Digital corporativo

Esse texto é do meio de 2003 (the frila years), quando um trabalho sobre cibersegurança me fez “ter que” contactar um guru da cultura digital brasileira no meio de um monte de executivos num evento no Itaim.

O motorista de Carter
Em meio aos seguranças da matriz

Os ossos do ofício me carregaram para um almoço executivo. Não sou afeito a tais manifestações, mas o fato é que não havia alternativa. Era preciso encarar um exército de engravatados na parca tentativa de estabelecer-se um mísero contato. Ah, grande era das comunicações, esta que vivemos. Tantas formas de travarmos diálogo e nada como o contato olho no olho, de corpo presente, para dar início a uma conversação de facto.

(Há de se levar o problema da idade em consideração – e não estou sendo simplesmente etário-preconceituoso. O fato de meu interlocutor, por mais entusiasta digital que seja, não ter o mesmo vínculo com o email que nós, nascidos depois de 1970 [eu sei, você nasceu um pouco antes, mas entende-se como “nós” – a linha aqui não é muito definida…], faz com que o contato eletrônico fosse apenas uma “troca de cartões”, para ficarmos na metáfora condizente ao ambiente em questão. Por maiores que sejam as qualidades da revolução eletrônica, elas tendem a ser abraçadas com mais força por pessoas que passaram a maior parte de suas vidas em contato com ela. É uma relação de proporção direta – é muito mais simples para mim do que para o meu pai escrever para uma interface web pública porque eu me acostumei com esse formato devido a uma vivência muito maior que a dele. É como aquela teoria que diz que a atual geração de personalidades da televisão é melhor do que a anterior, dita clássica, justamente por ter crescido vendo TV. Mas com o tempo, todos terão crescido vendo TV e todos terão crescido com o computador – e essa falha de comunicação não acontecerá mais. Problemas de transição, tamos acostumados. Você entendeu).

O fato é que lá estava eu, num hall de entrada de um prédio executivo num bairro executivo de São Paulo; desengravatado entre os engravatados. Confesso que a sensação de distanciamento objetivo é uma das minhas introspecções favoritas, mas é raro eu ter que senti-la fisicamente. Afinal, sou mediano em todas as minhas definições externas, talvez com a exceção da estatura e da tagarelice quando permitido (pelo cérebro). No entanto, não era a primeira vez que sentia que eu não pertencia ao grupo, falando em termos de aparência. Mas a ostensividade daquele ambiente fazia questão de impor-se a mim e a um ou outro gato pingado que não estivesse neste cosplay drag queen nazi corporate America chamado terno-e-gravata. KZ. Fuzilavam-me com o olhar, raios catódicos ao contrário que puxavam minha imagem para a parte de trás de seus cérebros, onde perguntavam-se: “Quem é esse? O que ele quer aqui? Conosco?”.

Mas você conhece a aura desses ambientes e sabe que tudo é muito fluido, tudo muito disfarçado – o jogo de cena é tudo. Por isso, nada de alardes ou testas franzidas. Apenas esgares medianos, olhares cruzados entre trocas de posições. As várias rodinhas de conversa ajeitavam os próprios quadris de quando em quando, para descansar a postura de pé , e nessa valsa disco music em câmera lenta (dois-pra-lá, dois-pra-cá, mas ninguém se encosta, a dança não é entre o casal, mas entre um grupo), quem ficava do lado de lá conseguia me ver melhor. Tantas perguntas, mas a hipocrisia reinante fazia tudo parecer muito natural. Natural a ponto de uma pessoa parar ao lado de um estande cheio de folders e começar a ler cada um deles. Foi o que eu fiz, para me distrair.

Falei em discoteca e é impressionante como esta antessala executiva me lembra uma pista de dança. Não uma pista de dança perfeita, mas essas pistas que a gente tá meio careca de encontrar: pouca mulher, várias rodinhas, música ruim, papo furado, xavecos fuleiros. Ugh. Melhor voltar pro folder: “…o sucesso da implementação de um novo serviço…”, o que é que tem mesmo?

Até que chega o bedel e recolhe o povo. “Acabou o recreio meninada, hora da refeição”. Todo mundo enfileirado rumo ao hall de elevadores, que levaria ao local da apresentação. Fui indo. Como quem não quer nada (eu só queria duas coisas), passei as outras rodas de conversa formadas na saída do elevador, no andar de cima, e fui logo para uma das mesas. Aos poucos, o salão foi enchendo e naturalmente chegaram ao meu redor.

Troca de sorrisos, troca de cartões, troca de funções. Estamos apresentando crachás uns aos outros, andando com etiquetas com nossos nomes, função e missão na lapela. Seguranças da matriz, agentes Smiths. Agentes de Adam Smith: Adão Smith, o primeiro homem executivo. Um dos abuletados brinca com o fato de quase todos estarem de terno (uma piada interna para menosprezar os que não estão?): “Certa vez li um artigo que dava dicas de como não ser confundido com um segurança”. Todos riram. Ele enfatizou seu próprio caso, afinal era negro – inegável -, e a loirinha a seu lado falou do fato de seu marido também sofrer do mesmo caso, em shopping centers. “Perguntam se ele não é o meu segurança”, ela diz. Todos riram. “Me confundem muito com o gerente”, diz um outro. Todos riram.

Mostre os dentes. Como um cavalo. É menos esforço do que o riso propriamente dito e tem o mesmo efeito. Fase insuportável, essa de apresentação. Todos contam historinhas idiotas, brincadeiras bestas, medindo-se. Nenhum toque a mais, tudo muito medroso. Parecem moleques no cinema, se mijando de medo de pegar na mão da menina. Observava tudo isso à distância, mas de vez em quando a abordagem virava-se para mim. Um clichê, uma frase de efeito, um caixa-surdo-prato verbal que demonstre a apreciação da piada recém-contada. Os garçons serviam bebidas e desajeitados executivos bebiam guaraná diet em copos de vinho.

Estamos em um limbo entre a etiqueta e a grossura, a finesse e o animal humano. Tudo aqui transpira fleuma de elite, mas o cheiro é de populacho. Quem esse povo todo pensa que está enganando? Certamente, a eles mesmos, isso é evidente. Mas, e fora deste circuito? É assim que eles funcionam? Provavelmente, não. Vejo esse arremedo de luxo como uma espécie de uniforme de irmandade, de pacto sinistro traduzido em polidez de araque. O garçom pergunta: “Vai mais aê, chefia?”. “Opa, rapaz!”, responde o bebedor. O vinho é caro, bem caro. Mas podia ser uma cerva, tanto faz.

Pergunto-me então o porquê deste travestismo social. Podiam realizar seus encontros em eventos informais, à beira da churrascaria, como bons executivos brasileiros em momentos de lazer. Mas, não. Algo naquele passeio de ternos e gravatas dava aos olhares a sensação de poder, de superpoder. Era como se pudesse estar na Sala de Justiça. Terno e gravata é um uniforme e tanto. Cosplay drag queen, blá-blá-blá, mas um uniforme de super-herói.

