Duas bandas distintas, de gerações e formações diferentes, sintonizaram vibes parecidas nessa sexta-feira no Inferninho Trabalho Sujo. Antes da entrada da banda Ondas de Calor foi a vez do quarteto Celacanto, grata surpresa que foge do indie rock que vem sendo feito no Brasil com letras e melodias complexas que fogem das referências de sempre. O show ainda contou com a participação de Lauiz Orgânico, tecladista e produtor do grupo Pelados que acaba de produzir o primeiro álbum da banda. Formado por Miguel Lian Leite (vocal e guitarra), Eduardo Barco (guitarra e acordeão), Matheus Arruda (baixo) e Giovanni Lenti (bateria), o Celacanto tocou pela primeira vez no Picles e está pronto para desbravar mais palcos da cena independente paulistana – e do Brasil. Fique atento.
Depois do Celacanto foi a vez do grupo Ondas de Calor tocar no Inferninho Trabalho Sujo, fazendo a segunda apresentação de sua carreira. Apesar de novíssima (a banda não tem nem conta no Instagram), o Ondas é formado por músicos veteranos da cena que começaram a tocar juntos acompanhando a cantora Soledad. Todos são multiinstrumentistas e passaram o show trocando de instrumentos: Davi Serrano ia da guitarra pro baixo e pro teclado, Xavier Francisco ia da bateria pra guitarra e pro baixo, Allen Alencar ia da guitarra pro baixo e pro teclado e Igor Caracas ia do teclado e percussão pra bateria e pra guitarra, todos tocando músicas compostas individualmente e arranjadas de forma coletiva. O show ainda teve a participação de Julia Valiengo, vocalista da Trupe Chá de Boldo, que contou a história da banda antes de entrar na versão que o grupo fez para “Portentosa”, da própria Soledad. Dois ótimos shows que deixaram a noite em ponto de bala pra eu e a Fran atravessar a madrugada fazendo todo mundo dançar… Foi bonito.
E antes da quinta acabar ainda pude ver a segunda noite dos shows que o Queremos fez em São Paulo, antecipando o festival que farão no sábado no Rio de Janeiro. Mais uma vez na Áudio, a produtora carioca reuniu duas atrações internacionais relativamente desconhecidas que trouxeram um bom público para a casa entrando na onda dos dois artistas, nomes em ascensão na cena soul jazz londrina. Quem começou a noite foi a impressionante Adi Oasis, que empunhando seu baixo com uma desenvoltura invejável, como seu carisma igualmente intenso, conquistou facilmente o público – e citar “Onda” do Cassiano ou chamar Luedji Luna para dividir o palco foram só as cerejas de uma apresentação de peso. Depois foi a vez do produtor e tecladista Alfa Mist, que levou o público para uma viagem mais jazz cabeçuda, que rapídamente hipnotizou os presentes. Mas acho que se a ordem das atrações fosse invertidas – deixando Adi Oasis para encerrar o dia -, a noite terminaria num clima ainda mais pra cima e alto astral do que terminou.
Finalmente conheci o recém inaugurado porão da Casa de Francisca – e não podia ser com uma atração melhor, quando, mais uma vez, Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Suzana Salles se juntaram para celebrar Itamar Assumpção apenas com violão e vozes. A entrada para o novo palco do Palacete Tereza fica na porta ao lado do acesso original da casa e o público desce por uma rampa abaixo de uma placa que nos recepciona para o “Cine Teatro – Espaço Imaginário e Recreativo”, que já dá a medida das possibilidades do novo espaço. O show desta quarta foi para um público sentado em poltronas ao redor do palco, que fica num tablado circular no centro do porão, mas o espaço permite várias modalidades de apresentação, inclusive além de atrações musicais, como deixa explícita a placa na entrada. A apresentação intimista pediu uma luz mais comedida e a sensibilidade dos três intérpretes nos deixava ainda mais próximos do palco. Todos de preto e óculos escuros passavam um repertório não tão óbvio das canções do mestre Ita e alternavam momentos de frágil delicadeza com espasmos de som liberados pelo violão de Kiko e acompanhado por berros de Suzana e Juçara. E tão bom quanto a apresentação da noite foi descobrir que a movimentação à entrada do Palacete, ocupando a rua em frente a outra nova área da Francisca, um bar e restaurante na parte térrea, seguia noite adentro, mesmo depois do DJ do dia, o grande Rodrigo Caçapa, que estava tocando desde o começo da noite até a hora do show começar, ter parado de tocar. Muito bom ver a Francisca tomando conta da rua e ampliando as possibilidades artísticas e culturais em uma região que, dez anos atrás, estava completamente largada. Viva a Casa de Francisca!
