Um senhor festival consolida-se no cerrado
Fui a Brasília neste fim de semana para assistir à décima edição do Cerrado Jazz Festival, um evento que reuniu uma excelente mistura de música brasileira, contemplando clássicos e contemporâneos sem precisar recorrer a dezenas de artistas, múltiplos palcos, nomes gigantescos ou multidões – seja para comprar ingressos ou para ver bem os shows. Gratuito, o festival aconteceu num fim de semana de lua cheia à sombra dos prédios do Banco Central e da Caixa Econômica, em pleno Eixo Monumental brasiliense. No palco, veteranos célebres como Dom Salvador, Rosa Passos, Egberto Gismonti, João Bosco e a Banda Black Rio ao lado de novos talentos como Vanessa Moreno, Michael Pipokinha, Tucanuçu e Daniel Murray e de outros já estabelecidos como Fabiana Cozza e Chico César e duas novidades candangas dedicadas à tradição da música brasileira, a Gafieira Cerrado Jazz e a Choro Popular Orquestra. Escrevi sobre os quatro dias do evento em mais uma colaboração para o Toca UOL.
Com Dom Salvador e Rosa Passos, Cerrado Jazz cria novo patamar em Brasília
A capital brasileira assistiu neste fim de semana a um dos melhores festivais de jazz desta década quando, reunindo apenas artistas brasileiros, o Cerrado Jazz Festival fez sua décima edição em quatro dias de apresentações gratuitas no coração do Plano Piloto brasiliense, no setor bancário da Asa Sul.
Homenageando dois mestres da música brasileira – a cantora Rosa Passos e o pianista Dom Salvador -, o festival primou por unir diferentes gerações e estilos musicais, aproveitando a amplitude do termo jazz para reunir MPB, choro, gafieira, virtuosismo, funk, samba e música pop. “É um festival que junta as novas e as antigas gerações no palco”, explica a idealizadora do evento, Lorena Oliveira.
O festival começou na tarde de quinta-feira (7), quando a Gafieira Cerrado Jazz, grupo idealizado por Flávio Silva, pianista que também é um dos curadores do festival, fez sua primeira apresentação, no auditório da Caixa Cultural de Brasília.
O grupo foi criado para a realização desta edição, a partir de uma conexão que Flávio encontra entre a gafieira e as primeiras manifestações do jazz no Brasil, e contou com as vocalistas Joana Duah e Célia Rabelo, além de apresentações de dançarinos. O grupo se apresentou também no último dia, encerrando a programação.
Na sexta-feira (8), o evento começou num palco externo montado no estacionamento da Caixa Cultural. Estimulado a trazer suas cadeiras de praia, o público estimado em 3 mil pessoas aproveitou ainda a feira gastronômica no local.
As apresentações neste palco começaram com outro projeto candango, a Choro Popular Orquestra, projeto idealizado e dirigido pelo maestro Fabiano Medeiros, com a participação de Henrique Filho (Reco do Bandolim), fundador da Escola Brasileira de Choro, e direção artística de Henrique Neto, atual diretor do já tradicional Clube do Choro da cidade.
Com um regional de choro – com bandolim, violão de sete cordas e pandeiro – na primeira fileira da formação que inclui dezenas de músicos e passa por clássicos do gênero ao mesmo tempo em que mapeia manifestações ancestrais ou contemporâneas do choro.
Dom Salvador sem descanso
A Orquestra deixou o clima solene para a apresentação do primeiro homenageado do festival, que aconteceu na sexta-feira. O decano pianista Dom Salvador mostrou porque, mesmo com 86 anos, ainda é um dos maiores nomes do piano brasileiro, tocando por quase duas horas com duas formações.
Na primeira parte, revisitou seu clássico “Rio 65 Trio”, disco que está completando 60 anos e que foi tocado por ele, pelo mesmo baixista que também o gravou (o sensacional Sérgio Barrozo) e o baterista Duduka da Fonseca, substituindo o baterista original, Edison Machado, falecido há quinze anos.
Com mais de quarenta minutos dedicados ao disco, o pianista cumprimentou o público primeiro em inglês, mas corrigindo-se logo em seguida, ao perceber que estava tocando no Brasil, e não para uma plateia internacional, como tem feito nas últimas quatro décadas, em que reside em Nova York, nos EUA.
Sem precisar descansar, voltou ao piano, desta vez acompanhado pelos músicos de seu sexteto, que pode trazer pela primeira vez ao Brasil, mostrando toda a sofisticação e estilo de seu jazz brasileiro, feito por um dos autores do gênero samba jazz, numa apresentação dupla de tirar o fôlego.
Homenagem a Arlindo
A primeira noite do festival terminou rumo ao pop, quando Chico César, que agora está morando em Brasília, recebeu Fabiana Cozza para um show conjunto, dividindo canções acompanhadas em coro pela plateia.
Um dos momentos mais bonitos do primeiro dia foi quando Cozza ficou só no palco, acompanhada apenas do pianista de Chico, Helinho Medeiros, e celebrou a memória do recém-falecido Arlindo Cruz ao cantar uma versão deslumbrante para “O Show Tem Que Continuar”.
