Crumb, Shelton e eu

, por Alexandre Matias

A vinda de Robert Crumb e Gilbert Shelton à Flip deste ano foi recebida com entusiasmo por muitos e por desdém por alguns, que reclamam da ausência de literatura da festa em Parati. Como não me animo a ir em eventos de escritores e sou avesso a botecos (já me basta ficar sentado na hora de trabalhar), comemorei mais a vinda dos dois como mais uma vitória da combalidade contracultura, que restou ser paga para posar de outsider nesses tempos neocon (eles já estão passando, perceba). Mas ao mesmo tempo a conjunção de dois patronos do quadrinho underground acendeu uma lâmpada num quarto emocional do meu cérebro. Foi com Crumb e Shelton que eu comecei a traduzir livros.

Eu havia acabado de ser demitido da Conrad e fazia os cálculos para ver se a vida de frila pagaria minhas contas. E entre os frilas que pintaram um dos primeiros foi o convite do Rogério para uma tradução. Rogério no caso é o de Campos, que até hoje está na Conrad, que fundou com o Forastieri ainda com nome de Acme. Os dois já não andavam bem entre si – o que culminaria, mais tarde, com a saída do André da Conrad – e quando o Rogério soube que o André havia me dado o cartão vermelho, me chamou para frilar. Não gostei muito de ver que entraria no meio da rusga dos sócios por causa de um frila, mas quando o Rogério me disse que era para traduzir o primeiro lançamento do Crumb pela Conrad, o álbum Zap Comix, não esquentei com a briga do casal e além da proverbial colher estava disposto a gastar todo um faqueiro para entrar nessa parada. E com o aval do Rogério (“Roxéééério”) traduzi não só o Zap como dois volumes do gato Fritz, outros dois do Mr. Natural, além de ter ajudado na preparação de texto do Minha Vida, traduzido pelo Galera. Além dos Crumb, ainda fui tradutor, sozinho, dos dois volumes dos Freak Brothers, do Shelton, lançados pela editora.

Ao saber do anúncio da vinda dos dois, lembrei-me de quando ainda morava numa casa de vila na Vila Mariana e passava madrugadas de dias da semana entre originais em inglês dos quadrinhos, cópias xerocadas dos mesmos com anotações e algumas edições nacionais anteriores – com suas traduções coxais (quase chorei de raiva ao ler, mais de uma vez, “smack” sendo traduzido por “beijinho”). Lembrei de quando fazia o Mateus, a Pri ou o Arthur reler pela quinta vez o mesmo trecho específico, para termos certeza de que a tradução estava correta, ou de fazê-los esperar por duas ou três páginas que deviam ser entregues no dia anterior. Eles sabiam que era esmero – e me orgulho hoje de ter traduzido cada “man…” em final de frase por “bicho…”, de ter abrasileirado bem todas as gírias e de ter incluído um ou outro “altos massa” no meio dos balões.

Depois deles, me aventurei por outras traduças da editora – e além de quadrinhos também me percorri dois livros densos e deliciosos: a coletânea de contos Futuro Proibido (que deveria ter um volume 2, também traduzido, mas que nunca saiu) e o livro Chuva de Estrelas. O primeiro era uma antologia de ficção científica, que me deu o prazer de traduzir Burroughs, Ballard, Gibson, Rucker, Sterling, entre outros, e o segundo foi escrito pelo mesmo Peter Lamborn Wilson que também assinava livros como o libertário radical Hakim Bey e linka diferentes tradições religiosas ou filosóficas (xamanismo, taoísmo, sufismo) pelo mundo cuja iniciação se dá sem mestre e através dos sonhos.

Entrevistaria Crumb e Shelton com prazer, mas só sairia de casa para vê-los se soubesse que não ia pegar fila e que teria lugar marcado. Descer pra Parati para assisti-los então, só com muitas doses de boa vontade. Mas só de saber da vinda simultânea de ambos para o Brasil já foi bom o suficiente por abrir essa janela na memória. Bom saber.

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