O Elson publicou um texto no Medium compilando todo o conteúdo de todas as Discotecas Básicas da falecida revista Bizz e traçando uma série de estatísticas a partir dos números que conseguiu levantar. As DBs eram resenhas de discos clássicos que vinham ao final de toda edição da Bizz e também a única seção que nunca mudou na história mutante da revista (que mudou até de nome, certa época). Vale dar uma conferida.
No site ele também linka para um texto do Marcelo Costa sobre a importância (da Bizz e) das Discotecas Básicas na formação de toda uma geração de fãs de música que cresceram numa época em que não havia informação sobre música no Brasil. Como o Marcelo, faço parte dessa geração de jornalistas que foi formada após a chegada da cultura pop no país, que sempre girou, entre os anos 80 e 90, ao redor da revista Bizz e do caderno Ilustrada da Folha de São Paulo. Ainda tive a sorte de escrever dois Discotecas Básicas (Revolver dos Beatles e Daydream Nation do Sonic Youth), cujos textos encontrei num outro site, que compila todos os textos escritos na última página da revista. O dos Beatles eu já tinha publicado aqui (em versão maior do que a que saiu na revista), mas o do Sonic Youth eu nunca tinha publicado. Ela vem a seguir.
…e você achando que 2013 não teria mais surpresas…
Outros colegas de trabalho lembram da convivência com o crítico Jean-Yves Neufville, que morreu no início da semana. Relembra o Camilo (de onde surrupiei a capa do especial Bizz que ilustra esse post:
Jean-Yves trabalhava na Folha Ilustrada (e freelava para a Bizz). Estava perto do segundo Rock In Rio e um dos escalados era o Happy Mondays. A banda estava no auge, representante maior de uma onda Manchester-acid house-freak. Jean-Yves entrevistou Shaun Ryder para o jornal e conseguiu uma declaração bombástica. Dia seguinte, primeira página, a manchete trazia algo como “Vocalista do Happy Mondays quer trazer 1000 ecstasies para o Brasil”
Semanas depois, estamos eu e Jean-Yves numa sala de um hotel de luxo no Rio nos preparando para entrevistar Ryder em carne e osso. Já era a semana do festival. Não tinha dado meio-dia, mas Ryder já entornava vodca e cerveja, intercalando os drinks com uma bomba de tabaco com haxixe.
Fomos entrevistando ele em dupla. Eu pergunto dos 1.000 ecstasies e Ryder se exalta. Diz que foi sacaneado, que nunca ia ser trouxa de falar algo assim para um jornalista. Jean-Yves conta que era ele o entrevistador e o contesta. Ryder fica puto, continua negando e fecha a cara. A entrevista, entre resmungos em forte sotaque nortista inglês, tragos e chapação, fica ainda mais incompreensível.
Vinícius, ex-Jazz+, também lembra da convivência com o jornalista:
Duas décadas depois, precisamente em 2003, conheci o Jean pessoalmente quando criei a revista Jazz+. Para a minha surpresa, o Jean roqueiro era um apaixonado pelo jazz. Logo que descobriu a primeira edição nas bancas tratou de me procurar para oferecer seus serviços. Aceitei sem pestanejar.
Quando debatíamos as pautas pelo telefone era possível escutar, ao fundo, bem baixinho, a trilha sonora de nosso bate papo. O tocador de músicas de sua casa (CD, vitrola, iPod?) produzia sons de Chet Baker, Bill Evans e outros notáveis do jazz. Nunca atendi a um telefonema do Jean cuja música de fundo não fosse jazz.
Quando a Jazz+ deixou as bancas definitivamente, em 2008, nosso contato enfraqueceu. Mas entre todas as matérias publicadas pelas 18 edições da revista, considero a reportagem sobre a vida do saxofonista Charlie Parker, escrita por Jean, a melhor de todas.
Jotabê lembra do estilo do crítico:
Cortês e elegante, não costumava cultivar a polêmica fácil e ficou conhecido no meio musical por sua doçura e resistência ao debate hostil. Recentemente, Neufville buscava voltar à atividade de crítico, que tinha abandonado desde que assumiu a de tradutor. Considerava que a música vivia um momento de impasse, sem criatividade, e ocupando-se mais de combinações de coisas pré-existentes do que da busca do novo.
Forastieri também:
Jean-Yves era especializado, desesperado por música. Se preparava cuidadosamente para entrevistar os artistas. Ouvia álbuns repetidamente para preparar as resenhas. Aporrinhava editores com questiúnculas para ele da maior relevância, sempre com português preciso e aquele sotaque frrancês, Andrrê, Forrasta etc. Ouvia rock e jazz e MPB e música clássica com idêntica ausência de preconceitos. Eu, fundamentalista dos três minutos, não conseguia entender. Discutíamos música sem fim, traçando x-saladas e rabadas ao molho ferrugem nos botecos dos Campos Elíseos.
Parir uma crítica era trabalho de ourivesaria. Sofria, suava, levava século e meio. Uma vez, fechamento da Ilustrada atrasado, só faltava seu artigo. O secretário de redação veio cobrar aos gritos: desce como tá, vamos fechar já! Corta pelo pé (é como jornalista chama o fim da matéria, o pedaço mais dispensável). Jean-Yves deu o contra: é melhor cortar aqui – e começou a aparar as primeiras linhas do texto, onde, na teoria, deveria estar o mais importante… e a gente ao lado passando mal com a cena.
Uma vez veio pedir, todo educado: você já escreveu este ano sobre os novos discos da Legião Urbana e Titãs, não se incomoda se eu fizer os Paralamas? São as três bandas mais importantes do Brasil. Respondi que sim, lógico, besta com delicadeza do colega experiente, quase dez anos mais velho.
Vendi para ele meu primeiro computador, primeiro dele também, com impressora e uma mesa metálica trambolhenta pra acomodar tudo. Eu tinha dito que era um 386, me confundi, ignorante. Levei na casa dele, instalei, a máquina liga, é um 286. Ele tudo bem, sem problemas, vou usar é para escrever mesmo. E aí abriu uma cerveja, e passei horas explorando sua enciclopédica coleção de discos. Me apresentou sua mulher, Valéria, linda e inteligente. Pensei: Jean é um homem de sorte.
Mas ainda me impressiona que não haja nada da obra do crítico franco-paulistano online. Alguém consegue sacar alguns de seus textos clássicos de alguma cartola? Quem achar pode copiar nos comentários.
Quem quiser descrever os anos 90 vai ser obrigado a mencionar a ironia. Não aquela ironia fina e inteligente que apreciamos, mas a nefasta, de liquidação, acessível a qualquer pobre de espírito armado de sorriso desdenhoso e má fé. Dizer uma coisa dizendo que quer dizer outra e falar sem qualquer compromisso com o que se disse. Aí falar em sentimentos passou a ser brega, defender convicções políticas passou a ser panfletário e retrógrado, acreditar em amizade passou a ser babaca, pedir decência passou a ser patrulha e respeitar o próximo passou a ser coisa de otário. “Romântico”, vejam só, passou a ser pejorativo.
Assim Mumu começava o texto sobre os primeiros shows de sua banda contemporânea favorita, o Teenage Fanclub, que assistiu, há dez anos, em Londres. O texto saiu em uma das últimas encarnações da Bizz (na fase editada pelo Tomate) e ele aproveitou a década de distância dos shows originais para ressuscitá-lo. Emboa hora, ainda mais que estão cogitando a vinda dos TFC mais uma vez ao Brasil. Dedos cruzados!
E por falar em Andy Gill, ressuscito aqui a entrevista que fiz com ele quando o Gang of Four veio para o Brasil, em 2006, que transformei em depoimento em primeira pessoa para uma edição da Bizz safra Ricardo Alexandre em que eu cuidei da capa – que era sobre o ativismo político de John Lennon logo que ele saiu dos Beatles. Para combinar com o tema, pedi para o Gill falar da influência da política em sua vida e arte.
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“Eu comecei a ouvir música pop quando era garoto, ainda no rádio, mas não tinha consciência nenhuma sobre política, algo que só fui me dar conta à medida em que fui crescendo, como acho que é com todo mundo. E aconteceu à medida em que eu fui conhecendo outros artistas, como Jimi Hendrix – acho que Hendrix foi a primeira coisa que realmente me interessou no rádio –, os Rolling Stones, The Band, Dylan e, depois, mais tarde, dub e Velvet Underground.
