Já dá pra dizer que show do Metá Metá em dezembro já é uma tradição de fim de ano, como reforçou o camarada José à saída da primeira das duas apresentações que a melhor banda do Brasil faz esta semana no porão da Casa de Francisca. O encontro de Thiago França, Juçara Marçal e Kiko Dinucci é sempre um acontecimento, mesmo que eles mantenham intocável o mesmo repertório há uns bons anos. Não que isso seja um problema, pelo contrário. Ao reforçar uma seleção de músicas contemporâneas que já são clássicas, o trio pega o público pela goela e faz o que quiser com ele, tangendo-o da catarse à devoção como se tudo estivesse combinado. É sempre impressionante o que uma combinação tão improvável e mínima de instrumentos (voz, violão e saxofone ou flauta) consegue mexer com os ouvinte, atirando todos contra uma parede de som que faz expectativas altas serem ultrapassadas como se fossem fáceis. E passeando entre canções próprias – um rosário esplendoroso que inclui “Exu”, “Oyá”, “São Jorge”, “Vale do Jucá”, “Orunmilá”, “Atotô”, “Cobra Rasteira”, “Iyami Ilê Oró” – e alheias, como “Trovoa” de Maurício Pereira que o grupo eternizou cantada como se fosse um hino e uma oração, “Samuel” do Passo Torto (dedicada a um dos integrantes do grupo, Rômulo Froes, que estava presente) e “Let’s Play That” de Jards Macalé e Torquato Neto, além de três de Douglas Germano, “Sozinho”, “Rainha das Cabeças” e a joia “Vias de Fato”, em que Kiko convidou o próprio Douglas, que também estava na casa, para dividir os vocais com Juçara. Nos poucos momentos em que conversaram com o público destacou-se a insistência – justa – de Thiago França para que os presentes participassem da eleição para o Conselho Participativo Municipal que acontece neste domingo: “Cada um procure a sua subprefeitura e os candidatos progressistas pra gente parar de perder essa guerra por W.O.”, lembrando para levar RG e comprovante de residência para garantir a votação. “Não adianta reclamar na segunda-feira no Instagram”, esbravejou o saxofonista, com razão, abrindo caminho para encerrar a noite com a implacável “Obá Iná”. De lavar a alma.
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Neste domingo pude ver mais um show que Juçara Marçal fez celebrando seu clássico disco de estreia, Encarnado, desta vez no Itaú Cultural, o primeiro no ano com a presença de Thiago França. Como nas outras vezes, a apresentação contou com o trio cinco estrelas que funda o púlpito eletroacústico em que a mestra discorre sua trágica obra: o suíço Thomas Rohrer na rabeca, Kiko Dinucci na guitarra e Rodrigo Campos alternando entre a guitarra e o cavaquinho. E além dos clássicos do disco de 2014 (canções inesquecíveis de seus compadres – “Velho Amarelo” de Rodrigo Campos, “Queimando a Língua” de Rômulo Froes, “Pena Mais que Perfeita” de Gui Amabis e “A Velha da Capa Preta” de Siba, além do ápice ao vivo que é a transição entre a dramática “Ciranda do Aborto” – ainda mais cantada neste fim de 2024 – e a bucólica “Canção para Ninar Oxum”), Ju ainda passeou por canções clássicas de seu cânone brasileiro pessoal, como “Xote de Navegação” de Chico Buarque (em que é acompanhada apenas por Thomas tocando um fuê de cozinha e desandou numa versão noise para “Odoyá”) e “Dor Elegante” do Itamar Assumpção (quando convidou Thiago para o palco e deslizou no nome do autor num momento cômico involuntário que serviu para dissipar o clima tenso da noite até então). Aproveitou a presença de Thiago para voltar ao disco com a imortal “Damião” e “E o Quico?”, do mesmo Itamar (qual deles?), com o maestro da Charanga disparando eletrônicos em vez de tocar seu sax. O show terminou com a saudação a Tom Zé em “Não Tenha Ódio no Verão” (e seu refrão desopilador) e as três tragédias suburbanas descritos por Paulinho da Viola (“Comprimido”), Kiko Dinucci (“João Carranca”) e Rômulo e Thiago (“Presente de Casamento”). O show terminou no alto com uma inédita que veio no bis, quando o quinteto novamente reunido, instigou o público com a emblemática “Opinião”, de Zé Keti, numa versão eletrocutada. Deixa andar…
Mais uma apresentação de tirar o fôlego conduzida por Juçara Marçal no Centro da Terra. Na segunda noite em que trouxe seu Encarnado em versão acústica este ano para o palco do Sumaré, a maior cantora do Brasil hoje não só fechou esta pequena temporada com uma apresentação ainda mais intensa que a da terça anterior, como encerrou outro ciclo, ainda maior, aberto quando realizou a primeira data de uma temporada interrompida no fatídico março de 2020 da pandemia. Acompanhada dos cúmplices de sempre – Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Thomas Rohrer, todos eles empunhando instrumentos sem eletricidade -, ela transformou mais uma vez seu disco de estreia no véiculo perfeito para a expor a intensidade de sua performance ao vivo, quando transforma sua voz e presença de palco em uma passagem para entidades, cada uma em uma canção. E assim ela foi enfileirando sambas de Siba e Paulinho da Viola, Itamar Assumpção e Gui Amabis, Romulo Froes e Chico Buarque, Tom Zè e Douglas Germano cujas histórias e letras misturam causos do cotidiano com casos de polícia, dramas pessoais com traumas íntimos, rezas e cânticos, sempre amparada pela complexa trama formada pelo entrelaçamento ímpar das cordas de Kiko e Rodrigo e coberta pela lânguida rabeca de Thomas. Uma noite que não apenas tirou o fòlego como livrou o encosto dos traumas dos anos recentes. Pura magia.
