Dois extremos do rock

A edição desta semana do Inferninho Trabalho Sujo no Picles firmou-se em duas vertentes distintas do espectro do rock. A primeira atração foi o power blues do Orange Disaster, que, com duas guitarras, vocal e bateria, começaram a noite rasgando riffs e fazendo o chão tremer. A guitarra-baixo de Carlão Freitas dispara riffs que funcionam como chamados de guerra para os delírios noise do segundo guitarrista, Vinícius Favaretto. Juntos – e propulsionados pela bateria pesada de Davi Rodriguez – eles deixam o púlpito da noite à disposição do vocalista Julio Cesar Magalhaes, que com o visual mais antirrock possível (apesar da camiseta com um pentagrama), dispara sermões apocalípticos que conversam bem com os dias de pior qualidade do ar de São Paulo que temos atravessado. O clima de blues bad vibe descende de formações cruas como Jon Spencer Blues Explosion e Pussy Galore e fez o público grudar no palco. E o Vini no final ainda puxou um cowbell antes de entrar no meio do público. Foi demais.

Depois foi a vez do Antiprisma subir no palco do Picles e o clima pesado dissipou para dar lugar à trama delicada criada a partir do encontro das guitarras e vocais do casal que conduz o grupo, Elisa Moreira e Victor José, que vão do folk ao indie rock sem muito esforço, conduzindo tanto as velhas quanto as novas canções (do disco que o grupo lança ainda esse ano) do susurro à microfonia usando o rock clássico como régua. Ao lado deles, a dupla que forma o grupo Retrato (Ana Zumpano na bateria e Beeau Goméz no baixo), que completa a formação ao vivo do Antiprisma, fecha a cozinha da banda com cumplicidade e sutileza, sem nunca tirar o foco dos dois que deram o tom da segunda apresentação da noite. Depois, eu e Bamboloki começamos anunciando a pista com o tema de Beetlejuice (culpa dela!) para depois permabular pelo rock dos anos 80, o funk brasileiro do início do século, pepitas de dance music e indie rock e um ar meio freak entre o glam rock e o pop brasileiro. Quem foi sabe…

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Varanda intensa

Bem bonito o show de lançamento do disco de estreia do Varanda, Beirada, que aconteceu nesta quinta-feira no auditório do Sesc Vila Mariana. O grupo de Juiz de Fora optou por apresentar o disco na íntegra, com poucas intervenções entre as músicas, para reforçar a unidade narrativa do disco recém-lançado e o fato de mostrá-lo para um público que assistia sentado à banda, com todos os olhos vidrados no palco, trouxe uma inevitável nervosismo no início da noite, que foi sendo vencido à medida em que o show discorria. Normal, afinal a banda saltou de apresentações em pequenas casas de show para um espetáculo quase teatral, em que o humor e a informalidade que normalmente atravessam os shows do grupo, o que acabou mexendo na intensidade das primeiras músicas, mas sem deixar que elas perdessem sua beleza natural. A química entre os quatro aos poucos foi falando mais alto e logo eles superaram essa instabilidade inicial e é bonito ver como, mesmo sem precisar trocar olhares, o baixo melódico de Augusto Vargas, a guitarra indie e noise de Mario Lorenzi e a bateria precisa de Bernardo Mehry (contando com a presença do quinto elemento Fiôra nos teclados e violões) tecem a cama perfeita para que a vocalista e estrela da banda, a maravilhosa Amélia do Carmo soltasse sua voz e deixasse sua alma levitar ao mesmo tempo – hipnotizando o público como uma sacerdotisa. As participações especiais foram cruciais para essa escalada, primeiro quando convidaram Manu Julian, vocalista do Fernê e dos Pelados, para dividir “Cê Mexe Comigo” – que foi saudada por Amélia, ao final de sua vinda como “a voz de uma geração” – e depois quando Dinho Almeida subiu no palco para fazer não apenas a música que gravou no disco do grupo, “Desce Já”, como a seguinte “Relâmpagos”, proporcionando o melhor momento da noite ao deixar a banda completamente à vontade. Logo depois encerraram o repertório do disco, mas continuaram com um longo bis que reuniu as faixas que ficaram de fora no álbum – e aí a noite já estava ganha. Lavaram a alma do público e a deles mesmos, entregando uma apresentação intensa e elétrica, deixando aquele famoso gostinho de “quero mais”.