Não sei se houve uma revelação política propriamente dita, algo que ficasse marcado na minha memória. Fui deixando de ser adolescente e percebendo meu lugar no mundo, questionando as coisas, acho que isso é bem natural para qualquer um. Mas havia algo nestas bandas que não era muito político, propriamente dito.
Eles pareciam usar a política como uma pose. Eu via os Rolling Stones cantando ‘Street Fighting Man’ e não parecia que eles estavam querendo fazer o que diziam na música. Era mais para acrescentar outro elemento de perigo à banda, coisa que eles já vinham fazendo desde o começo dos anos 60. Não era pra valer.
Outro aspecto era o de bandas como o MC5, que mandava tudo à merda, e parecia que estava apenas sendo panfletário contra ‘o sistema’, mais interessado em ir contra a sociedade careta do que em discutir política, de um jeito ou de outro. Esse era um problema muito específico em relação a várias bandas, que pareciam ter vagamente uma tendência de esquerda, anarco-alguma coisa, mas que não tinham vocação política e eram mais rock do que qualquer outra coisa.
E você tem artistas de esquerda mais tradicional, que cantam músicas de antes de terem nascido. Ou mesmo que componham estas músicas, como o Billy Bragg faz até hoje, não parecem atingir o coração das pessoas. Não me parecem relevantes hoje, nem me pareciam nos anos 80. Mesmo John Lennon, que queria se comunicar com as pessoas, estava preso no fato de ser uma superestrela.
Assim, foi fácil saber o que queríamos quando montamos o Gang of Four. Já tínhamos base para saber o que não queríamos. Não queríamos soar panfletários, nem partidários. Não queríamos soar de esquerda ou de direita. Queríamos que as pessoas pensassem em política de uma forma menos maniqueísta. Quando falamos de política, parece que estamos falando apenas dos políticos, mas quem vota neles somos nós e podemos fazer política o tempo todo, em qualquer lugar ou hora.
O fato de termos surgido durante o punk nos deixou ainda mais vacinado em relação a isso. Logo as pessoas estavam tachando o punk de político, Malcolm McLaren lançou esse conceito na primeira hora. Mas era exatamente a mesma coisa de antes. Não era política, era um assessório chamado política. Não queríamos isso.
Quando eu e o Jon (King, vocalista da banda) começamos, nos perguntávamos: ‘O que motiva as pessoas? O que as faz fazerem o que fazem?’. É claro que você pode resumir isso em apenas ‘economia’, mas não é só isso. As pessoas ainda estão fazendo as mesmas coisas que faziam no século passado, o marido ainda trazia o dinheiro para casa enquanto a mulher cuidava da comida e dos filhos. O mundo havia mudado, mas essas relações ainda não. Pelo contrário, elas haviam se tornado prisões: família, emprego, propriedade. As pessoas se prenderam nisso de uma forma que acham que isso é a vida delas.
Temos uma música chamada ‘Natural’s Not In It’ que fala exatamente sobre isso. Tudo aquilo que chamamos de “natural”, na verdade, é artificial, é criado pelo homem. Seja a sociedade, o conceito de justiça, de bom senso… Tudo isso é invenção humana, nada disso é natural. As idéias não são naturais. Qualquer uma delas, todas elas – são inventadas.
E não queríamos ser os portavozes da nova esquerda. Para isso, tiramos todas as referências de política de nossas letras e títulos – você vê os nomes das músicas e não diz que o conteúdo delas é política –, tudo que pudesse lembrar a política dos jornais tava fora. Não queríamos dizer ‘você está certo’, ‘você está errado’, ‘você é de esquerda’, ‘você é de direita’. Não queríamos nos separar das outras pessoas. Queríamos, sim, lembrar pra elas que, esquerda ou direita, estamos nesse barco juntos.
Mas a forma que você colocou é bem razoável. É isso: o Gang of Four não era uma banda de protesto, mas uma banda de crítica. Uma crítica à sociedade, à forma que vivemos, à música, ao rock, ao punk rock, às outras bandas, a nós mesmos. Era mais ou menos como o Situacionismo dos anos 60, não queríamos nos levar a sério, mas não queríamos só isso.
E aí tem o outro elemento que, pra nós é crucial, que foi o ritmo. Não queríamos soar como rock, não queríamos ser mais uma banda de rock. E tanto eu quanto Jon já vínhamos pensando em experimentar com ritmo, somos fãs de dub até hoje, de krautrock, do James Brown. Mas seria ridículo tentar recriar a atmosfera de qualquer um desses artistas na Inglaterra dos anos 70.
Por isso partimos do zero, da tela em branco, e fomos acrescentando as coisas à medida em que começamos a tocar. E as coisas foram se encaixando. O legal é que não pensamos nessas coisas, elas simplesmente foram entrando em seu lugar. Põe um prato aqui, um bumbo ali, um riff mais à frente. Começava com um baixo solto, entrava a bateria reta, a guitarra fazendo ruídos e o vocal – mesmo que a letra importasse – funcionava como um instrumento. As coisas iam entrando em sintonia sem que pensássemos nisso. Em vez de fazer canções de amor, fazíamos canções de antiamor – o que é diferente de uma canção de ódio, veja bem.
Foi quando começamos a por elementos de disco music na mistura. Primeiro porque adorávamos disco. A cena começou a ficar ruim devido à forma que a mídia explorou o tema, com filmes como ‘Os Embalos de Sábado à Noite’ e todo o tipo de banda gravando disco music. Mas antes de ficar massificado, era uma cena bem interessante e – como você colocou – política, por libertar a canção de um formato estagnado e deixar as pessoas mais soltas, em vários sentidos.
Eu entendo perfeitamente a raiva que as pessoas que gostam de rock tem com a dance music. Eles vêem um DJ tocando e acham que ele não é um músico. Eles vêem as pessoas se entregando à dança e acham que elas estão se alienando. Mas eles não percebem que a disco music – que depois se subdividiu nas diversas formas de música pop que hoje dominam o mercado, do novo rock ao hip hop – é tão ou mais rock’n’roll do que o próprio rock. Porque liberta as pessoas de diversas amarras e, se na época do punk, o rock já dava sinais de conservadorismo, hoje ele é o próprio sistema. Por isso, apesar de entender a raiva do rock, eu a acho ridícula.
Tanto que fomos vítimas dessa raiva quando, no nosso terceiro disco (Hard), fomos acusados de sermos traidores, só porque queríamos mexer com música pop e com sintetizadores. Na verdade, o disco não saiu legal, porque quem ia nos produzir era o Nile Rodgers, mas ele foi substituído em cima da hora devido a uma confusão da gravadora. E o produtor que entrou no lugar, não sabia nada da gente, então o Hard é um disco que eu não gosto tanto, embora algumas faixas – como ‘A Man with a Good Car’ ou ‘Woman Town’ são faixas que eu gosto. Mas os fãs odiaram! Embora hoje muita gente goste deste disco, o que eu acho ao mesmo tempo estranho e interessante, esse poder do tempo”.
Não custa voltar no Zappa, que já pensava nessas questões no começo dos anos 80. O texto abaixo é um trecho de uma matéria que escrevi pra capa da Bizz, quando ela ainda existia em 2006, sobre música digital. A íntegra da matéria tá aqui.
* Texto publicado originalmente no dia 20 de agosto de 2009
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“CONSUMIDORES DE MÚSICA GOSTAM DE CONSUMIR MÚSICA, NÃO DISCOS DE VINIL EMBALADOS CAPAS EM PAPELÃO”. O negrito e o caps lock são tirados direto do original, que não é de nenhum consultor trend-setter descolado fazedor de cabeça de executivos da indústria da tecnologia e do entretenimento, e sim de ninguém menos que Frank Zappa. Logo que a música se despregou de seu suporte tradicional – na época, o disco de vinil – transformando-se em pedacinhos de zeros e uns transferíveis por redes de computadores, o principal iconoclasta musical do século vinte fez uma pergunta que até muita gente boa não fez: por que, se a música podia ser digitalizada – ou seja, livre de um suporte físico palpável (como o disco de vinil, a fita cassete, o cilindro do fonógrafo…) – por que raios a indústria fonográfica lançou um novo suporte?
