Ano Frango Elétrico

, por Alexandre Matias

Conversei com a Ana Frango Elétrico sobre seu excelente Me Chama de Gato Que Sou Sua em uma matéria que fiz para o jornal Valor Econômico e ela traçou paralelos entre a questão não-binária em seu trabalho, tanto em termos de gêneros sexuais quanto musicais, além de falar sobre a ênfase na produção musical do disco, seu projeto mais coletivo até hoje.

Leia abaixo:

Ana Frango Elétrico põe o público para dançar com um manifesto não binário
Em “Me Chama de Gato que Eu Sou Sua”, cantora carioca apresenta uma sonoridade que remete aos discos oitentistas de Gilberto Gil e Prince

A curta trajetória percorrida pela carioca Ana Frango Elétrico desde sua estreia em disco há cinco anos chega a um momento especial em seu terceiro álbum, “Me Chama de Gato que Eu Sou Sua”. Nascida em 1997, Ana Faria Fainguelernt (cuja pronúncia de galhofa de seu sobrenome de origem russa pariu seu nome artístico) é a caçula da cena underground carioca que se consolidou na década passada ao redor da casa de shows Audio Rebel e que reúne nomes como Do Amor, Jonas Sá, Negro Leo, Ava Rocha e Thiago Nassif. E se em seu disco anterior ela já dava provas de que havia subido um considerável degrau, neste novo ela dá um salto.

“Eu prezo muito pela gravação e pelo fonograma, que é uma pesquisa que eu prefiro à composição ou aos estudos de voz, por exemplo”, conta Ana, prestes a embarcar em uma turnê pela Europa que conta com dez shows em seis países no começo deste mês. Sua explicação sobre o disco põe o foco em uma de suas principais preocupações nesse processo: a produção musical.

Ela diz que começou a compreender o tema quando gravou seu primeiro disco (“Mormaço Queima”, 2018) e trabalhou com Guilherme Lirio, Gustavo Benjão, Marcelo Callado e Thiago Nassif. “É um antiálbum, como se eu quisesse ser uma anticantora, porque é um disco que não tem um pensamento fonográfico.” A partir dali, aprendeu conceitos da produção e abriu o ouvido para a pesquisa ao redor do fonograma.

O álbum seguinte (o excelente “Little Electric Chicken Heart”, 2019) foi fruto de pesquisas a partir dessa descoberta, quando ela se dispôs a entender a sonoridade dos anos 70 a partir de padrões estabelecidos nas décadas anteriores, em busca da raiz de timbres que ecoam até hoje. “É uma pesquisa que fiz sobre Nora Ney, Johnny Alf, Anita O’Day, Blossom Dearie, samba-canção… e que também tem a ver com nostalgia.”

A partir daí, Ana firmou-se como produtora musical e pilotou o trabalho de artistas novíssimos como Julia Branco e Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, além de colaborar com outros como Jadsa, Luiza Brina e Vovô Bebê, enquanto via seu público crescer ao tocar por todo o Brasil e entrar no elenco de festivais grandes como Coala e Lollapalooza, enquanto chamava a atenção da crítica musical estrangeira.

Ana foi listada em uma playlist do DJ inglês Gilles Peterson, festejada pelo crítico e youtuber americano Anthony Fantano e citada no jornal britânico “The Guardian”, além de ter gravado uma sessão no blog americano “Aquarium Drunkard”. Enquanto isso, sua verve produtora era chancelada em prêmios como o WME Awards (melhor produtora de 2021) e o Grammy Latino (em 2022, como produtora do disco “Sim Sim Sim”, do grupo carioca Bala Desejo).

O novo álbum, que sai pelo mesmo selo Risco que lançou o disco anterior, em parceria com os selos Mr. Bongo (Inglaterra) e Think! (Japão), a flagra neste ótimo momento e musicalmente avança uma década em sua já eclética mistura — o disco habita a virada dos anos 70 para os 80, bebendo tanto em referências estrangeiras como nacionais.

“O disco tem uma questão com o gate-reverb [efeito de estúdio] dos anos 80, só que por cima de timbres mais setentistas do que atuais, tem contrapontos de limpezas e saturações, porque é um disco que passa por muitas identidades e processamentos.”

Mas “Me Chama de Gato…” é muito mais do que um disco dance, embora a tônica geral favoreça aos quadris. Suas diferentes faixas e colaborações abrem diferentes possibilidades de pistas de dança — aí reside a linha condutora do disco, que se mostra dançante e apaixonado para não escancarar que é um manifesto não binário.

Desde seu título, que se equilibra entre o masculino do “Gato” e o feminino do “Sua”, explora o espectro que vai além dos dois polos. “Eu sou o garoto das coisas estranhas [canta em inglês fazendo referência ao seriado ‘Stranger Things’], eu não sou a garota que você pensa”, canta na funky “Boy of the Stranger Things”.

Logo em seguida, na balada jazz angulosa “Camelo Azul”, fala que “seu cheiro me lembra meu lado feminino, mas hoje sou um menino”, enquanto torna o próprio timbre mais grave. Logo no início do disco, após a faixa de abertura, convida o MC Joca para cantar uma música (no sambinha digital “Dela”) que se define em pronomes logo de saída: “sua, minha, dele, nossa, delu, dela”.

A esperteza de Ana é não ficar apenas na questão do gênero sexual, mas levar a discussão não binária para a música. “Esse paralelo é subjetivo mais do que consciente, e o disco é um passeio por várias pesquisas e identidades, e está mais ligado ao gênero que à sexualidade”, diz. “É um disco que pensa mais em tratar essa confusão, as autoteorias, micromutações e neologias pessoais do que ser uma bíblia sobre isso. Porque não é nada fixo, é sobre a dúvida, a confusão, indagações, impasses.”

Outra marca do disco é o fato de que ela explora arranjos musicais (não feitos só por ela) porque regrava várias músicas de outros autores. A lista de convidados inclui nomes como Sérgio Machado, Alberto Continentino, Guilherme Lírio, Dora Morelembaum, Bruno Cosentino, Sylvio Fraga, Marina Nemésio, Vovô Bebê, Sophia Chablau, Jonas Sá e Rubinho Jacobina. “É um disco que reflete parcerias e familiares que a música me deu depois que eu comecei a tocar.”

Ecoando os discos oitentistas de Gilberto Gil e Prince ao mesmo tempo em que aponta para um futuro próximo, “Me Chama de Gato…” traz momentos sublimes (“Nuvem Vermelha”, “Camelo Azul”, “Insista em Mim” e a instrumental “Let’s Go to Before Again”) e irresistíveis (“Boy of Stranger Things”, “Electric Fish” e “Dr. Sabe Tudo”) que o tornam um dos melhores discos lançados neste intenso 2023. E consolida sua autora como um dos grandes nomes do pop nacional.

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