E todos me olhando como se perguntassem a razão de eu ainda estar em trajes paisanos.

O evento era o palco para meu contato, uma personalidade nova naquele universo, que preconizava o caos como solução para os problemas modernos – “problemas de transição”, suspiravam as paredes. Novas relações de trabalho, nova forma de encarar o consumidor, o papel da publicidade, revoluções culturais, o lugar da inovação, o novo governo. Era inevitável falar das mudanças de paradigma que estamos passando. E logo eu estava puxando a mesa para questões como música online e crise nas gravadoras, usando-as como exemplo imediato da ineficácia do mundo dos negócios a lidar com a, er, “mudança de paradigmas” que estamos assistindo hoje. Era mais ou menos a mesma coisa que o palestrante iria conversar, sabíamos. Metade da mesa se interessou pela conversa e logo o papo estava embalado.

Falávamos de horizontalização, do fim da hierarquia, da ação como melhor publicidade, do fato do mercado atual ser apenas o esqueleto mórbido do que já foi, só esperando a hora de ceder de uma vez. “O que é um banco”, perguntou-me o representante de universidade que estava do meu lado, “se não uma marca feita para lucrar a partir do trânsito de informações pessoais alheias? O que é a indústria automobilística, senão uma enorme gestora de várias outras pequenas indústrias? Essas duas instuições ganham muito dinheiro sem fazer praticamente nada, sem produzir nada. Não é à toa que estão em crise. E forçando outras crises”. Vieram à tona assuntos como software livre, a iminente queda de empresas gigantescas, o descrédito internacional dos Estados Unidos, propriedade intelectual e hábitos de consumo. Foi a melhor coisa que eu fiz, afinal de contas, ficaríamos apenas ouvindo o que cada um tem feito em sua própria empresa.

Resolvi tirar onda. E contei uma história que eu li há pouco, num livro do Tom Wolfe. Quase uma parábola, das diferenças das relações de poder entre a costa leste e oeste americanas e como esta diferença fez o lado de Nova York perder para o lado da Califórnia. Tudo a ver com a tal mudança de paradigmas… Como estava no meio de executivos da área, foi como se estivesse contando uma das lendas da Criação. Uns ficaram maravilhados, de olhos brilhando. Outros assentiam ceticamente, bebericando enquanto olhavam para a mesa.

Nenhum deles, no entanto, me olhava como estranho. Havia desconfiança no olhar de uns e entrega nos de outros. Mas todos estranhamente passavam a me ver com respeito, um respeito ao forasteiro. Engraçado o poder das palavras.

Entra o almoço, todos comem e em seguida o convidado é apresentado e põe-se a falar. No discurso, a história do software livre, da world wide web, da eletricidade, do movimento hip hop, da diferença entre hacker e cracker, da produção de hidrogênio, de que a esquerda e a direita sempre preconizaram a mesma coisa e só o movimento dos anos 60 realmente libertou as coisas. Muito para aquele público. Não para nós, daquela mesa do fundo. Ao meu lado, um cutucão e um sussurro: “Ele botou um microfone aqui nesta mesa, não foi?”, seguido de um riso cúmplice.

Não, nem foi. Não precisava. Depois da palestra, abriram para perguntas e comentários, e a maioria dos que pegou o microfone pigarreou contra a feliz novidade do século 21, que é o fim virtual da propriedade (se pudéssemos colocar nestes termos naquele local, talvez fôssemos expulsos, rapidinho…). Peguei o microfone e resolvi fazer o papel de escada, perguntando se toda mudança que ele falava não podia ser resumida na troca da verticalização para a horizontalização de poder. Foi quando uma mão pegou o microfone da minha e disse: “Conta aquela história”. Todos riram.

“Essa história deve ter sido contada muitas vezes, não apenas como uma espécie de amostra das diferenças de valores entre os executivos da costa oeste e da costa leste norte-americanas, mas como um dos inúmeros exemplos da mudança de paradigma que estamos assistindo. Robert Noyce era um jovem engenheiro do meio-oeste norte-americano que ganhava a vida como um dos primeiros cientistas a lida com o transistor, nos anos 50. Seu futuro seria brilhante: co-inventaria o microchip, inventaria o circuito integrado e o chip 1103 e daria início à produção dos microprocessadores nos anos 60 com sua própria firma, a Intel”.

“Mas no início dos anos 60, Noyce era apenas um dos líderes da Fairchild Semiconductors, uma das empresas mais bem-sucedidas do incipiente Vale do Silício, justamente devido às invenções de Bob – o 1103 e o circuito integrado. Sua doutrina de trabalho, capital para o sucesso daquele novo empreendimento, era a lei no Vale: não havia hierarquia, subdivisões de cargos, chefes disso, gerentes daquilo, privilégios, abonos, escritórios, vagas privativas. O estilo de Noyce, um dos dissidentes dos laboratórios Shockley, era uma das principais características do funcionamento das novas empresas de microengenharia – ou eletrônica, como começavam a chamar. Ali tudo era horizontal. O estacionamento era único, assim como o horário de trabalho. Não haviam paredes entre os funcionários, apenas divisórias de meia altura – até na sala de Noyce. Todos tinham exatamente a mesma escrivaninha, todos podiam convocar reunião a hora que quisessem, para tratar de quaisquer assuntos. Todos comiam a mesma refeição, usavam o mesmo tipo de roupa e eram igualmente instigados a sugerir, a dar idéias. Nada de ostentação, mesmo que todos ganhassem uma bela grana no que faziam. Trabalhar, para aqueles caras, era como estar na escola – sem professores”.

“Acontece que a Fairchild era uma empresa de um grupo nova-iorquino, investidor inicial no mercado de risco – à época – dos semicondutores e atual sócio da empresa. Os californianos viam os nova-iorquinos como pretensos europeus – ávidos por um poder feudal, de postos e cargos, funcionários exclusivos e secretárias pessoais, títulos de nobreza e lacaios à disposição. Para os novos executivos da costa oeste, os velhos executivos da costa leste eram uma monarquia decadente – com seus jantares em altos restaurantes, festas opulentas em clubes seletos, dinheiro queimado com marcas e exclusividades”.

“Um exemplo típico desta lógica decadente chocou-se com a realidade da Fairchild como um caminhão na parede da empresa, quando o presidente da Fairchild, John Carter, visitou a empresa. Com sua limusine e seu motorista, fardado como um militar prussiano, Carter foi conhecer a sede de sua rentável indústria de chips. Mas foi seu motorista que chocou seus funcionários”.

“Logo, todos estavam olhando pela janela, um funcionário que passa todo seu dia sentado, num carro, sem fazer absolutamente nada. Nada. Não era à toa que as empresas do Leste estavam perdendo dinheiro”.

E eu ali, sem terno-e-gravata, pensando naquela história. Pensando no que estaria errado naquilo tudo. Comendo uma imitação barata de petit-gateau. Que custou caro. Gastando meu tempo com coisas que eu já sabia, para falar apenas com uma pessoa.

Melhor não.