Aí entramos no terreno da especulação, mas alguns fatos falam por si. O compact disc, apresentado ao público em 1982, é quase tão barato para fabricar quanto um disco de vinil, mas é mais prático para ser estocado e transportado – mais leve, menor, menos suscetível a atritos. Para tocá-lo, no entanto, os consumidores deveriam ter que comprar um novo equipamento, o CD-player – mais caro que qualquer outro player médio da época. E devido à sua suposta melhoria na qualidade do áudio (subjetiva, o tempo mostrou – vide os audiófilos de hoje em dia que ainda veneram o velho vinil), o disco passou a custar, em média, ao menos o dobro do antigo LP.
Alie a isso uma enorme campanha de marketing de todas as grandes empresas de tecnologia, que pegavam carona na novidade “CD” para lançar aparelhos que, além de alardear o compact disc como o futuro do áudio, rebaixava o vinil como suporte datado, mídia morta. Aos poucos, vitrolas e coleções inteiras de discos eram vendidas ou jogadas fora para abrir espaço para os pequenos discos prateados embalados em plástico. Sem querer – porque, por mais maquiavélicas que fossem as multinacionais na época, elas não teriam capacidade para pensar nisso (basta ver o zelo administrativo que fez com que o negócio praticamente falisse durante os anos 90) -, as pessoas estavam comprando um mesmo disco que já tinham pela segunda vez.
Entra Frank Zappa, crítico insistente de tudo que pode ser criticado – inclusive dele mesmo. De ascendência ítalo-americana, o compositor começou sua carreira com um pequeno estúdio em Cucamonga, gravando grupos de doo-wop, surf music e até se envolvendo com filmes pornô, até que entrou no imaginário mundial com discos que ridicularizavam o movimento hippie quando este era mais popular do que o YouTube em 2006. Desde os anos 60, mirou sua metralhadora musical em qualquer coisa que pudesse se mover, mas tinha como alvos favoritos o establishment norte-americano (inteiro, do governo às divas da indústria do entretenimento) e a estupidez humana. Engajado em causas espinhosas e delicadas, ele se pronunciou prontamente ao advento da música digital e em 1983, no mesmo ano em que o CD chegava ao mercado americano, escreveu sua “Proposta para a Substituição da Mercadoria Disco”, de onde saiu a citação em negrito do início. E finalizava a primeira parte de seu texto com mais negrito e letras maiúsculas: “As pessoas hoje em dia gostam mais de música do que nunca e eles gostam de levá-la onde quer que elas vão. ELAS PODEM OUVIR A DIFERENÇA ENTRE ÁUDIO DE BOA QUALIDADE E ÁUDIO DE MÁ QUALIDADE… ELAS SE IMPORTAM COM ESSA DIFERENÇA E ESTÃO DISPOSTAS A PAGAR PARA TER ‘ÁUDIO PORTÁTIL’ DE ALTA QUALIDADE PARA USAR COMO ‘PAPEL DE PAREDE PARA SEU ESTILO DE VIDA’”. Isso, lembrando, DEZ anos antes de a web atingir o grande público, DEZESSEIS anos antes do Napster e DEZOITO anos antes do iPod.
Zappa tinha até a resposta para problemas que ainda nem haviam começado a existir e aí que seu texto fica mais incisivo. Na segunda parte (chamada apropriadamente de “Respostas para Perguntas Intrigantes”), ele nos apresenta ao “Q.C.I.”. “Propomos adquirir o direito de duplicar digitalmente e estocar O MELHOR de cada um dos difíceis de transportar Q.C.I. (Quality Catalog Itens, Itens de Catálogo de Qualidade) de todas as gravadoras, reuni-los em um lugar de processamento central e torná-los disponíveis via fone ou cabo de TV paga, diretamente acessível através dos dispositivos caseiros de áudio do consumidor, com a opção de transferência de um ambiente digital para outro através da F-1 (o gravador de áudio digital da Sony, disponível para o público), Beta Hi-Fi ou cassete análogo simples (que precisa apenas da instalação de um conversor no próprio fone, cujo chip principal custa US$ 12)”.
“Todas as contas de pagamentos de royalties, cobranças do consumidor, etc., seriam automáticas e estariam no próprio programa básico do sistema”, Zappa continua. “O consumidor tem a opção de se inscrever em uma ou mais categorias de interesse, cobradas mensalmente, sem se preocupar com a quantidade de música que ele ou ela decidam gravar. Prover material em tal quantidade a um custo reduzido realmente diminuiria o desejo de duplicação e armazenamento, já que este estaria disponível a qualquer hora do dia ou da noite”.
Zappa simplesmente bolou um sistema de pagamentos, acesso e distribuição de música que parece atender às necessidades de todos (com a exceção daqueles que cita no início do texto – “Muitas pessoas estão empregadas no campo de promoção de discos. Estes salários são, na maior parte, desperdício de dinheiro”). Sem a internet. Sem o MP3. Sem P2P.
E conclui: “Queremos uma quantidade GRANDE de dinheiro e os serviços de uma equipe de mega-hackers para escrever o software deste sistema. A maior parte dos equipamentos, mesmo quando você ler isto, já estão disponíveis como itens existentes no mercado, apenas esperando para serem plugados uns nos outros de forma que eles possam por fim na “INDÚSTRIA DO DISCO” como a conhecemos.
Isso, repito, em 1983.
Mais um da série “textos ressuscitados” – desta vez é a entrevista que fiz com o Odair José para a Bizz da gestão Ricardo Alexandre, em 2006. Na foto abaixo, tirada pelo Cosko, que acompanhou o papo, ainda estou usando a tala na mão direita, que não estava se mexendo depois de um acidente… Que época.
Bizz entrevista Odair José
Unindo folk music com a moral do cais do porto, ele partiu de uma fazenda para a fama “cult” no terceiro milênio. No meio do percurso, foi um herói da música realmente popular brasileira
Música de baixa qualidade. Superstar. Artista de mau gosto. Sexo, drogas e rock’n’roll. Idolatria juvenil. Canções de amor. Sucesso popular. Hormônios em ebulição. Decifrar um artista pop é como lapidar uma pedra preciosa em que cada polimento revela uma nova superfície. Nelas, é possível ver tudo, céu e inferno numa mesma camada, refletindo as ansiedades de quem vê. Como Elvis, Beatles, Roberto Carlos, James Brown, Ramones, RPM, Madonna, Metallica, Mamonas Assassinas e Eminem, Odair José também atraiu amor e ódio em sua longa caminhada – cravando sucessos no imaginário popular que até hoje nos ajudam a refletir sobre a natureza de nossos preconceitos.
Mesmo que longe do dia-a-dia dos milhões de brasileiros que até hoje lembram de suas canções, Odair nunca parou de lançar discos e fazer shows. Seu recém-lançado 31º álbum, Só Pode Ser Amor (Deckdisc), no entanto, sai num momento mais do que propício para sua carreira, quando novas bandas o reverenciam nominalmente – seja nos shows em que os Los Hermanos tocam “Vou Tirar Você Deste Lugar”, na alma das composições dos cearenses Fernando Catatau (do Cidadão Instigado) e Karine Alexandrino ou no disco-tributo lançado no final de 2005.
À sombra de Roberto Carlos como os Rolling Stones acompanhavam os Beatles, Odair sempre optou pelo incerto musical, ao questionar, no imperativo, hábitos e costumes (sexuais, religiosos, conjugais) que eram endossados pelo Rei. Assim, liderou a lenta transformação do pudor brasileiro nos anos 70 (acompanhado pelas pornochanchadas, pelo Pasquim e por Leila Diniz), ao mesmo tempo em que dominava as ondas do rádio e lhe emputavam o título de cantor das empregadas domésticas como se isso fosse um demérito.
