como foi na época?
Entre 73 e 74, não dava. Eu fiz vários shows que ficava mais gente de fora do que de dentro, porque não cabia. Teve uma época em que fizeram um quadro no Fantástico que perguntava o que valia mais, prestígio ou popularidade? E me colocaram do lado do Milton Nascimento – eu ganhei disparado, porque as pessoas comiam e dormiam Odair José. Foi bom? Foi pra caralho. Incomodava? Não. Nunca mandei fazer filas de segurança, a não ser quando eu raspei a cabeça.
Isso aconteceu quando o Wagner Montes, que era muito meu amigo, me disse que eu andava muito agitado e que era pra eu procurar um tal guru meio zen, que estava no Rio. E eu fui lá e ele me aconselhou que eu raspasse a cabeça por uma questão de limpeza de aura. E na época eu tinha uma cabeleira. Aí eu disse: “Bicho, eu não tenho como raspar a cabeça, não, eu faço show todo dia, o Brasil inteiro me conhece. Tenho um contrato com a televisão, se eu aparecer careca, o Boni manda me matar”. Aí o Wagner, cheio de idéias, me levou num lugar em que eles fizeram umas perucas iguais ao meu cabelo, cinco perucas.
E o Pinga, Zé Carlos Mendonça que era um empresário de shows, tinha me contratado pra fazer vinte shows e eu ia com a peruca. E no primeiro show já tinha um monte de gente, e eu disse: “Pinga, isso não vai dar certo, os caras vão arrancar a peruca”. E ele: “Não, a gente faz um corredor com a polícia”. Mas não adiantou nada, arrancaram a peruca. Foi a única vez que eu usei segurança.

E a parte do deslumbre com o sucesso, dinheiro, drogas, mulheres, como você lidou com isso?
Eu ganhei muito dinheiro e gastei muito dinheiro à toa. Se eu tivesse guardado a metade do meu dinheiro, hoje eu estaria quaquilinário. Mas não me arrependo. Às vezes faz falta, mas eu não virei músico pra ganhar dinheiro. Se eu tivesse trabalhado a vida inteira no barzinho da Praça Mauá, seria feliz do mesmo jeito.
Sobre mulheres, eu sempre curti minhas namoradas, mas eu sempre fui homem de uma mulher só. “Vamos comer todas” nunca fez o meu gênero. Eu não sei viver sem mulher. Até me questiono: “Será que quando eu morrer vai ter mulher pra onde eu vou?” Porque se não tiver, vai ser uma merda. Porque tem umas partes da Bíblia que Jesus diz que lá em cima, ou lá embaixo, pra onde a gente vai, não tem disso. Porque chega uma hora que um cara questiona na Bíblia e Jesus diz: “Não, não é assim”. Então, tá mal.
Drogas: experimentei maconha e cocaína, mas não fazia a minha cabeça. O baseado me deixava muito zen, até demais. Eu já sou meio marcha lenta, aquilo me deixava mais lento. A cocaína me deixava três dias com o olho arregalado, também não funciona. A minha droga sempre foi a cachaça. Não a cachaça mesmo, mas um uísque, sempre gostei de uísque, e ultimamente tenho gostado de um bom vinho. Até tenho tomado cerveja, porque de vez em quando faz um calor danado e uma cervejinha cai bem.

Você sempre foi rotulado como um artista cafona Como você lidava com a questão do mau gosto?
Eu não tinha essa preocupação. Eu fazia o que eu sabia fazer e e estava dando certo. Em 73, eu era o cara que mais vendia discos no país – e fazendo isto. Eu tinha um contrato com a Globo, em que durou dois anos, que eu tinha que aparecer na televisão quatro vezes por mês. E eu fazia sucesso com aquilo, por isso não existia – como até hoje não existe –, essa preocupação se aquilo é de mau gosto ou não. Eu sempre procuro fazer o melhor, dentro daquilo que eu sei fazer.
Eu compus umas 400 músicas, só as gravadas por mim são umas 350. Dessas, 150 são muito ruins. Mas entre as que sobraram, tem umas muito boas. Até umas que não fizeram sucesso.