Sorri de volta e disse que não contaria, o resto da mesa insistiu, mas fiz charminho e devolvi o microfone de volta ao homem no palco. Ele falou da horizontalização e da verticalização mais ou menos como eu tinha imaginado, mas não iria surtir efeito. Não ali.

Depois, me apresentei pessoalmente ao sujeito que, para minha surpresa, já me conhecia. Trocamos “cartões”, discutimos idéias completamente distantes daquelas em discussão ali no local e ele me disse o que eu precisava saber. Contei rapidamente a história de Noyce e ele entendeu porque eu havia sublinhado a horizontalização num ambiente engravatado. Normal, mas meu trabalho estava feito. Com um nome e um telefone no bolso, segui meu rumo. Voltaria a me encontrar com aquela fauna futuramente, mas por enquanto, era só.

Richard Barbrook x John Perry Barlow (2003)

O Mídia Tática Brasil deu início aos seus trabalhos nesta sexta, 7 de março, com uma mesa redonda histórica – literalmente. Afinal, foi a primeira vez que duas forças antagônicas do pensamento pós-eletrônico se encontraram pessoalmente: de um lado, o americano John Perry Barlow, vice-presidente da Electronic Frontier Foundation e autor Declaração de Independência do Ciberespaço; do outro o inglês Richard Barbrook, do Hypermedia Resource Center e autor do Manifesto Cibercomunista. Só isso bastaria para a noite no Sesc Avenida Paulista ser rotulada com o adjetivo citado no início, mas se levarmos em consideração que tal encontro aconteceu no Brasil, num evento de natureza inédita por aqui e com a chancela do governo federal, podemos crer que as implicações são muito mais profundas do que em qualquer outra circunstância – especialmente para nós, brasileiros.

Mas o que deveria ser um embate de forças e idéias, tornou-se um motivo para ambos defenderem seus pontos de vista ao mesmo tempo que espezinhavam-se mutuamente. Tirando todo o debate ideológico e informacional, o que se assistia era à velha arenga entre ingleses e norte-americanos: um acusava o outro de ser radical demais, caricato demais, previsível e ingênuo demais. Cada um à sua maneira: Barlow exibindo aquele showmanship ianque que substitui o carisma por uma arrogância sarcástica [“De onde eu venho, do Wyoming, ser chamado de stalinista é um insulto”, depois que Barbrook apenas citou o stalinismo como parte do cânone do comunismo]; Barbrook arregalando os olhos à cada declaração de efeito do americano, engolindo gargalhadas em tom de desprezo e cuspindo sua franqueza britânica como o punk acadêmico que é [“Deus me perdoe por concordar com John Barlow”, disse antes de concordar com o óbvio de uma proposição do público – que a fome seria um problema mais urgente que a inclusão digital]. O clima tenso e animoso era cortado pelas piadas populistas de Barlow e pelos comentários irônicos de Barbrook.

Sentado na ponta à esquerda da mesa, Barlow é, fisicamente, o que aconteceria com Chuck Norris se ele se tornasse pastor evangélico de TV. Sua atuação era puro showbusiness, naquele tipo de entonação “como eu sou foda” que o Jô Soares faz para agradar sua claque. Parte do público [auditório lotado, gente em pé e nos corredores], deslumbrou-se com o papo furado caubói: “Fiz parte de uma banda, que não é muito conhecida aqui no Brasil… O Grateful Dead”, “Eu coloquei o Timbuktu online”, “Não fui a Davos este ano”. Jocoso, defendia o ciberespaço como um fim em si mesmo, um universo paralelo que deve adequar-se à realidade offline.

Já Barbrook, no canto direito, parecia uma cruza de Ken Kaniff [um dos personagens sórdidos do Eminem] com um dos caras do Madness. Chapeuzinho de palha e blaser um número menor, movimentava-se constantemente durante o discurso de Barlow. Dirigia-se rispidamente ao microfone, falando em tom sério quando apresentava os conceitos de sua Gift Economy e mostrava esgar ao discordar do que seu colega de mesa propunha. Insistia constantemente que não há diferença entre o ciberespaço e a vida real, que um é apenas a projeção do outro; enquanto Barlow filosofava sobre um ser como a mente [o ciberespaço] e outro como o corpo [a realidade].

Ficaram trocando farpas, Barbrook se referindo à Barlow como neoliberal e Barlow chamando Barbrook de nervosinho. Mas não deixa de ser notável o fato de Barlow reduzir a internet à lógica capitalista, desprezando conceitos fundamentais da rede em prol de opiniões controversas como “se a Internet fizesse alguma diferença, eu estaria preso” [como disse ao Pedro Dória, do Nomínimo]. Barbrook contrapôs-se de imediato: “Se a internet não fizesse diferença, eu não estaria aqui”.

Parêntese para o ministro: Gil, que mediava o debate, no centro da mesa, veste bem o traje de ministro da cultura, mostrando-se desenvolto para abordar as ramificações da discussão, todos parentes do tema central, inclusão digital. Mais do que isso, traçou paralelos didáticos a respeito de proteção de patentes e direitos autorais eletrônicos e aproveitou uma deixa para registrar em público sua opinião sobre a reforma da previdência [“se formos nos basear em direitos adquiridos, a escravidão não teria acabado”].

Constantemente bilíngüe [brasileiramente britânico], mostrou-se um tanto equivocado sobre alguns conceitos [não é possível chamar de “ciberanarquista” um sujeito que defende o direito de propriedade [como se referiu a Barlow], nem dizer que “o capitalismo deu certo” em mais de 200 anos e “o comunismo deu errado em menos de 80”]. E, claro, aproveitou o microfone para cantarolar [“vestiu uma camisa listrada e saiu por aí…”, cantou à menina de camisa listrada que recolhia as perguntas do público], o que eu, pessoalmente, acho do caralho. Mídia tática é isso aí.

Mas se como ministro Gil foi correto, o mesmo não pode se dizer de sua atuação como mediador. Descaradamente puxou a sardinha pro lado de Barlow, a quem servia de anfitrião na semana passada. Os dois trocavam elogios como velhos camaradas e em alguns momentos o ministro deixou escapar o desprezo por alguns conceitos de Barbrook. Mesmo na mediação propriamente dita, quando se dirigia aos dois a fim de confrontar algum tema, virava o corpo para o lado de Barlow e terminava o debate concordando com o amigo. Não deixa de ser irônico o fato de Gil ter passado boa parte do debate voltado para a direita.

Fossem apenas as inconveniências ideológicas dos gringos, até passaria. Mas Gil falhou ao não estender o debate aos outros presentes: Danilo Miranda, do Sesc; João Cassino [que veio no lugar de Beá Tibiriçá], dos Telecentros, Ricardo Rosas, da organização do Mídia Tática, e Evandro Prestes, do Online Cidadão, apenas comentaram em uma ou outra oportunidade.