Encarnado e desencantado! Como Juçara falou logo no começo da primeira das duas apresentações que está fazendo no Centro da Terra neste começo de mês, retomar seu primeiro disco solo em formato acústico fecha a tampa de um alçapão que nos foi aberto bem quando ela começava uma temporada de shows no teatro revisitando seu primeiro disco (que naquele março de 2020, que viu o começo da pandemia, completava seis anos) sem instrumentos elétricos – e sem microfones ou amplificadores, só no gogó e na unha, como ela mesma disse. A nova versão acústica de seu Encarnado, que agora completa 10 anos, foi diferente daquela antes de entrarmos na tragédia pandêmica, pois além de microfone e instrumentos plugados também contava com a iluminação de Olívia Munhoz, que já havia feito no primeiro aniversário do disco esse ano, no Sesc Vila Mariana. Ao seu lado, os suspeitos de sempre (Kiko Dinucci, pela primeira vez tocando violão com cordas de aço num show, Rodrigo Campos e Thomas Rohrer) a ajudavam a conduzir-nos a um território cru e direto, sem meios termos passando por novos (“A Velha da Capa Preta” de Siba, “Ciranda do Aborto” – o momento mais intenso do disco e do show – e “João Caranca” de Kiko, “Pena Mais Que Perfeita” de Gui Amabis, “Velho Amarelo” de Rodrigo, “Presente de Casamento” de Romulo Froes e Thiago França e “Canção Pra Ninar o Oxum” de Douglas Germano, entre outras) e velhos (“E o Quico?” de Itamar Assumpção e “Não Tenha Ódio no Verão” de Tom Zé) clássicos da música brasileira. Dois destes últimos surgiram nessa versão ao vivo, primeiro “Xote de Navegação”, de Chico Buarque (em que Juçara foi acompanhada apenas por Rohrer tocando um fuê!), e depois “Comprimido” de Paulinho da Viola (em que trocou “um samba do Chico” por “um samba do Kiko”). Com a luz de Olívia perseguindo os silêncios e esporros do som (indo da penumbra quase completa aos faróis na cara do público), a apresentação terminou com um bis intenso, quando ela voltou a música do Tom Zé e pediu para que o público a acompanhasse seus gritos do refrão, fazendo com que todos exorcisassem, aos berros, o pesadelo dos últimos quatro anos, transformando o teatro numa câmara de descompressão de frustrações do período pandêmico. Irretocável. E terça que vem tem mais.
Em março de 2020, Juçara Marçal começou uma temporada no Centro da Terra em que visitava seu primeiro disco solo, Encarnado, num formato diferente – colocando seus chapas Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Thomas Rohrer, que marcaram presença no disco, para tocar instrumentos acústicos, dando uma outra roupagem às canções. Mas o mês desta temporada também foi o mesmo em que afundamos naquele pesadelo chamado pandemia do coronavírus e inevitavelmente a série de apresentações foi suspensa após a primeira noite. Mas sempre conversava com ela sobre a possibilidade de retomarmos aqueles shows. Eis que finalmente conseguimos realizá-los novamente agora neste início de junho, com duas apresentações, que além de ter Kiko tocando violão de aço, Rodrigo no violão e cavaquinho e Thomas na rabeca, ainda traz a luz da Olívia Munhoz, que iluminou o show de aniversário do disco, que completa 10 anos em 2024, agora no início do ano. Serão duas apresentações em duas terças, 4 e 11, e a primeira delas já está com ingressos esgotados.