Nesta terça-feira, o trio Música de Selvagem convidou o público do Centro da Terra para uma viagem densa que, ao mesmo tempo em que desbravava fronteiras de linguagem, lentamente aquecia sentimentos e neurônios ao apresentar o conceito de sua apresentação Cru/Cozido, inspirado no trabalho do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, inspirador do disco Pensamento Selvagem, lançado em 2021. O disco original, fruto do processo de isolamento do período pandêmico, misturou os instrumentos do trio (o baixo de Arthur Decloedt, os sopros de Filipe Nader e a percussão de Guilherme Marques) às incursões vocais de Inês Terra e às eletrônicas de Luisa Putterman – tudo gravado à distância e trabalhado em três partes de pós-produção dirigida por cada um dos integrantes do grupo. O trabalho de 2021, portanto dividido em três atos, foi seccionado em 94 partes, sendo que três delas apresentavam cada um dos atos. Para cada uma das 91 partes do trabalho, a artista gráfica Maria Cau Levy criou uma capa específica e todos esses 91 recortes visuais estavam espalhados pelo palco do teatro do Sumaré, de onde o público pode assistir à apresentação. Grudados na plateia, os instrumentistas não precisaram nem de microfones, deixando este apenas com Inês, que ainda processava sua própria voz no meio das diferentes camadas de improviso livre propostas pelo encontro. No lugar de Putterman, que não estava na cidade, o trio chamou o trompetista Rômulo Alexis, que alternou seu instrumento com apitos e flautas, complementando os malabarismos vocais de Inês. Como no disco, o espetáculo foi dividido em três partes, cada uma delas mostrando o processo de transformação da comida que mudou a cara da civilização, apresentando primeiro o estado cru para depois mostrar a metamorfose do momento de cocção para finalmente exibir a última etapa, já cozida. As três partes misturavam ataques coletivos com duos entre diferentes integrantes da apresentação, todos temperados pela luz que ia da penumbra ao calor de cores quentes, numa apresentação curta que ao mesmo tempo pareceu suspender nossa noção de tempo.
E a temporada de abril no Centro da Terra começou devagarinho, como quem não quer nada, e aos poucos dominou o público que saiu de casa numa segunda-feira chuvosa para encher o teatro do Sumaré. Rodrigo Campos, Rômulo Froes e Thiago França começaram pelo projeto mais recente dos dois primeiros (o ótimo Elefante, lançado no ano passado), contando com a presença de Marcelo Cabral e Anna Vis como convidados. Cabral esteve no palco desde o início, quase um quarto integrante da temporada, e enquanto Rômulo e Rodrigo dividiam-se nos violões, ele e Thiago alternavam de instrumentos a cada nova canção: Thiago ia do sax pra flauta pro surdo pro cavaco e pra caixinha de fósforos, enquanto Cabral alternava seu contrabaixo acústico (tocado com ou sem arco e com ou sem efeitos) com outros instrumentos de percussão. Da metade da apresentação em diante, Anna Vis veio sem instrumentos para o centro do quarteto, dobrando vozes com os outros dois vocalistas, que expandiam o repertório para além do disco de 2023, puxando músicas em comum aos envolvidos, desde canções solo de Rômulo e Rodrigo (que estreou uma inédita, “Cadê o Dinheiro?”) a uma natalina fora de época (e triiiiste) “Boas Festas” de Assis Valente até “Da Vila Guilherme até o Imirim”, do Passo Torto, e “Dono da Bateria”, do disco Conversas Com Toshiro, de Rodrigo, que encerraram a apresentação.
Híbrido de peça e apresentação musical, o espetáculo Pega, Mata e Come: 60 anos de Opinião, que foi exibido em duas sessões neste fim de semana no Sesc Vila Mariana, foi concebido por Paulo Tó ao lado do Instituto Augusto Boal antes mesmo do período pandêmico, que acabou por adiar sua existência. Retomada dentro da programação Territórios do Lembrar que aquela unidade do Sesc está fazendo para que não esqueçamos da tragédia política e cultural que foi o golpe empresarial-militar de 1964, a peça musical aproveitou a infame efeméride para realçar a importância de um espetáculo que hoje é lembrado mais como o palco para os primeiros passos das carreiras de Nara Leão e Maria Bethania do que como o que realmente foi: a primeira obra artística a se revoltar contra o revolução de araque que as forças armadas e parte do empresariado brasileiro deu contra a democracia brasileira sob o pretexto de “interromper o avanço comunista”, mentira repetida até hoje por seus agentes até para justificar crises políticas do país neste século. Montado pelo herói do teatro brasileiro Augusto Boal, Opinião foi revisitado por seu filho Julian Boal e a dramaturga Mariana Mayor, companheira de Tó, que assina a direção musical do espetáculo, dirigido por Jé Oliveira. À frente da apresentação, Xis, Ellen Oléria, Xeina Barros, Alessandra Leão e o próprio Tó, apresentavam-se como os integrantes da montagem original, assumindo personalidades que ajudavam o público entender o contexto da época ao mesmo tempo em que desfilaram tanto as canções do espetáculo original (“Peba na pimenta” de Dominguinhos, “Guantanamera” que foi cantada pela viúva de Boal, Cecília Boal, “Borandá” de Edu Lobo e, claro, a faixa de Zé Kéti que batizou o espetáculo original e a de João do Valle que trouxe o verso que batiza esse novo espetáculo) quanto músicas contemporâneas que conversam com a alma do espetáculo, como “História Para Ninar Gente Grande” (samba-enredo da Mangueira em 2019), “Lama” (de Douglas Germano), “Zumbi” (de Jorge Ben) e “Obá Iná” (do Metá Metá), além de músicas dos próprios intérpretes: Tó (contemplado em “Samba do Perdoa” e “De Cara no Asfalto”), Ellen (que trouxe “Testando” e sua versão para “Miss Celie’s Blues”), Xis (“De Esquina” e “Us Mano e As Mina”) e Alessandra (com “Exu Chega”, “Atirei” e sua versão para “Xangô”). Na banda que acompanhou o grupo de perto, um grupo pesado formado por Marcelo Cabral, Thiago Sonho, Lua Bernardo e Rodrigo Caçapa. Pena só terem rolado duas apresentações, temporada curta para uma apresentação deste porte ganhar corpo e lacear entre os intérpretes. Vamos torcer para outras edições pintarem em outras unidades do Sesc.