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Entre o pós-punk e o glam rock

Foi bonito ver o grupo cearense Jonnata Doll e seus Garotos Solventes finalmente deixar a sombra do passado recente de lado para começar uma nova fase nesta terça-feira, no Centro da Terra, quando apresentaram o espetáculo A Próxima Parada composto quase integralmente por canções inéditas. Como todos os artistas, o grupo demorou para sair do período pandêmico e ainda sentiu a perda do amigo Felipe Maia, baterista da banda que partiu há um ano, o que tornou ainda mais complicado retornar às atividades. Mas com Clayton Martin – o maior cearense da Mooca, único paulistano do grupo Cidadão Instigado – assumindo as baquetas, o grupo aos poucos começou a voltar a fazer shows, mas ainda não tinha mostrado nenhum material novo ao vivo, o que finalmente aconteceu nesta apresentação, que ainda contou com a participação da cantora Yma, que participou ao lado da banda cearense do primeiro volume do projeto Colab que o selo Risco criou para reunir dois artistas distintos numa residência em estúdio – e reza a lenda, que o projeto, no forno há anos, finalmente sai esse ano. Yma entrou completamente no clima da noite, mais pós-punk do que nunca. A química entre o novo baterista e o baixista Joaquim Loro Sujo é típica das bandas inglesas da virada dos anos 70 para os 80, quando ondas de grooves retos encontravam o pulso metronômico e minimalista de uma bateria quase eletrônica, temperada pelo esperto uso dos pratos que Clayton traz de sua bagagem de rock clássico. Escondido quase como uma arma secreta, Edson Van Gogh tornou-se o guitarrista que queria ser quando era adolescente: andrógino, sério e fazendo vocais discretos e observando tudo como se estivesse à parte, ele usa seu instrumento como uma batuta elétrica, regendo o grupo entre jorros de ruído, ecos hipnóticos, marcações grooveadas e uma aura hipnótica. À frente da banda, esta força da natureza chamada Jonnata Doll derruba quilos de cores e glitter na máquina pós-punk que são os Garotos Solventes, puxando sua banda como uma mistura de Mick Jagger com Marc Bolan e Jerry Lewis, professor aloprado do glam rock que brilha tanto quando usa seu corpo como instrumento musical em performances individualíssimas quanto como um Jonathan Richamn poseur, quase uma contradição, quando toca sua guitarra. A seu lado, Yma deixou seu brilho natural e espertamente preferiu ficar de coadjuvante, deixando o holofote brilhar mais em Doll, esse Iggy Pop cearense, mesmo ao dividir vocais e o protagonismo com ele – que certamente foram alguns dos melhores momentos do show, a ponto do próprio Jonnata reforçar, no fim do show, fora do palco, que quer compor ainda mais músicas com a cantora para seu próximo disco. Bota na sua cabeça que isso aí vai render…

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Essa dupla…

Depois corri pro Bona pra conseguir assistir à Sophia Chablau ao lado de seu novo chapa, o baiano Felipe Vaqueiro, vocalista dos Tangolo Mangos, em apresentação apenas com vozes e guitarras. Ela abriu a noite sozinha, cantando músicas próprias como “Hello” e “Baby Míssil”, além de músicas novas, como “Venha Comigo”, recém-gravada por Dora Morelenbaum, antes de chamar Vaqueiro para o palco, quando os dois dividiram algumas músicas, como “Quem Vai Apagar a Luz?” e “Grilos” de Erasmo Carlos. Depois foi a vez do guitarrista ficar sozinho no palco, quando visitou algumas músicas próprias, entre inéditas e algumas de sua sua banda, como “Hipóteses, Telhas, Pandas, Ovelhas”, e depois chamou Sophia de volta para repassarem mais músicas, entre elas a primeira composição dos dois, mostrando que a química entre os dois pode evoluir para além destas apresentações ao vivo. A noite terminou com os dois tocando músicas de seus respectivos grupos, começando por “Segredo” e terminando com a bela “Pocas”. Muito astral.

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De tirar o fôlego

Acompanhada apenas do violão erudito do músico Luca Frazão, a cantora e compositora Loreta Colucci tirou o fôlego do público na segunda noite da temporada do grupo Gole Seco está fazendo no Centro da Terra. Revendo as músicas de seu primeiro disco, Antes Que Eu Caia, em arranjos ao mesmo tempo simples, diretos e rebuscados, ela hipnotizou o público com sua voz magnética e seu inevitável carisma, passeando não apenas por suas próprias composições, mas também de outros autores, como “Mechita” de Manuel Raygada Ballesteros (via Sílvia Pérez Cruz) e “Gostoso Veneno”, imortalizada por Alcione. No meio da apresentação, suas companheiras de Gole Seco Niwa, Giu de Castro e Nathalie Alvim, subiram ao palco para primeiro cantar primeiro sozinhas “Pega Que é Teu” do disco que o grupo lançou ano passado e depois, acompanhadas de Luca, “Derramou”, de Alessandra Leão, em primoroso arrannjo vocal. Foi bem bonito.