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Finalmente conheci o recém inaugurado porão da Casa de Francisca – e não podia ser com uma atração melhor, quando, mais uma vez, Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Suzana Salles se juntaram para celebrar Itamar Assumpção apenas com violão e vozes. A entrada para o novo palco do Palacete Tereza fica na porta ao lado do acesso original da casa e o público desce por uma rampa abaixo de uma placa que nos recepciona para o “Cine Teatro – Espaço Imaginário e Recreativo”, que já dá a medida das possibilidades do novo espaço. O show desta quarta foi para um público sentado em poltronas ao redor do palco, que fica num tablado circular no centro do porão, mas o espaço permite várias modalidades de apresentação, inclusive além de atrações musicais, como deixa explícita a placa na entrada. A apresentação intimista pediu uma luz mais comedida e a sensibilidade dos três intérpretes nos deixava ainda mais próximos do palco. Todos de preto e óculos escuros passavam um repertório não tão óbvio das canções do mestre Ita e alternavam momentos de frágil delicadeza com espasmos de som liberados pelo violão de Kiko e acompanhado por berros de Suzana e Juçara. E tão bom quanto a apresentação da noite foi descobrir que a movimentação à entrada do Palacete, ocupando a rua em frente a outra nova área da Francisca, um bar e restaurante na parte térrea, seguia noite adentro, mesmo depois do DJ do dia, o grande Rodrigo Caçapa, que estava tocando desde o começo da noite até a hora do show começar, ter parado de tocar. Muito bom ver a Francisca tomando conta da rua e ampliando as possibilidades artísticas e culturais em uma região que, dez anos atrás, estava completamente largada. Viva a Casa de Francisca!
Ainda impactado pelo que presenciei nessa sexta no Sesc Vila Mariana, arrisco dizer que a celebração ao vivo do aniversário de dez anos do disco de estreia de Juçara Marçal tenha sido a melhor apresentação que assisti dessa mulher – e olha que a vi no palco algumas dezenas de vezes. Repetindo a exata formação (“banda original”, brincou nossa musa) de uma década atrás no mesmo lugar que viu o show de lançamento de Encarnado, ela entregou-se ao álbum na íntegra, repetindo exatamente a mesma ordem das faixas do registro original e deixando-o fluir como o clássico instantâneo que sempre foi. “Esses dez anos os tornaram todos mais gatos ainda”, brincou ao apresentar seus compadres Kiko Dinucci, Thomas Rohrer e Rodrigo Campos sublinhando como a experiência dos quatro deixava o show ainda mais denso e coeso, como se só a beleza os tivesse melhorado – sem contar a própria Juçara, toda de vermelho em referência à capa do disco, que estava deslumbrante. O crescendo emocional do disco avançava a cada nova canção e, como na ordem do álbum original, culminou com a intensa “Ciranda do Aborto” cuja parede noise final desapareceu para revelar a delicadez de “Canção para Ninar Oxum” (em que até agora lamento quem bateu palma bem na hora em que o acalanto cairia em segundos do puro silêncio). Entre as faixas de fora do disco, vieram uma versão inacreditável de “Xote de Navegação” de Chico Buarque, em que Juçara foi acompanhada apenas por Rohrer tocando um fouet (!) com o arco de sua rabeca; a clássica “Comprimido” de Paulinho da Viola (em que ela transformou “um samba do Chico” em “um samba do Kiko”) e “Odumbiodé”, do EP que acompanha seu disco mais recente, o igualmente soberbo Delta Estácio Blues, o que me fez cogitar uma versão do DEB tocada com aquela formação (algo que já havia passado pela minha cabeça no início do show, pois a primeira canção, “Velho Amarelo”, faz parte do repertório do show do disco de 2021). Dois detalhes técnicos e artísticos agigantaram ainda mais essa noite: o som perfeito pilotado pelo Alex Pina (deixando o mínimo sussurro e o mais explosivo ruído igualmente cristalinos) e a luz (como sempre) maravilhosa de Olívia Munhoz (trabalhando com poucas cores, equilibrando luz e escuridão na mesma medida e jogando luzes na cara do público, difundindo até as silhuetas). “A gente tem muitas presenças importantes aqui hoje”, disse Juçara nos poucos momentos em que conversou, bem à vontade, com o público, “mas devo confessar que a mais importante pra mim é uma senhorinha de 90 anos que tá ali”, apontando para sua mãe. Ela ainda lembrou que o show de lançamento do disco original aconteceu no dia 15 de abril de dez anos atrás, aniversário de casamento de seus pais. Uma apresentação irrepreensível e a hipérbole não é em vão: estamos acompanhando a melhor fase da melhor cantora do Brasil atualmente. Não é pouca coisa. E sabe o que mais? Outros melhores virão.