O primeiro show do ano dos Pelados, minha banda indie brasileira favorita, aconteceu nesta quinta-feira no Fffront e a sensação de ver um grupo de amigos afiados tanto musicalmente quanto em termos de empatia num ambiente minúsculo repleto de fãs é dessas energias que me ajudam a seguir a longa estrada da vida. Focando todo seu repertório nas músicas de seu segundo disco, o excelente Foi Mal, o quinteto paulistano fez a laje do clube da Vila Madalena sacudir em músicas tortas e retas, entre baladas e faixas pra dançar, todas cantadas pelo público em êxtase por estar compartilhando da sensação que descrevi no início. O show, como sempre, chega ao auge quando eles cantam o hino composto para essa situação, a épica “Yo La Tengo na Casa do Mancha” que fez todo mundo gritar o refrão, que pede justamente pra gritar e ser gritado. Showzão!
Bem bonita a apresentação que Nina Maia fez no Bona nesta quarta-feira, para celebrar o lançamento de seu novo single, “Amargo”, que chegou ao público nesta quinta. Apresentando o mesmo espetáculo Inteira que mostrou há dois meses no Centro da Terra, ela dividiu sua apresentação em duas partes. Na primeira, cantando sozinha acompanhada apenas de bases pré-gravadas, ela soltou a voz em canções densas e complexas, deixando o lado mais intenso e palatável para quando trouxe os músicos que convidou ao palco – e desta vez, além de Valentim Frateschi no baixo e Thalin na bateria (além dela mesma no teclado), ela contou com o violinista Thales Hashiguti, que deu uma nova dimensão à apresentação. Segura de si e de suas próprias (novas) canções, ela não teve dificuldades em deslizar nas bases instrumentais e mostrar a força de sua voz grave e seu domínio cênico cada vez mais firme.
Nesta terça-feira, Rômulo Froes inaugurou a curadoria que está fazendo no Sarau, o minúsculo bar do recém-inaugurado Pulso Hotel, quando chamará grandes nomes da música brasileira contemporânea para apresentar-se à meia luz para um público bem reduzido. Além de anunciar que nomes como Jadsa, Josyara, Alice Caymmi e Maurício Pereira, entre outros que estarão nas próximas terças, ele contou com a melhor abertura possível, por conta do trio Metá Metá. E com Juçara, Kiko e Thiago desfilando seu já clássico repertório não tem erro, né? Os três hipnotizaram o público em versões ainda mais discretas dos hits de seus três discos, além de puxar versões clássicas que fazem para Jards Macalé, Douglas Germano e, claro, “Trovoa”, de Maurício Pereira. E terça que vem tem Ava Rocha com o Chicão! Imperdível!
A apresentação que o grupo Orfeu Menino fez nessa terça-feira no Centro da Terra, flagrou-os começando a tatear o próprio repertório enquanto deixa o passado de versões pra trás, sem deixar as referências de jazz brasileiro de lado. O grupo começou com uma música da vocalista Luiza Villa, passou por interlúdios bolados pelo jovem maestro Pedro Abujamra, uma canção do baixista João Pedro Ferrari e inspirados solos tanto de Pedro, quanto do guitarrista Tomé Antunes e do baterista Tommy Coelho. No percurso, passaram por “Estrada do Sol” (Tom Jobim e Dolores Duran) e “Beijo Partido” (Toninho Horta), antes de mexer em uma versão mais jazz da primeira composição desta nova leva, “Pega Mal”. Tá ficando bonito…