O trompetista Romulo Alexis começou sua temporada Cosmofonias nesta segunda-feira no Centro da Terra invocando a performance Fenda, que fez à frente de seu Rádio Diáspora, duo que mantém ao lado do baterista Wagner Ramos, fez ao lado das bailarinas Belle Delmondes e Ester Lopes. Enquanto a dupla instrumental explorava as fronteiras do free jazz, as duas performers se entregavam de voz e corpo à liberdade expandida musicalmente, colocando movimentos, gestos, cantos e gritos ao dispor da apresentação, que por vezes explodia em catarse, noutras recolhia-se à espreita, buscando direções e encontrando outras entre estes dois extremos.
Duas produtoras líderes de bandas que estão começando experimentaram pela primeira vez o palco do Picles neste fim de semana, quando Tiny Bear e Grisa apresentaram seus trabalhos no Inferninho Trabalho Sujo. Com muita emoção à flor da pele, as bandas passeiam por camadas sonoras tensas e hipnóticas para cantar músicas com sensibilidade à flor da pele. Liderado por Bia Brasil, o grupo Tiny Bear derramou seu drama posicionando-se em algum lugar entre as baladas de anime, o trip hop e o indie rock e mesmo com um integrante a menos não fez feio, com sua cabeça e vocalista entregando-se às canções.
O clima já estava quente e quando chegou a vez da Grisa de Giovana Ribeiro Santos, de Juiz de Fora, a temperatura manteve-se firme, abrindo outras possibilidades dramáticas. Calcadas num soul pesado, no rock psicodélico e no shoegaze, o grupo fez seu primeiro show em São Paulo, mostrando músicas já lançadas e algumas de seu primeiro álbum, Geografia de Lugar Nenhum, prometido ainda para esse ano. Entre a guitarra e o theremin, Giovana mostrou a que veio – e deixou tudo no jeito pra que eu e a Bamboloki, que discotecou comigo dessa vez, levássemos a pista do Picles para um universo de rock, dance music e esquisitices desenfreada. Discotecar na sexta-feira é outro nível, né…
Fim de semana começou com o reencontro da banda Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo com seu farol artístico, Ana Frango Elétrico, que originalmente aconteceria no início de março mas que, por questões pessoais (Theo Ceccato, o baterista, havia quebrado o pé!), só aconteceu dois meses depois, no mesmo Sesc Bom Retiro em que o primeiro show aconteceria. Era também o primeiro show da Enorme em uma unidade do Sesc após o lançamento de seu segundo álbum e acontecer no Bom Retiro ainda lhes garantiu um ótimo som para mostrar seu Música de Esquecimento na primeira parte do show – que ainda teve o próprio baterista vindo para frente cantar sua ótima balada “O Último Sexo” quase às lágrimas. Mas depois que Ana subiu ao palco, a banda voltou no tempo e Sophia puxou o flashback pra julho de 2019, quando eu havia juntado aquelas duas jovens forças no palco do Centro Cultural São Paulo, fazendo-os voltar ao primeiro disco de Ana, Mormaço Queima, que a vocalista não mediu elogios ao comparar com a lenda urbana do primeiro disco do Velvet Underground, que não vendeu muito, mas todo mundo que o comprou montou uma banda. E assim voltaram ao passado para tocar juntos músicas de seus primeiros discos como “Debaixo do Pano”, “Picles”, “Loteria” e “Delícia Luxúria”, mas também puxaram duas de seus discos recentes, como “Segredo” e “Quem Vai Apagar A Luz?”, em que Ana assumiu a voz do coautor da música, Negro Leo, e o momento mais bonito da noite, a versão que fizeram juntos para “Insista em Mim”. “Não vai embora nunca”, disse Sophia, antes de emendar, quase chorando que, “você é meu melhor amigo, cara”. Foi demais.