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Encontrei Kiko, Thiago e Juçara logo que cheguei na Casa de Francisca nessa quinta-feira saindo do elevador que agora dá acesso ao camarim em direção ao palco. Pude cumprimentá-los rapidamente antes que eles começassem a apresentação e desejar um bom show (no caso deles redundância, mas a saudação importa) quando Thiago frisou: “Sabe que hoje é aniversário daqui, né?”. Não estava sabendo, mas há exatos sete anos a Casa de Francisca arrancava suas raízes na rua José Maria Lisboa nos Jardins para replantá-las no coração de São Paulo, há poucos metros da Praça da Sé, no Palacete Tereza que hoje é a cara do lugar. Feliz por estar participando mais uma vez de um momento histórico desse palco sagrado (ainda mais com show do Metá Metá!), também comemorei que esse poderia um bom começo de carnaval, embora a vibração fosse distinta. Até que começaram a cair umas fichas: primeiro que aquele começo de carnaval tinha começado algumas horas antes, quando a polícia federal deteve o passaporte do meliante que ocupou a presidência da república, aproximando-o de seu destino desejado, a cadeia. O efeito dominó que as notícias da quinta-feira causaram (e seguem causando) inevitavelmente desdobraram-se na série de piadas e numa contagem regressiva que a prisão do desgraçado poderia ser o início do carnaval (eu acho que não vai rolar agora, vai ser um carnaval fora de época daqui a pouco). E depois me lembrei do show que vi daquele mesmo Metá Metá na outra Casa de Francisca, no fatídico dia 12 de maio de 2016, quando o Senado autorizou o início do golpe na Dilma. Foi o começo da era de trevas da qual ainda estamos saindo e lembro direitinho (até escrevi sobre isso na coluna que tinha na Caros Amigos na época) de como aquela notícia pesou nosso encontro antes do show e como o show em si foi um exorcismo daquele futuro ruim que sabíamos que viria. Oito anos depois, lá estava o mesmo Metá Metá – só os três de novo – em outra Casa de Francisca comentando a possibilidade de prender a pessoa que só chegou onde chegou porque derrubaram a presidenta naquele passado não tão distante. Ainda não estamos festejando o que deve ser festejado, mas o futuro sombrio (que ainda se avizinha, à espreita, fingindo-se de desentendido) está mais distante do que estava naquela noite de 2016. E mais uma vez era a música que mostrava o rumo a ser seguido. Viva a resistência cultural! Viva a Casa de Francisca! Viva o Metá Metá! Viva o Brasil e viva a música!
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E não vamos deixar de falar do Lanny, que, como seu irmão Tony nos informa, será velado entre as 14h e as 16h desta quarta-feira, no Cemitério da Vila Formosa. O Kiko pinçou um vídeo com o guitar hero filmado por Sganzerla que está nos extras do DVD do Bandido da Luz Vermelha. O trecho foi utilizado por Gregorio Gananian no documentário que ele fez sobre o guitarrista, Inaudito (que pode ser visto na íntegra abaixo). Separei um trecho da entrevista que o Gregório deu pra Carime sobre o documentário, publicada no Scream & Yell do Marcelo:
“Rogério Sganzerla na filmagem. Ela não tinha som. A Helena Ignez liberou para a gente a imagem. Eu falei para ela, e essa filmagem é uma sobra de um material que o Rogério não concluiu. Era uma espécie de continuação do Bandido da Luz Vermelha, e eu sabia que existia essa cena com o Lanny. Quando estávamos na China eu falei que queria muito fazer aquela pergunta de qual foi o show mais incrível que ele já fez, e fizeram essa pergunta e ele falou dessa performance maravilhosa: ‘Tirei a guitarra, tomei um choque elétrico e morri’. Chama-se ‘A Morte do Guitarrista’. Ela aparece um pouquinho depois da metade do filme, e então aparecem estas imagens, e aquela coisa completamente nonsense que ele contou aconteceu! De repente quem assiste se pergunta: ‘Pera aí, então o que o cara está falando é realmente verdade’. Conversando com o Negro Leo sobre fazer a trilha para essa parte, ele viu aquilo lá sem nada, e falou: ‘Vamos tirar tudo de música nessa sequência de arquivo'”.
Ave Lanny!