Encontrá-lo para uma conversa na varanda de sua casa em Cotia, interior de São Paulo, no entanto, não o encaixa em quaisquer um dos rótulos que forem sugeridos. Sem mágoa nem arrogância, com aquela feição anos 70 que lhe aproxima fisicamente de Zico e Oreste Quércia, e os mesmos olhar distante, sorriso apagado, rosto sofrido e tristeza constante que cantou em “Assim Sou Eu”, eis (mais) um brasileiro médio do interior do fim do mundo que acreditou no próprio sonho e – ao contrário de seus conterrâneos – pode realizá-lo.
Qual é a sua primeira memória musical?
Meu pai mexia com terra, na região de Morrinhos (interior de Goiás), perto de Caldas Novas e chegava a época da colheita, ele fazia uma confraternização. Foi quando eu vi um trio de dois violeiros e um sanfoneiro. Achei legal e pedi um violão Natal à minha mãe de. Mas meu pai me deu um cavaquinho, porque pelo meu tamanho, era mais adequado (ri).
Tinha um cidadão que tocava violão de sete cordas na banda da cidade, aquelas bandas de coreto, e descia todo dia de bicicleta pra trabalhar na frente da minha casa. E eu ficava esperando ele passar, porque ele me ensinava todo dia um acorde, E assim, eu comecei, até que me pai me deu um violão.
Naquela época, eu tocava boleros, modas de viola, música italiana, americana. Depois mudei pra capital, Goiânia, quando tinha doze anos, quando apareceram os Beatles. Eu cantava todas as músicas dos Beatles, em serenatas, no colégio. Eu tinha uma bandinha chamada Monft.
Como?
Monft, era as iniciais da gente: Marcelo, Odair, Nadir, Fayed e Tuca… Depois fui convidado pra ser crooner de banda de baile, os Apaches, que era uma banda famosa, em Goiânia. Cantava Beatles, Animals… Mandava qualquer inglês, mas cantava (ri). Foi quando eu comecei a compor. Depois fui tocar no conjunto do maestro Marquinhos, que era bem mais profissional. Ele tinha um programa na televisão e eu fazia a parte considerada jovem, que era o que os cantores dele não gostavam de cantar. Foi quando eu conheci o Roberto Carlos, num show que ele foi fazer em Goiânia, em 65, com o RC-3. O conjunto do Marquinhos abriu o show. Fui conversar com o Roberto, falei que tinha umas músicas e o ele falou, “ah, vai pro Rio, aqui não tem condições…”. E nesse “ah vai pro Rio”, eu fui pro Rio.
Com quantos anos?
Nem 18. Saí fugido, na calada da noite, não falei pra ninguém. E eu fui na ilusão de encontrar o Roberto. Eu fiquei um ano sem dar notícias, você imagina a cabeça da minha mãe…
Fugiu de casa para ser músico?
E com pouco dinheiro. Fiquei num hotel na Praça Tiradentes, e o dinheiro deu pra ficar dez dias, depois eu fui pra rua, dormi na escadaria do Teatro Municipal, em praia, no último toalete do banheiro do Aeroporto Santos Dumont, era espaçoso. Mas eu não acredito na sorte nem em milagre, eu acredito no trabalho – por isso, eu achava que fosse conseguir rápido e consegui, porque o meu primeiro disco eu gravei em 1970, e eu cheguei no Rio em 67, 68.
Como você começou?
Eu ficava no pé dos caras. Ia pras gravadoras e ficava na porta, esperando o cara sair. E igual a mim, tinha umas cem pessoas querendo falar com o mesmo cara ao mesmo tempo. Por isso eu digo que consegui fácil, porqur em dois anos eu gravei um disco, e já fiz sucesso com esse disco.
Antes do sucesso, o que você fazia?
Eu tocava à noite naqueles, com todo respeito, puteirinhos da Praça Mauá, toquei em todos eles. E nesses lugares você tem que tocar de tudo, pra agradar quem tá lá dentro. Tocava Ataulfo Alves, Lupiscínio Rodrigues, o próprio Roberto, alguma coisa de música italiana – era bom porque a dicção era fácil, dava pra enganar melhor. Mas eu nunca me achei um cantor, eu me ajeitava dentro das notas. E de dia eu corria atrás dos caras. E eu fiquei assim um ano no pé do Rossini Pinto, que era um cara que em tudo quanto era disco que saía tinha música dele, do bolero ao rock. Ele fazia versões, compunha coisas próprias, compunha pro Roberto. No que ele prestou atenção nas minhas músicas, ele, que também era produtor de discos, me levou pra gravar, na CBS em 1970, uma música chamada “Minhas Coisas”.
Que fez sucesso.
Ela teve a felicidade de entrar num LP chamado As 14 Mais, que era um LP com um monte de gente famosa, que já saía vendendo horrores, porque tinha Roberto Carlos, Jerry Adriani, Renato Barros, Wanderléia… Aquele pessoal da CBS, que se chamam de Jovem Guarda – eu não gosto deste rótulo porque era um programa do Roberto Carlos – estavam todos naquele disco. E a gravadora de vez em quando incluía um cantor novo – e me meteram lá. E eu já saí com um sucesso, porque o cara comprava um Roberto Carlos e me ganhava de presente.
E sua situação melhorou?
Na medida em que eu comecei a tocar, comecei a conhecer as pessoas. Tinha época que eu tocava em três inferninhos daqueles por noite, e assim fui criando um círculo de amizades. Foi quando eu conheci o senhor Ataulfo Alves, que falou que eu podia morar no apartamento dele – que era um apartamento que ele usava para o lazer. “Só não dorme na minha cama”, ele dizia.
Foi quando você gravou seu primeiro LP.
Isso, que teve uma vendagem boa, 10 mil discos. E lancei um segundo LP, fiz uma outra As 14 Mais e o seu Evandro (Ribeiro), que era o presidente da CBS, não gostou. Porque a CBS era esse segmento do Roberto Carlos, com a guitarra, arranjos do Lafayette, o Renato. Aquilo era uma coisa vitoriosa, tanto que era líder de mercado. Eu gravei uma faixa chamada “Vou Morar Com Ela” e usei um pianista negão, o Dom Salvador, e ficou com um quê de jazz. O Rossini, que era o produtor, deixava, ele não tava nem aí. Era uma música ótima, fez sucesso, mas seu Evandro achou que eu tinha suingado muito e não me botou na terceira 14 Mais.
Meu contrato tinha acabado e eles me deram uma oportunidade de fazer um compacto simples, sem LP, sem As 14 Mais e sem aquele apoio da gravadora.
Um vai-ou-racha.
Um “se vira”. Aí eu gravei “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, que vendeu 800 mil compactos de cara.
Conta a história da música.
O Rossini era um cara engraçado, porque ele dava esporro em todo mundo, falava palavrão e era extremamente temperamental. “Porra, eu te dou uma chance e você só fez merda, vem gravar aquelas porras. Vou gravar mais um compacto com você, mas se não acontecer nada, você se fudeu, hein!”. Eu não me preocupava porque eu já era um cara conhecido, já fazia shows, se não fosse ali, seria em outro lugar.
Aí eu saí da CBS, que ficava na Visconde do Rio Branco no Rio, e fui pra casa, na Rua do Riachuelo. E nesse trecho, que dá uns quatro quilômetros, andando pela calçada, eu compus essa música. Eu sempre fiz música assim. Não tem aquelas coisas que o pessoal fala que a música “veio”, isso é maluquice. É que como você é compositor, tá sempre compondo. Eu era jovem, tinha 21 anos, e nessa idade você tá sempre querendo fazer alguma coisa. Cheguei em casa e gravei a música e depois mostrei pro Rossini.
E ele: “Nem pensar! Essa música de puta, não! Tou te dando a última oportunidade e você me vem com essa porra de música de prostituta! Você vê o que o Roberto Carlos faz? Beijo no cinema, deixa a garota no portão, eu te darei o céu! Isso é que é o negócio”. E eu falava: “Bicho, eu quero falar de um amor de um cara por uma prostituta”. E ele: “Não existe isso!”. Resultado: ele me deixou gravar a música e a música aconteceu praticamente sozinha, mesmo sem promoção.
Qual sua expectativa sobre a música?
