Esperando o sol
Você não acha que os palhaços riem de você?
Somos espíritos de um mesmo deus
Portanto, somos o mesmo
O homem de hoje nega esta simples e bela verdade pela maior parte do tempo
E isto é tristeCapitalistas conformistas e racionalistas
Tiram seus carrões para trabalhar
Vestem-se iguais indo para seu trabalho rotineiro e chato
Recriminando pessoas como eu, que parecem diferentes
Eu sou o espírito de Deus
Você também
TUDO é DEUS
Isto não é maravilhoso?O status quo funciona tão bonitinho com seus uniformes
Mas quando o importante é ajudar as pessoas
Veja como eles fogem
E isto é triste
TristeA desumanidade piora e se torna mais enojante a cada dia que se passa
E quem não é corrupto em termos financeiros, é corrupto em termos morais
Eu sou o espírito de Deus
Você também
TUDO é DEUS
Isto não é maravilhoso?Se você se acalmar e entrar em um estado de paz, poderá ver a beleza simples da vida
E tudo será uma questão se você virá ou não
Eu sou o espírito de Deus
Você também
TUDO é DEUS
Isto não é maravilhoso?Os corruptos moralmente acham que estão dando o golpe no destino
E sequer percebem o que eles vão enfrentar no final
E eles seguem felizes, sem se preocupar com o mundo
Isso é tristeHá pessoas que tentam alcançar Deus das formas mais esquisitas
Mas mesmos os animais mais simples sabem que só há uma forma de estar em Deus
E mesmo que você seja uma pessoa boa, não precisa rezar
Eu sou o espírito de Deus
Você também
TUDO é DEUS
Isto não é maravilhoso?
Calma lá: nem virei poeta hippie, nem fui convertido a nenhuma doutrina oriental ou filosofia holística (nem tenho nada contra nenhum dos três, não me entenda mal). Isso aí é John Lennon – ou ao menos a tradução às pressas de uma interpretação para “I Am the Walrus”, dos Beatles, que eu encontrei na rede. A letra original é um surto dada, em que John empilhou referências cotidianas com o tempero surreal que estava descobrindo na fase elétrica de Dylan. A faixa começa com o mesmo tecladinho evasivo e autista que abria “Strawberry Fields Forever”, só que em vez de decrescente e intimista, vem bufão e autoritário, como um apresentador de circo.
(Um parêntese pra falar deste teclado, marca registrada da psicodelia Lennon. Como as melhores coisas dos Beatles, ele foi inventado de forma quase casual, como um subproduto do andamento das baladas de Phil Spector. Mas diferente da versão de McCartney para o mesmo teclado, que é cheia de referências aos anos 40, pesa as duas mãos no tempo central da música e pode ser ouvido em faixas como “Let it Be”, “Hey Jude” e “The Fool on the Hill”, o de Lennon ganha um aspecto de sonho justamente ao alternar as duas mãos no tempo da música. Ele testou, consciente ou inconscientemente, outras formas deste andamento por todo Sgt. Pepper’s (“Lucy in the Sky with Diamonds”, “Being for the Benefit of Mr. Kite!”, a parte do meio de “A Day in the Life”), mas logo percebeu que não poderia fugir da fórmula mágica posta em prática em “Strawberry Fields” – não custa lembrar que ela foi a primeira música a ser gravada da fase Sgt. Pepper. “I Am the Walrus” seria apenas uma das muitas vezes que o teclado seria revisitado. Outras viriam em “Flying”, “Sexy Sadie”, a parte do refrão de “Happiness is a Warm Gun”, “I’m So Tired”, “Dear Prudence” e “Wild Honey Pie”. O auge deste formato é sublinhado pelo próprio Lennon, que usa a fórmula como base para a música que ele escolheu para ser lembrado, “Imagine”. Mas a influência deste tecladinho psicodelia Lennon pode ser percebida em todo lugar, em gêneros diferentes: nas guitarras góticas de grupos de nü-metal, no andamento teutônico dos electros mais câmera lenta, em boa parte das guitarras mezzo Sabbath das bandas de Seattle (Dust, do Screaming Trees é praticamente um disco em homenagem a este andamento). Até no pop brasileiro é possível encontrar filhos diretos do tecladinho, como “A Sua” da Marisa Monte e “Dois Rios” do Skank)