O debate ficou mais tenso quando recorreram ao tema da pirataria – Barbrook levantando a bandeira preta ao aplaudir a pirataria como vitória do povo sobre as corporações; Barlow baixando o polegar ao simplificá-la como crime organizado. Levantou-se a questão sobre a troca de arquivos via internet, que acabou respingando em Gil que, ao ser confrontado por uma pergunta do público que pedia a opinião sobre do ministro sobre o assunto, “como integrante da indústria fonográfica”. Encurralado, mostrou o crachá: “Eu, como ministro, tenho que defender a lei, o estado de direito”, safou-se, salientando que, no entanto, as leis precisam ser revistas devido à mudança dos meios.

Interessante observar que, a despeito de suas posições o ciberespaço em relação à realidade, os textos-chave de John e Richard proclamam seus conceitos básicos usando paralelos com o mundo real: Barlow emulou a Declaração da Independência de seu país, Barbrook o célebre Manifesto Comunista escrito em Londres por Karl Marx e Friedrich Engels. Ambas analogias são conservadoras e reacionárias [mesmo que Barbrook tenha usado sua referência ironicamente], nenhuma vislumbra um texto-chave a partir de uma base nova e eletrônica – nada de paralelos com o morto-vivo universo da palavra impressa.

O debate terminou como o fim de uma guerra de nervos: sem conclusão, conceitos em aberto, os participantes virando-se para lados diferentes. Mas vale sublinhar aqui a experiência descrita por Evandro Prestes, do Online Cidadão, que não apenas ilustra o papel do Brasil na nova cultura eletrônica, como prova que o uso da cultura como intermediação dos conceitos de tecnologia e liberdade pode ser a saída mais eficaz para este embate. Ele contou como a grande maioria da população que não é familiarizada à internet se sente desconfortável com as regras impostas pelo computador, deixando pouco espaço para a intuição. Até que ele encontrou um sujeito feliz, passeando pelas páginas, clicando nos links, abrindo novas janelas, pulando de site em site. Entusiasmado, começou a conversar com o novato internauta que, ao perguntado sobre o que ele estava lendo, respondeu, sem pestanejar, que não sabia ler. O fato, que fez a maioria dos presentes na palestra apiedar-se do caso citado, no entanto foi encarado de outra forma por Cassino: “Ele estava desenvolvendo todo o deslumbre, o lado lúdico, e entusiasmado com o universo do computador”, coisa que os outros não conseguiam – pois têm dificuldade de ler. E, alfinetando não apenas o ministro presente como o público do debate, concluiu que “inclusão digital também é para vocês, da cultura”. Ao tratar a cultura como algo alheio a seu universo, Prestes mostrou o imenso abismo no debate eletrônico brasileiro – e, ao mesmo tempo, jogou a corda para o outro lado, disposto a construir a ponte. O lance é saber se alguém vai pegar.

Derek Holzer, do Next Five Minutes


Foto: Atti Ahonen (2010)

Derek Holzer é o cara que deu origem ao Next Five Minutes, o encontro de novas mídias e resistência eletrônica que proporcionou a criação do Mídia Tática Brasil, que aconteceu entre os dias 13 e 16, nas mediações da Paulista, aqui em São Paulo. Derek foi o principal destaque do primeiro dia e fala, às 20 horas, na palestra “Desvendando a Mídia Tática”. Conversei com ele pouco antes de pisar em solo brasileiro.

O que você espera em relação ao Mídia Tática Brasil e à cena brasileira?
Honestamente, espero mais aprender do que ensinar. Você deve achar que esta cultura de “resisitência eletrônica” que falamos seja global – talvez universal – mas é fato neste assunto que qualquer tipo de movimento político cultural está profundamente enraizado com a cultura local de onde ele nasce. Muito da net.art inicial saiu do desejo de europeus ocidentais e orientais em encontrar uma rede eficaz e sem mediação para comunicar as descobertas de ambos mundos. Mais recentemente, contudo, ela se tornou um meio de exploração muito formal na Europa e um fetiche sobre o design criado por uma cultura corporativa na América do Norte. Em cada caso, com notáveis exceções, eu diria que os agentes foram de alguma forma seduzidos rumo a uma estetização das ferramentas de seu próprio negócio, e para longe do uso destas ferramentas no compromisso com preocupações sociais mais profundas. Além disso, meu interesse em visitar o Brasil é muito próximo àquele que me levou à Europa Oriental há alguns anos: ver uma comunidade eletrônica que ainda está se desenvolvendo e aprender quais, se algum, outros modelos estão sendo importados e nível de pensamento crítico que acompanha a adaptação destes modelos.

Como você vê o evento dentro desta nova resistência eletrônica mundial?
Estou muito impressionado com a coerência da programação e certamente mal posso esperar para ouvir o que os palestrantes locais têm a oferecer. Mesmo nesta cultura de ciberativismo e ciberteoria, o culto ao “rockstar” existe. Numa tentativa de se legitimizar melhor, muitos eventos em países com cenas de novas mídia chamadas de “em desenvolvimento” se entopem com os mesmos nomes que estão apresentando os mesmos trabalhos há oito anos. As vozes locais são simplesmente sufocadas. É bom ver, neste evento, as vozes locais estão realmente no primeiro plano. Acho que os brasileiros têm muito a ensinar uns aos outros, como têm a aprender com artistas da Europa e dos Estados Unidos.

Quais são as relações entre esta cultura eletrônica, o movimento antiglobalização e as recentes passeatas antiguerra?
Uma coisa que eu acho que separa os novos desenvolvimentos na resistência eletrônica, seja em relação à globalização das corporações ou mobilizações massivas antiguerra, é que há uma vontade de encontrar os oponentes de frente, usando suas mesmas ferramentas e táticas contra eles. Um excelente exemplo disso é o site do Gatt – um site falso para a Organização Mundial do Trabalho que recentemente anunciou o fim da OMC e sua reformulação como uma organização dedicada à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este anúncio foi levado a sério em muitos lugares, incluindo no Parlamento Canadense, onde gerou uma discussão sobre como isto afetaria as leis de comércio de madeira. Este tipo de tática não era apenas impossível para uma geração ou duas antes da nossa, mas também sequer seria considerada, uma vez que o foco naquela época era muito maior na criação de comunidades utópicas contraculturais que foram rapidamente assimiladas, cooptadas, desarmadas ou tornaram-se guetos graças à influência da mídia mundial homogeinizadora. David Garcia e outros criaram um marco para a cultura de resistência e suas relações com a mídia nos grupos ativistas de conscientização contra a Aids, como o ACT-UP no meio dos anos 80. Com seu apelo militante “fora do gueto e dentro da mídia de todo o jeito possível”, eles definiram uma estratégia que ainda é a base da maior parte do ativismo de mídia atual.