No fim de semana, as atrações principais do festival começavam após outra novidade desta décima edição. As atividades do Cerradinho Jazz, voltadas para o público infantil, trouxeram oficinas circenses e o espetáculo Os Irmãos Sukulonsk, feito pelo grupo Circomvida.
Rosário de hits
No sábado (9), o palco principal começou com o grupo brasiliense Tucanuçu, que mistura samba, choro e jazz e foi selecionado pela curadoria do festival, entre outras atrações da cidade. Mas o principal show da noite – e também do festival, já que o sábado foi o dia que reuniu mais público – foi o encontro entre Vanessa Moreno, João Bosco e Michael Pipokinha.
Os três já haviam se encontrado no palco da Casa de Francisca, em São Paulo, quando João Bosco convidou Vanessa Moreno para um show em dupla, que tornou-se trio quando encontraram, no mesmo dia do show, o baixista Pipokinha, intimado a participar do encontro, mesmo sem ter ensaiado com os dois.
O reencontro dos três, desta vez nada improvisado e anunciado na programação de um festival, no entanto, foi igualmente espontâneo, uma vez que não combinaram previamente repertório, e dedicaram-se às músicas mais conhecidas da lavra de Bosco.
Além da interpretação de “A Violeira” de Tom Jobim e Chico Buarque, que Vanessa e Pipokinha fizeram sozinhos no palco, e do momento solo do baixista virtuoso, em que ele prestou a segunda homenagem do festival a Arlindo Cruz (a plateia fez coro em “O Que é Amor?” do sambista), todo o resto da noite foi dedicado a pérolas de João Bosco que os três fizeram o público cantar junto.
O que ouvimos foi um rosário de músicas imortais, como “De Frente Pro Crime”, “Nação”, “Sinhá”, “Bala com Bala”, “Odilê Odilá”, “Ronco da Cuíca”, “Corsário” e “O Bêbado e a Equilibrista”, esta última recebida com um coro de “sem anistia” pelo público. O festival quase não teve bis, mas esse show foi uma exceção quando os três voltaram ao palco para cantar o maior sucesso de João Bosco, a inevitável “Papel Marché”.
O sábado terminou com uma apresentação fulminante da Banda Black Rio, que empolgou com seus números instrumentais da primeira fase da banda, quando ainda não tinha vocalista. Na sequências, músicas da fase recente, quando a banda foi reformada neste século.
As faixas desta nova cara da banda têm bem menos impacto que a da primeira fase, caindo em músicas quase genéricas do que era o soul e o funk carioca dos anos 70, terminando com “Sossego” e “Descobridor dos Sete Mares”, de Tim Maia.
Egberto Gismonti e Rosa Passos
O último dia do Cerrado Jazz Festival começou austero e exuberante, quando um dos maiores nomes da música instrumental brasileira, Egberto Gismonti subiu ao palco para mostrar sua obra que passeia entre a música popular e a erudita, seja ao violão ou ao piano, apresentando-se sozinho ou acompanhado do virtuoso violonista Daniel Murray.
O público calou-se para ouvir hipnotizado números como “Água e Vinho” e “Palhaço”, até que alguém na plateia pediu “Fala da Paixão” e Gismonti, de forma impressionante, não apenas atendeu ao pedido, como voltou com o mesmo tema no bis, ao explicar que mostraria uma versão nova (e inédita) que vinha fazendo da mesma música.
Depois foi a vez da outra homenageada do evento deitar e rolar. A baiana brasiliense Rosa Passos, mais acostumada a apresentar-se nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia, montou um show pensando em rodar o Brasil e mostrar repertório de gigantes que visita, como Tom Jobim, Dori Caymmi, Ary Barroso e Djavan, além de suas próprias composições.
Sua voz magnífica vinha acompanhada de uma banda de primeiríssima, como o esplendoroso Lula Galvão no violão e o imortal Jorge Helder no baixo. Ela mesma tomou o violão para cantar algumas músicas. Feliz de estar cantando no Brasil, saudava o tempo todo os netos que estavam na grade do espetáculo ao lado de sua família, uma vez que ela fez casa na capital federal.
O festival encerrou com um grande baile ao trazer não apenas os músicos brasilienses da Gafieira Cerrado Jazz, transformando em pista de dança uma plateia que foi minguando aos poucos. Talvez fosse melhor tê-los colocados para tocar entre Egberto e Rosa, assim aumentando a expectativa para um grande show final e encerrando o festival homenageando a cantora.
Mas foi apenas um detalhe que não chegou a macular a apresentação, fazendo com que o Cerrado Jazz Festival chegasse a um patamar de excelência raramente visto no Brasil, que oferece música diversa e sofisticada gratuitamente e sem exigir disposição do público para atravessar dezenas de apresentações por dia.
E uma vez que estabeleceram este parâmetro, resta saber como vão superá-lo no ano que vem.
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