Gritando mansinho (daquele jeito), Lennon começa uma letra que parece não ter pé nem cabeça:
I am he as you are he as you are me and we are all together
See how they run like pigs from a gun see how they fly
I’m cryingSitting on a cornflake, waiting for the van to come
Corporation t-shirt, stupid bloody tuesday
man you been a naughty boy, you let your face grow long
I am the eggman
They are egmmen
I am the Walrus
Goo goo ga joobMr. City policeman sitting pretty little policemen in a row
See how they fly like lucy in the sky
see how they run
I’m crying, I’m crying
I’m crying, I’m cryingYellow matter custard dripping from a dead dog’s eye
Crabalocker fishwife pornagraphic priestess
Boy, you been a naughty girl you let your knickers down
I am the eggman
They are egmmen
I am the Walrus
Goo goo ga joobSitting in an English garden waiting for the sun
If the sun don’t come you get a tan from standing in the English rain
I am the eggman
They are egmmen
I am the Walrus
Goo goo ga joobExpert texpert choking smokers
Don’t you think the joker laughs at you
ho ho ho
hee hee hee
ha ha ha
See how they smile like pigs in a sty, see how they snied
I’m cryingSemolina pilchards climbing up the Eiffel Tower
Elementary penguin singing hare krishna
Man you should have seen them kicking Edgar Allen Poe
I am the eggman
They are egmmen
I am the Walrus
Goo goo ga joob
Agora compare a letra inicial com a “interpretação” inicial feita pelo sujeito que a publicou online, cujo nome foi apagado pelo tempo. Minha parte favorita é quando ele “traduz” “Goo goo ga joob” para “Isto não é maravilhoso?”. Poderia ter traduzido como “Que loucura” ou como “Iabadabadu”, que daria na mesma – sem brincadeira. Pra “I Am the Walrus” (“Eu sou a Morsa”) virar “Tudo é Deus” é meio brabo, mas dá pra entender pelo contexto. No entanto, nem é preciso saber muito inglês pra ver que o cara forçou a barra pra chegar nesta interpretação.
Forçou mesmo?
Ou será que toda interpretação é uma forçação? Estamos acostumados às versões mais simples, às que nos parecem mais lógicas, mais racionais, mas sabemos que tudo pode ser interpretado de qualquer jeito. Racionalizando, é possível explicar os pedófilos, os satanistas, os nazistas e a América corporativa. Porque a linguagem é traiçoeira, ela separa a essência de qualquer coisa ao criar um símbolo que a represente, fazendo com que o símbolo se torne tão importante quanto a própria essência, substituindo a “qualquer coisa” inicial (“O homem branco fala com a língua partida”, diz um ditado indígena, em referência à língua da serpente e ao duplo sentido da linguagem).
Quando rotulamos o que queremos dizer com palavras, nos limitamos ao significado destas. Que, por sua vez, podem ser interpretadas de diferentes formas, de pontos de vistas díspares, contraditórios e complementares. Em uma simples palavra podem residir diferentes falhas de interpretação. E diferentes acertos. Afinal de contas, se estamos discutindo sobre pontos de vistas, podemos facilmente chegar à conclusão de que não existe um ponto de vista definitivo, Verdadeiro, com letra maiúscula. Ou que, se houver, não diz respeito àquilo que discutimos com palavras.
Parece contraditório, mas o fato é que a linguagem parece atrapalhar a comunicação. Não precisamos de gestos, palavras ou sinais para nos fazermos entender. Nós somos os nossos próprios sinais, a essência do que representamos e nos perdemos em símbolos para nos tentar fazer entender. Mas basta um olhar para dizer tudo. E mesmo que o olhar possa ser entendido como um símbolo, uma representação, há algo por trás do olhar que diz tudo. Um brilho, que tem tanto a ver com epifanias religiosas, psicodélicas ou físicas, como com sentimentos mundanos, como a paixão, o amor entre pais e filhos e com o ar dos animais. Negar este brilho é negar a própria experiência da vida, preferir se ater ao emaranhado burocrático de informações para conseguir algum tipo de destaque social – menosprezando o mesmo como “piegas” ou “perda de tempo”.
