2004 em 1999

, por Alexandre Matias

Mais auto-arqueologia: escrevi esse texto pra uma coluna que eu mantinha em alguns sites (entre eles, o CardosOnLine, o London Burning, o Senhor F e o Scream & Yell, não tenho certeza), chamada Tudo ou Nada. Rola o otimismo de sempre (tanto na parte do avanço tecnológico quanto no acesso pago), mas o futuro que eu imaginei em 1999 não é tão diferente do presente que vivemos… Acho engraçado o “walkman apropriado”, antes do iPod existir…


O Rio PMP300, um MP3 player lançado em 1998

Hora de trocar a música

Hoje tem uma festa. Uma festa mesmo, não essas noites organizadas por casas noturnas em que você precisa manusear dinheiro para pagar o triplo do preço de mercado (e o sêxtuplo do valor real) de qualquer coisa… Ou essas aglomerações de galera para arrecadar fundos cobrando álcool de cozinha como se fosse pinga ou bola como se fosse ácido. Uma festa mesmo: um monte de amigos e amigas conversando, dançando e rindo sobre tudo quanto é tipo de assunto, insumos complementares à disposição, sem horas pra começar ou acabar, sempre naquele ambiente meio sala de estar/meio beira da piscina, gente desconhecida querendo conhecer outras cabeças e aqueles desdobramentos típicos de qualquer boa festa, que podem ir do vexame em público a um prazer em particular. Pois é, tem uma festa dessas hoje.

Numa festa dessas, sabemos, não existe DJ. Não, o som praticamente se toca sozinho, à medida que cada enxerido dá uma zapeada pelos discos ao lado e coloca uma ou outra faixa, às vezes mudando radicalmente o ambiente com uma simples troca de música. É aí que todo mundo que se preocupa com a trilha sonora em um acontecimento destes (acredite, há quem não esteja nem aí pro que está tocando…) coloca um ou outro disco dentro do casaco (ou do porta-luvas) ou deixa aquelas fitinhas prontas pra ocasião bem à mão (na bolsa da esposa ou no bolso de trás). A festa dá aquela queda no astral e você saca o cartucho de som como uma arma secreta e – tcha-nã! – a bolsa volta a subir. Felizes são os momentos em que a música escolhida por um dos convivas é o equivalente sonoro das ações da Netscape em 1997, deixando todo o pregão social em polvorosa.

Mas aí tem aquelas horas em que você sabe exatamente que música tocar (“a faixa 5 do disco 2 daquela coletânea de funk da capa vermelha!”), mas – merda! – não está ali por perto. Você sabe bem: não dá pra colocar um remix legal da Nação Zumbi ou um Pixies velho de guerra na hora que a moçada tá dançando funk. O cérebro começa a se agitar, dá um looping nas possibilidades e te propõe uma salvação McGyver: baixar a música na internet e ligar as caixas de som da festa no computador. Nada que uma conexão de banda larga, uns dois metros de fio e um conhecimento incipiente de engenharia elétrica não possa resolver, mas, temos de convir, é preciso quase uma conjunção astral para isso acontecer. Sorte que a música anterior – “Melting Pot”, dos MGs – segura quase oito minutos de groove derretido, o tempo preciso para a tal conjunção de fatores entrar em ação e – sim – dar certo. Tá certo que o baixo e o grito do começo de “Play the Funky Music”, dos branquelas do Wild Cherry, é quase covardia e que o refrão proporciona uma reação bem próxima a uma chuva de dinheiro, mas tem horas que você sabe que certas coisas podem dar certo.

Pensando nisso, imaginei como essa conjunção de fatores (internet de alta velocidade + músicas de graça pela internet) poderiam facilitar a vida de muita gente. Quantas vezes você não olha para aquele punhado especial de discos e não leva nas festas porque sabe que sempre tem um gatuno de olho nos discos que dão sopa? Quantas vezes você até estava afim de colocar umas músicas para o povo dançar mas não tem a menor paciência de sair de casa? Quantas vezes você não quis fazer um programa de rádio só pra sua galera? Pois é, mil vezes. Mas, desenvolvendo melhor, o conceito “DJ remoto” (o cara fica em casa e transmite todo o setlist online, tendo uma recepção do público via webcam, sei lá) é só uma das primeiras possibilidades – e talvez a mais óbvia – do que vem por aí. E nem é tão “vem por aí” assim: o Future Sound of London já faz shows desse jeito, só pra citar um exemplo que me vem à memória. O grande barato é que a tal equação no parêntese da primeira frase deste parágrafo joga isso numa esfera mais popular e mais ampla, afinal, você não precisa nem tocar pra fazer os seus “shows”.