Eu gostava da música, mas a minha viagem era que o que o Roberto Carlos fazia era dele. Ele já havia conquistado isso. Era muito bom, mas era dele. Eu tinha que achar meu próprio caminho. Conversava sobre isso muito com o Raul, o Raulzito, que na época era produtor e ele concordava. “Você não pode ficar na cola de ninguém, senão você não tem uma identidade”. O Raul inclusive, os fãs dele não sabem, tem uma música dele no meu primeiro LP, chamada “Tudo Acabado”, com ele tocando violão e guitarra. Mas voltando, então eucomecei a pensar na música como uma reportagem, me via como um repórter musical. Pegava o que acontece na vida das pessoas e metia na música.
Aí quando o disco saiu, me disseram: “Olha, você se vira, porque você não vai ser trabalhado”. Foi quando apareceu o Paulo César, que vendia shows na época e depois foi empresário do Evaldo Braga e inclusive morreu no mesmo acidente que matou o Evaldo. Ele me disse: “Bicho, já que ninguém trabalha seu disco, vamos fazer uns shows aí. Eu tenho uma Kombi, a gente bota umas cornetas pra divulgar, ninguém tá ganhando dinheiro mesmo…”.
Aí nós saímos pelo estado do Rio, Espírito Santo, sul da Bahia… Isso durou uns três meses e conforme a gente ia andando, percebia que a música ia acontecendo. Você ligava o rádio e fatalmente achava a música tocando. Os shows eram marcados em cima da hora e no começo a gente saía falando: “Hoje, não percam! Evitem filas de última hora!”, tudo cascata, mas depois de um mês a gente foi percebendo que aquela porra tava enchendo mesmo… E a CBS foi me achar em Ilhéus! Me botaram no avião pra ir correndo pro Rio porque o disco já era o mais vendido e o mais tocado no Brasil. E aí eu saí da CBS.
Eles nem fizeram uma proposta?
No dia seguinte que eu voltei, o seu Evandro já tinha um disco montado pra mim: “Olha, tem duas músicas do Reginaldo Rossi, três do Renato Barros, não-sei-quantas do Ed Wilson”, mas eu já tinha um disco montado na cabeça, um disco chamado Assim Sou Eu, que foi o primeiro disco que eu fiz na Polydor. Eu falei: “Olha seu Evandro, eu já tenho um disco pronto na cabeça, tenho a idéia da capa. Eu quero gravar com o Zé Roberto Bertrami, o tecladista da Elis Regina. Eu não quero tocar com o Lafayette nem com a banda do Renato. Não é nada contra eles, eles são ótimos, mas eles já fazem uma coisa que já é deles, eu quero fazer uma coisa que é minha. Eu já tenho as minhas músicas. Eu quero o Waltel Branco fazendo guitarra e arranjos. Queria o Luís Cláudio Ramos, que era irmão daquele cantor Carlos José e depois foi tocar com o Chico Buarque, tocando os violões. Queria tocar com o Mamão na bateria, o Bertrami nos teclados e o Alexandre (Malheiros) no baixo – foi a primeira vez que esses três caras, que depois viraram o Azymuth, tocaram juntos foi num disco meu; eles já se conheciam, mas nunca tinham tocado juntos”. Quem fazia os violões era o Dundum, o Hyldon, da “Casinha de Sapê”, que era muito meu amigo.
Aí o seu Evandro esqueceu que meu contrato tinha acabado e me ameaçou: “Eu vou fazer com você como eu fiz com o Sérgio Murilo, vou botar seu contrato na gaveta e você tá fudido”. Aí eu falei: “meu contrato acabou, seu Evandro (rindo). Eu já estou negociando com o André Midani e o Jairo Pires da Polydor…”.
E fui pra lá. Falei: “Eu venho, mas quero fazer esse disco. A capa assim, preta, com essas músicas e esses músicos”. Quando eu falei dos músicos eu fui até questionado: “Vem cá, esse cara toca com a Elis Regina, o outro com o Chico Buarque, você não acha que não-sei-o-quê?”. Eu falei que eles vão tocar o meu trabalho dormindo, porque o meu trabalho é simplérrimo.
Mas que concepção de artista que você buscava nessa época?
Era um Neil Diamond, Crosby Stills & Nash, Cat Stevens, Neil Young… Queria que as minhas canções tivessem aquela sonoridade. Até mesmo porque eu não tinha aquela formação musical deles. Claro que eu não virei o Cat Stevens, mas pelo menos saiu daquilo de sempre. Porque na CBS, eles usavam muita guitarra, aquela coisa do Renato Barros, de imitar os Beatles. Eu queria violões. Eu vi o Ritchie Havens no Festival da Canção, aquele negão batendo no violão, com o dedo por cima, eu queria aquilo pro meu disco.
E falando das letras, você pensou em colocar sexo no disco de cara?
Não, não foi proposital. O Rossini me falava que o Roberto Carlos era o que era porque ele não ficava falando de puta, era mais poético. “E você vem com esse negócio de cama. Tem que pensar na família”, ele tinha dessas. Eu comentava com o Raul e ele torcia a cara: “Sei não, hein…”.
Mas eu já estava vendo que os namoros não paravam no portão. As pessoas já estavam fazendo sexo mesmo, dentro do carro, atrás do muro, na praia. O sexo estava rolando. Não vou dizer que todos os casais estavam transando antes do casamento, mas 50% estavam. As pessoas tavam indo além dos beijos e do pegar na mão.
E eu comecei a falar disso nas minhas músicas. Esse era o amor que eu via, não sei se por eu ter vivido tocando nas boates, mas a coisa era mais na cama, do tesão, do desejo, do transar. E das separações que deixavam a dor mesmo. Não era aquele negócio de brigar e rasgar a fotografia e depois passar sem olhar na cara, não. Era aquela coisa do cara encher a cara três dias, da dor-de-cotovelo, a namorada ir dormir com outro… O Lupiscínio Rodrigues e o Danilo Moreira já falavam disso, mas para as pessoas, eles falavam de uma forma madura. Eu era um cantor jovem, então aquilo era um absurdo – mas também era novo.
Até que chegou a incomodar a censura.
É, mas não era essa coisa de música de protesto, de resistência, não… O negócio é que eu sempre falei o que penso, não sou estudado. Eu nunca deixei de falar o que eu penso, você pode ser o Papa que eu vou dizer, tou cagando e andando.
Agora, quando a censura começou a vetar o meu trabalho, eu ia fazer um disco e quem decidia meu repertório eram eles. Era como se a censura fosse um co-produtor (ri). Eu tive várias músicas que não foram lançadas.
Em 74, eu tinha uma canção chamada “A Primeira Noite de um Homem”, que era sobre a primeira vez que o cara vai lá comer uma mulher – ele nunca teve aquilo, já imaginou, mas lá mesmo ele nunca foi. Eu conto isso de uma forma poética, esse nervosismo, a emoção, a preocupação em agradar, o encontro dos corpos. A censura brecou a música, que era a faixa 1 do disco. Meus discos eram aguardados pelo mercado, até o próprio André Midani falou que a Philips passou a CBS e se tornou líder de mercado quando eu, o Tim Maia e o Evaldo Braga fomos pra lá, porque na época anterior, com os nossos amigos Chico, Gil, Caetano, eles estavam em décimo lugar. E o diretor pedindo pra eu desistir da música, pra lançar o disco logo, mas eu queria saber o que podia ser mudado. Até que um senhor chamado Aderbal Guimarães, que vivia dentro dos estúdios, me falou: “Se você quiser, eu conheço alguém que pode ajudar a liberar”. Então vamos, não custava nada…
Fomos a Brasília e quando fui chegando, percebi quem era e falei: “Pra onde você tá me levando?”, e o Guimarães falando “cala a boca”. Era o Golbery Couto e Silva. Numa sala grande, meio escura, uma mesa acesa, lâmpadas que só iluminam em cima da mesa e parece que o Aderbal já tinha conversado antes com ele. O cara não me olhava, não. Só que o Guimarães ficava só naquelas “e a dona Regina, como vai?”, aí eu perguntei: “o que eu queria saber, general, era o que pode ser mudado nessa letra porque eu estou com um disco parado”. Já não devia ir com a minha cara por causa da música da pílula e por causa de algumas coisas que eu tinha dito pra censura no Rio. Aí ele falou, sem olhar na minha cara: “Aqui não tem o que ser mudado, porque o que está probido é a idéia”.
