Violões univitelinos
“E aí, doutor Kiko?”, perguntou Jards Macalé a Kiko Dinucci, que respondeu com outra pergunta (“E agora?”) prontamente respondida por Macau: “Agora foda-se”. Sabíamos que seria memorável, mas acho que nem Kiko nem Jards tinham ideia da química que baixou sobre os dois na primeira das duas apresentações que marcaram para esta semana no Sesc Pompeia. Mesmo com diferenças de geração, personalidade, origem e criação, os dois são gêmeos univitelinos no violão e dividem o mesmo humor – autodepreciativo e de um pugilismo quase fraterno – e apreço pelo baixo calão da vida, o que tornou a apresentação um acontecimento histórico. Passeando por diferentes fases do repertório de Jards, clássicos do samba e algumas canções de Kiko, os dois mostraram a força e a delicadeza de seus violões. Jards é da geração impactada diretamente por João Gilberto e seu instrumento fica entre o ritmo sincopado do mestre baiano e o suingue carioca de seu contemporâneo Jorge Ben, enquanto Kiko, guitarrista de nascença, convertido ao outro instrumento pelo samba, é diretamente influenciado pelo violão de Jards, além de trazer suas influências elétricas – do punk ao noise – para seu pinho. Mas o ponto em comum dos dois é a história do samba, visitada através de clássicos (como “Se Você Jurar” de Ismael Silva embutida em “Let’s Play That”, “Luz Negra” de Nelson Cavaquinho, “Ronda” de Paulo Vanzolini e “Favela”), e a devoção de Kiko por Jards, mencionada pelo próprio, que o perseguia por shows vazios em São Paulo quando ainda era adolescente (dele e de Itamar Assumpção, que não conheceu, como frisou). Isso deixou-o à vontade para passear com Jards em seus sambas imortais como “Pano pra Manga”, “Farinha do Desprezo”, “Boneca Semiótica”, “Depressão Periférica” e “Soluços” (esta no bis), além de duas que Jards tocou maravilhosamente sozinho: “Anjo Exterminado” e “Mal Secreto”. Kiko por sua vez fez duas de seu Rastilho sem Jards (“Febre do Rato” e “Gaba”) e lembrou que há cinco anos ele lançava seu clássico disco naquele mesmo teatro do Pompeia. Os dois ainda tocaram músicas que compuseram juntos, como “Vampiro de Copacabana” e “Coração Bifurcado”, mas tiveram um de seus melhores momentos quando emendaram “Antonico” – eternizada por Gal em seu disco ao vivo Fatal, que Jards visitou diversas vezes em diferentes momentos de sua carreira (tanto só quanto com o próprio Ismael, com Marçal e com Dalva Torres) e que Kiko vem tocando no momento acústico do show mais recente de Juçara Marçal – com uma que Jards nunca havia tocado ao vivo, “No Meio do Mato”, de seu disco Contrastes, de 1977. Um show que parece, ao mesmo tempo, um reencontro de velhos irmãos e o início de uma longa amizade musical. Sorte a nossa.
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