Mas, pense melhor: se baixar uma música na internet para tocar numa festa já é uma realidade, imagine isso daqui a cinco anos (que é o tempo médio – hoje – para essas mudanças bruscas surtirem efeito). Será que as pessoas ainda vão comprar discos? Quando eu digo “as pessoas”, eu não tô falando de eu e de você, que crescemos manuseando discos de vinil, passeando por capas e encartes como se fossem livros, encarando artistas de música como se fossem intelectuais orgânicos ou super-heróis de nossa época, filósofos e deuses contemporâneos que se revelavam pra gente em capas quadradas de discões de acetato. Eu tô falando dessa rapaziada que cresceu com CD, computador, MP3. Pra que você vai comprar 50 discos se você pode compactar tudo num CD-R e ouvir num walkman apropriado? Coleções de discos, pra essa molecada, são como aquelas pilhas de jornais e revistas que guardamos na parte de cima do armário, aqueles livros que temos certeza que um dia iremos reler mas que por enquanto ficam no quartinho do fundo, aqueles cadernos especiais que serão úteis algum dia, com certeza, mas que por hora param debaixo da cama. E isso hoje, não daqui a cinco anos.

Daqui a cinco anos, tudo estará online. Bastará que você tenha um código de acesso (mediante o pagamento de uma mensalidade, que pode ser descontada do seu salário, garantindo assim – no papel – o status social para cada categoria de emprego) que você pode desfrutar à vontade de todas ou de parte de todas as informações que flutuam no espaço virtual. Discos raros, livros em todos os principais idiomas (que serão, no máximo, uns dez), procuradores, receitas de bolo e poemas de Camões, noticiários, passatempos eletrônicos, filmes, enciclopédias, tradutores simultâneos, tabuadas, corretores ortográficos, websites, bibliotecas e cursos de faculdade inteiros, teses, teoremas e hipóteses, vídeos caseiros e diários particulares – todo este tipo de informação (em grande parte já disponível online) estará muito mais acessível, uma vez que ela será direcionada para um determinado público-alvo, que se molda uniforme à medida que a internet cresce. O passado será totalmente de graça, arquivado e usado de forma emblemática, como uma grife, da mesma forma que o Cartoon Network se vangloria do acervo Hanna-Barbera, a Rhino exibe orgulhosa suas caixas de discos e coletâneas ou a Globo requenta seus produtos no Video Show. O conhecimento – como já acontece hoje – não será aprendido e sim adquirido. Cada um será seu próprio editor de conteúdo – cortando, justapondo, inserindo, superpondo, penteando, afiando, contrapondo, realçando informações.

O que significa que, dentro de um tempo, não precisaremos mais levar discos ou fitas para festas. Ou livros para aulas. Ou pastas para o trabalho. Ou papéis para reuniões. Cada pessoa terá seu próprio acesso pessoal à internet, ao alcance da mão, como um minibrowser portátil que permite conectar-se com qualquer aparelho, seja ele um retroprojetor, um processador de texto ou um aparelho de som. Indo um pouco além, podemos imaginar uma festa – o exemplo-chave deste texto – onde cada um dance sua própria música, numa integração social/individual um tanto bizarra para nossa compreensão atual. Mas pense bem e veja como é simples: provavelmente DJs colocarão programas online de festas, medindo o entusiasmo das pessoas na hora e o gosto musical de cada uma delas, fazendo assim com que cada festa tenha sua própria discotecagem customizada por um DJ robô criado a partir de um DJ de verdade. Aí, se toca uma música lenta e o sujeito quer continuar pra cima, basta clicar em seu minibrowser portátil que o DJ automático toca outra música do jeito que você quer.

Imagine então uma festa, com cada um dançando de um jeito, cada um tocando sua própria trilha sonora dentro de sua cabeça, remixando músicas à sua própria vontade. Parece uma metáfora dos tempos que vivemos, não? Cada pessoa em sua casa, em seu computador, em seu cérebro, vivendo seu universo conceitual individual, com sua própria página de bookmarks, seus top 10, seus gostos e desgostos impedindo a aproximação dos outros que vivem em igual situação. Mas esta imagem é criada por gente que não está a par nem 10% do que acontece hoje, aqueles que ainda acham que computador é uma coisa muito impessoal – como se a máquina fosse alguém.

Isolados em grupo? Pra quem está olhando tudo de fora, pode ser. Mas estamos indo em direção a uma nova coletividade, onde interesses pessoais e públicos têm o mesmo peso. O nosso desafio é justamente equilibrar o coletivo e o privado, em detrimento tanto do gosto individual quanto o da massa. Talvez este seja um dos grandes desafios da História. Mas agora parece estar mais palpável, mais próximo. O que não dá é pra ficar na mesma, continuar do jeito que está. Vai lá e muda a música que está tocando. Não dá? Dá sim, dá um jeito. Basta você saber que música você quer ouvir e pensar rápido o suficiente para tê-la na agulha assim que a que está tocando acabar. Ação, bicho: ação.

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