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Um Inferninho celestial

A maior edição do Inferninho Trabalho Sujo, que aconteceu nesta quinta-feira, também foi uma experiência auditiva. Se nas outras edições privilegiávamos o calor humano de um espaço pequeno em que bandas poderiam aquecer ainda mais a noite com o volume de seu som, desta vez trazendo para o palco de pé direito alto da Casa Rockambole optamos por uma edição celestial em que a sensibilidade e a delicadeza estivessem em primeiro plano, sem que isso diminuísse a temperatura da noite. E o crescendo musical e energético que começou com voz e violão e acabou com uma banda de rock fez o público subir a expectativa cada vez a cada nova apresentação, devidamente saciada após cada um dos shows.

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Expandindo a pal(h)eta

Ao lançar um dos melhores discos de 2024 num espaço pequeno como o Auditório do Sesc Pinheiros, nesta quarta-feira, Thiago França sublinhou que seu novo disco (trinta e quantos?) é reservado para audições menores e mais intimistas, mas sem isso se confunda com mais leve ou mais delicado. Logicamente que há momentos de sutileza e sentimento, mas o forte da apresentação tinha peso, força e intensidade, especificamente por Thiago ter escolhido o formato de trio de jazz para conduzir o repertório da vez. E ao lado dos velhos comparsas Welington “Pimpa” Moreira e Marcelo Cabral, ele aproveitou para explorar todos o espectro possível daquela formação em cima dos temas registrados no novo disco. Uns deles (como “Luango” ou a faixa-título do disco, “Canhoto de Pé”) são velhos conhecidos de quem acompanha o trabalho do saxofonista e pontos de partidas para verdadeiras tours-de-force instrumentais, seja coletivamente ou em hipnóticos momentos solo. Mas no terço final do show, Thiago expandiu ainda mais sua paleta sonora, ao começar pelo “Bolero do Desterro”, faixa do segundo disco de seu projeto Sambanzo, que transformou-se num momento solo em que Pimpa e Cabral o deixaram só no palco, quando mostrou o motocontínuo de sua respiração circular, antes de receber Juçara Marçal para a versão dilaceradora que os dois registraram no novo disco de Thiago, quando visitaram, sax e voz, a preciosa “Dor Elegante”, de Itamar Assumpção. Aproveitando a presença de Juçara, encerrou o show com uma mistura (ou “um remix analógico e orgânico”, como ele mesmo brincou) de “Fear of the Bate Bola” do disco da vez com “Bará” que Juçara compôs quando o grupo Metá Metá foi convidado para fazer a trilha sonora de um espetáculo do grupo Corpo. O público pediu bis e Thiago encerrou a noite com a imortal “Cabecinha no Ombro”, de Paulo Borges, tocando sozinho e pedindo pro público cantar o eterno acalanto junto com seu sax. Que noite!

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Um filme em busca de uma trilha

Cuca Ferreira pisou firme em sua estreia como artista solo em sua apresentação no Centro da Terra nesta terça-feira. Embora ainda se escondendo sob o pseudônimo de Cuca Sounds, ele deixou sua marca explícita em toda a apresentação, desde o desenho da formação musical que reuniu à escolha do repertório até a forma como ele foi apresentado. A deixa inicial foi a primeira apresentação ao vivo do EP que lançou no primeiro semestre que batizava o espetáculo, Música em Busca de um Filme, mas esse foi só o mote inicial da noite, resolvido na primeira faixa. Dali em diante, Cuca e o exército de sopro e ritmo que organizou mergulharam no mar das memórias do saxofonista, passando por músicas que foram importante em sua carreira, como “Algo Maior” da Tulipa Ruiz, “Pomba de Gira do Luar” de Luiza Lian e “Saudade de Casa” e “Ngm + Vai Tevertrist” de Giovani Cidreita, um dos convidados da noite, com quem Cuca vem trabalhando ao vivo; e faixas autorais, como as do disco que lançou há pouco tempo, uma da segunda parte deste projeto, ainda inédita, e uma música em homenagem ao compositor Philip Glass, chamada “Glass Key”, esta última coreografada por sua filha, a dançãarina Beatriz Galli que, como o próprio pai disse antes da apresentação, mostrou que não estava ali por nepotismo. A banda, sem instrumentos harmônicos ou bateria, contava com velhos e novos cúmplices de Cuca, como o baixista Fábio Sá (com quem sempre tocou em projetos temporários), a flautista Marina Bastos (com quem ele tocava pela primeira vez), a percussionista Valentina Facury e o trombinista Doug Bone (ambos integrantes de uma de suas bandas, o decano Bixiga 70). Longe do palco, Bernardo Pacheco e Paulinho Fluxus, outros velhos camaradas de Cuca, cuidavam respectivamente do som e da luz, provocando intervenções cirúrgicas. E escondido atrás das cortinas estava o agente oculto Marcos Vilas Boas, que projetava imagens durante toda a apresentação – até chegar ao ápice da noite, quando a banda – e a dançarina – improvisou a partir de imagens que Vilas Boas projetava sem ter combinado nada previamente, invertendo o título da noite e mostrando o quanto essa formação é orgânica e próxima, num delírio em preto e branco. Agora é colocar essa turma na estrada, seu Cuca!

