Dois obeliscos do piano brasileiro
Sexta-feira passada dois monstros do piano brasileiro se despediram da curta temporada que fizeram juntos na semana de estreia do Sesc Jazz e eu escrevi sobre esse encontro inédito para o Toca UOL.
Dois titãs do piano preto brasileiro se encontram no Sesc Jazz
“Eu não estou dizendo que dois homens pretos estão tocando ou acompanhando no piano em uma gig nos Estados Unidos. Estou falando que dois homens pretos foram a representação do Brasil naquela noite. Eu não sei se isso já aconteceu na história da música brasileira, já?”, queria saber o pianista pernambucano Amaro Freitas, em janeiro deste ano, quando dividiu pela primeira vez o palco com o catedrático do piano Dom Salvador, em uma das noites do Winter Jazzfest, em Nova York, acompanhado de seu sexteto multinacional que o veterano rege a partir da megalópole norte-americana.
O reencontro dos dois aconteceu agora em solo brasileiro, quando a reunião no palco foi anunciada como uma das principais atrações da sexta edição do Sesc Jazz, em São Paulo. Foram três shows seguidos no teatro do Sesc Pompeia, encerrados nesta sexta-feira (17), quando os dois se despediram deixando o público com vontade de ver mais.
Este reencontro faz parte de uma reaproximação do longevo instrumentista — que acaba de completar 87 anos — com seu país. Morando nos EUA desde 1973, Dom Salvador é um monumento vivo ao jazz brasileiro, e duas passagens neste semestre mostraram que ele está felizmente sendo redescoberto e valorizado com a devida importância — e, principalmente, desfrutando desse momento, pois sua vitalidade no palco e nas teclas é ímpar.
Sempre vestido com ternos bem cortados, ele conversa pouco com a plateia — e, quando o faz, costuma brincar e deixar todos à vontade. Percebe-se a fonética do inglês criando um sotaque quase norte-americano em seu português. Mas isso passa longe de sua música, que ecoa o samba jazz forjado nas noites cariocas da década de 1960, quando a cena de instrumentistas que orbitava o Beco das Garrafas, em Copacabana, avançava da leveza da bossa nova rumo a um jazz mais pesado e incisivo, criando uma vertente brasileira do gênero reverenciada em todo o planeta.
Em 2025, o mestre passou duas vezes pelo Brasil neste semestre. Na primeira, em agosto, foi homenageado pelo Cerrado Jazz Festival, em Brasília, e comemorou os 60 anos de seu disco Salvador Trio, com a participação do baixista original Sérgio Barrozo. Depois, veio a São Paulo, em setembro, para participar da abertura da 36ª Bienal de São Paulo, no Parque Ibirapuera, ao lado de integrantes do grupo Abolição, último trabalho que registrou no país antes de mudar-se para o exterior. Ao encabeçar o elenco da primeira semana do Sesc Jazz, ele voltou a dar as mãos ao pianista Amaro Freitas, que conheceu no início do ano.
Freitas, por sua vez, vem se consolidando como um dos principais novos nomes da música brasileira — e não apenas do jazz ou da música instrumental. Seu terceiro disco, Y’Y, lançado no ano passado, espalha a escola do jazz brasileiro por outras cosmogonias, com foco na tradição indígena da região Norte. Ao incorporar outros universos sonoros — mesclando a contemporaneidade do piano preparado a apitos e guizos de povos originários —, ele foge dos rótulos que confinam o jazz a um certo elitismo musical, tornando-o pop, mesmo sem recorrer aos clichês associados a essa categoria.
Ao retomar o encontro que nasceu em Nova York no início do ano, agora num emblemático palco paulistano, o Sesc Jazz reforça a afirmação do próprio Amaro, destacada no início deste texto. A justaposição dessas duas carreiras numa mesma apresentação não apenas reforça a importância de uma genealogia preta na essência do jazz brasileiro, como faz isso em solo pátrio — diferente da apresentação “pra gringo ver”. Em três noites, Amaro Freitas e Dom Salvador mostraram o protagonismo da afrocultura em um ponto central da identidade nacional: a música brasileira.
A noite começou com Dom Salvador recebendo parte de seu sexteto para, aos poucos, aquecer o público. Acompanhado pelo baterista Graciliano Zambonin, o baixista Gili Lopes e a saxofonista e flautista Laura Dryer, o grupo logo recebeu dois convidados ilustres — e igualmente pretos e brasileiros. Primeiro, o percussionista Armando Marçal (Marçalzinho), que, além de já ter tocado com nomes como Pat Metheny, Don Cherry e Tânia Maria, pertence à realeza do samba — é filho de Mestre Marçal (diretor de bateria da Portela) e neto de Armando Marçal, fundador, ao lado de Bide e Ismael Silva, da primeira escola de samba do Brasil, a Deixa Falar. Em seguida, o velho compadre de Abolição, o guitarrista Zé Carlos, que integrou a banda Veneno de Erlon Chaves e tocou com um panteão da música brasileira que vai de Roberto Carlos a Martinho da Vila, passando por Ivan Lins, Emílio Santiago, Ney Matogrosso, Alcione e Chico Buarque.
Juntos, os seis revisitarem clássicos do repertório de Dom Salvador — temas que o acompanham desde os anos 1960 e se tornaram estandartes do jazz brasileiro, como “Tematrio”, “Gafieira” e “Meu Fraco é Café Forte” —, sempre com elegância e ênfase nos solos do pianista, nas intervenções do soberbo guitarrista e na irresistível percussão, conectada ao baterista numa sintonia essencialmente sônica. O público, empolgado, irrompia em aplausos no meio dos temas, como se estivesse num pequeno e esfumaçado clube de jazz. O sexteto transformou o amplo anfiteatro desenhado por Lina Bo Bardi num encontro próximo e aconchegante, fazendo até o desconforto das poltronas de madeira desaparecer.
Após mais de meia hora nessa imersão, Salvador convida Amaro ao palco, abrindo o teto mental da apresentação para contemplar a vastidão do planeta para além do clima de inferninho instrumental. Ao iniciar sua participação com a ampla “Mapinguari (Encantado da Mata)”, ele leva a musicalidade do ambiente noturno e acolhedor a uma contemplação ambient dos sons da Amazônia, conduzindo o sexteto a um transe hipnótico.
A sequência foi a celebração de Naná Vasconcelos com a música “Viva Naná”, não sem antes o próprio Amaro pegar o microfone para citar uma lista de pioneiros da música preta brasileira — Alaíde Costa, Moacir Santos, Elza Soares, Tânia Maria, Milton Nascimento e o conterrâneo percussionista homenageado a seguir — e reconhecer essa linhagem na figura do próprio Dom, numa tocante reverência.
Quando Amaro deixou o palco, foi a vez de Dom se dirigir ao público para explicar que tocaria “Para Elis”, composta para o casamento de Elis Regina, madrinha de seu casamento, não sem antes cumprimentar o compadre Amilton Godói, pianista do Zimbo Trio, presente na plateia. A noite terminou com outro clássico, a notável “Arroz de Festa”.
O público pediu bis — e os sete voltaram ao palco para uma versão arrebatadora de “High Energy”, que mostrou mais uma vez como Amaro e Dom se complementam como instrumentistas, arranjadores e em temperamento musical. Resta saber se Dom Salvador ficou para comer o frango a passarinho que prometeu dividir com Amaro — e que nas duas noites anteriores havia escapado, rendendo uma repreensão bem-humorada do pupilo.
Uma noite mágica.
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