O disco saiu sem a música.
O Assim Sou Eu já teve algum problema desta natureza?
Não com a censura, mas o grande sucesso deste disco era “Esta Noite Você Vai Ter Que Ser Minha”, e achavam um absurdo. A minha sogra mesmo, antes de ser minha sogra, dizia que quando eu tocava no rádio, ela desligava, porque achava que eu era pornográfico, pra você ver.
É o seu disco favorito?
Não, mas é um dos bons. Eu tava num momento muito bom. O disco que eu fiz em seguida, chamado só Odair José, talvez não tenha sido o melhor, mas foi meu disco que mais fez sucesso. Você pega as faixas e parece uma coletânea: tem a “Pílula”, tem a música da empregada, tem “Cadê Você?”, “Que Saudade”. De doze faixas, dez fizeram sucesso. Foi meu disco que mais vendeu, quase um milhão em um ano.
Como foi a sua reação ao sucesso?
Eu sou sempre do mesmo jeito. Se eu vender um milhão de cópias, eu vou estar falando com você desse jeito; se eu não vender nada, vou continuar falando do mesmo jeito. É apenas um trabalho que deu certo e outro que não deu. Não fico frustrado, nem me deslumbro. Mas sempre procuro saber o que deu certo e o que não deu. Isso aqui é só um trabalho…
Isso é fácil falar hoje, depois de vários altos e baixos, mas como foi na época?
Entre 73 e 74, não dava. Eu fiz vários shows que ficava mais gente de fora do que de dentro, porque não cabia. Teve uma época em que fizeram um quadro no Fantástico que perguntava o que valia mais, prestígio ou popularidade? E me colocaram do lado do Milton Nascimento – eu ganhei disparado, porque as pessoas comiam e dormiam Odair José. Foi bom? Foi pra caralho. Incomodava? Não. Nunca mandei fazer filas de segurança, a não ser quando eu raspei a cabeça.
Isso aconteceu quando o Wagner Montes, que era muito meu amigo, me disse que eu andava muito agitado e que era pra eu procurar um tal guru meio zen, que estava no Rio. E eu fui lá e ele me aconselhou que eu raspasse a cabeça por uma questão de limpeza de aura. E na época eu tinha uma cabeleira. Aí eu disse: “Bicho, eu não tenho como raspar a cabeça, não, eu faço show todo dia, o Brasil inteiro me conhece. Tenho um contrato com a televisão, se eu aparecer careca, o Boni manda me matar”. Aí o Wagner, cheio de idéias, me levou num lugar em que eles fizeram umas perucas iguais ao meu cabelo, cinco perucas.
E o Pinga, Zé Carlos Mendonça que era um empresário de shows, tinha me contratado pra fazer vinte shows e eu ia com a peruca. E no primeiro show já tinha um monte de gente, e eu disse: “Pinga, isso não vai dar certo, os caras vão arrancar a peruca”. E ele: “Não, a gente faz um corredor com a polícia”. Mas não adiantou nada, arrancaram a peruca. Foi a única vez que eu usei segurança.
E a parte do deslumbre com o sucesso, dinheiro, drogas, mulheres, como você lidou com isso?
Eu ganhei muito dinheiro e gastei muito dinheiro à toa. Se eu tivesse guardado a metade do meu dinheiro, hoje eu estaria quaquilinário. Mas não me arrependo. Às vezes faz falta, mas eu não virei músico pra ganhar dinheiro. Se eu tivesse trabalhado a vida inteira no barzinho da Praça Mauá, seria feliz do mesmo jeito.
Sobre mulheres, eu sempre curti minhas namoradas, mas eu sempre fui homem de uma mulher só. “Vamos comer todas” nunca fez o meu gênero. Eu não sei viver sem mulher. Até me questiono: “Será que quando eu morrer vai ter mulher pra onde eu vou?” Porque se não tiver, vai ser uma merda. Porque tem umas partes da Bíblia que Jesus diz que lá em cima, ou lá embaixo, pra onde a gente vai, não tem disso. Porque chega uma hora que um cara questiona na Bíblia e Jesus diz: “Não, não é assim”. Então, tá mal.
Drogas: experimentei maconha e cocaína, mas não fazia a minha cabeça. O baseado me deixava muito zen, até demais. Eu já sou meio marcha lenta, aquilo me deixava mais lento. A cocaína me deixava três dias com o olho arregalado, também não funciona. A minha droga sempre foi a cachaça. Não a cachaça mesmo, mas um uísque, sempre gostei de uísque, e ultimamente tenho gostado de um bom vinho. Até tenho tomado cerveja, porque de vez em quando faz um calor danado e uma cervejinha cai bem.
Você sempre foi rotulado como um artista cafona Como você lidava com a questão do mau gosto?
Eu não tinha essa preocupação. Eu fazia o que eu sabia fazer e e estava dando certo. Em 73, eu era o cara que mais vendia discos no país – e fazendo isto. Eu tinha um contrato com a Globo, em que durou dois anos, que eu tinha que aparecer na televisão quatro vezes por mês. E eu fazia sucesso com aquilo, por isso não existia – como até hoje não existe –, essa preocupação se aquilo é de mau gosto ou não. Eu sempre procuro fazer o melhor, dentro daquilo que eu sei fazer.
Eu compus umas 400 músicas, só as gravadas por mim são umas 350. Dessas, 150 são muito ruins. Mas entre as que sobraram, tem umas muito boas. Até umas que não fizeram sucesso.
Mas essa pecha de cafona te incomodava?
Gosto é uma coisa de cada um. Mas eu nunca tive, meu irmão, nunca tive mágoa, nem só na minha carreira, nem na minha vida. Eu sempre li todos os comentários ao meu trabalho, nunca me magoei. Eu nunca li por esse lado. O cara pode até meter o pau no meu trabalho, é um direito dele.
Agora mesmo, na Folha de S. Paulo, o Evangelista compara o tributo que fizeram pra mim com o meu disco novo, dizendo que meu disco novo não teria novidade, que é aquilo que as pessoas esperam do Odair José. A gravadora não gostou, achou que eu fiz mal de mostrar o disco e que ele se colocou contra o disco. Mas o que ele falou é a mais pura verdade, o disco é o Odair José. E não era isso que eles queriam?
Eu tenho uma música chamada “Cadê Você?”, que ela tem três acordes, que parece o “Parabéns a Você”, de tão simples, ela não tem nada. Mas só ela, cantada por mim ou por outros artistas, já vendeu mais de sete milhões de discos. Agora, vai fazer uma música dessas? Se fosse fácil, eu fazia mil. Fazer uma música cheia de acordes, de coisinhas pra lá e pra cá, é muito mais fácil de fazer. Mas faz um “Mamãe Eu Quero” por dia. Não faz…
Outro dia eu tava assistindo TV e passou uma entrevista com o Carlos Lyra e ele falou uma coisa tão fraca: “Você sabe que nós, o pessoal da bossa nova, éramos rapazes de classe média alta, pessoas bem informadas, nós fazíamos música pra gente mesmo. Não íamos tocar na Rádio Nacional, onde tinha o Francisco Alves, a Ângela Maria. O nosso negócio era mais intelectual, era pra Ipanema”. O cara é um babaca! Porque todos eles eram cópias do João Gilberto, que veio lá de Juazeiro da Bahia, nunca foi intelectual e não morava em Ipanema…
E queria tocar no rádio.
Esse cara é tão idiota e eu não sabia. O Chico Buarque não fala desse jeito, o Caetano Veloso também não pensa dessa maneira. Quer dizer, gente babaca tem em qualquer segmento musical.
Você chegou a ter outras controvérsias, depois do sucesso?
Tem um disco meu, depois do Lembranças, que chama só Odair. Esse disco tem uma música que se chama “Na Minha Opinião”, que fez muito sucesso na época, que fala que pra você estar com uma pessoa você não precisa ser casado no papel. Eu fui até excomungado pela Igreja Católica, o João Gordo que me lembrou no programa dele: “Pô, que legal, esse cara foi excomungado! Que que tu fez? Eu faço um monte de merda e nunca fui”. Esse disco também tem uma música chamada “Viagem” que fala de um baseado.