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Nas alturas

A primeira apresentação da temporada do grupo vocal Gole Seco no Centro da Terra subiu a régua lá no alto quando a cantora Niwa voltou para seus tempos de intérprete celebrando cantoras e compositoras num espetáculo que chamou de Disruptivas. E já começou a noite com a fabulosa “Feminina” de Joyce, passando por canções de Dona Onette (“No Meio do Pitiú”, quando reforçou sua ascendência paraense), Fátima Guedes (a deslumbrante “Cheiro de Mato”), Tetê Espíndola (“Cunhataiporã”), Lila Downs (“Yunu Yucu Ninu”, poema mixteca musicado pela cantora mexicana), Urias (a excelente “Foi Mal”) e Ná Ozzeti (“Ultrapássaro”, canção composta por seu irmão Dante e José Miguel Wisnik), cercada pela banda que a acompanhava no início de sua carreira (formada por Ivan Liberato na guitarra, Pedro Canales no baixo e Felipe Rezende na bateria) e de João Antunes (produtor de seu primeiro disco, tocando violão e guitarra). No meio da apresentação ela chamou suas amigas de Gole Seco (Giu de Castro, Loreta Colucci e Nathalie Alvim) para duas músicas, uma versão linda para “Jóga” da Björk e “Me Chamou de Feia”, canção da própria Niwa que o grupo gravou em seu primeiro álbum. A banda voltou para acompanhá-la por duas músicas próprias (“Mulessa” e “A Justiça de Tupã / Yo’i Tüna Pogü”) antes que ela chamasse o último convidado da noite, o paraibano Pedro Índio Negro, que dividiu os vocais com a dona da noite em duas das maiores tour de force vocais da história do rock: “Barracuda” do Heart e “Wuthering Heights” da Kate Bush, essa última com direito à citações da coreografia do clipe. Foi de tirar o fôlego!

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Prece atendida

Em 2024 a mineira Luiza Brina conseguiu por em prática um trabalho que vinha desenvolvendo desde que começou a fazer música, quando materializou uma série de canções que batizava apenas de “Oração” num disco chamado Prece. Desde o ano passado ele vem ganhando forma quando ela convidou Charles Tixier para ajudá-la na produção de um disco que contava com uma orquestra inteira formada por mulheres e várias participações especiais (da argentina LvRod à mexicana Silvana Estrada, passando por Sérgio Pererê e Iara Rennó). Quando a convidei para fazer a temporada de março deste ano no Centro da Terra, ela resolveu apresentar o conceito e as músicas do disco – até então inéditas – chamando poucos convidados (como Tixier, Castello Branco, Iara, Jadsa e Batataboy) e deixando as apresentações intimistas. Prece surgiu opulento e grandioso no mês seguinte, quase um avesso das apresentações no teatro, embora manteivesse seu clima introspectivo e pensativo – e isso aguçou minha curiosidade para saber o disco funcionaria no palco. A curiosidade foi satisfeita neste domingo, quando ela abriu setembro acompanhada apenas de um quarteto – Guilherme Kastrup (percussão e eletrônicos), Lucas Ferrari (eletrônicos), Patrícia Garcia (oboé) e Clarissa Oropallo (fagote) – no palco do Sesc Vila Mariana. A formação pouco ortodoxa emulava a pompa de uma orquestra em versão reduzida, mas os samples disparados por Lucas e Kastrup instigavam ainda mais as madeiras tocadas por Patrícia e Clarissa. À frente, Brina cantava suas orações que por vezes funcionavam como mantras – especificamente as de número 18 e 17. Esta última ela cantou acompanhada de Maria Beraldo, depois de tocar uma das principais músicas do disco de estreia da convidada catarinense, “Amor Verdade”. Sérgio Pererê foi o outro convidado da noite, dividindo vocais na oração de número 13 e tanto Beraldo e Pererê retornaram ao palco no bis, quando repetiram a oração 18 e seu refrão mantra (“pra viver junto é preciso poder viver só, pra gente se encontrar/pra andar junto é preciso poder andar só, pra gente caminhar”) para felicidade do público. E assim sua Prece foi atendida.

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