Fale de sua experiência com rádio online.
Como meu primeiro envolvimento com esta nova cultura de mídia aconteceu através da net.radio, eu me sinto muito próximo a este movimento. Um dos primeiros players-chave em net.radio foi o Re-Lab em Riga, na Latvia. Para eles, net.radio era uma forma de estabelecer conexões com outros artistas através do mundo à medida que se tornava caro realizar estes encontros pessoalmente: requerimentos de visto, passagens de avião e por aí vai (muitos brasileiros são familiarizados a esta situação, tenho certeza). Para os pioneiros da net.radio na Latvia, a comunicação não era necessariamente um modelo de transmissão de rádio um-para-muitos. Em vez disso, era uma rede ponto-a-ponto que compartilhava experimentos de áudio entre um grupo fechado entre a Europa oriental e ocidental. O foco estava na participação, mais do que na audição e o resultado final quase nunca era tão importante quanto o processo de comunicação pelo caminho.
Isto, claro, pavimentou o caminho para o que aconteceu depois, especialmente a explosão do Centro de Mídia Independente depois das passeatas de Seattle em 1999. Net.radio então passou para o modelo um-para-muitos (ou talvez muitos-para-muitos) de novo, quase sempre usando combinações híbridas de internet, rádios piratas, livres, comunitárias e universitárias para espalhar a mensagem o mais distante possível.
Em minha própria experiência, vi meu projeto na República Tcheca, Radio Jeleni, ir de uma média de três a 3 mil ouvintes por dia durantes os protestos contra o Banco Mundial e o FMI durante o outono do ano 2000. No fim das passeatas, quando a atenção global voltou-se para o “next big thing”, a audiência voltou aos três, refletindo o momentário, mas impermanente, mudança do modelo P2P ao modelo de radiodifusão tradicional. Para mais informações sobre este modelo ponto-a-ponto de comunicação, sugiro o ensaio de Eric Kluitenberg, Mídia Sem Público (Media Without an Audience), que é altamente baseado nas experiências dos primeiros inovadores de net.radio, há seis ou sete anos.

Como eventos deste tipo podem atingir um público maior?
Eu tenho alguns comentários sobre isso, talvez não um plano, mas alguns conselhos.
Primeiro: considere seu público. Muita discussão acontece – e ainda assim é muito necessária – no tópico de tática mídia em um nível “expert”. Isto é, num nível em que os envolvidos são praticantes de mídia. Estas discussões devem ser as mais transparente possíveis para atrair o público, refletindo a idéia de uma mídia transparente sobre a mídia fechada do sistema, mas nunca devemos confundi-las com eventos para o público em geral. Discutir táticas de comunicação com o grande público não é o mesmo que comunicar idéias com este mesmo público. O “produto final” de um evento como o Mídia Tática, na minha opinião, deveria ser tão eficaz em dar informação como qualquer outra mídia, mas deve convidar dez vezes mais à participação. Nada é menos convidativo à participação do que a metadiscussão de insiders, o que faz com que a maioria das pessoas tenha este sentimento que esta coisa de cultura eletrônica é só para experts, geeks e freaks.
Segundo: mantenha a nível local. E isso em várias maneiras. Convidados estrangeiros podem trazer novas idéias, mas olhe o que eles fizeram com a política na América Central, os sistemas de saúde de vários países africanos ou as transições econômicas na Europa Oriental ou na região do Báltico! Use-os com muito cuidado e alto teor crítico. Há uma impressão em vários lugares que visitei e apresentei projetos que as pessoas irão escutar idéias estrangeiras de forma mais receptiva do que as locais. Enquanto isso é parcialmente verdade, idéias que vêm da Holanda pro Brasil, por exemplo, podem ser facilmente menosprezadas como pertencendo “à outra cultura” ou sendo “imperialista” ou coisas do tipo. Por isso, tenho um conhecimento muito limitado do Brasil e de sua cultura. Como posso fazer algo em termos de mídia para seu povo? Muito melhor seria prover a melhor informação e inspiração que eu posso e deixar os brasileiros fazendo eles mesmos suas mídias. Desta forma, a infraestrutura da Holanda e do Brasil podem ser tão diferentes como a temperatura. O que funciona em Amsterdã – rádio pirata, internet de banda larga e TV a cabo não-comercial e independente – pode não ser a solução ideal num país com restrições fortes sobre o rádio, uma infraestutura de internet mais fraca e bem menos dinheiro para emissoras alternativas. Encontrar suas forças na distribuição pública, mais do que se basear inteiramente em modelos integralmente importados, te deixa muitos passos à frente do gueto de mídia que prega apenas para os convertidos.
Terceiro: fique tranqüilo. Permitir-se ser estereotipado é o equivalente a ser cooptado ou marginalizado pela mídia mainstream, que come aquilo que pode usar e caga aquilo que não pode. O arquétipo de mídia do “hacker”, por exemplo, é útil pois cria paranóia. A paranóia é útil porque vende coisas – tudo, de programas antivírus a programas de defesa nacional. Da mesma forma, tempo gasto desconstruindo mitos sobre o trabalho de alguém é tempo desperdiçado. Entrar em uma discussões como se ele é mais um phreak de computador em busca da glória do que um ativista de verdade, ou pior ainda, tentar separar em público um do outro, é usar a terminologia alheia e reforçar os arquétipos da mídia. Fique mais calmo, mude suas táticas antes que elas tornem-se estagnadas, negue ou subverta rótulos criados para você e você descobrirá que a reação do público ao inesperado é muito maior do que ao esperado. Recentes ações do Critical Art Ensemble e outros no campo da biotecnologia merecem ser citadas. Quem poderia prever, ainda mais encontrar um arquétipo de mídia que possa ser usado para, um grupo de ativistas que reverteriam a engenharia de plantas modificadas geneticamente, tornando-as vulneráveis aos herbicidas que supostamente elas seriam imunes? “Genoterroristas”? “Agrohackers”? Quando algum rótulo grudar, os efeitos da ação já terão sido sentidos.

Como o Brasil é visto pela comunidade eletrônica global?
Eu não tive tempo de perguntar ainda. Volto em algumas semanas com a resposta! Falando sério, eu acho que há muita atenção se voltando para a América do Sul à medida em que os experimentos laboratoriais econômicos feitos pelo Fundo Monetário Internacional e outras entidades financeiras que governam o mundo começam a falhar, um após o outro. O Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, também mostrou apoio popular numa escalada pela resistência determinante às regras econômicas globais em detrimento aos direitos humanos sobre privilégios de negócios. Minha esperança pessoal é que os brasileiros provem estar prontos para criar suas próprias idéias no front eletrônico, mais do que se tornar um grupo de markting para esquemas de design coloridos vindos do exterior, pois estão no front social. Saberia exatamente sobre isso a partir desta semana.

Julian Assange no TED

A entrevista é de julho deste ano, boa parte dela explica um monte de coisas que você já deve ter lido, visto ou ouvido sobre o site, mas não deixa de ser uma ótima oportunidade para ver quem é o pai do Wikileaks e saber um pouco mais sobre o que ele pensa em relação a liberdade de expressão, jornalismo, cultura digital, política e os rumos da humanidade, além de contar umas histórias bem boas sobre o site.

O vídeo está em inglês, mas ao clicar em “view subtitles”, você pode ativar legenda em vários idiomas, inclusive português.