Foi quando eu fiz o disco O Filho de José e Maria e todo mundo disse que eu tinha ficado doido. Eu escrevi 24 canções que, na ordem, cada uma fala de uma fase da pessoa: a primeira é quando a pessoa nasce e vai até a última que é quando o cara morre, ou se entendeu. Disseram que era uma ópra-rock, mas eu nem sei o que é isso. A igreja não gostou, porque achavam que eu tava falando Jesus Cristo – e tem uma música que o cara fica doidão, outra que ele não sabe se é bicha ou macho. Mas esse disco não ficou nem 50% do que eu queria.
Era um disco pra ser tocado em teatro, não era pra tocar num clube, pro cara ouvir enchendo a cara de cachaça, nem pra tocar numa praça, com uma mulher pendurada no pescoço. Fui trabalhar com o Guilherme Araújo, que era empresário de teatro. E vieram perguntar se eu não gostava do que eu fazia, se eu tinha vergonha de tocar a “Pílula”, que bobagem. Esse disco não foi vitorioso comercialmente, mas é um disco muito bem feito. E eu queria fazer um disco duplo, mas a Polygram não queria lançar, então fui procurar outra gravadora. Fui pra BMG mas quando cheguei lá disseram pra não fazer duplo.
De onde você tirou inspiração pra fazer um disco desses?
Duas coisas. Primeiro, o som: eu achava o máximo o som das guitarras daquela época, do pop do Joe Walsh, aquele disco ao vivo do Peter Frampton, aquela guitarra emborrachada, só ele e três caras de apoio e vendeu vinte milhões de álbuns. Então a idéia inicial era eu ter uma banda como se fosse de garagem. Eu montei essa banda, com uns amigos. Na época, eu tava muito bem de vida, tava solteiro, não tinha compromisso com nada, passava o dia na praia do Pepino sem fazer nada e pensei, “vou fazer uma banda” e fiz. A gente ensaiava lá no Vidigal. Quando eu fui gravar, o Durval Ferreira, aquele da bossa nova, começou a por defeito nos músicos: “Esses caras não tocam porra nenhuma!”. Mas a intenção era aquilo mesmo, tipo nos Rolling Stones, que aquele cara não é o melhor baterista, mas pra aquilo ali era ele mesmo!
Depois, é a idéia do tema. Eu tava no Rio e fiquei chateado com uma situação e esse senhor, o Aderbal, que me levou pra falar com o Golbery, veio me perguntar o que eu tinha. Eu expliquei e perguntei o que eu podia fazer? Eu perguntei e ele saiu da mesa. Pensei: “Qualé a desse velho? Eu pergunto uma coisa pra ele e ele sai? Deve estar ficando esclerosado”. Deu uma meia hora e ele aparece com um livro na mão. “Você me perguntou uma coisa que eu não posso responder, mas esse cara pode”. E me deu O Profeta, do Kalil Gibran. Eu comprei e li tudo dele, achava o Kalil Gibran o máximo. E foi dali que eu resolvi escrever as letras do Filho de José e Maria, eu passava o dia inteiro trancado no quarto sem fazer mais nada, só tomando vinho e lendo aquilo. E aquilo virou uma bola de neve.
E a partir desse disco, as pessoas começaram a fazer questionamentos sobre a minha competência pra vender discos, mas foi até legal, porque você ter a obrigação de todo disco ter de vender é uma bosta. Até porque você não consegue isso a vida inteira. E se você analisar, essa coisa de fazer sucesso, fazendo músicas direto, é um ciclo de sete anos. Pode ver, todo mundo, tem raras exceções, só aguentaram sete anos, pode reparar, Beatles mesmo: sete anos.
E os seus sete anos foram com O Filho de Maria e José?
Sim. Depois eu tive um sucesso ou outro. Eu fiz a música-tema do casal Fábio Júnior e Glória Pires na primeira versão da novela Cabocla, chamada “Até Parece Um Sonho”. Aí começou: faz um que vende, faz outro que não vende tanto… Mas esse negócio de fazer disco todo ano é coisa de mercado brasileiro, mas é um compromisso meio babaca. Pode ser bom pra gravadora, porque se o artista tá vendendo, eles têm o que vender. Mas o músico corre o risco de ir pro estúdio e fazer um disco que não tem nada. Eu tenho 31 discos, desses, dez eu não devia ter lançado. Por que é mal gravado? Não, é porque eles não têm nada, nem são em cima do muro porque nem muro tem. Às vezes, é melhor nem fazer. E depois de 36 anos, eu não posso querer lançar um disco todo ano…
Mas eu nunca parei de fazer shows, mesmo porque eu preciso, primeiro por causa do meu sustento, e depois porque se eu fico um mês sem ir pro palco é como se tivesse faltando um pedaço. É uma necessidade orgânica de trabalhar. Todo mês eu faço show, não consigo ficar sem tocar.
Você se vê mais como um trabalhador do que como um artista.
Eu sou um operário da música, sempre fui. Tem gente que grava dois discos, fica rico e compra posto de gasolina, prédio e sai dessa vida de artista. Tem gente que quer ser reconhecido na rua, comer as mulheres, ser famoso. Não tem nada de errado com isso, mas eu não sou assim. Sempre quis essa vida que eu levo, com erros e acertos. Fiz um disco não tão bom há dois anos, errei. Agora tem um trabalho novo, fizeram um tributo, o disco novo tá bom. Eu sempre fui assim, sempre fui feliz assim e sou feliz por ser assim, um homem simples.
“Assim Sou Eu”
Odair José de Araújo, nascido em 16 de agosto de 1948 em uma fazenda no município de Morrinhos (GO), foi um dos cantores mais populares da música brasileira. Capitão de um time de intérpretes que, devido à dramaticidade na interpretação e o apelo visceral às profundas emoções humanas, fez com que se distanciasse da historiografia oficial da MPB, sagrada nos cadernos de cultura dos jornais – resumindo: eram cafonas e populares. Sem o vozeirão de seus pares Agnaldo Timóteo, Nelson Ned e Waldick Soriano, Odair compensava ao abordar temas inusitados e tidos como impróprios à época, e assim emplacou hits nos anos 70 que estão até hoje no imaginário nacional, como “Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)”, “Revista Proibida”, “Eu Chorei (O Parto)”, “Esta Noite Você Vai Ter Que Ser Minha” e “Vou Tirar Você Desse Lugar”.
“Cadê Você?”
Odair José – Odair José (Phonogram/Polydor, 1973)
Como o próprio assinala, “quase uma coletânea”, devido à quantidade de sucessos. De “Deixe Essa Vergonha de Lado” à “Pílula”, passando por “Cadê Você” e “Eu, Você e a Praça”, o disco seguiu a mesma fórmula certeira do anterior, Assim Sou Eu (incluindo o Azymuth como banda de apoio), e Odair José entrou para o seleto time dos brasileiros com mais de um milhão de discos vendidos.
Vou Tirar Você Desse Lugar – Vários (Allegro, 2005)
Mais um tributo que, sem querer, cria um cânone e une gerações a partir de um rótulo suscinto do artista em questão. No caso, “rock romântico”, que une gerações (Paulo Miklos, Picassos Falsos, Zeca Baleiro e Mundo Livre S/A de um lado, Poléxia, Jumbo Elektro, Suíte Super Luxo e Los Pirata do outro), estilos e abordagens. As favoritas de Odair? Pato Fu, Leela (“se fala Líla ou Lilá?”, ele pergunta) e Mombojó.
Eu Não Sou Cachorro, Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar – Paulo César de Araújo (Record, 2002)
Numa obra tão importante para a música brasileira quanto o documentário A Negação do Brasil (de Joel Zito Araújo, sobre racismo) para a TV nacional, Paulo César arma-se de Paulo Sérgio, Benito de Paula e Lindomar Castilho para peitar, um a um, os preconceitos disfarçados de bom gosto da década de 70. Nela, Odair José é um Bob Dylan literalmente dos pobres, que troca a política social pela crônica de costumes pçara fazer sua própria revolução folk.
E já que a vaibe é a ressurreição de textos, eis o Discoteca Básica que fiz sobre o Revolver, dos Beatles, na penúltima encarnação da Bizz, em 2001.
