Duas vezes histórico
Tive que ir de novo no formidável encontro dos violões de Kiko Dinucci e Jards Macalé, que, nessa sexta-feira, fizeram um show quase idêntico ao que fizeram no dia anterior, numa apresentação menos informal – embora tenha rendido boas prosas entre as músicas, como na quinta – e um pouco menor que a anterior, talvez porque Jards tenha trocado “Mal Secreto” – que é mais extensa devido a uma citação do clássico da bossa nova “Corcovado” – por uma versão acachapante – e solitária – para “Movimento dos Barcos”, esta posta no repertório a pedido de Kiko. Escrevi sobre o show, que deverá repetir-se em algum momento em breve, em mais uma colaboração que faço para o Toca do UOL.
Jards Macalé e Kiko Dinucci encontram seus violões em show histórico em SP
Apesar de pertencerem a gerações, cidades e formações musicais completamente diferentes, Jards Macalé e Kiko Dinucci são muito parecidos. As duas apresentações que realizaram nesta quinta (29) e sexta-feira (30), no Sesc Pompeia, em São Paulo, escancararam essa conexão.
Apresentando-se dentro do projeto Contorno da Canção: Violão Popular, concebido pela curadoria da unidade do Sesc para celebrar a importância do instrumento na música brasileira, os dois subiram ao palco sozinhos, apenas com seus respectivos violões, para apresentações que, sem temor de exagerar no adjetivo, foram históricas.
O carioca Jards, 82, é da primeiríssima geração da MPB, aquela impactada pelo violão de João Gilberto e que tomou o instrumento como batuta única para reger novos voos musicais. Isso o coloca ao lado de outros mestres do violão brasileiro, como Gilberto Gil, Jorge Ben, Baden Powell e Edu Lobo. Mas, em vez de cantar as belezas do Brasil, Macalé escolheu suas feiuras, construindo uma obra sobre o erro, o desalinho, o torto e o intransigente, enquanto criava paisagens sonoras idílicas para cantar sobre as sombras do país.
Essa é também a temática do paulista Kiko Dinucci, 47, cuja carreira prolífica inclui seus discos solo, seu trabalho com o trio Metá Metá (ao lado de Juçara Marçal e Thiago França), sua parceria com Douglas Germano e a produção de discos clássicos deste século. Kiko começou sua trajetória em bandas punk de Guarulhos e, aos poucos, foi descobrindo a música brasileira clássica.
Partiu primeiro do samba, para depois abraçar os desajustados de nosso panteão, como Itamar Assumpção, Luiz Melodia, Jorge Mautner e, claro, o próprio Jards, que ele perseguia como fã na adolescência nos anos 1990, atravessando São Paulo para assistir aos shows do futuro parceiro—quase sempre com pouquíssimas pessoas na plateia.
O cenário foi completamente oposto nas apresentações de quinta e sexta-feira, quando os dois se encontraram novamente no palco, sem nenhum outro músico ao lado. Sentados frente a frente, com seus violões no colo, conduziram o público a um transe brusco, rítmico e torto, como seus toques no instrumento.
O espetáculo começou com um clássico do primeiro disco de Jards, sempre presente nos shows do Metá Metá: Let’s Play That. Seus violões já se encontravam como um acidente de trânsito planejado, engalfinhando riffs, levadas, melodias e síncopes até tornarem-se irreconhecíveis—de tão semelhantes. Jards, um pouco mais melódico em suas frases musicais, contrastava com Kiko, mais frenético por sua natureza de guitarrista. Um ótimo ponto de partida para a noite.
A partir daí, desviaram para Nelson Cavaquinho, colocando-o no mesmo panteão do violão que Dorival Caymmi e João Gilberto, mas sob a literal Luz Negra (canção que escolheram tocar) —essa luz que tanto paira sobre as carreiras de Kiko e Jards.
Depois, revisitaram momentos de sua parceria. Primeiro, tocaram “Coração Bifurcado”, faixa que batiza o disco mais recente de Jards, um pedido que Macalé fez a Kiko ao requisitar uma canção de amor. Em seguida, interpretaram “Vampiro de Copacabana”, faixa de abertura do disco “Besta Fera”, de Macalé, produzido por Kiko ao lado de Rômulo Fróes e Thomas Harres.
“A gente tocou o vampiro de Copacabana, agora a gente vai tocar o vampiro de São Paulo,” anunciou Kiko antes de acompanhar Jards no violão, deixando-o cantar como crooner o clássico paulistano Ronda, de Paulo Vanzolini.
Depois de ovacionados pelo teatro, nem se deram ao trabalho de sair do palco para emendar o mesmo bis da noite anterior: “Soluços”, de Jards.
Essa camaradagem se transformou em uma amizade musical que não pode ficar restrita a apenas esses dois shows. O escritório Dinucci & Macalé tem tudo para render outros encontros igualmente históricos e evoluir naturalmente para novas composições —e, quem sabe, até um disco em parceria.
O projeto Contorno da Canção segue no Sesc Pompeia com outros grandes encontros musicais nos próximos dias.
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