A memória de Jean-Yves de Neufville

, por Alexandre Matias

bizz-new-wave

Outros colegas de trabalho lembram da convivência com o crítico Jean-Yves Neufville, que morreu no início da semana. Relembra o Camilo (de onde surrupiei a capa do especial Bizz que ilustra esse post:

Jean-Yves trabalhava na Folha Ilustrada (e freelava para a Bizz). Estava perto do segundo Rock In Rio e um dos escalados era o Happy Mondays. A banda estava no auge, representante maior de uma onda Manchester-acid house-freak. Jean-Yves entrevistou Shaun Ryder para o jornal e conseguiu uma declaração bombástica. Dia seguinte, primeira página, a manchete trazia algo como “Vocalista do Happy Mondays quer trazer 1000 ecstasies para o Brasil”

Semanas depois, estamos eu e Jean-Yves numa sala de um hotel de luxo no Rio nos preparando para entrevistar Ryder em carne e osso. Já era a semana do festival. Não tinha dado meio-dia, mas Ryder já entornava vodca e cerveja, intercalando os drinks com uma bomba de tabaco com haxixe.

Fomos entrevistando ele em dupla. Eu pergunto dos 1.000 ecstasies e Ryder se exalta. Diz que foi sacaneado, que nunca ia ser trouxa de falar algo assim para um jornalista. Jean-Yves conta que era ele o entrevistador e o contesta. Ryder fica puto, continua negando e fecha a cara. A entrevista, entre resmungos em forte sotaque nortista inglês, tragos e chapação, fica ainda mais incompreensível.

Vinícius, ex-Jazz+, também lembra da convivência com o jornalista:

Duas décadas depois, precisamente em 2003, conheci o Jean pessoalmente quando criei a revista Jazz+. Para a minha surpresa, o Jean roqueiro era um apaixonado pelo jazz. Logo que descobriu a primeira edição nas bancas tratou de me procurar para oferecer seus serviços. Aceitei sem pestanejar.

Quando debatíamos as pautas pelo telefone era possível escutar, ao fundo, bem baixinho, a trilha sonora de nosso bate papo. O tocador de músicas de sua casa (CD, vitrola, iPod?) produzia sons de Chet Baker, Bill Evans e outros notáveis do jazz. Nunca atendi a um telefonema do Jean cuja música de fundo não fosse jazz.

Quando a Jazz+ deixou as bancas definitivamente, em 2008, nosso contato enfraqueceu. Mas entre todas as matérias publicadas pelas 18 edições da revista, considero a reportagem sobre a vida do saxofonista Charlie Parker, escrita por Jean, a melhor de todas.

Jotabê lembra do estilo do crítico:

Cortês e elegante, não costumava cultivar a polêmica fácil e ficou conhecido no meio musical por sua doçura e resistência ao debate hostil. Recentemente, Neufville buscava voltar à atividade de crítico, que tinha abandonado desde que assumiu a de tradutor. Considerava que a música vivia um momento de impasse, sem criatividade, e ocupando-se mais de combinações de coisas pré-existentes do que da busca do novo.

Forastieri também:

Jean-Yves era especializado, desesperado por música. Se preparava cuidadosamente para entrevistar os artistas. Ouvia álbuns repetidamente para preparar as resenhas. Aporrinhava editores com questiúnculas para ele da maior relevância, sempre com português preciso e aquele sotaque frrancês, Andrrê, Forrasta etc. Ouvia rock e jazz e MPB e música clássica com idêntica ausência de preconceitos. Eu, fundamentalista dos três minutos, não conseguia entender. Discutíamos música sem fim, traçando x-saladas e rabadas ao molho ferrugem nos botecos dos Campos Elíseos.

Parir uma crítica era trabalho de ourivesaria. Sofria, suava, levava século e meio. Uma vez, fechamento da Ilustrada atrasado, só faltava seu artigo. O secretário de redação veio cobrar aos gritos: desce como tá, vamos fechar já! Corta pelo pé (é como jornalista chama o fim da matéria, o pedaço mais dispensável). Jean-Yves deu o contra: é melhor cortar aqui – e começou a aparar as primeiras linhas do texto, onde, na teoria, deveria estar o mais importante… e a gente ao lado passando mal com a cena.

Uma vez veio pedir, todo educado: você já escreveu este ano sobre os novos discos da Legião Urbana e Titãs, não se incomoda se eu fizer os Paralamas? São as três bandas mais importantes do Brasil. Respondi que sim, lógico, besta com delicadeza do colega experiente, quase dez anos mais velho.

Vendi para ele meu primeiro computador, primeiro dele também, com impressora e uma mesa metálica trambolhenta pra acomodar tudo. Eu tinha dito que era um 386, me confundi, ignorante. Levei na casa dele, instalei, a máquina liga, é um 286. Ele tudo bem, sem problemas, vou usar é para escrever mesmo. E aí abriu uma cerveja, e passei horas explorando sua enciclopédica coleção de discos. Me apresentou sua mulher, Valéria, linda e inteligente. Pensei: Jean é um homem de sorte.

Mas ainda me impressiona que não haja nada da obra do crítico franco-paulistano online. Alguém consegue sacar alguns de seus textos clássicos de alguma cartola? Quem achar pode copiar nos comentários.

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