Então para que serve toda a trama da vida, suas nuances e diferenças, se o que basta é um mero sentimento de unidade final? Serve, justamente, como escada para chegarmos a esta conclusão – que nunca é completa. Viver a vida é entregar-se à experiência, à novidade, deixando a postura defensiva para trás. Claro que é fácil falar e que algumas destas defesas vamos carregar para o túmulo, de tão grudadas estão em nossa memória genética. Mas se não percebermos que a vida não tem manual de instruções, a possibilidade de nos afogarmos em frustrações torna-se onipresente.
É preciso tentar, ir em frente, ver a vida por outras perspectivas, outros pontos de vista. Não tome o que é certo pelo que os outros dizem – o dogma é só uma das armadilhas que a religião nos força a acreditar. É preciso saber como as coisas são por si só, e se você já teve vontade de fazer algo e não fez, criou um problema a mais desnecessariamente. Como dizem os keyseanos, “a longo prazo, estaremos todos mortos” – só se vive uma vez.
Por isso qual é o problema de uma interpretação de uma música nos levar a este nível de discussão? Descrito, este texto poderia soar idiota, sem objetivo, sem motivo – mas só há um jeito de descobrir, não é? E só a partir daí você deve tirar suas próprias conclusões… Ou você precisa de um lide? Ou da moral da história?
O que nos traz de volta à “I Am the Walrus”, desta vez interpretada por um amigo próximo de Lennon, Pete Shotton. Autor do livro John Lennon in My Life, lançado em 1983, Shotton não era apenas colega dos quatro Beatles nos tempos de Liverpool como continuou sendo um dos principais amigos pessoais de John, até sua morte em 1980. No trecho abaixo, Pete lembra de como Lennon escreveu a canção:
“Certa tarde, enquanto John escolhia os felizardos em uma sacola de correspondência de fãs, ele encontrou, para nosso encanto, uma carta de um estudante da escola de Quarry Bank (escola onde os Beatles estudavam). Após as costumeiras expressões de adoração, o jovem revelou que seu professor de literatura estava tocando músicas dos Beatles na aula, e depois que os garotos tinham sua oportunidade de analisar as letras, o professor dava sua própria interpretação sobre o que os Beatles estariam realmente falando. (Isto, claro, vindo da mesma instituição de ensino cujo diretor resumira os prospectos do jovem Lennon com as palavras: “Este garoto está destinado ao fracasso”).
John e eu caímos na gargalhada com o absurdo da situação. “Pete”, ele me disse, “como era aquela música sobre o ‘Olho do Cachorro Morto’ que cantávamos na época do Quarry Bank?”. Pensei por um instante e a música me veio:
“Yellow matter custard, green slop pie,
All mixed together with a dead dog’s eye,
Slap it on a butty, ten foot thick,
Then wash it all down with a cup of cold sick”(Meleca amarela, poço verde torto
Misturado junto com olho de cachorro morto
Taca no outro, três metros de burrice
Depois limpa com uma xícara de gripe)“Isso!”, disse John. “Fantástico!”. Ele pegou uma caneta e começou a escrever: “Yellow matter custard dripping from a dead dog’s eye….” (“meleca amarela pingando do olho do cachorro morto…”) e assim foi a gênese de ” I Am the Walrus” (a Morsa – walrus – em si se materializou logo depois, praticamente saída de Alice Através do Espelho, de Lewis Carroll). Inspirado pela imagem de um professor de literatura fazendo considerações sobre o simbolismo em Lennon-McCartney, John criou as imagens mais ridículas que pôde imaginar. Ele usou “semolina” (um pudim sem gosto que éramos forçados a comer quando crianças) e “pilchard” (um tipo de peixe que dávamos aos nossos gatos). “Semolina pilchard climbing up the Eiffel Tower…”, cantarolava John, escrevendo com gosto considerável.
Ele virou-se para mim, sorrindo: “Vamos ver o que esses porras vão inventar sobre essa, Pete”.
Goo goo ga joob!
* Este texto foi publicado originalmente no dia 16 de agosto de 2003
Tags: "i am the walrus", beatles, john lennon, psicodelia