Assisti à última apresentação da turnê Baleia de Lupe que reuniu dois integrantes da banda Baleia (Gabriel Vaz e Felipe Pacheco Ventura) e dois da Lupe de Lupe (Vitor Brauer e Jonathan Tadeu) para percorrer uma maratona de quase 30 shows por dezenas de cidades pelo Brasil tocando o repertório das duas bandas. Era inevitável que depois de tanto tempo convivendo e tocando juntos os quatros soldassem uma liga pessoal e musical que os transformou numa banda completamente nova, que além de dar uma energia intensa às canções do Baleia ainda corre o risco de fazer a banda carioca, parada desde 2019, voltar à ativa. A apresentação no Bar Alto foi filmada, o que deu tempo para o grupo respirar entre a enxurrada de canções e até fazer mais gracinhas que o normal, como quando ameaçaram – e começaram a tocar – “Sultans of Swing” dos Dire Straits entre “Frágua” (da Lupe) e “Tudo Falta, Você Sobra” (do Baleia), um dos grandes momentos do show.
E a véspera de feriado me fez cair no Picles como público e não administrador de clima, mas era um motivo mais que nobre: Rafael Castro tocaria seu SEGUNDO show depois de um hiato de quase uma década sem lançar discos. Felizmente seu vigésimo disco, Vaidosos Demais, o colocou de volta aos trilhos da música, por isso cada novo passo desse monstro sagrado deve ser saudado, mesmo que ele tenha repetido exatamente o mesmo show que fez no Inferninho Trabalho Sujo ao celebrar sua Paixão de Castro na Sexta-feira Santa – só que com novas piadas. E daí? Vamos celebrar que Rafael está de volta aos palcos, tocando, cantando e contando piadas em frente a seu público, algo que nunca poderia ter deixado de acontecer. E mais uma vez subiram ao palco os convidados Vanessa Bumagny e André Mourão, que dividem faixas com ele no disco, além de chamar a figurinista Luiza Mira para acompanhá-lo nos vocais do irresistível krautnóia “Fiscal de Foda”. Sempre um prazer!
Bonito ver o nascimento de um projeto no palco, ainda mais em se tratando de duas artistas que conheço desde o início de suas carreiras e marcando a confluência entre duas escolas aparentemente distantes. Quando Anna Vis e Jeanne Callegari vieram me falar que haviam se conectado durante semanas de retiro artístico que se submeteram ao lado de outros artistas no mês de março, tinham na cabeça que o Centro da Terra seria um bom início de parceria ao vivo; E quando o lado poético e experimental de Anna, musicista e senhora da canção, pôs-se à frente do lado musical da poeta e performer Jeanne (imersas na luz etérea de Letícia Trovijo), a faísca inicial começou a acender pontos em comum, deixando-as livres para explorar este recém-nascido projeto Fogo Fogo. A apresentação foi justamente uma lenta fogueira de sons distorcendo-se entre cantos e palavras ao mesmo tempo em que usavam elementos discretos externos que ancoravam o texto, que horas era melodia, noutras poesia e em vários momentos algo híbrido dessas duas escolas. Queimai.
Chegou ao fim nesta segunda-feira a jornada que Thiago França, Rômulo Froes e Rodrigo Campos se propuseram ao encarar a temporada 3 na Ribanceira que tomou conta das segundas de abril no Centro da Terra – e a quarta noite foi de pura celebração, com os três lembrando diferentes momentos de suas carreiras ao mesmo tempo em que recebiam dois cúmplices de encruza, ninguém menos que Juçara Marçal e Marcelo Cabral. A apresentação começou com Thiago segurando a respiração do público com seu mantra de fôlego circular no saxofone, abrindo caminho primeiro para Rômulo (com sua “Pra Comer”), depois para Rodrigo (que entrou com sua “Meu Samba Quer Se Dissolver”) e os três tocaram a marchinha “Adeus Saudade”, feita para um dos primeiros desfiles da Charanga do França. Depois entrou Cabral, tocando baixo elétrico, para acompanhá-los primeiro numa versão pagode para “Muro”, de Rômulo, e depois com a faixa-título do primeiro disco do baixista, Motor, esta já com a presença da segunda convidada, Juçara. Juntos os cinco, passaram por “Três Amigos” (do Metá Metá), “Ladeira” (do trio Sambas do Absurdo), “Queimando a Língua” (do primeiro disco da Juçara), “Presente de Casamento” e “Espera” (de Rômulo), “Califórnia Azul” e “Velho Amarelo” (de Rodrigo). A ausência da noite foi Kiko Dinucci, que não pode comparecer por questões pessoais e foi lembrado quando tocaram a bela “São Paulo de Noite”, do Thiago – ou “Dinucci”, como brincaram. Também foi sentida a ausência de qualquer canção do grupo Passo Torto, que tinha 3/4 de sua formação no palco. Entre as músicas o tom era de conversa de bar, com Thiago brincando que Juçara tinha o colocado no time dos saxofonistas compositores ao lado de Milton Guedes e Jorge Israel enquanto Rômulo fazia a genealogia de cada uma das canções. Ele ainda brincou que estava chegando na beira da ribanceira, “olhando o precipício e ele olhando de volta” pouco antes de um deslize de memória (quem viu viu) que veio antes do encerramento da noite e da temporada, quando emendaram “Fim de Cidade” e “Mulher do Fim do Mundo”. Uma noite especial – e Juçara ainda soltou um spoiler do que vem por aí…
Maravilhosa a apresentação de Amaro Freitas no Sesc Pompeia, quando tocou seu recém-lançado Y’Y depois de uma turnê intensa pela Europa. Primeira vez que o vejo sozinho ao piano, o jovem erudito pernambucano não economizou sons ao explicar a opção por trabalhar o piano preparado de John Cage à brasileira, misturando referências culturais que vão de texturas pré-gravadas, loops eletrônicas, uma kalimba, chocalhos e apitos, além de percutir as cordas do piano por dentro. Em alguns momentos mais virtuose, em outros mais à vontade, ele chegou ao equilíbrio entre as duas partes quando, no bis, mostrou a inédita “Gabrielle”, composta para sua companheira, a artista Luna Vitrolira, presente na plateia, cujo nome de batismo é o título da canção. Uma apresentação forte e delicada na mesma medida.
Otto lavou a alma – a própria e a de centenas de pessoas – neste sábado no Cine Joia quando revisitou o intenso Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos, seu quarto álbum, que está completando quinze (!) anos. À frente de uma banda pesada e concisa (Guri Assis Brasil e Junior Boca nas guitarras, Meno Del Picchia no baixo, Ilhan Ersahin no sax, Beto Gibbs na batera, Yuri Queiroga nos teclados e o eterno comparsa Malê na percussão), ele entregou-se à emoção do disco, principalmente por ter levado dois amores ao palco, sua namorada Lavínia Alves cantou as partes que no disco que eram de Julieta Venegas e a filha Bettina, que chamou para dividir os vocais da triste “Naquela Mesa”. Bettina é filha de Otto com Alessandra Negrini, que foi a motivação para o disco, quando terminou seu relacionamento com o cantor pernambucano – e ela esteve presente no sábado, segundo relatos. Lirinha foi outro que marcou presença repetindo sua participação no disco em “Meu Mundo Dança” O disco inteiro foi cantado a plenos pulmões não só por seu autor, mas pelo público, que sabia todas as letras de cor. Álbum de duração enxuta, o disco foi seguido de uma sequência de hits de Otto que, por mais que tenham animado o público presente, não teve a intensidade do disco de quinze anos atrás ao vivo. E corre à boca pequena que ele fará mais shows voltando a esse álbum – ou seja, se você perdeu essa noite histórica, é só ficar atento que em breve deve ter mais.
E lá estava eu de novo no Centro Cultural São Paulo para ver outra grande banda deste século. O Mombojó baixou na mitológica sala Adoniran Barbosa e botou todo mundo pra dançar ao mostrar seu recém-lançado tributo a Alceu Valença, Carne de Caju, em que revisitam pérolas menos lembradas do mestre pernambucano (como “Chuva de Cajus”, “Amor que Vai”, “Sino de Ouro” e “Pétalas”) mas sem deixar de lado hits como “Como Dois Animais”, “Tomara”, “Coração Bobo” e, claro, “Morena Tropicana”. O grupo teve que fazer o show num intervalo reduzido de tempo, por isso submeteu o público a uma sessão de seus próprios sucessos, como “Antimonotonia”, “Papapa”, “Cabidela”, “Faaca” e “Deixe-se Acreditar”, esta última com a presença do MC Lucas Afonso. A banda está espalhada em três lugares diferentes do Brasil, mas consegue manter a química como se ensaiasse semanalmente – e o público saiu satisfeito, mesmo com o show curto.