A mudança de ares de uma era resumida em um disco
Antes de abandonar os palcos, os Beatles começaram a experimentar em estúdio, guiados por música erudita, pop norte-americano, aventuras técnicas e drogas psicodélicas, continuando à frente de seu tempo com o fundamental Revolver
Paul McCartney incentivando os Beatles a fazerem pequenos trechos de sons superpostos, inspirados em John Cage e Karlheinz Stockhausen. John Lennon querendo soar como o Dalai Lama no alto do Himalaia ao cantar letras inspiradas na versão do Dr. Timothy Leary para O Livro Tibetano dos Mortos. O dedo oriental de George Harrison em uma canção sem mudanças de acordes. A bateria frouxa e hipnótica de Ringo Starr, mais tarde ressuscitada por moderninhos como Beck (“New Pollution”) e Chemical Brothers (“Setting Sun”). O produtor George Martin obrigando funcionários dos estúdios Abbey Road a sincronizarem gravadores em colagens aleatórias de som. O técnico Ken Townshend inventando os vocais ADT (Artificial Double Tracking) e o engenheiro de som Geoff Emerick metendo a voz de Lennon numa caixa Leslie dentro de um órgão Hammond. E isso tudo no primeiro dia de gravação do sétimo disco dos Beatles, a quarta-feira dia 6 de abril de 1966, para uma única canção. A música se tornaria “Tomorrow Never Knows”, mas ali, no início do álbum, o grupo assinalava a faixa como o começo de uma nova fase, batizando-a sem modéstia de “Mark I”.
Fato – afinal, um ano antes estavam gravando a popzinha “You’re Going to Lose that Girl” e dois anos antes era a vez do rock “A Hard Day’s Night”. A distância era muito grande. “Tomorrow Never Knows” era o início de uma era de experimentação na música popular que iria explodir na renascença psicodélica do ano seguinte, transformando o horizontes da cultura pop no caleidoscópio de referência que conhecemos hoje. Com Revolver, os Beatles entravam numa escalada artística que iria dar em obras-primas como Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, o Álbum Branco e Abbey Road, finalmente atingindo o topo do mundo pop. Até então, com o jovem e moderno Rubber Soul, eram uma banda pop exercitando todo seu potencial. De 1966 em diante, passariam a explorar as novas fronteiras da arte contemporânea, mas sem perder o senso de perfeição que haviam mirado no álbum anterior.
De repente, descobriam as vantagens da manipulação sonora depois de gravada. “Revolver estava sendo conhecido como o disco em que os Beatles diziam: ‘OK, está ótimo, agora vamos inverter isto ou acelerar ou arrastar”, lembra Emerick no livro The Complete Beatles Recording Sessions, “eles tentaram tudo de trás pra frente, só pra ver como soava”. “Quando experimentamos o som de trás pra frente, eles passaram a inverter tudo”, concorda George Martin em seu Summer of Love – The Making of Sgt. Pepper. As inovações técnicas iam além da distorção, aproximando a microfonação o máximo possível: microfones dentro de instrumentos de sopro, grudados em violoncelos, colados na bateria. “Eles ouviam um monte de discos americanos e ficavam perguntando: ‘Como podemos ter este som?’”, recorda o produtor.
Mas enquanto a técnica entusiasmava o lado juvenil de George, Geoff e Ken, o grupo estava sendo ousado mesmo nas novas composições. As drogas exerciam um papel fundamental na nova fase do grupo. “Dr. Robert” cantava sobre um médico pronto para levantar o astral de quem quisesse, uma versão musical para Max Jacobson, o farmacêutico-mor da marginália nova-iorquina; “Got to Get You Into My Life” é sobre o entusiasmo de Paul McCartney com fumo (“é o meu primeiro arroubo sobre maconha”, confessa Paul na autobiografia Many Years from Now); assim como a preguiçosa “I’m Only Sleeping”, de Lennon; e as duas faixas que fechavam cada um dos lados do vinil – “She Said She Said” e “Tomorrow Never Knows” – são sobre viagens de ácido: a primeira disfarça um tour lisérgico que Lennon teve com o ator Peter Fonda (vertido em “she” na faixa, para não dar na cara) e a segunda escancara a exploração de realidades induzidas em versos nada discretos (“Desligue sua mente”, “ouça as cores do seu sonho”).
Por outro lado, abriam continuavam entrando em portas musicais abertas nos discos anteriores. “Eleanor Rigby” é a evolução natural de “Yesterday”, com “cordas à Bernard Herrman”, como pediu Paul ao produtor Martin. “Taxman”, “Yellow Submarine” e “I’m Only Sleeping” brincavam com efeitos sonoros e arranjos superpostos. “Love You To” é George Harrison em sua primeira incursão de cabeça à cultura hindu que havia flertado em “Norwegian Wood”. “Here, There and Everywhere” e “For No One” – esta com solo barroco de trompa – transformavam Paul McCartney num jovem Schubert, compondo pequenas sinfonias em vez de baladas de amor. “Good Day Sunshine”, “Got to Get You Into My Life” e “I Want to Tell You” fazem a ponte com o pop norte-americana, enquanto “Dr. Robert” e “And Your Bird Can Sing” ajudavam a country music em sua própria evolução. Os assuntos abordados pelo disco iam da cobrança de impostos a contos infantis, passando por existencialismo, psicodelia, fossa amorosa, amor à vida, paixão latente, crítica social e metáforas diversas.
Poucos meses depois do lançamento do disco (no dia 5 de agosto de 1966), o grupo encerrou definitivamente a primeira fase de sua carreira, ao anunciar que não iria mais tocar ao vivo. A partir daí, o desafio do grupo seria sintetizar os anseios e dúvidas de uma geração – e assim fizeram ao serem os primeiros a darem o primeiro passo adiante, até seu fim, em 1970. Revolver encontra o grupo no exato momento da mudança, um sofisticado registro da melhor música pop de 1966 que flagra a mudança de parâmetros de toda uma era. “A mudança toda foi gradual”, conta John Lennon no livrão Anthology, “mas estávamos conscientes que, se havia uma fórmula ou algo do tipo, esta era mover-se para a frente”.
Revolver
1966
Produção: George Martin
A capa do disco já havia sido criada por Robert Freeman (uma colagem em espiral das metades de cima dos rostos dos quatro Beatles repetidas vezes) quando o grupo pediu ao velho amigo Klaus Voorman para recriá-la. Voorman, um dos ‘exis’ (grupo de jovens artistas existencialistas alemães no começo dos anos 60), conheceu o conjunto na época em que eles tocavam em Hamburgo, antes de gravarem o primeiro disco. A capa proposta por Klaus agradou em cheio: “Gostamos da forma que ele nos colocava como pequenas coisas saindo do ouvido das pessoas. E ele nos conhecia o suficiente para nos capturar de uma forma bonita em seus desenhos”, lembra Paul, “nos sentimos elogiados”. Na colagem da capa, Voorman usou duas fotos (uma de John e outra de George) que já haviam saído na contracapa do disco anterior, Rubber Soul. – As faixas “Paperback Writer” e “Rain” foram gravadas nas mesmas sessões de Revolver, mas serviram de aperitivo ao público para o novo álbum, sendo lançadas como um compacto no primeiro semestre de 1966 (em maio nos EUA e em junho na Inglaterra). “Rain” trazia a primeira gravação invertida da história da música gravada à luz do dia. “Fomos nós os primeiros”, resmungava John Lennon, “não foi nenhum Jimi Hendrix ou o fuckin’ The Who”.
Juro que isso eu até entendo (embora não entenda o preço)…
Não é a primeira vez que fazem esse tipo de paródia do Sgt. Pepper’s com elementos brasileiros. A penúltima edição da gestão de Ricardo Alexandre na revista Bizz trouxe a seguinte capa sobre o impacto do disco na produção pop brasileira em 77 (colaborei nessa matéria, aliás):
E a Tainá me lembrou que a Jungle Drums, revista inglesa tocada por brasileiros e sobre o Brasil em Londres, comemorou seu sexto aniversário no fim do ano passado com esta capa aqui.
E numa nota de rodapé (que é o lugar dela), e a Set hein? Quem diria…