2004 em 1999

Mais auto-arqueologia: escrevi esse texto pra uma coluna que eu mantinha em alguns sites (entre eles, o CardosOnLine, o London Burning, o Senhor F e o Scream & Yell, não tenho certeza), chamada Tudo ou Nada. Rola o otimismo de sempre (tanto na parte do avanço tecnológico quanto no acesso pago), mas o futuro que eu imaginei em 1999 não é tão diferente do presente que vivemos… Acho engraçado o “walkman apropriado”, antes do iPod existir…


O Rio PMP300, um MP3 player lançado em 1998

Hora de trocar a música

Hoje tem uma festa. Uma festa mesmo, não essas noites organizadas por casas noturnas em que você precisa manusear dinheiro para pagar o triplo do preço de mercado (e o sêxtuplo do valor real) de qualquer coisa… Ou essas aglomerações de galera para arrecadar fundos cobrando álcool de cozinha como se fosse pinga ou bola como se fosse ácido. Uma festa mesmo: um monte de amigos e amigas conversando, dançando e rindo sobre tudo quanto é tipo de assunto, insumos complementares à disposição, sem horas pra começar ou acabar, sempre naquele ambiente meio sala de estar/meio beira da piscina, gente desconhecida querendo conhecer outras cabeças e aqueles desdobramentos típicos de qualquer boa festa, que podem ir do vexame em público a um prazer em particular. Pois é, tem uma festa dessas hoje.

Numa festa dessas, sabemos, não existe DJ. Não, o som praticamente se toca sozinho, à medida que cada enxerido dá uma zapeada pelos discos ao lado e coloca uma ou outra faixa, às vezes mudando radicalmente o ambiente com uma simples troca de música. É aí que todo mundo que se preocupa com a trilha sonora em um acontecimento destes (acredite, há quem não esteja nem aí pro que está tocando…) coloca um ou outro disco dentro do casaco (ou do porta-luvas) ou deixa aquelas fitinhas prontas pra ocasião bem à mão (na bolsa da esposa ou no bolso de trás). A festa dá aquela queda no astral e você saca o cartucho de som como uma arma secreta e – tcha-nã! – a bolsa volta a subir. Felizes são os momentos em que a música escolhida por um dos convivas é o equivalente sonoro das ações da Netscape em 1997, deixando todo o pregão social em polvorosa.

Mas aí tem aquelas horas em que você sabe exatamente que música tocar (“a faixa 5 do disco 2 daquela coletânea de funk da capa vermelha!”), mas – merda! – não está ali por perto. Você sabe bem: não dá pra colocar um remix legal da Nação Zumbi ou um Pixies velho de guerra na hora que a moçada tá dançando funk. O cérebro começa a se agitar, dá um looping nas possibilidades e te propõe uma salvação McGyver: baixar a música na internet e ligar as caixas de som da festa no computador. Nada que uma conexão de banda larga, uns dois metros de fio e um conhecimento incipiente de engenharia elétrica não possa resolver, mas, temos de convir, é preciso quase uma conjunção astral para isso acontecer. Sorte que a música anterior – “Melting Pot”, dos MGs – segura quase oito minutos de groove derretido, o tempo preciso para a tal conjunção de fatores entrar em ação e – sim – dar certo. Tá certo que o baixo e o grito do começo de “Play the Funky Music”, dos branquelas do Wild Cherry, é quase covardia e que o refrão proporciona uma reação bem próxima a uma chuva de dinheiro, mas tem horas que você sabe que certas coisas podem dar certo.

Pensando nisso, imaginei como essa conjunção de fatores (internet de alta velocidade + músicas de graça pela internet) poderiam facilitar a vida de muita gente. Quantas vezes você não olha para aquele punhado especial de discos e não leva nas festas porque sabe que sempre tem um gatuno de olho nos discos que dão sopa? Quantas vezes você até estava afim de colocar umas músicas para o povo dançar mas não tem a menor paciência de sair de casa? Quantas vezes você não quis fazer um programa de rádio só pra sua galera? Pois é, mil vezes. Mas, desenvolvendo melhor, o conceito “DJ remoto” (o cara fica em casa e transmite todo o setlist online, tendo uma recepção do público via webcam, sei lá) é só uma das primeiras possibilidades – e talvez a mais óbvia – do que vem por aí. E nem é tão “vem por aí” assim: o Future Sound of London já faz shows desse jeito, só pra citar um exemplo que me vem à memória. O grande barato é que a tal equação no parêntese da primeira frase deste parágrafo joga isso numa esfera mais popular e mais ampla, afinal, você não precisa nem tocar pra fazer os seus “shows”.

Mas, pense melhor: se baixar uma música na internet para tocar numa festa já é uma realidade, imagine isso daqui a cinco anos (que é o tempo médio – hoje – para essas mudanças bruscas surtirem efeito). Será que as pessoas ainda vão comprar discos? Quando eu digo “as pessoas”, eu não tô falando de eu e de você, que crescemos manuseando discos de vinil, passeando por capas e encartes como se fossem livros, encarando artistas de música como se fossem intelectuais orgânicos ou super-heróis de nossa época, filósofos e deuses contemporâneos que se revelavam pra gente em capas quadradas de discões de acetato. Eu tô falando dessa rapaziada que cresceu com CD, computador, MP3. Pra que você vai comprar 50 discos se você pode compactar tudo num CD-R e ouvir num walkman apropriado? Coleções de discos, pra essa molecada, são como aquelas pilhas de jornais e revistas que guardamos na parte de cima do armário, aqueles livros que temos certeza que um dia iremos reler mas que por enquanto ficam no quartinho do fundo, aqueles cadernos especiais que serão úteis algum dia, com certeza, mas que por hora param debaixo da cama. E isso hoje, não daqui a cinco anos.

Daqui a cinco anos, tudo estará online. Bastará que você tenha um código de acesso (mediante o pagamento de uma mensalidade, que pode ser descontada do seu salário, garantindo assim – no papel – o status social para cada categoria de emprego) que você pode desfrutar à vontade de todas ou de parte de todas as informações que flutuam no espaço virtual. Discos raros, livros em todos os principais idiomas (que serão, no máximo, uns dez), procuradores, receitas de bolo e poemas de Camões, noticiários, passatempos eletrônicos, filmes, enciclopédias, tradutores simultâneos, tabuadas, corretores ortográficos, websites, bibliotecas e cursos de faculdade inteiros, teses, teoremas e hipóteses, vídeos caseiros e diários particulares – todo este tipo de informação (em grande parte já disponível online) estará muito mais acessível, uma vez que ela será direcionada para um determinado público-alvo, que se molda uniforme à medida que a internet cresce. O passado será totalmente de graça, arquivado e usado de forma emblemática, como uma grife, da mesma forma que o Cartoon Network se vangloria do acervo Hanna-Barbera, a Rhino exibe orgulhosa suas caixas de discos e coletâneas ou a Globo requenta seus produtos no Video Show. O conhecimento – como já acontece hoje – não será aprendido e sim adquirido. Cada um será seu próprio editor de conteúdo – cortando, justapondo, inserindo, superpondo, penteando, afiando, contrapondo, realçando informações.