Mas essa pecha de cafona te incomodava?
Gosto é uma coisa de cada um. Mas eu nunca tive, meu irmão, nunca tive mágoa, nem só na minha carreira, nem na minha vida. Eu sempre li todos os comentários ao meu trabalho, nunca me magoei. Eu nunca li por esse lado. O cara pode até meter o pau no meu trabalho, é um direito dele.
Agora mesmo, na Folha de S. Paulo, o Evangelista compara o tributo que fizeram pra mim com o meu disco novo, dizendo que meu disco novo não teria novidade, que é aquilo que as pessoas esperam do Odair José. A gravadora não gostou, achou que eu fiz mal de mostrar o disco e que ele se colocou contra o disco. Mas o que ele falou é a mais pura verdade, o disco é o Odair José. E não era isso que eles queriam?
Eu tenho uma música chamada “Cadê Você?”, que ela tem três acordes, que parece o “Parabéns a Você”, de tão simples, ela não tem nada. Mas só ela, cantada por mim ou por outros artistas, já vendeu mais de sete milhões de discos. Agora, vai fazer uma música dessas? Se fosse fácil, eu fazia mil. Fazer uma música cheia de acordes, de coisinhas pra lá e pra cá, é muito mais fácil de fazer. Mas faz um “Mamãe Eu Quero” por dia. Não faz…
Outro dia eu tava assistindo TV e passou uma entrevista com o Carlos Lyra e ele falou uma coisa tão fraca: “Você sabe que nós, o pessoal da bossa nova, éramos rapazes de classe média alta, pessoas bem informadas, nós fazíamos música pra gente mesmo. Não íamos tocar na Rádio Nacional, onde tinha o Francisco Alves, a Ângela Maria. O nosso negócio era mais intelectual, era pra Ipanema”. O cara é um babaca! Porque todos eles eram cópias do João Gilberto, que veio lá de Juazeiro da Bahia, nunca foi intelectual e não morava em Ipanema…

E queria tocar no rádio.
Esse cara é tão idiota e eu não sabia. O Chico Buarque não fala desse jeito, o Caetano Veloso também não pensa dessa maneira. Quer dizer, gente babaca tem em qualquer segmento musical.

Você chegou a ter outras controvérsias, depois do sucesso?
Tem um disco meu, depois do Lembranças, que chama só Odair. Esse disco tem uma música que se chama “Na Minha Opinião”, que fez muito sucesso na época, que fala que pra você estar com uma pessoa você não precisa ser casado no papel. Eu fui até excomungado pela Igreja Católica, o João Gordo que me lembrou no programa dele: “Pô, que legal, esse cara foi excomungado! Que que tu fez? Eu faço um monte de merda e nunca fui”. Esse disco também tem uma música chamada “Viagem” que fala de um baseado.
Foi quando eu fiz o disco O Filho de José e Maria e todo mundo disse que eu tinha ficado doido. Eu escrevi 24 canções que, na ordem, cada uma fala de uma fase da pessoa: a primeira é quando a pessoa nasce e vai até a última que é quando o cara morre, ou se entendeu. Disseram que era uma ópra-rock, mas eu nem sei o que é isso. A igreja não gostou, porque achavam que eu tava falando Jesus Cristo – e tem uma música que o cara fica doidão, outra que ele não sabe se é bicha ou macho. Mas esse disco não ficou nem 50% do que eu queria.
Era um disco pra ser tocado em teatro, não era pra tocar num clube, pro cara ouvir enchendo a cara de cachaça, nem pra tocar numa praça, com uma mulher pendurada no pescoço. Fui trabalhar com o Guilherme Araújo, que era empresário de teatro. E vieram perguntar se eu não gostava do que eu fazia, se eu tinha vergonha de tocar a “Pílula”, que bobagem. Esse disco não foi vitorioso comercialmente, mas é um disco muito bem feito. E eu queria fazer um disco duplo, mas a Polygram não queria lançar, então fui procurar outra gravadora. Fui pra BMG mas quando cheguei lá disseram pra não fazer duplo.

De onde você tirou inspiração pra fazer um disco desses?
Duas coisas. Primeiro, o som: eu achava o máximo o som das guitarras daquela época, do pop do Joe Walsh, aquele disco ao vivo do Peter Frampton, aquela guitarra emborrachada, só ele e três caras de apoio e vendeu vinte milhões de álbuns. Então a idéia inicial era eu ter uma banda como se fosse de garagem. Eu montei essa banda, com uns amigos. Na época, eu tava muito bem de vida, tava solteiro, não tinha compromisso com nada, passava o dia na praia do Pepino sem fazer nada e pensei, “vou fazer uma banda” e fiz. A gente ensaiava lá no Vidigal. Quando eu fui gravar, o Durval Ferreira, aquele da bossa nova, começou a por defeito nos músicos: “Esses caras não tocam porra nenhuma!”. Mas a intenção era aquilo mesmo, tipo nos Rolling Stones, que aquele cara não é o melhor baterista, mas pra aquilo ali era ele mesmo!
Depois, é a idéia do tema. Eu tava no Rio e fiquei chateado com uma situação e esse senhor, o Aderbal, que me levou pra falar com o Golbery, veio me perguntar o que eu tinha. Eu expliquei e perguntei o que eu podia fazer? Eu perguntei e ele saiu da mesa. Pensei: “Qualé a desse velho? Eu pergunto uma coisa pra ele e ele sai? Deve estar ficando esclerosado”. Deu uma meia hora e ele aparece com um livro na mão. “Você me perguntou uma coisa que eu não posso responder, mas esse cara pode”. E me deu O Profeta, do Kalil Gibran. Eu comprei e li tudo dele, achava o Kalil Gibran o máximo. E foi dali que eu resolvi escrever as letras do Filho de José e Maria, eu passava o dia inteiro trancado no quarto sem fazer mais nada, só tomando vinho e lendo aquilo. E aquilo virou uma bola de neve.
E a partir desse disco, as pessoas começaram a fazer questionamentos sobre a minha competência pra vender discos, mas foi até legal, porque você ter a obrigação de todo disco ter de vender é uma bosta. Até porque você não consegue isso a vida inteira. E se você analisar, essa coisa de fazer sucesso, fazendo músicas direto, é um ciclo de sete anos. Pode ver, todo mundo, tem raras exceções, só aguentaram sete anos, pode reparar, Beatles mesmo: sete anos.

E os seus sete anos foram com O Filho de Maria e José?
Sim. Depois eu tive um sucesso ou outro. Eu fiz a música-tema do casal Fábio Júnior e Glória Pires na primeira versão da novela Cabocla, chamada “Até Parece Um Sonho”. Aí começou: faz um que vende, faz outro que não vende tanto… Mas esse negócio de fazer disco todo ano é coisa de mercado brasileiro, mas é um compromisso meio babaca. Pode ser bom pra gravadora, porque se o artista tá vendendo, eles têm o que vender. Mas o músico corre o risco de ir pro estúdio e fazer um disco que não tem nada. Eu tenho 31 discos, desses, dez eu não devia ter lançado. Por que é mal gravado? Não, é porque eles não têm nada, nem são em cima do muro porque nem muro tem. Às vezes, é melhor nem fazer. E depois de 36 anos, eu não posso querer lançar um disco todo ano…
Mas eu nunca parei de fazer shows, mesmo porque eu preciso, primeiro por causa do meu sustento, e depois porque se eu fico um mês sem ir pro palco é como se tivesse faltando um pedaço. É uma necessidade orgânica de trabalhar. Todo mês eu faço show, não consigo ficar sem tocar.

Você se vê mais como um trabalhador do que como um artista.
Eu sou um operário da música, sempre fui. Tem gente que grava dois discos, fica rico e compra posto de gasolina, prédio e sai dessa vida de artista. Tem gente que quer ser reconhecido na rua, comer as mulheres, ser famoso. Não tem nada de errado com isso, mas eu não sou assim. Sempre quis essa vida que eu levo, com erros e acertos. Fiz um disco não tão bom há dois anos, errei. Agora tem um trabalho novo, fizeram um tributo, o disco novo tá bom. Eu sempre fui assim, sempre fui feliz assim e sou feliz por ser assim, um homem simples.

“Assim Sou Eu”
Odair José de Araújo, nascido em 16 de agosto de 1948 em uma fazenda no município de Morrinhos (GO), foi um dos cantores mais populares da música brasileira. Capitão de um time de intérpretes que, devido à dramaticidade na interpretação e o apelo visceral às profundas emoções humanas, fez com que se distanciasse da historiografia oficial da MPB, sagrada nos cadernos de cultura dos jornais – resumindo: eram cafonas e populares. Sem o vozeirão de seus pares Agnaldo Timóteo, Nelson Ned e Waldick Soriano, Odair compensava ao abordar temas inusitados e tidos como impróprios à época, e assim emplacou hits nos anos 70 que estão até hoje no imaginário nacional, como “Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)”, “Revista Proibida”, “Eu Chorei (O Parto)”, “Esta Noite Você Vai Ter Que Ser Minha” e “Vou Tirar Você Desse Lugar”.

“Cadê Você?”
Odair José – Odair José (Phonogram/Polydor, 1973)
Como o próprio assinala, “quase uma coletânea”, devido à quantidade de sucessos. De “Deixe Essa Vergonha de Lado” à “Pílula”, passando por “Cadê Você” e “Eu, Você e a Praça”, o disco seguiu a mesma fórmula certeira do anterior, Assim Sou Eu (incluindo o Azymuth como banda de apoio), e Odair José entrou para o seleto time dos brasileiros com mais de um milhão de discos vendidos.

Vou Tirar Você Desse Lugar – Vários (Allegro, 2005)
Mais um tributo que, sem querer, cria um cânone e une gerações a partir de um rótulo suscinto do artista em questão. No caso, “rock romântico”, que une gerações (Paulo Miklos, Picassos Falsos, Zeca Baleiro e Mundo Livre S/A de um lado, Poléxia, Jumbo Elektro, Suíte Super Luxo e Los Pirata do outro), estilos e abordagens. As favoritas de Odair? Pato Fu, Leela (“se fala Líla ou Lilá?”, ele pergunta) e Mombojó.

Eu Não Sou Cachorro, Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar – Paulo César de Araújo (Record, 2002)
Numa obra tão importante para a música brasileira quanto o documentário A Negação do Brasil (de Joel Zito Araújo, sobre racismo) para a TV nacional, Paulo César arma-se de Paulo Sérgio, Benito de Paula e Lindomar Castilho para peitar, um a um, os preconceitos disfarçados de bom gosto da década de 70. Nela, Odair José é um Bob Dylan literalmente dos pobres, que troca a política social pela crônica de costumes pçara fazer sua própria revolução folk.

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