O que significa que, dentro de um tempo, não precisaremos mais levar discos ou fitas para festas. Ou livros para aulas. Ou pastas para o trabalho. Ou papéis para reuniões. Cada pessoa terá seu próprio acesso pessoal à internet, ao alcance da mão, como um minibrowser portátil que permite conectar-se com qualquer aparelho, seja ele um retroprojetor, um processador de texto ou um aparelho de som. Indo um pouco além, podemos imaginar uma festa – o exemplo-chave deste texto – onde cada um dance sua própria música, numa integração social/individual um tanto bizarra para nossa compreensão atual. Mas pense bem e veja como é simples: provavelmente DJs colocarão programas online de festas, medindo o entusiasmo das pessoas na hora e o gosto musical de cada uma delas, fazendo assim com que cada festa tenha sua própria discotecagem customizada por um DJ robô criado a partir de um DJ de verdade. Aí, se toca uma música lenta e o sujeito quer continuar pra cima, basta clicar em seu minibrowser portátil que o DJ automático toca outra música do jeito que você quer.

Imagine então uma festa, com cada um dançando de um jeito, cada um tocando sua própria trilha sonora dentro de sua cabeça, remixando músicas à sua própria vontade. Parece uma metáfora dos tempos que vivemos, não? Cada pessoa em sua casa, em seu computador, em seu cérebro, vivendo seu universo conceitual individual, com sua própria página de bookmarks, seus top 10, seus gostos e desgostos impedindo a aproximação dos outros que vivem em igual situação. Mas esta imagem é criada por gente que não está a par nem 10% do que acontece hoje, aqueles que ainda acham que computador é uma coisa muito impessoal – como se a máquina fosse alguém.

Isolados em grupo? Pra quem está olhando tudo de fora, pode ser. Mas estamos indo em direção a uma nova coletividade, onde interesses pessoais e públicos têm o mesmo peso. O nosso desafio é justamente equilibrar o coletivo e o privado, em detrimento tanto do gosto individual quanto o da massa. Talvez este seja um dos grandes desafios da História. Mas agora parece estar mais palpável, mais próximo. O que não dá é pra ficar na mesma, continuar do jeito que está. Vai lá e muda a música que está tocando. Não dá? Dá sim, dá um jeito. Basta você saber que música você quer ouvir e pensar rápido o suficiente para tê-la na agulha assim que a que está tocando acabar. Ação, bicho: ação.

International TENSO

Um monte de gente já tinha me avisado, mas a preguiça e vontade de ficar ouvindo música no YouTube fizeram que eu deixasse pra postar esse vídeo só agora – deixo o crédito pro Guilherme, que se dignou a deixar o link num comentário (boa, vou falar sobre a área de comentários, velho assunto digital que merece sempre ser revisitado). O TENSO foi um meme que eu descobri quase sem querer online (e cuja paternidade depois foi requerida pelo VT do UOL Games, a versão brasileira do 4chan, que a gente já até falou no Link há uma cara). Não vou explicar o que é o TENSO, o vídeo acima faz justamente isso (ainda que em inglês) e basta dar uma fuçada na tag pra ele que eu criei no Sujo há quase dois anos para entendê-lo. O legal do vídeo feito pelo sensacional Know Your Meme, do Rocket Boom (Ellie Rountree <3!) é que ele consolida justamente o que eu havia acusado em março do ano passado, quando comecei a trazer o TENSO à baila – que é uma mania de internet tipicamente brasileira que abriu a trilha para tropicanalhices digitais como Cala Boca Galvão, os botões de Instantrimshot que disparavam frases e sons velhos conhecidos de nossos ouvidos e as abomináveis gírias do Twitter. O microdocumentário ainda arrisca uma árvore genealógica que concatena memes da mesma natureza nascendo em lugares diferentes da rede. Parece uma bobagem (e, em grande parte, é), mas é um retrato instantâneo de uma transformação comportamental que está em curso: a forma como o brasileiro se relacionará com o ambiente digital. Isso não é nem o começo direito…

Leia mais:
Tag TENSO
Um meme essencialmente brasileiro e uma nova forma de comunicação

Cultura binária

O Bruno foi estagiário no Link até o final do ano passado (hoje está na Istoé Dinheiro, e segue cobrindo tecnologia) e seu trabalho de conclusão de curso foi sobre as mudanças que o meio digital vem impondo à cultura – e A Cultura Na Era Digital é tanto um blog quanto um livro de entrevistas. Fui entrevistado para sua publicação e ele finalmente põe no ar o longo papo que tive com ele (que, editado sem as perguntas, ficou com cara de artigo, a seguir):

A Cultura na Era Digital, por Alexandre Matias

“Pra cultura, pro público, pra uma nova geração de artistas e pra humanidade como um todo as mudanças pelas quais a indústria cultural vem passando nos últimos anos tendem a ser mais benéficas, pois abrem maiores possibilidades de criação e de imaginação e permitem que cada vez mais gente possa ter a experiência de ser artista, antes restrita a um grupo pequeno de celebridades e executivos, que são justamente os que estão sofrendo com essa mudança – e para quem os efeitos são mais negativos, pois mudam a forma como eles lidam com a própria remuneração. Mas as mudanças do mundo digital não são exclusivas do meio cultural e atingem toda a sociedade a ponto d reinventar o próprio ser humano. As primeiras manifestações do digital nesta virada de século são mínimas se comparadas com o seu potencial. E negar essa mudança é pior até para aquele que mais sofre com a mudança neste momento inicial, pois ele não irá saber como lidar com a transformação que já aconteceu.”

“Ainda não vimos a maior transformação, que é a superação destes formatos (disco, filme, livro) rumo a uma integração maior entre os diferentes suportes – o tal transmídia. Mas acho que isso ainda deve levar um tempo para se consolidar, mesmo porque existem algumas gerações que ainda vão consumir livros, filmes e discos como coisas separadas. Mas acho que a tendência maior inclui a participação da publicidade na narrativa. O fim do espaço comercial como conhecemos hoje inevitavelmente fará com que empresas busquem novas formas de mostrar o que querem vender para seu público. Se hoje a publicidade vem em forma de banners em videogames ou empresas que bancam obras de determinados artistas (modelos que já estão aí há algum tempo, mas que estão longe de serem estabelecidos), acredito que, no futuro, as marcas irão se associar a produtores de conteúdo que tenham alguma afinidade para desenvolver projetos e obras culturais que se desdobrem em diferentes áreas. O consumidor, no entanto, não deverá ficar refém de uma história que, para ser compreendida em sua totalidade, deve ser absorvida à exaustão. Pelo contrário: o conteúdo cultural do futuro deverá oferecer tanto pequenos aperitivos quanto universos narrativos complexos. O leitor/ouvinte/espectador é que escolhe o quanto deve se aprofundar.”

“Acho que não existe regra, mas, como antes da internet, acho que o principal é definir o que o artista quer da vida – se é reconhecimento público, ter um salário, se satisfazer pessoalmente ou fazer sucesso. Acho que a última opção é a mais tênue hoje em dia, uma vez que o conceito de sucesso mudou drasticamente – ou, pelo menos, deixou de ser mensurável. Acredito que o principal para qualquer artista hoje seja definir o que ele considera sucesso. Para muitos, produzir arte sem interferência de patrocinadores ou concessões ao público já pode garantir o sucesso pessoal. Para outros, sobreviver a partir da própria arte é outro novo parâmetro de sucesso. A decisão cabe ao artista e pode determinar o resto de sua carreira”.

“A principal contribuição do meio digital para a indústria – e não apenas cultural – é inverter a mão-única que era a regra da era industrial. Hoje não existe uma fórmula para fazer sucesso, uma regra para ser bem sucedido artística e comercialmente, um modelo de negócios padrão que deve ser seguido. Cada um deve descobrir o modelo de negócios que melhor se adeque a seu parâmetro de sucesso”.

“Pela legislação atual, a troca de arquivos pela internet é pirataria. O problema é que quando a sociedade muda, as leis devem mudar. As leis são feitas para se adequar ao comportamento das pessoas – e não o contrário. Já foi permitido, um dia, ter escravos humanos, por lei. E até o começo do século XX a mulher tinha menos direitos legais do que o homem. As leis relacionadas a esses assuntos mudaram porque a sociedade mudou. A troca de conteúdos digitais via internet é um fenômeno muito recente e as leis ainda não se adequaram a ele. Por isso mesmo, a definição de pirataria nesta época é vaga – da mesma forma que definir quem perde ou quem ganha com ela. Como você mesmo citou, o próprio Paulo Coelho advoga a favor da pirataria de seus livros. E há uma frase de Hermeto Paschoal que ilustra bem esse dilema: ‘Por favor, me pirateiem – se não ninguém vai ouvir minha música’.”

“Do mesmo jeito que a tendência para produtos fabricados em escala industrial tende a cair, existe uma série de outras soluções que estão sendo pensadas para estes profissionais que não existiam antes e hoje já são fonte de renda. A troca de arquivos via internet não fez as pessoas pararem de comprar disco – e, sim, ofereceram outras formas de você conhecer e pagar pela obra dos artistas – grande parte deles que sequer tinham o mínimo de visibilidade que a internet lhes proporcionou. Não sei responder sobre fontes de renda alternativas para estes profissionais porque: 1) o novo mercado está mudando o tempo todo; 2) cada artista deve descobrir qual melhor forma de conseguir transformar sua arte em seu sustento; 3) não sei se essas novas fontes de renda são alternativas ou se serão a regra vigente”

“Do mesmo jeito que a produção cultural será acessível de forma gratuita. O artista vai ganhar dinheiro com o contato direto com o público, com produtos impossíveis de serem digitalizados que acompanhem uma obra digital, com licenças de acesso a seu conteúdo que podem liberar sua obra para o espectador à medida que ela for sendo realizada, achando um patrocinador que queira associar sua marca àquele artista. Se for bom, as pessoas vão querer pagar. O problema é saber quando isso irá acontecer.”

“A indústria de tecnologia tem ganhado muito dinheiro com download, veja que, entre os sites mais acessados do mundo, figuram vários que permitem o compartilhamento de arquivos (como Rapidshare, Megaupload, etc.). E empresas como Google, Amazon, Microsoft, Apple e outros nomes do mercado digital também – seja com venda direta ou com anúncios atrelados aos downloads. Concordo que a tendência é que o streaming supere o download em relação à presença online (mesmo porque senão, todo mundo teria de ter HDs gigantescos para armazenar tudo que produz – fora o que consome), mas não acho que o streaming ou o download sejam mais ou menos vantajosos para a indústria cultural do passado, acostumada a ganhar dinheiro sobre cópias físicas de um produto que hoje não precisa mais de cópia física.”

“Acho ruim ficarmos lamentando as vantagens e desvantagens disso ou daquilo para essa indústria cultural, pois parece que ela é especial e não está suscetível a essas mudanças, como o resto da sociedade. Quando a fotografia foi inventada, os pintores reclamaram que iam perder a função de retratistas. Felizmente, não havia uma indústria que representasse os pintores para fazer campanhas contra o uso da fotografia. Felizmente porque, se isso acontecesse, talvez o impressionismo e o modernismo – as soluções que os artistas, e não a indústria, propuseram – demorariam mais tempo para acontecer”.

“É crucial [a participação do fã neste contexto]. A principal mudança para o artista tradicional que estamos vendo é o fato de a indústria cultural não servir mais como intermediário entre artista e consumidor – seja numa sala de chat, num fórum de discussão, ao pagar pela arte de outra forma ou no contato após o show. É a principal mudança porque faz com que o artista se pergunte sobre quem ele deve agradar e responder – se ao empresário, ao produtor, à gravadora, à editora de direitos autorais ou a quem consome apaixonadamente sua música. Vendo desta forma, é fácil entender porque a indústria estabelecida se volta tão ferozmente contra o digital – ela está perdendo o controle da redoma que havia criado ao redor do artista. E, principalmente, o artista está deixando de ser esse alguém iluminado, que precisa de tempo para se inspirar, para ser encarado como um profissional e ponto.

“O que estamos vendo é um movimento que permite que a humanidade, como um todo, possa ter acesso ao que ela mesma produz, todo dia, o tempo todo. Artistas estabelecidos e indústria cultural são só obstáculos no meio dessa comunicação total que estamos começando a assistir“.

Hackers no cinema

Me incomoda tanto ver cenas como essa acima, de Swordfish, que é um bom filme, mas que, ao tentar explicar visualmente todo o processo de hackear, põe tudo a perder – transformado não só o personagem como o próprio ator em um marionete ridículo de uma excitação que não existe. Fico com medo de como será a cena do Zuckerberg criando o Facebook em seu quarto pelos olhos do David Fincher…

Daniel Pádua (1980-2009)

“Tecnologia é mato, o importante são as pessoas”
@dpadua

Não conheci o mineiro @dpadua pessoalmente, mas há quase dez anos acompanho e admiro seu trabalho, seja na militância de causas relacionadas à liberdade no mundo digital (dos protestos anti-Lei Azeredo ao trabalho no Metareciclagem), como na criação de dispositivos e ferramentas que inspiravam a criação coletiva e a organização 2.0, como o blogchalking (um plugin que permite localizar blogs por regiões geográficas, que foi o responsável por colocá-lo no mapa em 2002, quando pautei matéria com o criador para a falecida revista Play) e o Xemelê (linguagem baseada no protocolo XML, que facilitava a troca de informações para desenvolver um projeto coletivo, desenvolvido ainda no projeto Metáfora e adotado pelo Ministério da Cultura de Gilberto Gil). Envolvido com a criação do Blog do Planalto, ele estava afastado há dois meses do trabalho para lidar com a doença que lhe levou na quinta de noite. Mas, raízes firmes no campo fértil do mundo digital, é fácil prever que seu legado começa a entrar em ação a partir de agora e que seu nome será muito maior do que quando em vida. Valeu, rapá!

Link – 7 de setembro de 2009

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